Postado em LibreRed em 30 de Janeiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie
Entrevistamos Mehmet Dogan, jornalista, documentarista e antropólogo curdo, que nos explicou a história da luta do povo curdo, a atualidade e a relevância que tem este povo nos conflitos que existem no Oriente Médio; um povo com 40 milhões de pessoas às quais os países imperialistas nunca permitiram escolher seu próprio destino. Por isso, os curdos vivem divididos entre Turquia, Síria, Irã e Iraque, em uma área similar em tamanho à da Espanha, mas situada em uma posição geoestratégica crucial na qual há importantes reservas de petróleo, gás e outros recursos minerais.
Qual é a sua análise sobre a situação atual do Oriente Médio?
Há dois conflitos centrais no Oriente Médio: o da Palestina e o do Curdistão. O conflito palestino é bastante conhecido, suas causas e as forças envolvidas. No entanto, recentemente, tendo o Hamas na liderança do processo de resistência, e tendo ganhado a disputa política com a OLP, atrevo-me a dizer que não há um processo revolucionário na Palestina. Há uma luta por independência, mas independência não é sinônimo de revolução. Obviamente, os palestinos têm direito de lutar por sua independência e sua autodeterminação.
Conheço muitos companheiros curdos que morreram ao lado dos palestinos nos anos 1980, mas não devemos misturar as coisas ou entramos em confusão. O conflito entre Israel e os palestinos não tem como pano de fundo um processo revolucionário que possa mudar por completo a realidade do Oriente Médio. Por isso, o centro da revolução não está na Palestina. O centro da revolução no Oriente Médio está na Síria, está no Iraque e antes de tudo, na Turquia.
Nos anos 1960 e 70, em todo o mundo havia uma juventude combativa, quando haviam lutas de libertação em todos cantos do mundo. Nessa época houve uma luta muito interessante na Turquia. A esquerda turca e o povo curdo em geral, em muito pouco tempo, conquistaram muito terreno e ainda estiveram perto de liberar o país. Durante os anos 1970 e 80, nas mesmas décadas que na Argentina, houveram regimes ditatoriais.
Na Turquia, o imperialismo controlava o estado através do exército turco, que vale a pena dizer, é a segunda maior força da OTAN, obviamente depois do exército ianque. O movimento revolucionário, a esquerda revolucionária turca e o povo curdo foram vítimas de uma repressão brutal. Em 1980, fez-se um golpe de Estado e em apenas 3 meses houve pouco menos de 600 mil prisões. Todavia, há 20.000 desaparecidos. Desde então, até a atualidade, 5 milhões de camponeses foram removidos à força, e hoje em dia, temos 12 mil presos políticos.
Este movimento que nasceu na Turquia tem uma programa a favor dos povos, a favor das classes populares, contra o sistema neoliberal e, inclusive, um programa ecológico também. Podemos dizer que é uma ideologia socialista comunitária. No início da década de 2000, a direção do PKK, que significa Partido dos Trabalhadores do Curdistão, criou uma grande frente chamada de União de Comunidades do Curdistão (KCK). Esta união de comunidades está unindo outros partidos curdos do Iraque e da Síria. Há mais de 400 movimentos sociais que estão participando desta grande frente.
Esta frente desenvolveu uma nova ideologia que chamam de confederalismo democrático. As bases dessa ideologia apareceram em 1998, momento em que o PKK se transformou de um partido clássico marxista-leninista, em um partido mais socialista comunitário, de um partido independentista em um partido confederado.
Esta transformação implicou uma crítica profunda do Estado nacional capitalista. Para nós, criar um estado nacional, independente, curdo, hoje em dia, não serve ao benefício do povo curdo e de outros povos oprimidos, mas aos interesses do Imperialismo que quer dividir esta região em pequenos Estados. De fato, seria continuar com a política que o Imperialismo sempre teve nesta região. Os franceses, britânicos e gringos dividiram toda esta região com o critério de “uma família, um Estado”, como se pode ver, por exemplo, nos casos de Catar e Iêmen. O objetivo, obviamente, consistia em dividir o Oriente Médio para controlá-lo mais facilmente.
Não há nenhum argumento antropológico, sociológico ou político que possa legitimar a divisão geopolítica que existe atualmente no Oriente Médio. Por isso é que a União de Comunidades do Curdistão tem uma postura muito crítica com respeito a criar uma nova divisão, um novo Estado curdo. O Estado-nação capitalista é um Estado que legitima a dominação em três sentidos: primeiro, permite que uma classe explore as classes populares; segundo, através do machismo; e, por último, temos a dominação sobre a natureza. A mãe terra é vítima deste sistema de superprodução e consumismo.
