Murray Bookchin: “Este Planeta Merece um Destino Melhor…”

Postado em Portal Anarquista, Ex-Colectivo Libertário de Évora, em 8 de fevereiro de 2015

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As ideias libertárias de Murray Bookchin ganharam recentemente uma nova actualidade aos serem adoptadas na organização dos territórios curdos no norte da Síria e reivindicadas pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão. São elas que animam e vivificam as milícias que ainda não há muitos dias libertaram Kobane e centenas de aldeias do avanço do chamado Estado Islâmico. Daí que exista também um renovado interesse por conhecer quer o libertário norte-americano M. Bookchin (1921-2006), quer as suas ideias assentes no municipalismo libertário. Em boa hora, António Cândido Franco traduziu para o ‘Portal Anarquista’ e para ‘A Batalha’, a parte final de um dos seus mais importantes livros, “The Ecology of Freedom”.

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A ECOLOGIA DA LIBERDADE – “EPÍLOGO”

Murray Bookchin publicou em 1984 The Ecology of Freedom, um dos seus livros mais densos e revolutivos, que, de forma enciclopédica tanto recorre ao domínio da biologia, da ecologia e da astrofísica como ao da história, da antropologia, do pensamento político e da filosofia. O livro constitui assim a súmula do pensamento de Bookchin e a peça mais significativa do ponto de vista daquilo que se chama ecologia social. A sua visão actualiza e desenvolve, como nenhuma outra, o pensamento libertário do século XIX, sobretudo o de Kropotkine, com o qual tem fundas afinidades, desde logo ao defender que nos organismos vivos a organização e a cooperação são muito mais essenciais do que a hierarquia e a dominação. O livro de 1984 pode com facilidade, pela originalidade das perspectivas e a vastidão dos saberes implicados, ombrear com as melhores obras teóricas do final do século XX e do início do século XXI. Ainda por traduzir em Portugal, apresentamos n’ A Batalha e no Portal Anarquista o epílogo do livro, que funciona em poucas páginas como um condensado das suas principais ideias e propósitos. [A.C.F.]

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bookchin008-2Neste livro tentei abalar em termos teóricos o mundo, como a seu modo tentaram no seu tempo os Digger, os Leveller, os Ranter. Intentei sacudi-lo com força e tentei analisar os traços mais significativos da sua evolução. Os meus esforços terão sido bem sucedidos se consegui demonstrar que a maldição da dominação impregnou quase todo o empreendimento humano depois do declínio da primeira sociedade orgânica. Quase nenhuma realização, no campo institucional, técnico, científico, ideológico, artístico, a própria racionalidade, se salvou desta praga. Distintamente da tendência, muito em moda hoje, de procurar a origem desta na luta doselvagem contra a natureza, encontrei-a eu no esforço sinistro da elite emergente em reduzir à escravatura os seres humanos. Sublinhei o papel potencialmente libertador da arte e da imaginação ao dar expressão ao que é autenticamente humano, utópico e livre na natureza humana.

Ao contrário de Marx e Freud, que identificaram “civilização” e “progresso” com auto-controle repressivo, defendi que a antropologia e a história dão uma imagem da humanidade em tudo adversa à de Hobbes. A mentalidade do sacrifício chegou com o conflito social e com a repressão que acompanham o aparecimento da hierarquia, não com a razão e a técnica. Os baixos-relevos egípcios e mesopotâmicos revelam um mundo no qual os seres humanos eram constrangidos a negarem não apenas os seus desejos e os seus impulsos mais humanos como ainda o mais elementar sentido da personalidade. Eva, a serpente e o fruto da árvore do conhecimento não foram a causa da dominação mas as suas vítimas. A sociedade, entendida como obra de laços maternos e logo de interdependência humana, está aí para nos recordar que o paraíso terrestre foi em muitos aspectos uma realidade concreta e que o verdadeiro “pecado original” corresponde à ideia gnóstica de “auto-transgressão”.

Não creio que se possa regressar ao Éden original, onde teve lugar esta violação. A história dá-nos uma esperança de solução para os problemas da hierarquia e da dominação. O conhecimento, a gnosis, quer dizer, conhecer e transcender o nosso primeiro acto de auto-transgressão, é o primeiro passo na terapia duma patologia pessoal de natureza repressiva. O pensamento sem a acção, a teoria sem a prática, significariam, porém, abdicar de qualquer responsabilidade social.

Viu-se no nosso tempo a dominação cobrir um tal âmbito colectivo que doravante parece estar fora do controle humano. Os milhares de bilhões de dólares gastos, depois da segunda guerra mundial, pelos vários Estados em meios de destruição e de controle – aquele armamento aterrador que figura em qualquer “orçamento de defesa” – são a expressão recente duma secular ansiedade de dominação que tomou por ora proporções demenciais. No confronto com esta monumental mobilização de matérias-primas, dinheiro, inteligência e trabalho humano, com fins exclusivamente destrutivos, os resultados obtidos em qualquer outro campo de acção empalidecem e quase se tornam irrelevantes. A arte, a ciência, a medicina, a literatura, a música ou a filantropia aparecem como meras migalhas caídas duma mesa sobre a qual, em sucessivos e sangrentos banquetes, se concentra a atenção dum sistema cuja fome de dominação não parece conhecer limite. É impossível não desconfiar dos actos de “generosidade” dum tal sistema, já que por detrás dos seus desígnios aparentemente meritórios – a tecnologia, a cibernética, os programas espaciais, o desenvolvimento agrícola, as inovações energéticas – se escondem motivações destrutivas e de sujeição da humanidade, através da violência, do medo e da ameaça.

1_2-216x300Este livro tentou dar um panorama da dominação a partir das suas origens numa oculta pré-história da hierarquia, que precedeu de muito a estratificação das classes económicas. A hierarquia esconde-se não só na pré-história da humanidade como ainda no mais profundo da nossa psique. Por esse motivo toda a riqueza da palavra liberdade parece ter sido traída no seio dos processos de socialização e no mais íntimo das nossas experiências. Esta traição vem ao de cima na forma como tratamos as crianças e as mulheres, nas relações interpessoais, na conduta física, nos pensamentos íntimos, na vida quotidiana e até no modo inconsciente com que organizamos a percepção da realidade. É uma traição que não se cumpre só nas instituições políticas e económicas mas no quarto, na cozinha, na escola, nos lugares de divertimento e nos centros de educação moral como as igrejas ou os círculos de terapia psíquica. A hierarquia e a dominação chegam até a presidir a movimentos de emancipação, como é o caso do marxismo nas suas formas mais vulgarizadas e convencionais, nas quais a organização autónoma das “massas” é vista com desconfiança e frequentemente denunciada como “desvio anárquico”.

A hierarquia desforra-se da nossa pretensão de termos superado a “animalidade”, atingindo a “liberdade” e a “individualidade”. Nos instrumentos que usamos para salvar vidas humanas, para criarmos belos objectos, que tornam mais aprazível o mundo que nos rodeia, há sempre qualquer coisa de desafinado que faz com que mesmo as nossas acções mais criativas acabem por ser percepcionadas como “triunfos”, tornando a “obra-prima” correlata à dominação. A grandeza da tradição dadaísta, a partir do gnosticismo ofita até à sua moderna expressão surrealista, é ter possibilitado, com a exaltação do direito à insubordinação, à imaginação, ao jogo, à fantasia, à inovação, à iconoclastia, ao prazer e à criatividade do não consciente, a ascensão e a consciência de tudo aquilo que a hierarquia nos ocultou. Fê-lo muito mais implacavelmente e lealmente do que os mais sofisticados jogos teóricos no campo hermenêutico, estruturalista e semiótico, tão em voga nas universidades da sociedade ocidental contemporânea.

Um mundo assim contaminado pela hierarquia, organizando-se do comando à obediência, exprime o seu espírito autoritário no modo como fomos habituados a ver-nos: como objectos a manobrar, coisas a usar. A nossa concepção de realidade, partindo desta imagem de nós próprios, alargou-se à imagem que temos da natureza “exterior”, assim se revelando que fomos encarando de forma cada vez mais mineral e inorgânica quer a nossa natureza quer a “exterior”. Simplificámos de forma tão perigosa a natureza, a sociedade e a personalidade, que comprometemos seriamente a integridade das formas complexas de vida, a riqueza das formas sociais e o ideal duma personalidade poliédrica.

Num tempo em que o mecanicismo materialista tem como concorrente um espiritualismo não menos mecânico, sublinhei a necessidade de prestar atenção à diversidade, visando alimentar uma noção de totalidade como princípio unificante duma ecologia da liberdade. Um tal acento é muito diverso daquilo que se acentua como “unitariedade”. Ao opor-me às tentativas correntes de dissolver a diversidade em denominadores comuns, materiais ou espirituais, exaltei a riqueza da variedade no desenvolvimento natural, social e pessoal. Propus uma interpretação, algo hegeliana, em que a história dum fenómeno – trate-se de subjectividade, de ciência ou de técnica – define esse fenómeno. Em cada um destes âmbitos, encontramos sempre vários graus e aspectos de compreensão, de intuição e de engenho, que devem ser sempre requeridos, caso se queira tomar a realidade nas suas várias graduações e aspectos. Ao invés, o pensamento ocidental procurou compreender a experiência e agir na realidade por meio dum único modo de subjectividade, de ciência e de técnica. Tendemos a fundar as nossas noções de realidade sobre bases reciprocamente exclusivas: económica num caso, técnica noutro, cultural noutro ainda. Destarte, linhas evolutivas fundamentais foram classificadas, da perspectiva dum limitado nível de desenvolvimento da evolução natural ou humana, como “basilares” ou “contingentes”, “estruturais” ou “supra-estruturais”.

municipalismo-libertarioTentei evidenciar que cada uma destas “linhas” ou de cada uma destas “super-estruturas” tinha a sua autenticidade e um direito histórico à sua identidade, sem dúvida interdependente com outras linhas evolutivas mas rica duma integridade só dela. O problema singular que mais me preocupou foi a interacção entre a evolução da dominação e a evolução da liberdade. Por liberdade não entendo só a diferença dos diferentes, mas também o alargamento das nossas noções de subjectividade, técnica, ciência e ética, com o reconhecimento da história delas e da capacidade de penetração que delas deriva a respeito dos vários estádios de desenvolvimento. Tentei mostrar não só como estes aspectos da liberdade formam um mosaico cada vez mais rico e completo, que apenas uma sensibilidade ecológica pode abalroar, mas também como esses aspectos interagem entre si, sem perderem, na multiforme variedade de tudo, a sua unidade. Não há uma “base” económica que reja a cultura, como não há uma “base” cultural que reja a economia. Na realidade, os próprios termos “base” e “supra-história” são estranhos à perspectiva que permeia este livro. Redutores e simplistas, estas palavras tendem a reflectir visões ingénuas duma realidade cuja riqueza desafia qualquer interpretação esquemática e estática.

Se a história pré-capitalista mostra alguma coisa é o facto dramático dos homens e das mulheres terem feito sacrifícios invulgares, por vezes até o da própria vida, pela crença na virtude, na justiça e na liberdade – crença que não se explicam apenas por interesses materiais e de estatuto social. A extraordinária história dos judeus, uma história de perseguições quase ininterruptas durante cerca de dois mil anos, a dos irlandeses no último século, e a dos movimentos populares revolucionários, da Reforma até à Comuna de Paris, estão aí a testemunhar a força dos ideais religiosos, nacionais ou sociais, capazes de empurrarem centenas de milhões de pessoas para actos de incrível heroísmo. Dizer que na “base” esses homens e essas mulheres foram empurrados por “factores económicos” de que não tinham consciência, quer dizer, manobrados pela dialéctica “económica” da história, significa presumir que estes factores eram de facto dominantes, quando na verdade ainda está sequer por provar que, em alguns casos, eles tenham sequer existido. Ainda quando esses factores pareçam evidentes, a sua importância nos actos humanos é tudo menos óbvia. Quando John Ball ou Gerrard Winstanley descrevem a avidez da classe dominante do seu tempo, sente-se que a sua crítica é menos guiada por interesses materiais do que por ideais de justiça e de liberdade.

