Por Ángel Cappelleti
Fonte: Polêmica
Em 6 de agosto de 1936, em um momento luminoso da revolução espanhola, escrevia Solidaridad Obrera: “Os militares têm sido o pesadelo da nação”. A frase poderia servir de epígrafe para uma história do último meio século na Argentina.
O exército argentino, organizado como exército regular depois da batalha de Caseros, teve seu olhar sobre os exércitos europeus durante muitas décadas. Sarmiento fundou o colégio militar com a finalidade de “europeizar” técnica e ideologicamente a oficialidade nacional. A tecnificação foi bem sucedida, em maior ou menor grau; a ideologização também. Teve o país, assim, um exército “liberal”, com todas as consequências que isto implicava. Liberais foram a maioria dos oficiais argentinos, porque criam firmemente no livre câmbio e na livre empresa. Também o foram no político e no cultural. Pensavam que cada cidadão podia expressar suas ideias, quaisquer que fossem, sempre que com elas não atentasse contra a constituição, quer dizer, contra a propriedade privada, a família patriarcal, a hierarquia de classes, a autoridade do governo. Um argentino podia ser católico, metodista ou agnóstico: conservador, radical ou até socialista. Mas, desde já, não comunista ou anarquista. Podia-se, segundo eles e os governos que sustentavam, criticar os homens e as instituições e falar mal dos ministros e ainda do presidente durante todo o ano, mas no dia das eleições não se podia votar a não ser em quem asseguraria a continuidade da ordem e do progresso. O presidente Roca teve um conflito com o núncio papal; os generais liam Spencer e ainda a José Ingenieros; a educação era laica, gratuita e obrigatória. Mas, em caso de greve, as forças armadas tinham já preparados os seus Falcón e seus Varela, sempre prontos para servir à pátria massacrando trabalhadores (conf. O. Bayer. La Patagonia rebelde).
Este “liberalismo” dos militares argentinos, suficiente para assegurar a perduração do latifúndio e o domínio político da oligarquia, começou, no entanto, a ser questionado, por sua debilidade intrínseca, a partir do crescimento da classe média e do triunfo do radicalismo (1960). Nos anos 20, alguns oficiais começaram a ver com simpatia o triunfo do fascismo italiano e se sentiram deslumbrados pela retórica grandiloquente de Mussolini. Desde o fim dessa década, esses militares formavam já um grupo significativo que consolidava seu ideário com a leitura de Maurras e o magistério “filosófico” de alguns “hispanistas”. O nacionalismo consistia, até então, em renunciar toda história nacional (feita por maçons e jacobinos) para reivindicar a Felipe II e em sonhar com a reinstauração do Vice-reinado por cima desse engendro rousseauniano chamado República Argentina. Trata-se de reinventar a Santa Inquisição contra anarquistas, comunistas, socialistas e ainda liberais; de negar o internacionalismo “moscovita” em prol do internacionalismo vaticano; de impedir a toda custa, com a cruz e a espada, que alguém tomasse a sério a frase do evangelho: Insuerientes implevit bonis et divit dimisit inanis (“Aos famintos os encheu de bens e aos ricos os devolveu vazios”, quer dizer, os despojou de suas riquezas). Em 6 de setembro de 1930, o general Uriburu interrompeu meio século de relativo constitucionalismo civilista a fim de assegurar o essencial desses ideais de “nacionalismo” e derrubou o presidente Irigoyen. O acompanharam no golpe, além dos cadetes da Escola Militar, um seleto grupo de oficiais do exército, entre os quais estavam o capitão Perón, o capitão Franklin Lucero, o major Sosa Molina, etc. Era “a hora da espada”, como diria o ex anarquista Lugones. Um dos ideólogos daquele primeiro golpe fascista dos militares argentinos, Carlos Ibarguren (La historia que he vivido, Buenos Aires, 1969, p. 369), descreve assim o ideário dos que inspiraram, realizaram, usufruíram da “gloriosa” revolução de 1930:
Esses núcleos de juventude sentiam-se em desacordo com nosso regime individualista, que fomentava a anarquia em uma época em que o clima da sociedade sofria grandes comoções no mundo. Na França, cuja cultura e mentalidade exerciam poderosa influência entre nós, o modo de trabalhar e o discurso do grande político e nacionalista Maurras e da Action Française – descartando a tendência monárquica – provocava revolta nesses momentos, o que atraiu aqui profundo interesse em muitos jovens, determinando tendências políticas e socias definidas, quanto a combater o liberalismo e o parlamentarismo, a necessidade de organizar um Estado vigoroso e um governo representativo do país real e não dos comitês eleitorais; aos anseios de implantação de uma democracia funcional, baseada nas forças sociais e não em partidos manejados e usufruídos por demagogos e oligarquias de políticos profissionais. Exerciam também influência as ideias difundidas por Mussolini, e se bem se repudiava as ditaduras (?), sustentava-se a necessidade de governos fortes que mantivessem energicamente a ordem social, as hierarquias e a disciplina para evitar a ameaça do comunismo soviético.