Então, analisando estes três pontos, os companheiros da União de Comunidades do Curdistão chegaram a algumas conclusões muito interessantes. O confederalismo democrático prevê não apenas a autodeterminação dos povos curdos, turcos, armênios, árabes e persas, como também aposta em construir uma maneira de organização comunal de base, onde todos possam viver em harmonia com a natureza.
Com o confederalismo democrático, a luta ganhou rapidamente a simpatia de todo o povo curdo, mas também de outros povos. Antes, obviamente, as organizações tinham também muita relevância, mas chegou-se a outro nível de massividade através desta nova ideologia.
Em 1984, não havia outra maneira de lutar a não ser através da luta armada, porque havia uma ditadura na Turquia e, no Iraque, Saddam Hussein. A luta armada ganhava rapidamente simpatia e, em 1988, a guerrilha do PKK tinha cerca de 8000 guerrilheiros. E, paralelamente, os companheiros começaram a participar e incentivar as lutas democráticas, a princípio, graças à luta das mães dos desaparecidos e dos presos políticos.
Como se deram conta, é muito similar ao que se passou na Argentina. Logo surgiram movimentos políticos e sociais que nasceram, a principio, na Turquia, mas não se limitaram a este país, justamente porque os curdos também vivem na Síria, Iraque e Irã, dentro das fronteiras arbitrárias que nos impuseram. Pouco a pouco, as organizações nacionalistas curdas destes diferentes países foram levantando a bandeira do confederalismo democrático. Produziu-se uma transformação ideológica muito importante. Esta transformação foi por si uma revolução. Essas mudanças são muito visíveis.
Na Turquia, após algumas semanas houveram eleições. Os companheiros participaram das eleições e alcançaram quase 10% dos votos, obtendo 36 deputados na assembleia nacional e mais de 100 prefeitos. Se vocês viajam para lá, irão ver o que é uma prefeitura socialista comunitária. Vê-se em questões bem concretas: por exemplo, todas as organizações que pertencem a esta União de Comunidades do Curdistão, regem-se sob do princípio da co-presidência. O que quer dizer co-presidência? Uma co-presidência é uma presidência compartilhada por uma mulher e um homem. Suponhamos que em um pequeno povo onde há cinquenta habitantes e existe uma associação de cinema, onde participam 10 pessoas. Para que esta associação possa ser membro das União de Comunidades do Curdistão, ela tem que aceitar o princípio da co-presidência e designar a uma mulher e um homem como co-presidentes. Desta maneira, a mulher começa a ganhar um poder extraordinário.
Desde os anos 1980, a mulher já começou a se organizar em brigadas especiais de mulheres, as quais não somente para a luta armada, como também para atuação na sociedade em geral, mas agora a participação das mulheres tornou-se primordial. Agora, as presidências na Turquia não tem um presidente, mas sim co-presidentes, um presidente e uma presidenta. Isso muda dramaticamente a cabeça feudal e escravista do Oriente Médio. Foi uma revolução o poder imaginar e implementar organizações, presidências, comunas e assembleias populares onde a mulher seja dirigente.
Por outro lado, em cada município ou comuna ou bairro, controlados por este movimento, organizam-se em assembleias populares comunais. Não esperamos transformação do Estado. Esta ideologia, este programa não diz “vamos fazer a revolução proletária, vamos tomar o controle do Estado”. Não vamos esperar que isso ocorra, mas, de onde estamos, organizamo-nos e transformamos a vida. Nesse sentido, tudo que se passou depois de 2001 na Argentina, para nós, foi muito interessante: assembleias populares, piquetes, empresas recuperadas pelos trabalhadores, tudo isso para nós foram experiências muito importantes. Aprendemos com isso e estamos aplicando onde temos controle do território.
Por tudo isso, creio que este conflito é mais interessante porque pode transformar-se em uma revolução e pode modificar a sociedade em todos os sentidos. Vou tentar ilustrar com outro exemplo: os curdos que controlam a parte norte da Síria e Curdistão ocidental, com mais de 70.000 guerrilheiros (a maioria, mulheres), estão aplicando este modelo de confederalismo democrático de forma muito concreta. Há uma cidade na Síria que tem 100.000 habitantes, onde vivem 10.000 árabes, 10.000 armênios, 5.000 assírios, não recordo quantos cristãos e muitos membros de outras etnias. Nesta cidade-comuna, as quais são agora chamadas de cantões, desde 2010, a assembleia popular se forma não pela porcentagem de população étnica, mas pelos dois representantes armênios, dois representantes árabes, dois representantes curdos. Os curdos são maioria na população da cidade, mas não na prefeitura.