A aversão à injustiça fervia no coração dos oprimidos não tanto por causa duma condição social particularmente pesada mas por via dum flagrante contraste entre as regras morais relativas à justiça e a sua transgressão no dia-a-dia. A história do cristianismo está impregnada desta contradição, que explica o papel catalisador que ele tantas vezes representou na história humana, gerando movimentos milenaristas revolucionários. Só quando o capitalismo contaminou a história com a ideia de “escassez”, fazendo dum mesquinho espírito de competição o motor de qualquer avanço social, é que grande parte destes ideais de virtude, de justiça e de liberdade degeneraram em grosseiros interesses materiais. Até os primeiros movimentos a favor duma redistribuição aparecem menos como grandes movimentos de saque e mais como esforços de reabilitação dum modo de vida revoluto, uma ordem social tradicional em que os hábitos de partilha e de não acumulação eram as normas prevalecentes. Muitas vezes estes movimentos destruíram não só os registos legais que legitimavam a autoridade e a propriedade do escol como ainda os palácios, as herdades, as mobílias e até os celeiros que pareciam encarnar o poder.

A revolução francesa, como notou Hannah Arendt (On Revolution, Viking Press, New York, 1965, pp. 36-52), assinala uma inversão das finalidades na mudança social: da aspiração ética passa-se a uma consciência da “questão social” expressa em termos de necessidades materiais. Na realidade esta alteração de perspectiva só parece ter chegado mais tarde, porventura já no nosso século. Marx exultou com este novo “realismo” ou “materialismo economicista”, mas o resultado é que, espartilhados entre a “fetichização das necessidades” e o desejo de significado ético e comunitário, acabámos por nos tornar produtos esquizofrénicos dum mundo condenado à imobilidade da sensação de impotência pessoal e social. Inventámos uma mística das “leis históricas” e do “socialismo científico” que serve mais, como construção, para compensar os nossos frustrados impulsos comunitários e a nossa malograda necessidade de sentido ético do que para explicar o motivo pelo qual comunidade e ética estão tão assentes no real e tão longe como fins.

Se não há um único aspecto da realidade, seja económico ou outro, que por generalização possa explicar a evolução social, se não existem leis sociais que orientem a nossa aproximação mental aos fenómenos, em que base e com que coordenadas podemos então interpretar os comportamentos sociais? Em meu entender o quadro de maior significado em que decorre a aventura humana está na distinção entre autoritário e libertário. Não quero com isto dizer que estes termos exprimam um sentido teleológico da história, nem tão pouco que estão isentos de ambiguidade. Não somos por certo nós que afirmaremos ou negaremos que exista na história humana um ponto de chegada, que possa corresponder ao “absoluto” hegeliano, ao “comunismo” marxista… ou então à extinção definitiva. É pura figura de estilo dizer que a “verdadeira história” da humanidade só começará no momento em que a “questão social” ficar resolvida. Por outro lado a crença iluminista no progresso tecnológico é o sistema menos fiável de que dispomos. Hoje, no mais tecnicizado dos mundos, em que a própria ética foi acoplada ao qualificativo “instrumental”, estamos dispostos a reconhecer que até os nossos projectos mais cativantes, não obstante os atributos que ostentam, “conviviais”, “apropriados” ou outros, possam ser empregues para criar estratégias “alternativas” à violência.

Nunca é de mais sublinhar que as palavras “libertário” e “autoritário” não se referem só a formas institucionais, técnicas e científicas antagónicas, mas sobretudo a sensibilidades e valores, em suma a epistemologias opostas. A definição que dou do termo “libertário” aparece modelada pela definição que dou de ecossistema: unidade na diversidade, espontaneidade e relações de complementaridade, em que está ausente qualquer forma de hierarquia e dominação. Com o termo “autoritário” refiro-me à hierarquia e à subordinação nas suas várias formas sociais: gerontocracia, patriarcado, relações de classe, elites de vários tipos e por fim o Estado, incluídas as suas várias formas socialmente mais parasitárias: o capitalismo de Estado. Mas se não incluirmos aí também as formas contrárias de sensibilidade, ciência, técnica e ética e as contrárias formas de razão aí implícitas, as palavras “libertário” e “autoritário” reduzem-se a termos meramente institucionais. Devem-se pois explicitar ao máximo aquelas implicações, e de igual modo as do arco de qualquer outra experiência, caso se queira que o seu recíproco antagonismo tenha um sentido dinâmico e transformador.

Reconheça-se à razão, na tensão que a disputa entre o autoritário e o libertário, o direito a uma racionalidade libertária. Do ponto de vista filosófico insistimos talvez até de mais que uma racionalidade libertária deve fundar-se em cânones de verdade e de coerência, mas também de intuição e de contradição, que invalidam por inteiro as pretensões de verdade do pensamento formal e analítico. Dado que intuição e contradição podem servir fins autoritários, como se vê na filosofia fascista e no materialismo dialéctico estalinista, e que ao invés a razão analítica teve momentos que serviu a liberdade de pensamento, não temos, além dos nossos critérios éticos, nenhum guia seguro e exclusivo, que garanta frutos indiscutíveis de emancipação ao nosso pensar. As figuras de Buda e de Cristo tanto foram usadas com propósitos de autoritarismo ou de liberdade. O misticismo e o espiritualismo radicais tanto se mostraram anti-naturais e anti-humanos como ecológicos e milenaristas. Aquilo que é decisivo no ajuizar dos critérios da razão, ou para ser mais preciso no modelar duma nova aproximação à subjectividade, é a forma como é ou não é impulsionado um modelo ético biologicamente variado, baseado na fecundidade da vida e na qualidade da complementaridade, resultado dum mosaico de experiências sempre mais ricas e acima duma concepção piramidal e hierarquizada da experiência. Nem sequer é preciso renunciar aoOrganum de Aristóteles, que durante tantos séculos serviu de base aos princípios lógicos do pensamento ocidental, ou à teoria dos sistemas, com o seu conceito de causalidade circular. Devemos apenas modelar a razão, linear ou circular que seja, sobre uma ética pessoal e socialmente emancipadora. A razão, cuja demolição por Horkheimer e Adorno, suscitou tanto pessimismo entre os colegas deles, pode ser devolvida à ética libertária, uma ética aberta à riqueza da sensibilidade humana, enquanto encarnação da faculdade mesma de sentir a todos os níveis da evolução da orgânica social.

Há uma base sobre a qual é possível edificar esta ética libertária, uma área que dá uma direcção e um significado que não dependem nem dos caprichos da opinião e do gosto nem da fria eficácia instrumental. À parte os lugares-comuns sobre o povo, a raça ou as “inevitáveis leis dialécticas”, parece existir na natureza uma espécie de direcção latente, uma evolução da auto-organização, que dá lugar à subjectividade e cujo termo final parece ser a auto-reflexão característica dos seres humanos. Semelhante visão pode constituir um preconceito antropormófico, prestando-se a um relativismo arbitrário, muito parecido à razão subjectiva, ou instrumentalismo, criticada por Horkheimer. Todavia, até a pretensão filosófica dum princípio sem pressupostos é um pressuposto da mente. Ainda não se concluiu que a antiga crença de que há valores intrínsecos na evolução natural é mais discutível do que a imagem russeliana da vida e da consciência humana como puros produtos do acaso.

Será fantasia avançar a hipótese que o nosso ser seja só por si uma epistemologia e uma ontologia, quer dizer, uma filosofia do organismo capaz de responder às acusações de antropomorfismo? A forma não é menos essencial à natureza do movimento e à finalidade da função. Qualquer coisa que se escolha por natural implica como função seja a forma seja o movimento. Invocar o acaso puro como deus ex machina dum desenvolvimento estupendamente organizado, que se presta a uma demonstração sintética matemática, é usar o acidental como túmulo da explicação. Argumentando com perspicácia a favor duma aproximação teleológica, Hans Jonas perguntou-se se uma análise estritamente psico-química da estrutura do olho e do seu estímulo tinha sentido e se não era correlata ao acto de ver. Diz Hans Jonas (The phenomenon of life, Delta Books, Nova Iorque, 1966: p. 90; sublinhados meus): Sempre se encontrará a intencionalidade do organismo enquanto tal e a sua ânsia de vida: presente já em cada tendência vegetativa estes atributos ganham a primeira forma de consciência nos reflexos indistintos, na reactiva excitabilidade, dos organismos inferiores, consciência que se avoluma nos impulsos, nos esforços e na ânsia da vida animal, atingindo a máxima clareza na sensibilidade, na vontade e no pensar humanos. Reflexos, impulsos, consciência… todos são aspectos essenciais do lado teleológico da “matéria” (…). Em cada caso, a estrutura e o comportamento teleológicos dos organismos não configuram simplesmente um modo alternativo de os descrever: são, e prova-o a consciência orgânica de cada um deles, a manifestação exterior da natureza íntima da substância. O que carreia que não exista organismo sem teleologia, que não exista teleologia sem essa natureza íntima e que só a vida possa conhecer a vida.

Poder-se-á acrescentar que só se conhece a vida como resultado da vida. Esta não pode nunca, pela sua natureza mesma, ser dissociada da sua capacidade potencial de conhecer. Poder-se-iam juntar muitas outras sequências às considerações de Jonas sobre teleologia. Pode-se conceber por exemplo a teleologia como actualização duma potencialidade, mais precisamente como o resultado final da tendência imanente para a auto-realização, uma tensão que deixa espaço à casualidade e à incerteza. Neste sentido, a teleologia expressa a auto-organização dum fenómeno para ser aquilo que é, sem certeza à partida que assim será. O nosso conceito de teleologia não necessita de nascer em linha recta de nenhuma “férrea necessidade”, de nenhum auto-desenvolvimento linear e preciso, que “inevitavelmente” assegure a realização final dum fenómeno a partir do seu ponto de partida. Não obstante um fenómeno não poder auto-constituir-se por acaso, a casualidade pode impedir a auto-realização. O seu “telos” apresenta-se assim como consequência duma tensão vitoriosa e não como uma necessidade inevitável.

rojavaO mais cativante, porém, que está hoje acontecendo é o facto de ser a própria natureza a escrever a filosofia e a ética natural, não os lógicos, os positivistas, os sociobiologistas, os místicos ou os herdeiros do cientismo de Galileu. É cada vez mais óbvio que não estamos sozinhos no universo, nem mesmo no vazio do espaço. Graças a uma revolução muito recente na astrofísica, talvez só equiparável às descobertas de Copérnico e Kepler, o entendimento do cosmos exige um volta-face especulativo da mente e uma aproximação mais qualitativa aos fenómenos naturais. Torna-se dia a dia mais plausível que o universo inteiro seja o berço da vida e não apenas o nosso planeta ou planetas de condições idênticas. O “big-bang”, a grande explosão, cujos ecos distantes, atravessando mais de quinze mil milhões de anos, ainda hoje são perceptíveis pelos instrumentos dos astrofísicos, pode ser a prova, mais que incidente casual, de uma forma de “respiração” cósmica, cujas expansões e contracções se estendem por um tempo infinito. Se assim é, e situamo-nos no plano das meras conjecturas, estamos diante de processos cósmicos, mais do que ante um episódio singular, na formação do universo. Se estes processos exprimem uma forma sem fim de história universal, nós, que estamos irrevogavelmente fechados na era cósmica que nos é própria, não estaremos nunca em condições sérias de interpretar a realidade e o significado deles. Não é porém despropositado perguntar se é dum vasto e contínuo desenvolvimento do universo que se trata ou se dum género de respiração rítmica universal.