De resto, o governo de Uriburu cumpriu, até onde se pôde, com este programa. A repressão contra políticos (radicais, socialistas) foi leve, caso se compare com a que exerceu contra os militantes obreiros. A prisão de Usuhaia, “o sepulcro dos vivos” do extremo sul argentino, se encheu de anarquistas e comunistas; se implantou sistematicamente a tortura; se fuzilou a Severino Di Giovanni e a outros revolucionários.
Na década de 30, a ideologia fascista logrou prestígio crescente entre os militares argentinos, assim como entre uma minoria de intelectuais “aristocratas”. O triunfo de Hitler na Alemanha e de Salazar em Portugal; o falangismo espanhol de José Antônio Primo de Rivera; Codreanu e a Guarda de Ferro, etc., para não falar do Estado Novo de Getulio Vargas, do integrismo de Plínio Salgado e de outros avanços das forças totalitárias, corroboraram as tendências iniciais de alguns e arrastaram a outros até então indecisos.
Enquanto Uriburu desmantelava o FORA e, aplicando com rigor a famosa “lei de residência”, devolvia à Itália ou à Espanha aos mais aguerridos lutadores obreiros, os intelectuais “nacionalistas” revisavam a história argentina, exaltavam a Rosas, denegriam a Sarmiento e Rivadavia, confeccionavam impecáveis sonetos ao Garcilaso e se esforçavam por substituir a Hegel por São Augustín e a Kant por Santo Tomás.
Muitos oficiais, instruídos por “filósofos” como Giordano Bruno Genta, começaram a sentir-se “cruzados”, cuja missão sagrada era a luta contra o comunismo e seu lacaio, o demoliberalismo. Surgiram lojas1 evidentemente imbuídas de ideias fascistas ou falangistas. O GOU (Grupo de Oficiais Unidos), que levou ao poder, em 1943, a Ramírez, Farrell e Péron, foi uma delas. A vivacidade criola deste último (mais próxima, sem dúvida, da sabedoria do velho Vizcacha que da de Martín Fierro) supôs disfarçar habilmente a aspiração a um Estado corporativo com o percal floreado das dádivas e os “benefícios sociais”. Mas quando o fascismo manso e popular deixou de ser possível (porque já não sobrava nada para presentear) o fascismo em sua pura virulência ressurgiu. Lonardi e seus amigos da Unión Federal em 1955 eram parentes próximos do franquismo contemporâneo, mas os “liberais” de Aramburu, recorrendo à herança de Augustín P. Justo e de Roca, preferiram retornar a vias mais moderadas. Quando estas se mostraram insuficientes, surgiu, uma década mais tarde, Onganía, progênie do Opus Dei e da CIA, dos Cursos de Cristandade e da OAS, com menos inibições que Lonardi (e também com menos oposição dentro das forças armadas). Assumiu alegremente a postulação de um corporativismo tecnocrático. Para isso, começou por escolher da Universidade Nacional os melhores técnicos e homens de ciência. A petulante ineficiência de seu governo naufragou no Cordobazo. Foi a vez da outra cara do fascismo criolo. Retornou, então, com sua recapturada presença de general, Juan Domingo Perón, seguido por sua corte de bruxos e seu bando de guerrilheiros. Estes eram “socialistas nacionalistas”, aqueles “nacionais socialistas” (o qual, no fundo, vem a ser o mesmo). Perón os cobriu primeiro, a uns e outros, com sua boemia de duce ressuscitado. Ao final, repudiou aos montoneros2 cuja estridência pseudo-revolucionária turbava suas sestas de ancião aprazível; e se juntou a López Rega e aos sindicalistas, para liquidar desde o governo aos “apressurados”. Assentou assim as bases da repressão apocalíptica; e fundou direta ou indiretamente, querendo-o ou sem querê-lo, os esquadrões da morte e a Triple A, cuja titularidade ostentavam López Rega, e outros camelots du roi.