Então, com dois representantes – um homem e uma mulher – de cada etnia, a população decide, através de uma forma organizativa e muito direta, a política social, econômica e ecológica da cidade. Esta é uma experiência muito importante. As decisões não se tomam por maioria, devem dar-se por unanimidade. A maioria só quer dizer que 51% decide por 49%, mas isso nem sempre implica que seja correta a decisão.
Assim, esse processo de unanimidade na tomada de decisões permite que se produza uma discussão muito forte entre o povo, entre homens e mulheres, entre organizações, e gera uma dinâmica de formação política extraordinária. Obviamente, isso obriga que haja discussões muito profundas. O processo em si tem sido uma vitória. Levando em conta todos os aspectos, creio que neste conflito há uma luta muito interessante que pode transformar o Oriente Médio. Portanto, no mundo atual não se pode esperar transformações em apenas 5 ou 10 anos, mas insisto que continua sendo muito importante o que se tem conquistado.
Você acha que o governo dos Estados Unidos pode tirar o PKK da lista de organizações terroristas agora que a guerrilha se tornou central na luta contra o Estado Islâmico?
Agora há uma campanha dos amigos do PKK na Europa e Estados Unidos para demonstrar que a lista de organizações terroristas é ridícula. Nos Estados Unidos chegamos a várias dezenas de milhares de assinaturas. Com a campanha temos dois objetivos. Se nos tiram agora da lista porque lutamos contra a Al Qaeda, a CNN não poderá dizer o contrário. O PKK nunca fez ataques em organizações civis nem econômicas, só contra guarnições ou estruturas militares. Na Europa, setores relevantes do povo sabem que o PKK defende o povo, que não é uma estrutura terrorista. Agora estamos propagandeando nossas ideias para que o povo dos Estados Unidos as conheçam e saibam que não somos terroristas. Seu governo só vai tirar o PKK da lista por pressão de parte de seu povo.
Sabem como o PPK entrou na lista de organizações terroristas? Em 2004, o PKK decidiu fazer um cessar fogo unilateral. Pouco depois, Felipe González (primeiro-ministro social democrata da Espanha) em uma reunião da União Europeia propôs incluir o PKK na lista porque o confederalismo democrático que propunha o PKK geraria medo, assim como o cessar fogo, já que facilitaria o crescimento político da organização, em razão da massividade que poderia alcançar com essas medidas. E com a pressão dos Estados Unidos, o PKK entrou na lista.
O Estado Islâmico cresceu e passou a controlar um vasto território em muito pouco tempo. O que pode dizer sobre essa organização?
A organização Estado Islâmico no Iraque e na Síria é um desdobramento da Al Qaeda, e não tem apoio da população destas regiões, nem sequer os sunitas os apoiam. São mercenários que gerando medo, ocupando lugares e matando a todo mundo controlam o território. As pessoas, obviamente e com razão, têm medo e não podem fazer nada. A única força que poderia liderar a iniciativa contra essa perigosa ameaça é o PKK. O PKK resiste e liberta as cidades, não somente do imperialismo, mas, antes de tudo, do Estado Islâmico. Através desta luta podemos mostrar ao mundo inteiro que os islamitas da Al Qaeda e o imperialismo estão juntos.
O imperialismo apoiou e apoia de maneira direta a Al Qaeda/Estado Islâmico, porque querem desestabilizar a região. Querem dizer: “olhem, fizemos uma intervenção em 2003 contra Saddam Hussein para libertar, para exportar uma democracia estadunidense para aí, mas não funcionou”. Eles provocaram o conflito entre sunitas e xiitas, dois ramos do Islã, e agora dizem “olhem, os bárbaros não entendem a democracia, se matam entre si, necessitam de nós”. Tudo para legitimar uma intervenção e uma presença permanente na região, jogam com a Al Qaeda/Estado Islâmico.
Quase 85% dos mercenários da Al Qaeda são jovens que tem nacionalidade francesa, alemã ou britânica. Não vêm de países árabes, não vêm do Norte da África. São estrangeiros, são jovens dos bairros árabes de Paris, de Marselha, de Londres e de Berlim. Eles trouxeram essa força reacionária contra nós, contra todos os povos da região. Claro que agora estão vendendo armas aos Estados que têm que matar essa organização islâmica. Acabaram de vender armas ao Estado autônomo curdo do Iraque por 4 milhões de euros para que lutem contra o Estado Islâmico.