Tudo isto se passa no campo das conjecturas, dizíamos, conquanto a formação de todos os elementos do hidrogénio e do hélio, a sua combinação em pequenas moléculas e depois a sua auto-formação em grandes, e por fim a organização destas nos componentes da vida e da mente, seguem uma sequência que desafia a imagem russeliana duma humanidade como faúlha acidental num vácuo privado de sentido. Certos passos desta sequência põem fortemente em dúvida tais concepções em que a palavra “acaso” se torna um cauteloso substituto duma substancial inevitabilidade. Um universo disseminado por um pó composto de hidrogénio, carbono, azoto e oxigénio pareceria inevitavelmente destinado à formação de moléculas orgânicas. Os radio-astrónomos encontraram no espaço inter-estelar cianogénio, óxido de carbono, ácido cianídrico, formaldeído, ácido fórmico, álcool metílico, acetal e formato de metilo. A imagem clássica do espaço como vácuo está, em suma, ultrapassada e dá lugar à imagem dum espaço como lugar de incessante actividade química e genética, a favor duma surpreendente sequência de compostos orgânicos cada vez mais complexos.

Daqui até à auto-organização de moléculas que constituam formas rudimentares de vida o passo é curto. A análise dos meteoritos com pequenas inclusões carbonáceas evidenciou a existência de hidrocarbonetos aromáticos de cadeia longa, como ácidos gordos, aminoácidos e porfirinas, isto é, compostos de que é feita a clorofila. Num conjunto de experiências de laboratório, iniciadas pela conhecida “spark.gap” de Miller Urey, produziram-se aminoácidos simples fazendo passar descargas eléctricas através dum recipiente que continha gás presumivelmente idêntico, enquanto combinação, à atmosfera terrestre primitiva. Modificando o gás a partir de teorias sobre a atmosfera originária, outros investigadores conseguiram obter aminoácidos complexos, precursores do ADN.

Sempre de modo hipotético, mas com um impressionante número de provas, é agora possível imaginar como os microrganismos anaeróbios puderam desenvolver membranas simples e como, num crescendo de complexidade, emergiram formas distintas de vida capazes de processos metabólicos altamente desenvolvidos. Outras hipóteses, nas conjecturas sobre a formação das estruturas genéticas, revelam num modo ainda mais impressionante a gradativa continuidade entre inorgânico e orgânico. Tais conjecturas conduzem-nos à característica central da vida mesma: a capacidade que tem um complexo mosaico de macro moléculas orgânicas de se reproduzir e, o que é mais, de o fazer com mutações suficientemente significativas para permitir a evolução. Já em 1944, Erwin Schrodinger tinha fornecido uma definição da reprodução e da evolução orgânica. No livro What is life? Mind and matter (Cambridge University Press, Nova Iorque, 1944: 5) este ilustre físico observava que “a parte essencial da célula viva – o cromossoma – podia ser definido como um cristal aperiódico”. Este na verdade não se limita a crescer por adição, como um periódico, mas modifica-se de modo significativo, dando lugar a formas evolutivas novas, mutações que iniciam e desenvolvem dados hereditários.

Rojava011Graham Cairns-Smith avançou uma outra hipótese, uma das muitas que hoje são avançadas, que pode ajudar a esclarecer a natureza dos primitivos processos reprodutivos. O  ADN é demasiado instável quimicamente, sublinha Cairns-Smith, para poder ter sobrevivido às radiações e às altas temperaturas a que estava exposta na origem a superfície terrestre. Com uma analogia, Cairns-Smith equipara o ADN a um “nastro magnético: é muito eficiente se provido dum ambiente protector indicado, de matérias-primas adequadas e dum complexo sistema de registo”. Estes atavios, sustém ele, podem-se até encontrar no mundo inorgânico (Genes Made of Clay, “The new scientist”, 24 de Outubro de 1974, p. 276): Em conjunto com numerosas outras considerações, isto leva a pensar num processo de cristalização como mecanismo de reprodução, um qualquer defeito nos cristais torna-se o modelo de formação dos novos modelos. Certas argilas de mica parecem-me oferecer cruciais e  promissoras possibilidades.

A hipótese de Cairns-Smith sugere no mínimo que a vida, por vias próprias e seguindo a sua própria evolução genética, não se retraiu com os fenómenos do mundo inorgânico. Não quero com isto dizer que a biologia possa ser reduzida à física, tanto como a sociedade não pode ser reduzida à biologia. Aquilo que Cairns-Smith sugere é que, se certos cristais de argila podem ser os precursores das sucessivas e das mais avançadas formas de material hereditário orgânico, a natureza pode ser unificada por algumas tendências comuns. Tais tendências partilhariam uma idêntica origem na realidade do universo, ainda que funcionando de forma diferente e em diversos níveis de auto-organização.

Reside aqui, do meu ponto de vista, o aspecto essencial: a substância e a sua propriedade são inseparáveis da vida. A concepção bergsoniana da biosfera como factor da redução da entropia, num  universo que se presume avançar para a perda de energia e para a desordem crescente, parece atribuir à vida uma razão cósmica para existir. Caso as formas de vida tenham esta função, isso não sugere de todo que a vida tenha sido projectada do exterior por um demiurgo sobrenatural. Sugere antes que a “matéria”, ou substância, tem propriedades auto-organizativas, não menos válidas que a massa e o movimento que a física newtoniana lhe atribui.

Ao modo dos atributos tradicionais da “matéria”, não faltam dados para tornar plausíveis estas novas propriedades. No mínimo a ciência deve ser aquilo que na realidade a natureza é; e a vida na natureza, para usar a terminologia bergsoniana, é uma força que age em sentido contrário à segunda lei da termodinâmica, isto é, como factor de redução entrópica. A auto-organização da substância em formas cada vez mais complexas – e do mesmo modo da forma em correlação com a função e da função com a auto-organização – implica uma incessante actividade para chegar à estabilidade. Pode-se pois supor que a estabilidade, assim como a complexidade, seja um “objectivo” da substância, que a complexidade, e não apenas a inércia, favoreça a estabilidade e que, enfim, a complexidade seja a característica fundamental da evolução orgânica e duma interpretação ecológica das inter-relações bióticas. Todos estas noções são modos de compreender a natureza, não divagações místicas. São elementos probatórios e são-no muito mais do que os preconceitos teóricos que ainda hoje se opõem à ideia de que o universo tenha um significado, um significado moral, atrever-me-ei a dizer.

Parece claro que não nos podemos mais contentar com uma matéria “morta” e passiva que fortuitamente se junta em substância viva. O universo dá testemunho duma substância que está em constante tensão e se desenvolve, e não apenas se movimenta, uma substância cujo atributo dinâmico e criativo é a sua incessante capacidade auto-organizativa em formas sempre mais complexas. A fecundidade natural deriva antes de mais do crescimento, não da deslocação no espaço. Não podemos retirar às formas a sua situação central neste processo de crescimento e de desenvolvimento, nem podemos inferiorizar a função da forma que lhe é correlata. Aquele universo ordenado que torna a ciência um projecto possível e que dá sentido ao uso duma concisa linguagem lógico-matemática supõe esta correlação de forma e função. Nesta perspectiva, a matemática serve não apenas como “língua” da ciência mas também como seu logos. Este logos é sobretudo um projecto possível, já que toma em mãos um motivo que é inerente à natureza, “objecto” da indagação científica.

Uma vez superado o degrau do comportamento meramente instrumental nos embates da “linguagem” das ciências, podemos encontrar outros atributos para aquela substância que chamamos vida. Concebida como uma substância que infinitamente se conserva e se desenvolve, metabolismo incessante, a vida mostra também uma outra característica: a simbiose. Dados recentes confirmam a hipótese do naturalismo cooperante de Pedro Kropotkine não é só aplicável às relações dentro duma mesma espécie e entre espécies, mas ainda dentro das formas celulares complexas e entre elas. Há mais duma década observava já William Trager (Symbiosis, Van Nostrand Reinhold Co., Nova Iorque, 1970: VII): O conflito existente na natureza entre organismos diversos foi largamente divulgado e popularizado pelas expressões “luta pela vida” e “sobrevivência do mais forte”. Poucos se dão conta, porém, que a cooperação entre organismos diferentes – a simbiose – é igualmente  importante e que “o mais forte” pode ser aquele que mais ajuda o outro a sobreviver.

Consciente ou não, esta definição do “mais forte” não é só uma mera conjectura científica dum ilustre biólogo; é também um juízo ético idêntico ao que Kropotkine extraía do seu trabalho de naturalista e do seu ideal de anarquista. Trager sublinha que a integração “quase perfeita” dos “microrganismos simbióticos na economia do hospedeiro (…) levou à hipótese de que certos organismos intracelulares pudessem ter sido na origem microrganismos independentes.” Na verdade os cloroplastas, que desempenham a fotossíntese nas plantas de células eucarióticas, são estruturas definidas que se replicam por divisão, têm um ADN característico, semelhante ao das bactérias cocoformes, sintetizam as suas próprias proteínas e estão envolvidas por uma dupla membrana.

O mesmo se pode dizer das mitocôndrias, “centrais eléctricas” das células eucarióticas. As primeiras investigações neste campo remontam à década de 60 do século XX e foram desenvolvidas com muito entusiasmo por Lynn Margulis (Symbiosis in cell evolution, W. H. Freeman and Co., San Francisco, 1981) em numerosos artigos e livros sobre a evolução celular. Como se percebe a célula eucariótica é a unidade morfológica elementar de todas as formas complexas de vida vegetal e animal. Também os fungos apresentam esta estrutura celular provida de núcleo. As células eucarióticas são aeróbias e incluem várias subclasses claramente definidas. Ao invés, as células procarióticas não têm núcleo, são anaeróbias, menos especializadas e, segundo Margulis, são os antecedentes evolutivos das eucarióticas. As procarióticas são a única forma de vida que podia sobreviver e prosperar na atmosfera terrestre primitiva, onde apenas existia uma quantidade mínima de oxigénio.

Margulis conjecturou e largamente demonstrou que as células eucarióticas consistem numa adaptação simbiótica funcional de procarióticas tornados interdependentes umas com as outras.  Os flagelados eucarióticos tornaram-se espiras anaeróbias; as mitocôndrias fizeram-se bactérias capazes de respiração e de fermentação e os cloroplastídeos deram lugar às algas verde azuis recentemente classificadas como cianobactérias. Esta teoria, amplamente aceite hoje entre os biólogos, retém que os antepassados fagócitos das eucarióticas tinham absorvido, sem os digerir, espiras, protomitocôndrias (que Margulis sugere possam ter invadido os seus hospedeiros) e, no caso das células da fotossíntese, cianobactérias e clorobactérias de forma arredondada. As diversas formas aeróbias de vida teriam assim tido origem num processo simbiótico que integrou uma variedade de microrganismos naquele que pode ser definido como um organismo colónia: a célula eucariótica. O mutualismo cooperante, não predatório, aparece assim como o princípio guia para a evolução das formas da vida aeróbia altamente complexa que hoje conhecemos.