O golpe de 1976 deu lugar ao período indubitavelmente mais sangrento e amoral de toda a história argentina. Os militares reivindicaram o monopólio do crime e da corrupção. Declararam a guerra à subversão, que identificavam com “o marxismo apátrida”, embora fosse mais supernacionalismo fascista, na maioria dos casos. Deu-se o paradoxo – que só pôde se dar na Argentina – de uma versão do fascismo tratando de exterminar a outra. A luta “militares versus montoneros” foi o enfrentamento de dois fascismos: um fascismo que defende a civilização “ocidental e cristã”, quer dizer, os interesses do Estados Unidos, das transnacionais, da hierarquia católica, da oligarquia financeira e, sobre tudo, das forças armadas, e outro, terceiro-mundista, apoiado as vezes em Cuba, as vezes nos países árabes e no capital petroleiro, sempre nostálgico da figura do líder (o Duce), alimentado ideologicamente pelos dejetos do marxismo e pelas ambiguidades de certa teologia pós-conciliar, basicamente católica e não carente de afinidades com o falangismo “independente” em tudo o que se refere a concepção de Estado – os sindicatos, a igreja, a família, etc. (Linke Leute von Recht) –. É claro que a grande ação repressiva arrastou muitos homens que não eram montoneros nem socialistas nacionais. Caíram nela marxistas (mais ou menos autênticos), sociais democratas, radicais e até algum anarquista; personalidades independentes, cristãos sinceros, defensores dos direitos humanos, etc. Os liberais, por outro lado, se dobraram ou se redobraram. Videla teve, mais até mesmo que Mussolini, seus Salandra e seus Giollitti. O Estado fascista assumiu a vestimenta de Estado terrorista. Os militares, donos do poder absoluto, consideraram “que o princípio de sujeição à lei, à publicidade dos atos e o controle judicial dos mesmos incapacitam definitivamente o Estado para a defesa dos interesses da sociedade”, e de tais premissas surgiu “a necessidade de estruturação – quase com tanta força quanto o Estado público – do Estado clandestino e, como instrumento deste, o terror como método” (E.L. Duhalde, El Estado terrorista argentino, Buenos Aires, 1983, p. 28). Nesta nova modalidade do fascismo argentino, os militares não só assumem o poder absoluto, não só subordinam a sociedade ao Estado e o Estado às forças armadas, mas também fazem tábua rasa de toda normalidade jurídica e ética. Para poder defender melhor a lei e a moral, suprimem toda moral e toda lei. Seu poder, tanto mais obsceno quanto mais pretende exercesse em nome dos valores cristãos, tanto mais semelhante ao despotismo oriental quanto mais se esforça por se mostrar paladino da civilização ocidental, tende a ser assim não só infinito, mas também, como diria Spinoza, infinitamente infinito. Tal fascismo castrense ultraterrorista se baseia na doutrina da seguridade nacional. Esta doutrina “acabada elaboração do Estado-Maior Conjunto Militar dos Estados Unidos” é, como disse Duhaldem, o fundamento dos “Estados militares ou Estados contra insurgentes que precipitaram a formação dos Estados terroristas” (opt. cit. p.32). O mencionado historiador caracteriza assim esses Estados, dos quais são exemplos o Chile de Pinochet, o Uruguai de Gregorio Álvarez e a Argentina de Videla, Viola e Galtieri: “Neles, a ênfase de seu discurso ideológico está posto na defesa da seguridade da nação, supostamente ameaçada pela ‘agressão permanente a serviço de uma superpotência extracontinental e imperialista’, nas palavras de Augusto Pinochet, a qual está representada pela invasão no seio do país de elementos subversivos empenhados em destruí-lo em todos os níveis. Os ditos elementos – sustenta-se – lograram ou se empenharam em lograr a destruição do sistema democrático ocidental, influídos pelo marxismo mediante projetos políticos alheios à idiossincrasia e às tradições de seus respectivos povos. A preocupação prioritária e determinante que orienta a ação do Estado e, em consequência, a luta frontal contra as atividades de todas as organizações sociais, sindicais, políticas e, por suposição, armadas, cujos postulados ou atividades tragam, de alguma maneira, propostas alternativas ou diferentes do que se caracteriza como o modo de vida ocidental e cristão” (op. cit. p.32-33).