Acabam de vender uma centena de mísseis para Bagdá. Mas, ao mesmo tempo, o imperialismo permitiu diretamente aos islamitas roubar armas no Iraque. Inclusive, os deixaram com mais de 100 tanques com tecnologia de ponta. Os gringos, algumas semanas atrás, saíram desta cidade e deixaram absolutamente todo o equipamento militar. Qualquer comandante militar, quando retraído, se você deixar uma arma ou estrutura militar, as destrói para que mais tarde o inimigo não as possa usar. Bom, os gringos as deixaram aqui de bandeja. Estes equipamentos agora estão sendo operados pelos fanáticos do Estado Islâmico.
O império tem um plano para esta região. Os Estados imperialistas creem poder sair da crise econômica em que estão afogados não com uma guerra mundial como dizia Lênin, mas com conflitos regionais: Norte da África, Oriente Médio, e _ porque não?_ amanhã pode ser o Paquistão ou a Índia. E, claro, após a destruição quem reconstrói tudo? Suas empresas multinacionais. O que aconteceu na Iugoslávia acontece agora nessas regiões, por isso falo que querem balcanizar a região. A única força que pode apresentar um obstáculo contra este plano é o PKK, uma verdadeira força revolucionária e democrática.
Em 2013, o PKK se retirou da Turquia. Ultimamente voltaram a ter presença em território turco?
Em 2009 havia um processo de negociação entre o PKK e o governo turco. Em 2010, rompeu-se essa negociação depois de mais um milhão de idas e vindas. O governo turco oficialmente queria obter a paz, assim como o governo da Colômbia busca fazer com as FARC. Em 2012 começa um novo processo de negociação. Em 21 de Março de 2013, Abdullah Öcalan, que era o presidente do PKK, aceita iniciar novas negociações. A ideia do PKK era a de não continuar com a luta armada e garantir um mínimo de democracia. Durante as negociações, o estado turco aceita que, se o PKK se retira da Turquia, iria se iniciar um processo de paz. Mas, assim como na Colômbia, o governo sai, afrouxa, dá voltas. Na realidade, 30% das forças do PKK se retiraram da Turquia. O PKK está na Turquia mas não continuam suas atividades, atividades estas que consistiam em realizar ataques armados contra centros militares. A Turquia queria jogar com o PKK dizendo “bom, vamos acalmar o PKK” e atacar mais a Síria.
Graças a este processo, o PKK mostrou sua vontade de paz e ganhou inclusive uns 10% de votos. Mas de concreto não há nada, e já acontecem novos pequenos enfrentamentos. A Turquia mandou militares à região do Curdistão porque pensava que podia fazer uma intervenção na Síria, mas não podia porque ali também está o PKK. Não fazem ações militares esperando o processo de paz: é como na Colômbia, é como um cessar fogo. Não é o abandono da luta armada, é uma estratégia para mostrar a vontade de fazer a paz.
Há alguma novidade sobre as investigações das 3 companheiras do PKK que foram assassinadas no início de 2013 em Paris?
Há todas as evidências de que o assassinato só poderia ter sido feito pelo serviço secreto turco com o serviço francês, belga e alemão. Agora sabemos através de grampos telefônicos que comprovam isso. A França está investindo vinte milhões de euros em centros nucleares na Turquia. Para a França, a Turquia é uma potência econômica com a qual se deve ter um bom relacionamento. Por isso negociam assuntos como esses assassinatos. Mataram as 3 companheiras do Centro de Informação do Curdistão de Paris. Eu trabalhei nesse Centro e o conheço muito bem. Há câmeras do serviço secreto francês para observar tudo e é impossível que não tenham gravações dos assassinos. Houve uma mobilização muito importante para denunciar a colaboração entre os serviços secretos e a relação franco-turca. Que isto tudo tenha acontecido em pleno processo de negociação de paz foi uma clara provocação frente ao PKK para que este voltasse a combater, para iniciar uma guerra.
Você mencionou o resultado das eleições turcas onde vocês participaram. Como avalia o desempenho do Partido Democrático do povo?
É uma vitória muito importante, que pode crescer ainda mais rápido. O Partido Democrático do Povo é uma aliança progressiva dos curdos, turcos, armênios e todas as nacionalidades presentes na Turquia. Há mais de 600 movimentos sociais que participam deste partido. Sua construção permitiu excluir obstáculos de comunicação. Ele foi construído ao lado dos irmãos turcos e isso nos ajudou a alcançar jovens turcos, na região central da Turquia, algo que antes era impensável. O partido é muito próximo da luta dos curdos porque a maioria de seus membros são curdos, mas também é um partido para a democracia de todos os povos turcos. Do partido participam intelectuais, dirigentes sindicais e movimentos estudantis. Todas as organizações que o compõem participaram da ocupação da Praça de Taksim. Está claro que nos próximos anos vamos a ter um desenvolvimento interessante neste sentido.
Facundo Guillén / Resumen Latinoamericano