A perspectiva de que a vida e todos os seus atributos estão latentes na substância enquanto tal e de que a evolução biológica esteja profundamente radicada na simbiose e no mutualismo indica como é importante redireccionar a nossa noção de “matéria” como substância activa. Observava Manfred Eigen (Molecular self organization and the early stages of evolution, inQuartely review of biophysis, vol. IV, n.º 2/3, p. 202) que a auto-organização molecular sugere que a evolução “se apresenta como evento inevitável dada a presença duma certa matéria com específicas propriedades auto-catalíticas e dum fluxo limitado de energia livre, isto é, de energia solar, necessária para compensar a produção fixa de entropia.” Com efeito esta actividade auto-organizativa vai além da emergência e da evolução da vida e diz respeito àqueles factores aparentemente inorgânicos que produziram e mantêm “um ambiente bioticamente favorável ao desenvolvimento de formas de vida cada vez mais complexas”. Como sublinha Margulis, sintetizando a hipótese Gaia, elaborada por ela e por James E. Lovelock, não é mais sustentável que a vida haja sido constrangida a adaptar-se a um ambiente independente, geológica e meteorologicamente determinado. Este dualismo entre mundo vivente e não vivente – baseado em mutações casuais e pontuais das formas de vida, que por sua vez determinam quais as espécies que se salvam e as condenadas – aparece substituído pela noção mais estimulante que a vida, como diz Margulis, “produz grande parte do seu ambiente”. E ainda: “certas propriedades da atmosfera, da terra e da hidrosfera são controladas para e pela biosfera.”

Comparando planetas sem vida como Marte ou Vénus com a Terra, Margulis nota que a alta concentração de oxigénio na nossa atmosfera é anómala quando confrontada com o anidrido carbónico dos outros planetas. Demais “a concentração de oxigénio na atmosfera terrestre permanece constante, não obstante a presença de azoto, metano, hidrogénio e outros reagentes potenciais”. Na realidade a vida tem um papel activo na manutenção das moléculas de oxigénio livre na atmosfera. O mesmo se pode dizer para a alcalinidade e do nível moderado de temperatura da superfície terrestre. Diz Margulis (op. cit., pp.348-49): As anomalias da atmosfera terrestre são outra coisa que casualidade. As temperaturas das regiões tropicais e das temperadas divergem dos valores que teríamos por interpolação entre os valores correspondentes de Marte e Vénus e os desvios que têm lugar na maior parte dos organismos. O oxigénio mantém-se em cerca de vinte por cento, a temperatura média dos estratos inferiores da atmosfera é de cerca de 22 graus centígrados e o pH apenas acima de 8. Estas anomalias a escala planetária conservaram-se por longo tempo. A estranha composição química da atmosfera terrestre manteve-se por milhões de anos, apesar do tempo de permanência dos gases reagentes se medirem apenas em meses ou anos. Margulis conclui assim: É altamente improvável que o acaso possa explicar o facto da temperatura, o pH e a concentração de elementos nutritivos hajam sido por grande espaço  de tempo os adequados à vida. Ainda mais improvável, se pensarmos que os principais perturbadores dos gases atmosféricos são os organismos, antes de mais os micróbios. Ao invés, parece mais provável o investimento de energia, por parte dos viventes, numa actividade de conservação destas condições.

Em suma, até a Síntese Moderna, para usar a terminologia empregue por Julian Huxley para definir o modelo neo-darwinista de evolução orgânica introduzido nos anos 40, foi posta em discussão pela sua perspectiva limitada e talvez demasiado mecânica. A imagem dum ritmo evolutivo lento, saído da interacção de pequenas variações seleccionadas pela sua adequação ao ambiente, não se afigura sustentável, como parecia ser, a partir das descobertas fósseis disponíveis. A evolução aparece hoje mais esporádica, muitas vezes intervalada por longos períodos de estagnação. Espécies altamente especializadas tendem a modificar-se ou a desaparecer por causa dos reduzidos nichos ecológicos em que podem sobreviver, enquanto espécies menos especializadas se transformam mais lentamente e desaparecem com menos frequência, graças aos ambientes mais variados em que conseguem sobreviver. Esta hipótese, dita “hipótese de efeito”, adiantada por Elisabeth Vrba (citada por Robert Lewin, “Evolutionary theory under fire”, Science, vol. 210, 1980, p. 885), sugere que a evolução seja mais uma tendência imanente e não tanto o produto de forças selectivas externas. As mutações acasalam mais um mosaico voluntário do que pequenas e casuais modificações na estrutura e nas funções das formas de vida. Como alguém observou, enquanto a selecção das espécies atribui a força evolutiva às condições do ambiente, a “hipótese de efeito” endereça essa forças a parâmetros internos que determinam os níveis de especialização e de extinção.

A ideia de pequenas e graduais mutações casuais, uma teoria que concorda com a concepção vitoriana de transformações evolutivas estritamente fortuitas, pode ser posta em causa apenas por razões de base genética. Não só um gene mas um cromossoma, em mutáveis combinações entre si, podem ser modificados quimicamente e mecanicamente. As transformações genéticas podem ir de “simples” mutações pontuais a novas sistematizações de cromossomas muitos mais consistentes. Demais parece evidente, sobretudo no seguimento de resultados experimentais, serem possíveis trocas de mutações morfológicas geneticamente determinadas. Pequenas modificações genéticas podem dar lugar a transformações morfológicas, relevantes ou irrelevantes, e o mesmo vale para as grandes mutações genéticas.

A observação de Trager de que a espécie “mais adequada” pode ainda ser “aquela que mais ajuda uma outra viver” é uma fórmula excelente para refazer o quadro da evolução natural, vulgarmente pintado como drama insensato de sangrenta competição visando a sobrevivência. Existe uma rica literatura, que, remontando ao fim do século XIX, sublinha o papel desempenhado pela cooperação intra e entre específica na capacidade de sobrevivência das formas de vida no planeta. O famoso Apoio mútuo de Kropotkine sintetizou o conhecimento então disponível e juntou a palavra mutualismo  ao vocabulário biológico. Os primeiros capítulos desse livro resumem trabalhos contemporâneos de Kropotkine, as suas pesquisas na Ásia oriental e ainda uma montanha de dados novos sobre insectos, crustáceos, pássaros, as associações para caça dos “mamíferos carnívoros”, as sociedades de roedores, e outras sequências idênticas. O material é em grande parte intra-específico, mesmo que os biólogos mutualistas de há um século não tivessem ainda evidenciado os sistemas de apoio específico que nós sabemos hoje existirem numa quantidade muito maior do que Kropotkine podia imaginar. Buchner escreveu em 1953 um volume inteiramente dedicado à endo-simbiose dos animais com microrganismos vegetais; Henry, por sua fez,  no meado da década de 60 actualizou o estudo desta questão nos dois volumes de Symbiosis. As provas que este último apresenta sobre esse modo particular de mutualismo que é a simbiose inter-específica são, dizendo pouco, massivas. Ainda mais do que Apoio mútuo de Kropotkine, o trabalho de Henry documenta as relações mutualistas a partir da relação inter-específica entre rhizobium e legumes, passando pelas associações vegetais, pelo comportamento simbiótico entre animais, para chegar ao grande mecanismo homeostático de escala planetária ao nível das relações bioquímicas.

A adaptação raramente tem um significado biológico como pura sobrevivência e adequação ao meio das espécies. Se ficar por este nível de superfície, torna-se apenas uma empresa de adaptação individual que não consegue explicar a necessidade dos sistemas vitais de apoio que todas as espécies têm, seja por sistema autotrófico ou heterotrófico. A teoria evolutiva tradicional tende a abstrair uma espécie do seu ecossistema, isolando-a e considerando a sua sobrevivência de modo muito abstracto. Por exemplo, a interacção de mútuo apoio entre os organismos de fotossíntese e os herbívoros, longe de ser a forma mais simples de acção predatória ou de heterotrofia, é ao invés indispensável até para a fertilidade do solo, graças aos dejectos animais, à disseminação das sementes, à reciclagem dos cadáveres num ecossistema que se enriquece a cada momento. Mesmo os grandes carnívoros, predadores dos herbívoros, têm uma função vital, de controle demográfico selectivo, eliminando os animais doentes ou velhos, para os quais a vida estaria destinada a ser sobretudo sofrimento.

Paradoxalmente se desvalorizamos o significado do verdadeiro sofrimento e da crueldade reduzindo-o a dor e a acção predatória, do mesmo modo desvalorizamos o significado da hierarquia e da dominação roubando-lhes o sentido social e reduzindo-as a relações transitórias entre indivíduos mais ou menos violentos no seio duma específica comunidade gregária animal. O medo, a dor e a morte que um matilha de lobos dá a uma velha rena doente dão testemunho não da crueldade da natureza mas antes dum modo de morrer adequado à renovação orgânica e à estabilidade ecológica. O sofrimento e a crueldade pertencem ao mundo da angústia pessoal, da dor inutilmente infligida, da degradação moral de quem atormenta a vítima. Estas noções não são aplicáveis à eliminação dum organismo que já não pode funcionar a um nível que torna a vida tolerável. É perverso associar qualquer dor a sofrimento, qualquer acção predatória com crueldade. Sofrer a angústia da fome, os traumas psicológicos, a insegurança, o abandono, a solidão, a morte na guerra, as doenças incuráveis, nada disto pode ser comparado com a breve dor duma morte quase insciente dum acto predatório. As aflições da natureza são raramente tão cruéis como os sofrimentos sistemáticos e organizados infligidos pela sociedade humana aos seres vivos, animais ou homens, de perfeita saúde, sofrimento que só a mente humana pode conceber.

daf_in_kobaneNem a dor, nem a crueldade, nem a agressão, nem a competição explicam de forma satisfatória o aparecimento e o desenvolvimento da vida. Para uma melhor explicação devíamos tomar em consideração o mutualismo e um conceito de “adaptação” que reforce os sistemas de mútuo apoio e que responsabilize o mais adaptado. Se estamos dispostos a reconhecer a natureza auto-organizativa da vida, o papel decisivo do mutualismo e a sua dinâmica evolutiva impõem-nos a redefinição de “adaptação” em termos de ecossistema. E se estamos dispostos a ver a vida como um fenómeno que pode modelar e conservar aquele mesmo “ambiente” que se considera como fonte selectiva da sua evolução, uma pergunta crucial se impõe: faz sentido continuar a falar de “selecção natural” como força motriz da evolução biológica? Não precisaremos antes de falar em “interacção natural” para darmos conta de forma plena do papel da vida no criar e no orientar as forças que explicam a sua evolução? A biologia contemporânea dá-nos um quadro de interdependências muito mais importante na modelação das formas de vida do que tudo aquilo que um Darwin, um Huxley ou os autores da Síntese Moderna poderiam ter previsto. A vida é necessária não apenas em termos de auto-conservação mas até por causa da sua auto-formação. “Gaia” e a subjectividade são mais que efeitos da vida: são os seus atributos integrais. A grandeza duma autêntica sensibilidade ecológica, bem diferente do “ambientalismo” superficial hoje dominante, é que ela nos dá a possibilidade de generalizar de modo radical as inter-relações mutualistas, fazendo da variedade em que assenta o fundamento da estabilidade. A sensibilidade ecológica dá-nos uma perspectiva coerente que explica a realidade no sentido pleno do termo, dando-lhe uma explicitação ética.

Desde a longínqua idade helénica até ao primeiro Renascimento a “natureza” foi vista sobretudo como bússola de orientação ética, graças à qual o pensamento humano encontra o seu sentido e a sua coerência. A natureza não humana não era externa à natureza humana e à sociedade. Ao invés, a mente era apenas uma parcela dum logos cósmico que fornecia critérios objectivos para os conceitos pessoais e sociais de bem e de mal, justo e injusto, belo e feio, amor e ódio e, em suma, para todo um conjunto de valores, graças aos quais era possível caminhar em direcção da virtude e duma existência feliz. As palavras dike e andike – justiça e injustiça – compunham a cosmologia dos filósofos gregos da natureza. Sobraram até hoje traços desses valores em numerosa terminologia da moderna linguagem das ciências da natureza, por exemplo em palavras como “atracção” ou “repulsa”.