O Estado terrorista argentino instaurado em 1976 não pode confundir-se com as clássicas ditaduras latino-americanas, nem se quer com as mais arbitrárias e sangrentas. Entre outras diferenças poderia assinalar-se a seguinte: Os clássicos ditadores latino-americanos (Juan Vicente Gómez, em Venezuela, por exemplo), ainda que na maioria dos casos sejam militares e chegam ao poder com o apoio das forças armadas, não só costumam perseguir, mas a quem se opõe diretamente a seu governo, a seus interesses ou aos de seu grupo e sua classe. Exercem um terror limitado pela economia de suas próprias forças e pela estreiteza de suas perspectivas. Entretanto, a repressão do Estado terrorista é absoluta e universal. E se em verdade o terror é, como disse Hannah Arendt, a essência da dominação totalitária, resulta evidentemente que esse Estado tem levedo o fascismo a sua perfeição ontológica. Um célebre governador argentino, o general Saint Jean, sintetizou assim o programa político do Proceso3: “Primeiro mataremos todos os subversivos, depois os seus colaboradores, depois os simpatizantes, depois os indiferentes e por último os tímidos”. No entanto, o terror não se limita ao assassinato: recorre a todos os âmbitos da existência humana, se implanta na fábrica, na oficina, no periódico, na escola, na arte, na família, etc. Afeta a indivíduos de todas as idades, profissão, condição social (ainda que obviamente prefira aos das classes inferiores). Morrem ou desaparecem indivíduos que tem entre oitenta anos e oitenta dias. Mas o mais significativo não é o aspecto quantitativo da repressão (no qual Videla talvez foi superado por Hitler, ainda que não por Mussolini, Stalin ou Franco), sim o qualitativo, do qual não seria aventurado afirmar que o regime militar fascista Argentino alcançou os cumes nunca escalados na história latino-americana e universal. Não creio que o refinamento sádico dos torturadores da Escola de Mecânica da Armada tenha sido superado em Auschwitz. Parece-me, pelo contrário, que a Gestapo poderia aprender bastante com os Grupos de Tarefa Argentino, e que Mengele, mais que dá lições a Astiz, deveria tê-las tomado dele.
Pode dizer-se, em todo caso, em favor dos nazis alemãs, que não uniam a hipocrisia à crueldade, que não se escondiam atrás da cruz de Cristo, sim que levavam com orgulho, à frente, a cruz gamada (para muitos, a cruz do Anticristo). O grande problema é que os fascistas argentinos não tiveram seu Nuremberg. Depois de oprimir, empobrecer e assassinar “valentemente” a seu próprio povo, os militares argentinos empreenderam uma guerra absurda (cortina de fumaça, autojustificação, mas também consequência forçosa da ideologia fascista, que tende necessariamente para o conflito bélico). Venceram os montoneros, mas não puderam vencer os ingleses. Demonstraram que não só eram absolutamente ineptos como governantes, mas também inteiramente incapazes como militares. O mínimo que se poderia pedir frente a esta demonstrada e flagrante inutilidade é a abolição de tais forças armadas ou por pelo menos sua redução a uma limitadíssima oficina técnica. Mas isto seguramente não acontecerá.
Publicado em Polêmica, n. 17, maio de 1985.
1 Como as lojas maçônicas; logia.
2 Organização política e militar argentina que lutou contra a ditadura militar.
3 Proceso de Reorganización Nacional, nome do período de governo ditatorial na Argentina de 24 de março de 1973 à 10 de dezembro de 1983.