O erro da cosmologia antiga não reside na sua orientação ética mas na sua aproximação dualista à natureza. Por causa da maior importância atribuída à especulação sobre a experimentação, a antiga cosmologia cometeu o seu maior erro ao tentar ligar uma natureza fecunda auto-organizada com uma força vital alheia ao mundo natural. A dike de Parménides é, como o élan vital de Bergson, um substituto das propriedades auto-organizantes da natureza, não é uma força interna à natureza, uma força que explique a ordem do mundo. Até nas cosmologias monísticas que procuram juntar eticamente a humanidade e a natureza existe um dualismo latente, um deus ex machina que corrige os desníveis, seja num universo desequilibrado, seja numa sociedade insensata. A verdade tem uma coroa invisível, é uma espécie de verdade de Deus ou do Espírito, já que do mesmo modo que não se confia no desenvolvimento espontâneo da natureza também se espera que o Estado, como herança da “civilização”, funcione.

Estes arcaísmos, com as suas vagas teologias e as suas teleologias rigidamente elaboradas, foram justamente avaliados como armadilhas socialmente reaccionárias. Contaminaram as obras de Aristóteles e de Hegel, como magnetizaram as mentes escolásticas medievais. Mas os erros da antiga filosofia da natureza não residem tanto na tentativa de colher uma ética da natureza mas antes no espírito de dominação que desde o princípio a envenenaram, com a imposição dum “arbítrio” sobrenatural, quase sempre autoritário, que avaliava e corrigia os desequilíbrios ou injustiças que tinham lugar na natureza. Por isto os deuses antigos estavam sempre presentes, por muito racionais que estas primeiras cosmologias pudessem querer ser. Mereciam eles, os deuses, ser exorcismados para que se pudesse construir um contínuo mais significativo e democrático entre natureza e humanidade. Tragicamente, o pensamento do Renascimento tardio não foi mais democrático do que o pensamento anterior; nem Galileu na ciência, nem Descartes na filosofia conseguiram de modo satisfatório esta operação cirúrgica. Eles e os seus herdeiros separaram a natureza da mente, recriando outras divindades, sob a forma de preconceitos científicos e epistemológicos, não menos infectados pela dominação do que a tradição anterior que haviam demolido.

Encontramo-nos hoje ante a possibilidade da natureza – não como dike, justitia, Deus, Espírito ou mesmo élan vital – mostrar eticamente os seus próprios termos. O mutualismo é um bem em si, em virtude da sua função de estímulo à evolução da variedade natural. Não temos necessidade de nenhuma dike nem de nenhum cânone de “objectividade científica” para afirmar a esperança natural e social da vida e do seu papel. Do mesmo modo, a liberdade é um bem em si: a sua reivindicação funda-se naquela que Hans Jonas chamou com finura a “íntima natureza” das formas de vida, a sua “identidade orgânica”, a “aventura da forma”. O esforço visível de auto-identificação que qualquer ser vivo, no decurso da sua continuidade metabólica, para se conservar, põe em prática revela, até nos mais rudimentares organismos, um sentido de identidade e de actividade selectiva que Jonas apropriadamente viu como provas duma “liberdade embrionária”.

Enfim, a crescente complexidade e variedade que, através do curso da evolução, transforma as partículas subatómicas naquelas formas conscientes e auto-reflexivas que chamamos seres humanas, não pode senão levar-nos a reflectir sobre a existência dum telos, entendido este em sentido largo, e sobre uma subjectividade latente na substância que por fim dá lugar à mente e à inteligência. Na reactividade da substância, na sensibilidade dos microrganismos menos desenvolvidos, na formação dos nervos, dos gânglios, da espinal medula, no desenvolvimento estratificado do cérebro, percebe-se uma evolução da mente tão irresistivelmente coerente que a tentação de a definir, ao modo de Manfred Eigen, como “inevitável” é grande. É difícil acreditar que a casualidade pura possa explicar a capacidade que as formas de vida têm para responder neurologicamente aos estímulos, de desenvolver sistemas nervosos altamente organizados, de prever, ainda que de forma confusa, os resultados do seu comportamento e por fim  de conceptualizar de forma clara e simbólica esta antecipação. Uma verdadeira história da mente deveria começar com os atributos da substância, talvez logo nos obscuros esforços dos cristais mais simples para se perpetuarem, na evolução do ADN de fontes químicas ignoradas até ao momento em que manifesta a seu modo aquele princípio de replicação já presente no mundo inorgânico, e na diferenciação de moléculas orgânicas vivas ou não vivas como resultado daquelas características intrínsecas de auto-organização que definimos como propriedade da vida.

O estudo da natureza – deixando de lado todos os preconceitos das epistemologias antigas – mostra uma modelação autónoma da evolução, uma “semente”, por assim dizer, implicitamente ética. O mutualismo, a liberdade e a subjectividade não são valores exclusivamente humanos; estão presentes, ao menos de forma embrionária, nos mais amplos processos cósmicos e orgânicos, que não necessitam de ser movidos por nenhuma divindade aristotélica e não precisam de ser revivificados por nenhum espírito hegeliano. Se a ecologia social conseguir perspectivar de forma coerentemente unitiva o mutualismo, a liberdade e a subjectividade como aspectos duma sociedade cooperativa, livre de dominação e orientada pela reflexão e pela razão, conseguirá então remover as taras que envenenaram desde o início a ética naturalista e dar uma voz ética comum à natureza e à humanidade. Não teremos mais necessidade do dualismo cartesiano ou do mais recente dualismo neo-kantiano que deixa muda a natureza e isola a mente do vasto mundo que a rodeia. Desgastar a comunidade, paralisar a espontaneidade, que, no coração mesmo da realidade auto-organizada, se move em direcção a uma crescente complexidade e racionalidade, limitar a liberdade, tudo isto significa negar a “semente” da natureza, negar a nossa hereditariedade nos processos evolutivos, negar a nossa função no mundo da vida. Se não formos bem sucedidos na criação duma sociedade ecológica e na articulação duma ética ecológica, ficará em jogo, não entrando sequer em linha de conta com as péssimas consequências para o ambiente, nada menos do que a nossa legitimidade ética.

O mutualismo, a auto-organização, a liberdade e a subjectividade, sustentados pelos princípios ecológicos de unidade na diversidade, de espontaneidade e de relações não hierárquicas, são assim fins em si mesmos. À parte a responsabilidade ecológica que estes fins delegam na nossa espécie enquanto voz auto-reflexiva da natureza, eles definem-nos literalmente. A natureza não existe para nosso uso, ela limita-se a legitimar a nossa existência ecológica e a nossa unidade. Como a noção de ser, estes princípios de ecologia social não têm necessidade de explicações, apenas de verificações. São elementos dumaontologia ética, não regras dum jogo que possam ser mudadas para adequar exigências pessoais.

Uma sociedade que nega o núcleo essencial desta ontologia levanta o problema da sua realidade mesma como entidade significativa e racional. A “civilização” deixou-nos em herança uma concepção de alteridade como “polarização” e “desafio” e da essência orgânica, visando a identificação pessoal, como “guerra” permanente. Tais concepções arriscam-se a minar por inteiro a legitimidade ecológica da humanidade e a realidade da sociedade como dimensão potencialmente catalisadora do mundo que nos rodeia. Bombardeados por falsas percepções duma natureza em constante oposição à humanidade, redefinimos de tal modo a nossa essência humana que a guerra passou a ser o preço da paz, o controle o preço da consciência, a dominação o preço da liberdade, o antagonismo o preço da reconciliação. Num tal contexto auto-destrutivo, estamos a construir um Valhalla que por certo se tornará uma mina para as labaredas devoradoras de Ragnarok.

Não obstante, dos conceitos de alteridade e de essência da vida, pode tirar-se um sistema filosófico e social completamente distinto. Se tivermos uma ampla visão ecológica da natureza e concebermos um mundo benigno que a vida plasmou no curso da evolução, podemos então formular uma ética da complementaridade que se alimenta da diversidade em lugar duma ética que tutela a essência individual por meio duma alteridade ameaçadora e invasora. Na verdade a essência da vida pode ser vista como expressão de equilíbrio mais do que como mera resistência à entropia e ao fim de qualquer actividade. A própria entropia pode ser vista como uma das características dum mais vasto metabolismo cósmico, de que a vida é só a dimensão anabólica mais visível. Um tal metabolismo geral pode ser visto como resultante da integração, da comunidade e do apoio mútuo, sem que por isso se diminua a identidade individual e a espontaneidade singular.

Destarte duas alternativas estão neste momento frente a frente. Podemos tentar apaziguar o espírito guerreiro de Odin, pacificando-o a ele e à sua corte, abrindo o Valhalla ao vento da reflexão e da ponderação. Tentaremos então remendar os esfarrapados pactos que outrora sustinham precariamente em conjunto o mundo e passar com eles a melhores e mais benévolas situações. Podemos até esperar que Odin se convença a arrumar a lança, a guardar a armadura e a prestar ouvidos às doces vozes que aconselham o diálogo e a compreensão. Em alternativa os nossos esforços podem dar lugar a uma reviravolta radical: arruinar Odin, de cuja senilidade testemunha uma sociedade abortada. Abandonaremos então os mitos contratuais que “harmonizam” um mundo intrinsecamente dividido, esses mitos mantidos de pé pela épica nórdica com o exílio e as cadeias. O nosso desafio será então criar um novo mundo e uma nova sensibilidade, a partir duma base de reflexão pessoal e duma ética de que somos herdeiros enquanto resultado do incessante movimento evolutivo em direcção à consciência. Temos a possibilidade de nos legitimar como expressão acabada da mente no mundo da natureza, como racionalidade que favorece a diversidade natural e integra os processos naturais com sucesso, uma certeza e uma direcção que são porém incompletos na natureza não humana.

A “civilização” tal como a conhecemos hoje é mais muda do aquela natureza em nome da qual ela, a civilização, pretende falar e mais cega do que aquelas forças elementares que pretende controlar. Esta “civilização” vive mergulhada no ódio ao mundo que a rodeia e no ódio por si. As suas cidades estão feridas, esventradas, as terras degradadas, a água e o ar envenenados; a sua mesquinha cobiça é uma acusação diária à sua imoralidade odiosa. Um mundo assim empobrecido é talvez irrecuperável, ao menos no quadro das suas actuais estruturas institucionais e éticas. Se o fogo de Ragnarok purificou o mundo nórdico, o apocalipse nuclear que ameaça engolir o planeta poderá deixá-lo irremediavelmente inútil para a vida, cadáver testemunhando um fracasso cósmico. Este planeta merece um destino melhor do que aquele que parece esperá-lo no futuro – já que a sua história, incluída a humana, se não mais houvesse, foi rica de promessas, de esperanças, de criatividade.

MURRAY BOOKCHIN

[tradução de A. Cândido Franco]

[Curdistão – Argentina] Entrevista com militante internacionalista

Fontes: RedLatinaSinFonteiras
Original de PERFIL, aqui.
Tradução por Arthur Dantas, do Coletivo Anarquia ou Barbárie.

Por Diego Rojas, 15/02/2015

De volta: María Alvarez viveu sua própria experiência no frente. A sua foi uma experiência que incluiu somar seu conhecimento nos campos de refugiados yazidis.

De volta: María Alvarez viveu sua própria experiência no frente. A sua foi uma experiência que incluiu somar seu conhecimento nos campos de refugiados yazidis.

A experiência da entrevistada em uma das regiões mais conflituosas do planeta. Na luta do Curdistão, não só há questões étnicas e religiosas: também há o papel fundamental das mulheres nessa sociedade.

ISIS (Estado Islâmico) foi derrotado. A notícia percorreu o mundo no final de janeiro deste ano. Os grupos armados do grupo terrorista que querem impor o califado islâmico em todos os lugares – e que tem predileções por degolamentos e execuções de jornalistas e de reféns estrangeiros, além de uma forte opção pela opressão da mulher – tiveram que abandonar Kobanê após dois anos de combate. Os vencedores foram os combatentes organizados nas milícias do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PPK).

Entre as mulheres armadas com Kalashnikovs, combatentes do sexo masculino disparando contra os islamitas, no interior da infra-estrutura de uma cidade destruída pelos bombardeios, uma mulher argentina chegou ali para ajudar com os deveres médicos como uma brigadista.

Nas trincheiras: María Álvarez, profissional da saúde e militante da Convergência Socialista, partiu para o Oriente Médio com a finalidade de chegar à região curda em novembro de 2014.

“Meu plano inicial era entrar pelo Iraque – conta Álvarez ao PERFIL. Viajei à Turquia e me dirigi à fronteira com o Iraque, mas ali negaram meu passaporte porque havia uma situação de guerra. Me informaram que não poderia passar na qualidade de turista ou algo assim. Fiquei, assim, na Turquia ajudando vários campos de refugiados curdos”.
Nos dois anos de combates na região produzidos pelo avanço do ISIS, milhares de refugiados cruzaram a fronteira escapando dos terroristas. ISIS, por seu lado, deixou um total de 20 mil mortos e seqüestrou 3500 mulheres e crianças que foram vendidas em outras regiões sob seu controle.

Médica de guerra: “Em várias cidades colaborei com assistência médica aos refugiados –continua Álvarez. Em Cizre trabalhei em um campo de refugiados yazidis. Nessa cidade havia uma situação de guerra civil em aberto: os curdos consideram que vivem sob ocupação por parte do exército turco e por isso organizaram auto-defesas populares casa por casa, aonde desde as avós até as crianças estão armados e mantém barricadas em todas as quadras. Estavam produzindo um processo similar ao de Rojava, mas na Turquia, um país que é membro da OTAN e por isso não iriam permitir isso tão facilmente”.

— O que é Rojava? – pergunta PERFIL.

— Em 2012, em meio à guerra civil na Síria, o povo curdo declarou sua autonomia através de um levantamento. O exército de Assad retirou-se e assim formaram um governo autônomo baseado em assembléias populares. Isso ocorreu na região de Rojava, que tem três cantões, um chamado Kobane.
O autogoverno também definiu a criação de auto defesas, de homens e mulheres. O papel das mulheres é notável: elas estão na vanguarda não só para defender a revolução com milícias armadas, mas por estarmos à frente de todas as organizações que foram criadas para o auto-governo. Por lei, deve haver duas pessoas para cada posição: se há um presidente tem de ter uma presidenta. Se há um ministro tem que ter uma ministra. Eles estabeleceram uma espécie de Constituição nessas províncias, chamado Contrato Social, onde as mulheres impuseram a criminalização da violência contra as mulheres. É proibido o casamento infantil, a mutilação genital feminina, a poligamia, o dote para a noiva para se casar. Um cargo público não consegue aceder homens acusados de violência contra as mulheres.
Estabeleceram a separação da religião dos organismos de governo. E para defender este processo decidiram resistir ao assédio do ISIS. Os terroristas tinham avançado porque o exército sírio abandonou as regiões sem combatê-los. Retiraram-se deixando os bancos com milhões de dólares. A única resistência armada ao ISIS foi em Kobanê, armado apenas com Kalashnikovs contra esta gente armada pelas monarquias da região, por parte da CIA e Mossad. A mobilização dos curdos na Turquia fez com que iniciassem os bombardeios às posições do ISIS e, assim, avançaram as milícias expulsando-os. Por fim, as milícias curdas derrotaram o ISIS.

Como continuou sua travessia para chegar a Kobane?

— Dos campos de refugiados na Turquia, onde estava, fui guiada por membros da resistência curda. Uma noite, após planejarmos tudo, subimos em uma van com vários curdos e uma sueca. Andávamos sem luzes por estradas onde não passavam carros. Em um ponto paramos e tivemos que continuar a pé. Nós andamos à noite através de campos abertos e territórios cercados. Também cruzamos uma vala que os turcos fizeram para impedir a chegada de refugiados.
Assim chegamos a Kobane. Lá eu servi como assistente de saúde aos feridos provenientes da frente de combate, nos hospitais que foram armados pelas milícias. O hospital trabalhava com uma equipe de médicos e enfermeiros. Lá se recuperaram vários feridos em combate, de gravidades várias. O médico-chefe do hospital era um jovem com idade inferior a 40 anos que atendia com uma arma na cintura o tempo todo.
Enquanto isso, a luta persistiu e bombas caíam sobre Kobane. Houve momentos dramáticos com os feridos, tive que realizar amputações, de milicianos feridos lutando diretamente com o ISIS. O cenário era dramático. Os terroristas tinham literalmente destruído a cidade. A infra-estrutura de Kobane tinha sido arrasada.

Qual o rumo político do processo?

— O PKK converteu-se em um verdadeiro partido de massas. Abandonou o marxismo-leninismo e tem uma definição socialista difusa, autonomista, semi-anarquista. São os dirigentes do processo. Conheci comandantes das milícias que vieram de vários lugares do Curdistão.

1k__Cumpa_internacionalista___autodefensa_de_las_mujeres_kurdas– Álvarez faz uma pausa e mostra uma fotografia. Está junto à três mulheres vestidas de fajina. Estas três garotas tinham o grau de comandantes.

– A da esquerda era uma curda de origem turca, a do meio de origem iraniana e a terceira da região da Síria. A comandante que nasceu na Turquia morreu em combate contra o ISIS. As mulheres combateram ombro a ombro com os homens.

O Retorno: Maria Àlvarez retornou ao país em meados de janeiro. Dias depois, os curdos foram às colinas que circundam Kobanê e bandos armados do ISIS fugiram. Kobanê, o bastião em disputa, foi recuperado pelos milicianos curdos e mulheres que haviam derrotado os terroristas mais brutais da era contemporânea. Milhares caíram e a cidade foi destruída, mas mostrou-se que o temido ISIS não era uma entidade invencível. E também enfatizou que a luta das milícias irregulares mistas, impulsionada pela vontade de resistir e, dependendo da continuidade de um projeto político de transformação, podem vencer. Os últimos relatos indicam que os corpos dos membros do ISIS que não eram vítimas dos combates com as forças curdas, indicando divisões e execuções ulterinas. No futuro imediato, ISIS não será um perigo para os curdos, que devem se cuidar em relação às decisões que serão tomadas pelos governos da Turquia e da Síria, que vêem o processo em Rojava como um potencial perigo político.

Para celebrar o triunfo, centenas de bandeiras curdas amarelas, vermelhas e verdes foram hasteadas em toda a região de Kobanê e outras, em Rojava, e mais adiante, em todo o Curdistão.

Há um processo aberto na região curda, uma experiência social e política inédita em marcha e uma moral elevada em todos seus protagonistas devido às virtudes que insuflou nos espíritos dos que sentiram o sabor do triunfo.

 

Notas adicionais à reportagem: “Los problemas étnicos são também ideológicos” –http://www.perfil.com/mobile/?nota=/contenidos/2015/02/15/noticia_0066.html
Por Diego Rojas

Gran Ozcan é membro do Comitê de Solidariedade na América Latina com o Curdistão e conversou com PERFIL sobre o processo político que se desenvolve nessa região do Oriente Médio.

O PKK é um partido étnico?

— Abdullah Öcalan, o líder do PKK preso na Turquia desde 1999, sempre disse que os problemas étnicos são problemas ideológicos. A questão étnica é um sintoma dos problemas do sistema. Por isso, a luta nacional dos curdos é também uma luta anti-sistema. Öcalan propõe que a questão da independência não pode ser regida por um Estado nacional. A proposta do PKK está centralizada pelo assim chamado confederalismo democrático, que é uma solução antiestatal. Para Öcalan, quando se toma o controle do Estado, o Estado toma controle dele. Por isso tem que desfazer-se do Estado.

Os marxistas têm como sujeito a classe obreira, O que acha o PKK?

— A centralidade não está colocada na classe trabalhadora, mas [para o PKK] a categoria principal são as mulheres. A mulher é o setor mais explorado. A classe trabalhadora só pode libertar-se uma vez que a mulher tenha se libertado na sociedade. Os curdos em Rojava estão se organizando com essas premissas. As mulheres têm suas próprias milícias. Todo posto político é composto por duas pessoas, por um homem e uma mulher. É uma revolução porque está mudando o sistema econômico e político. O planejamento é uma revolução antiestatal socialista no Oriente Médio e acreditamos que ela se iniciará pelo socialismo no Curdistão.

Qual é a situação atual em Rojava?

— Quando o ISIS atacava Kobanê, os turcos mantiveram objetivamente o ISIS. Faz alguns dias que chegou a notícia de que deixaram cair armas para o ISIS de aviões na região síria. Turquia está mantendo-os abertamente. São os inimigos do povo curdo e do processo político que protagonizam. Não por acaso Öcalan foi entregue à Turquia pela CIA e o Mossad. O desenvolvimento dos curdos é uma ameaça para seus interesses na região.

http://www.perfil.com/mobile/?nota=/contenidos/2015/02/15/noticia_0065.html
Saiba mais:

Os curdos são uma etnia que vive no território chamado Curdistão, que se encontra no território de quatro nações com maiorias étnicas diferentes da curda: Turquia, Síria, Irã e Iraque.
Após a invasão dos EUA ao Iraque, se destacou uma zona autônoma curda cujo líder é Masud Barzani, de tendência pró-estadounidense. Foi eleito como presidente do Curdistão iraquiano.
O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) é uma organização fundada por Abdullah Ocalan, de grande influência na região curda da Turquia e da Síria. Ocalán cumpre uma pena de prisão perpétua na Turquia.
O confederalismo democrático é a forma política do PKK, que apregoa um socialismo antiestatal. Seu sujeito central são as mulheres. O PKK tem milícias masculinas e femininas e advoga por um sistema de decisões tomadas em assembleias populares. Este projeto abarca a região autônoma curda de Rojava, na região síria, aonde derrotaram o ISIS.

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[Curdistão] Surge uma Guerrilha Anarquista em Rojava

Postado em Jornal Bandeira Preta, Contrainformação Anarquista
Por JBP, em 06 de fevereiro de 2015
Fonte original: SOSYAL SAVAŞ

(Bandeira anarco-ecologista)

(Bandeira anarco-ecologista)

Recentemente um grupo de anarco-ecologistas da Turquia e outro da Espanha, assim como anarco-ecologistas de vários lugares do mundo, conjuntamente, somaram-se as Forças Unidas de Libertação (BOG), ”Birleşik Özgürlük Güçleri”, de Kobane (Rojava), formando uma frente internacionalista de combatentes anarquistas e comunistas.

Eles fizeram um chamado não só para anarquistas de varias tendências de todo o mundo, mas também a libertários, ecologistas e anti-capitalistas, a se somarem à luta e ao apoio desta revolução social. Cada um com sua língua e cor, através da auto-organização e solidariedade, mobilizando-se em rebeldia.

A guerrilha anarquista se comprometeu em continuar apoiando a defesa de Kobane e Rojava como um todo, assim como ajudar na reconstrução da vida comunal no local recém liberado.

O teórico que deu origem ao “Confederalismo Democrático”, a proposta revolucionária sendo atualmente implantada em Rojava, foi Murray Bookchin, um famoso ambientalista bem próximo dos ideais anarquistas, que escreveu sobre o “Municipalismo Libertário”.

(A cidade de Kobane, destruída após a batalha contra o “Estado Islâmico”)

(A cidade de Kobane, destruída após a batalha contra o “Estado Islâmico”)

(Anarquistas e comunistas somando forças para uma frente internacionalista em Rojava)

(Anarquistas e comunistas somando forças para uma frente internacionalista em Rojava)

[Curdistão] Entrevista com Mehmet Dogan, sobre a Luta do Povo Curdo

Postado em LibreRed em 30 de Janeiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Entrevistamos Mehmet Dogan, jornalista, documentarista e antropólogo curdo, que nos explicou a história da luta do povo curdo, a atualidade e a relevância que tem este povo nos conflitos que existem no Oriente Médio; um povo com 40 milhões de pessoas às quais os países imperialistas nunca permitiram escolher seu próprio destino. Por isso, os curdos vivem divididos entre Turquia, Síria, Irã e Iraque, em uma área similar em tamanho à da Espanha, mas situada em uma posição geoestratégica crucial na qual há importantes reservas de petróleo, gás e outros recursos minerais.

Qual é a sua análise sobre a situação atual do Oriente Médio?

Há dois conflitos centrais no Oriente Médio: o da Palestina e o do Curdistão. O conflito palestino é bastante conhecido, suas causas e as forças envolvidas. No entanto, recentemente, tendo o Hamas na liderança do processo de resistência, e tendo ganhado a disputa política com a OLP, atrevo-me a dizer que não há um processo revolucionário na Palestina. Há uma luta por independência, mas independência não é sinônimo de revolução. Obviamente, os palestinos têm direito de lutar por sua independência e sua autodeterminação.

Conheço muitos companheiros curdos que morreram ao lado dos palestinos nos anos 1980, mas não devemos misturar as coisas ou entramos em confusão. O conflito entre Israel e os palestinos não tem como pano de fundo um processo revolucionário que possa mudar por completo a realidade do Oriente Médio. Por isso, o centro da revolução não está na Palestina. O centro da revolução no Oriente Médio está na Síria, está no Iraque e antes de tudo, na Turquia.

Nos anos 1960 e 70, em todo o mundo havia uma juventude combativa, quando haviam lutas de libertação em todos cantos do mundo. Nessa época houve uma luta muito interessante na Turquia. A esquerda turca e o povo curdo em geral, em muito pouco tempo, conquistaram muito terreno e ainda estiveram perto de liberar o país. Durante os anos 1970 e 80, nas mesmas décadas que na Argentina, houveram regimes ditatoriais.

Na Turquia, o imperialismo controlava o estado através do exército turco, que vale a pena dizer, é a segunda maior força da OTAN, obviamente depois do exército ianque. O movimento revolucionário, a esquerda revolucionária turca e o povo curdo foram vítimas de uma repressão brutal. Em 1980, fez-se um golpe de Estado e em apenas 3 meses houve pouco menos de 600 mil prisões. Todavia, há 20.000 desaparecidos. Desde então, até a atualidade, 5 milhões de camponeses foram removidos à força, e hoje em dia, temos 12 mil presos políticos.

Este movimento que nasceu na Turquia tem uma programa a favor dos povos, a favor das classes populares, contra o sistema neoliberal e, inclusive, um programa ecológico também. Podemos dizer que é uma ideologia socialista comunitária. No início da década de 2000, a direção do PKK, que significa Partido dos Trabalhadores do Curdistão, criou uma grande frente chamada de União de Comunidades do Curdistão (KCK). Esta união de comunidades está unindo outros partidos curdos do Iraque e da Síria. Há mais de 400 movimentos sociais que estão participando desta grande frente.

Esta frente desenvolveu uma nova ideologia que chamam de confederalismo democrático. As bases dessa ideologia apareceram em 1998, momento em que o PKK se transformou de um partido clássico marxista-leninista, em um partido mais socialista comunitário, de um partido independentista em um partido confederado.

Esta transformação implicou uma crítica profunda do Estado nacional capitalista. Para nós, criar um estado nacional, independente, curdo, hoje em dia, não serve ao benefício do povo curdo e de outros povos oprimidos, mas aos interesses do Imperialismo que quer dividir esta região em pequenos Estados. De fato, seria continuar com a política que o Imperialismo sempre teve nesta região. Os franceses, britânicos e gringos dividiram toda esta região com o critério de “uma família, um Estado”, como se pode ver, por exemplo, nos casos de Catar e Iêmen. O objetivo, obviamente, consistia em dividir o Oriente Médio para controlá-lo mais facilmente.

Não há nenhum argumento antropológico, sociológico ou político que possa legitimar a divisão geopolítica que existe atualmente no Oriente Médio. Por isso é que a União de Comunidades do Curdistão tem uma postura muito crítica com respeito a criar uma nova divisão, um novo Estado curdo. O Estado-nação capitalista é um Estado que legitima a dominação em três sentidos: primeiro, permite que uma classe explore as classes populares; segundo, através do machismo; e, por último, temos a dominação sobre a natureza. A mãe terra é vítima deste sistema de superprodução e consumismo.

Então, analisando estes três pontos, os companheiros da União de Comunidades do Curdistão chegaram a algumas conclusões muito interessantes. O confederalismo democrático prevê não apenas a autodeterminação dos povos curdos, turcos, armênios, árabes e persas, como também aposta em construir uma maneira de organização comunal de base, onde todos possam viver em harmonia com a natureza.

Com o confederalismo democrático, a luta ganhou rapidamente a simpatia de todo o povo curdo, mas também de outros povos. Antes, obviamente, as organizações tinham também muita relevância, mas chegou-se a outro nível de massividade através desta nova ideologia.

Em 1984, não havia outra maneira de lutar a não ser através da luta armada, porque havia uma ditadura na Turquia e, no Iraque, Saddam Hussein. A luta armada ganhava rapidamente simpatia e, em 1988, a guerrilha do PKK tinha cerca de 8000 guerrilheiros. E, paralelamente, os companheiros começaram a participar e incentivar as lutas democráticas, a princípio, graças à luta das mães dos desaparecidos e dos presos políticos.

Como se deram conta, é muito similar ao que se passou na Argentina. Logo surgiram movimentos políticos e sociais que nasceram, a principio, na Turquia, mas não se limitaram a este país, justamente porque os curdos também vivem na Síria, Iraque e Irã, dentro das fronteiras arbitrárias que nos impuseram. Pouco a pouco, as organizações nacionalistas curdas destes diferentes países foram levantando a bandeira do confederalismo democrático. Produziu-se uma transformação ideológica muito importante. Esta transformação foi por si uma revolução. Essas mudanças são muito visíveis.

Na Turquia, após algumas semanas houveram eleições. Os companheiros participaram das eleições e alcançaram quase 10% dos votos, obtendo 36 deputados na assembleia nacional e mais de 100 prefeitos. Se vocês viajam para lá, irão ver o que é uma prefeitura socialista comunitária. Vê-se em questões bem concretas: por exemplo, todas as organizações que pertencem a esta União de Comunidades do Curdistão, regem-se sob do princípio da co-presidência. O que quer dizer co-presidência? Uma co-presidência é uma presidência compartilhada por uma mulher e um homem. Suponhamos que em um pequeno povo onde há cinquenta habitantes e existe uma associação de cinema, onde participam 10 pessoas. Para que esta associação possa ser membro das União de Comunidades do Curdistão, ela tem que aceitar o princípio da co-presidência e designar a uma mulher e um homem como co-presidentes. Desta maneira, a mulher começa a ganhar um poder extraordinário.

Desde os anos 1980, a mulher já começou a se organizar em brigadas especiais de mulheres, as quais não somente para a luta armada, como também para atuação na sociedade em geral, mas agora a participação das mulheres tornou-se primordial. Agora, as presidências na Turquia não tem um presidente, mas sim co-presidentes, um presidente e uma presidenta. Isso muda dramaticamente a cabeça feudal e escravista do Oriente Médio. Foi uma revolução o poder imaginar e implementar organizações, presidências, comunas e assembleias populares onde a mulher seja dirigente.

Por outro lado, em cada município ou comuna ou bairro, controlados por este movimento, organizam-se em assembleias populares comunais. Não esperamos transformação do Estado. Esta ideologia, este programa não diz “vamos fazer a revolução proletária, vamos tomar o controle do Estado”. Não vamos esperar que isso ocorra, mas, de onde estamos, organizamo-nos e transformamos a vida. Nesse sentido, tudo que se passou depois de 2001 na Argentina, para nós, foi muito interessante: assembleias populares, piquetes, empresas recuperadas pelos trabalhadores, tudo isso para nós foram experiências muito importantes. Aprendemos com isso e estamos aplicando onde temos controle do território.

Por tudo isso, creio que este conflito é mais interessante porque pode transformar-se em uma revolução e pode modificar a sociedade em todos os sentidos. Vou tentar ilustrar com outro exemplo: os curdos que controlam a parte norte da Síria e Curdistão ocidental, com mais de 70.000 guerrilheiros (a maioria, mulheres), estão aplicando este modelo de confederalismo democrático de forma muito concreta. Há uma cidade na Síria que tem 100.000 habitantes, onde vivem 10.000 árabes, 10.000 armênios, 5.000 assírios, não recordo quantos cristãos e muitos membros de outras etnias. Nesta cidade-comuna, as quais são agora chamadas de cantões, desde 2010, a assembleia popular se forma não pela porcentagem de população étnica, mas pelos dois representantes armênios, dois representantes árabes, dois representantes curdos. Os curdos são maioria na população da cidade, mas não na prefeitura.

Então, com dois representantes – um homem e uma mulher – de cada etnia, a população decide, através de uma forma organizativa e muito direta, a política social, econômica e ecológica da cidade. Esta é uma experiência muito importante. As decisões não se tomam por maioria, devem dar-se por unanimidade. A maioria só quer dizer que 51% decide por 49%, mas isso nem sempre implica que seja correta a decisão.

Assim, esse processo de unanimidade na tomada de decisões permite que se produza uma discussão muito forte entre o povo, entre homens e mulheres, entre organizações, e gera uma dinâmica de formação política extraordinária. Obviamente, isso obriga que haja discussões muito profundas. O processo em si tem sido uma vitória. Levando em conta todos os aspectos, creio que neste conflito há uma luta muito interessante que pode transformar o Oriente Médio. Portanto, no mundo atual não se pode esperar transformações em apenas 5 ou 10 anos, mas insisto que continua sendo muito importante o que se tem conquistado.

Você acha que o governo dos Estados Unidos pode tirar o PKK da lista de organizações terroristas agora que a guerrilha se tornou central na luta contra o Estado Islâmico?

Agora há uma campanha dos amigos do PKK na Europa e Estados Unidos para demonstrar que a lista de organizações terroristas é ridícula. Nos Estados Unidos chegamos a várias dezenas de milhares de assinaturas. Com a campanha temos dois objetivos. Se nos tiram agora da lista porque lutamos contra a Al Qaeda, a CNN não poderá dizer o contrário. O PKK nunca fez ataques em organizações civis nem econômicas, só contra guarnições ou estruturas militares. Na Europa, setores relevantes do povo sabem que o PKK defende o povo, que não é uma estrutura terrorista. Agora estamos propagandeando nossas ideias para que o povo dos Estados Unidos as conheçam e saibam que não somos terroristas. Seu governo só vai tirar o PKK da lista por pressão de parte de seu povo.

Sabem como o PPK entrou na lista de organizações terroristas? Em 2004, o PKK decidiu fazer um cessar fogo unilateral. Pouco depois, Felipe González (primeiro-ministro social democrata da Espanha) em uma reunião da União Europeia propôs incluir o PKK na lista porque o confederalismo democrático que propunha o PKK geraria medo, assim como o cessar fogo, já que facilitaria o crescimento político da organização, em razão da massividade que poderia alcançar com essas medidas. E com a pressão dos Estados Unidos, o PKK entrou na lista.

O Estado Islâmico cresceu e passou a controlar um vasto território em muito pouco tempo. O que pode dizer sobre essa organização?

A organização Estado Islâmico no Iraque e na Síria é um desdobramento da Al Qaeda, e não tem apoio da população destas regiões, nem sequer os sunitas os apoiam. São mercenários que gerando medo, ocupando lugares e matando a todo mundo controlam o território. As pessoas, obviamente e com razão, têm medo e não podem fazer nada. A única força que poderia liderar a iniciativa contra essa perigosa ameaça é o PKK. O PKK resiste e liberta as cidades, não somente do imperialismo, mas, antes de tudo, do Estado Islâmico. Através desta luta podemos mostrar ao mundo inteiro que os islamitas da Al Qaeda e o imperialismo estão juntos.

O imperialismo apoiou e apoia de maneira direta a Al Qaeda/Estado Islâmico, porque querem desestabilizar a região. Querem dizer: “olhem, fizemos uma intervenção em 2003 contra Saddam Hussein para libertar, para exportar uma democracia estadunidense para aí, mas não funcionou”. Eles provocaram o conflito entre sunitas e xiitas, dois ramos do Islã, e agora dizem “olhem, os bárbaros não entendem a democracia, se matam entre si, necessitam de nós”. Tudo para legitimar uma intervenção e uma presença permanente na região, jogam com a Al Qaeda/Estado Islâmico.

Quase 85% dos mercenários da Al Qaeda são jovens que tem nacionalidade francesa, alemã ou britânica. Não vêm de países árabes, não vêm do Norte da África. São estrangeiros, são jovens dos bairros árabes de Paris, de Marselha, de Londres e de Berlim. Eles trouxeram essa força reacionária contra nós, contra todos os povos da região. Claro que agora estão vendendo armas aos Estados que têm que matar essa organização islâmica. Acabaram de vender armas ao Estado autônomo curdo do Iraque por 4 milhões de euros para que lutem contra o Estado Islâmico.

Acabam de vender uma centena de mísseis para Bagdá. Mas, ao mesmo tempo, o imperialismo permitiu diretamente aos islamitas roubar armas no Iraque. Inclusive, os deixaram com mais de 100 tanques com tecnologia de ponta. Os gringos, algumas semanas atrás, saíram desta cidade e deixaram absolutamente todo o equipamento militar. Qualquer comandante militar, quando retraído, se você deixar uma arma ou estrutura militar, as destrói para que mais tarde o inimigo não as possa usar. Bom, os gringos as deixaram aqui de bandeja. Estes equipamentos agora estão sendo operados pelos fanáticos do Estado Islâmico.

O império tem um plano para esta região. Os Estados imperialistas creem poder sair da crise econômica em que estão afogados não com uma guerra mundial como dizia Lênin, mas com conflitos regionais: Norte da África, Oriente Médio, e _ porque não?_ amanhã pode ser o Paquistão ou a Índia. E, claro, após a destruição quem reconstrói tudo? Suas empresas multinacionais. O que aconteceu na Iugoslávia acontece agora nessas regiões, por isso falo que querem balcanizar a região. A única força que pode apresentar um obstáculo contra este plano é o PKK, uma verdadeira força revolucionária e democrática.

Em 2013, o PKK se retirou da Turquia. Ultimamente voltaram a ter presença em território turco?

Em 2009 havia um processo de negociação entre o PKK e o governo turco. Em 2010, rompeu-se essa negociação depois de mais um milhão de idas e vindas. O governo turco oficialmente queria obter a paz, assim como o governo da Colômbia busca fazer com as FARC. Em 2012 começa um novo processo de negociação. Em 21 de Março de 2013, Abdullah Öcalan, que era o presidente do PKK, aceita iniciar novas negociações. A ideia do PKK era a de não continuar com a luta armada e garantir um mínimo de democracia. Durante as negociações, o estado turco aceita que, se o PKK se retira da Turquia, iria se iniciar um processo de paz. Mas, assim como na Colômbia, o governo sai, afrouxa, dá voltas. Na realidade, 30% das forças do PKK se retiraram da Turquia. O PKK está na Turquia mas não continuam suas atividades, atividades estas que consistiam em realizar ataques armados contra centros militares. A Turquia queria jogar com o PKK dizendo “bom, vamos acalmar o PKK” e atacar mais a Síria.

Graças a este processo, o PKK mostrou sua vontade de paz e ganhou inclusive uns 10% de votos. Mas de concreto não há nada, e já acontecem novos pequenos enfrentamentos. A Turquia mandou militares à região do Curdistão porque pensava que podia fazer uma intervenção na Síria, mas não podia porque ali também está o PKK. Não fazem ações militares esperando o processo de paz: é como na Colômbia, é como um cessar fogo. Não é o abandono da luta armada, é uma estratégia para mostrar a vontade de fazer a paz.

Há alguma novidade sobre as investigações das 3 companheiras do PKK que foram assassinadas no início de 2013 em Paris?

Há todas as evidências de que o assassinato só poderia ter sido feito pelo serviço secreto turco com o serviço francês, belga e alemão. Agora sabemos através de grampos telefônicos que comprovam isso. A França está investindo vinte milhões de euros em centros nucleares na Turquia. Para a França, a Turquia é uma potência econômica com a qual se deve ter um bom relacionamento. Por isso negociam assuntos como esses assassinatos. Mataram as 3 companheiras do Centro de Informação do Curdistão de Paris. Eu trabalhei nesse Centro e o conheço muito bem. Há câmeras do serviço secreto francês para observar tudo e é impossível que não tenham gravações dos assassinos. Houve uma mobilização muito importante para denunciar a colaboração entre os serviços secretos e a relação franco-turca. Que isto tudo tenha acontecido em pleno processo de negociação de paz foi uma clara provocação frente ao PKK para que este voltasse a combater, para iniciar uma guerra.

Você mencionou o resultado das eleições turcas onde vocês participaram. Como avalia o desempenho do Partido Democrático do povo?

É uma vitória muito importante, que pode crescer ainda mais rápido. O Partido Democrático do Povo é uma aliança progressiva dos curdos, turcos, armênios e todas as nacionalidades presentes na Turquia. Há mais de 600 movimentos sociais que participam deste partido. Sua construção permitiu excluir obstáculos de comunicação. Ele foi construído ao lado dos irmãos turcos e isso nos ajudou a alcançar jovens turcos, na região central da Turquia, algo que antes era impensável. O partido é muito próximo da luta dos curdos porque a maioria de seus membros são curdos, mas também é um partido para a democracia de todos os povos turcos. Do partido participam intelectuais, dirigentes sindicais e movimentos estudantis. Todas as organizações que o compõem participaram da ocupação da Praça de Taksim. Está claro que nos próximos anos vamos a ter um desenvolvimento interessante neste sentido.

Facundo Guillén / Resumen Latinoamericano

APELO URGENTE DO GOVERNO DO CANTÃO DE KOBANÊ

Situação atual de Kobane

Situação atual de Kobane

Fonte: http://kurdishquestion.com/kurdistan/west-kurdistan/urgent-appeal-from-kobane-canton-government.html
Tradução livre de Maria Joseane Rosa e revisão de Talita Rauber.

Apelo do governo do cantão de Kobane às Nações Unidas e à comunidade internacional

Os ataques do Estado Islâmico em Kobane, cidade curda no norte da Síria, estão em andamento desde 15 de setembro de 2014. Como resultado da guerra, muitas partes da cidade e dos vilarejos ao redor têm sido destruídas e devastadas. A emergência humanitária é agravada devido ao embargo, de fato existente. Uma vez que todas as rotas para Kobane foram bloqueadas, não é possível que os suprimentos humanitários alcancem a cidade. Devido à difícil situação dos refugiados de Kobane, localizados na Turquia, mais e mais pessoas estão retornando para lá. A municipalidade de Kobane é mantida por voluntários.

O maior problema é a falta de água potável. Após o início da revolta popular na Síria, a linha de abastecimento de água para Kobane, que está sendo controlada centralmente pelo estado, tem sido descontinuada. A própria população de Kobane construiu uma linha de água alternativa para lá. Porém, como resultado dos ataques realizados pela milícia terrorista chamada de Estado Islâmico, esta linha de abastecimento de água autoconstruída também foi destruída. Atualmente, as pessoas de Kobane obtêm a sua água dos poucos poços existentes.

No entanto, essa água não se trata de água potável. Por isso, é utilizada apenas para questões de higiene e limpeza. A água potável está disponível apenas em garrafas PET fechadas. Porém, os estoques estão baixos e não será suficiente por muito mais tempo. Da mesma forma, há ausência de alimentos, especialmente de trigo e farinha, com os quais pelo menos as necessidades básicas de subsistência puderam ser cumpridas. O local de produção do pão, que era organizado pela administração da cidade, caiu sob o controle do EI com todo o seu estoque de farinha.

Outro problema é a fonte de energia. Pelo fato de que elas também são direcionadas pelo governo central, tem ocorrido um corte de energia desde 2 anos atrás. Por isso, aque os ataques do Estado Islâmico começassem, a população providenciava eletricidade via geradores. Porém, o EI atacou e destruiu o depósito de combustível para os geradores. A insuficiência de combustível não só causa problema para gerar energia, como também constitui um grave problema para a temporada de inverno que se aproxima, já que o combustível também é utilizado para os aquecedores a óleo. Além disso, há falta de roupas de inverno, especialmente casacos e sapatos. Quando as pessoas fugiram de seus vilarejos, eles tiveram que deixar todos os seus pertences para trás.

Além disso, a assistência médica revela-se um sério problema. Os três hospitais existentes foram todos destruídos. Atualmente, uma casa abandonada funciona como local temporário à assistência aos pacientes e é gerido por apenas um médico voluntário. No entanto, devido à falta de medicamento, não é possível tratar muitas doenças. Embora alguns equipamentos médicos estejam disponíveis, estes não podem ser utilizados em operações importantes, visto que a fonte de energia, a qual é necessária a estes dispositivos, seja inexistente. Como resultado dos desumanos ataques da milícia terrorista, não apenas muitas pessoas foram feridas, como muitos ainda continuam sendo alvos de violência, além de que os cadáveres em decomposição e os bombardeios facilitam o alto risco de epidemias. Por causa dos constantes ataques do EI em curso, e da falta de material técnico, não é possível remover os cadáveres.

Estimamos que o povo de Kobane só pode sobreviver por mais um outro mês* com o estoque existente de alimentos, água e óleo para aquecimento. Entretanto, o fluxo de pessoas que regressam da Turquia para Kobane torna difícil dar um prognóstico detalhado. Ainda, acima de tudo, o abastecimento de água potável representa um enorme problema.

Portanto, nosso objetivo é atrair o público e a comunidade internacional com esta carta.

Exigimos:

A criação de um corredor para a ajuda humanitária sob o controle da ONU.

Delegação internacional de especialistas para analisar a situação em Kobane.

Garantir água potável e fornecimento de alimentos.

O envio de equipes internacionais de médicos para atendimento.

Equipamento técnico para a reconstrução da cidade.

*Nota de revisãono texto original encontra-se a palavra “moth”(mariposa), a qual acreditamos ter sido digitada errado, devido à falta de sentido. Portanto, pelo contexto, acreditamos que a palavra correta seja “month”(mês).