Preconceito lingüístico: uma introdução sobre a língua e relações de poder na sociedade

Neste texto, pretendo tratar de uma discussão pouco realizada. Embora conste na declaração de direitos humanos o direito à língua, essa forma de opressão é bastante ignorada pela esquerda, sendo restrita às reivindicações de acadêmicos da lingüística.

Não pretendo, entretanto, me aprofundar nesse assunto tão amplo, mas apenas trazer breves explanações introdutórias para a divulgação desse assunto.

letras

  1. A língua e o indivíduo

Por muito tempo se acreditou que a língua fosse um instrumento do ser humano usado para comunicação. Essa visão, apesar de muito difundida, é reducionista e simplista. A língua possui uma ligação muito mais complexa com o indivíduo.

Chomsky, na minha opinião o maior lingüista que já pisou nessa terra, trouxe uma visão diferente para a relação entre língua e sujeito, que transcrevo a seguir: “[…] a linguagem humana é livre de controle de estímulos e não serve a uma função meramente comunicativa, mas é antes um instrumento para a livre expressão do pensamento e para a resposta apropriada às novas situações. […] O resultado é uma linguagem humana que serve primordialmente como órgão do pensamento, como meio de chegar ao pensamentos reflexo e só secundariamente serve à finalidade de comunicação social”. Em suma, Chomsky concebe a língua como algo inato à natureza humana, isto é, geneticamente determinado à raça humana; é algo intrínseco a nós, que nos diferencia dos animais, nos ajuda a construir o pensamento e o mundo subjetivo. A língua nos constitui.

Para que melhor seja ilustrado, imagine que você, leitor, está numa cabine escura e começa a ouvir uma voz que narra uma história. A partir daquela voz, é possível deduzir sexo, idade, grau de escolaridade, classe social, tribo urbana, cor etc. do falante. A língua é uma espécie de cartão de visitas. Se tivermos isso em mente, começaremos a entender que a repulsa por um modo de falar nada mais é que uma repulsa pelo tipo de indivíduo que a usa. Chamar um modo de falar de “errado” é chamar seu falante também de errado; é não lhe garantir existência ou relevância. Por isso se deve considerar amplamente tal discussão, pois, ainda que muitos ignorem, é uma forma de opressão contundente.

  1. As variações lingüísticas

Este autor que lhes escreve é um recifense. Se o leitor morar, por exemplo, no Rio Grande do Sul, com certeza terá uma maneira de falar diferente da minha. Muitas palavras terão uma pronúncia bastante diferente, como “sal” ou “tia”. Também conhecerá palavras que me são bastante estranhas. Pois bem, essas diferenças dentro de uma mesma língua se chamam variação lingüística. Essa variação não se dá apenas em relação à região onde vive o falante, mas também em relação à classe social, sexo, idade, entre outros fatores.

Maurizio Gnerre, em seu livro Língua, escrita e poder, diz que uma variante vale tanto quanto vale seu falante na comunidade. Observe, no exemplo a seguir, como esse preconceito é discreto: “tia” em São Paulo é dito com som de “tch” (como em tchau). Isso é completamente aceito, mesmo que nas demais localidades se pronuncie um “t” diferente (como o de touro). Em contrapartida, quando algum falante ouve a variação “tchurma”, ri e zomba sem dificuldade. Isso se dá porque “tchurma” é usado pelas classes mais baixas da sociedade, mesmo trazendo uma variação de som igual à paulista. Os exemplos não são escassos e podem ser observados diariamente. O preconceito lingüístico, deve-se frisar, não é lingüístico, mas social. Só é considerado errado aquilo que é típico das minorias.

  1. Gramática tradicional

A gramática tradicional (doravante GT) constitui uma compilação de regras do “bem dizer”. É uma espécie de guia de como usar sua língua. Possui o objetivo de prescrever regras a serem seguidas no uso da língua. A GT, que a priori estava relacionada à língua escrita, se estende à modalidade oral e a qualquer situação comunicativa. Se sustenta, também, no mito de que a língua é um caos.

A primeira gramática prescritiva no ocidente surgiu na Grécia antiga, ainda com o mito da existência de uma língua-mãe e ideal, criada por um adão mítico, que possuía o real significado das coisas, mas esse valor foi se perdendo pelo tempo (proposta de Platão). Essa gramática contemplava a variante falada pelos usuários cultos da aristocracia ateniense; desde já seu caráter opressor pode ser visto. Essa tradição foi até Roma, onde surgiu o termo “barbarismo”, para designar os “erros” cometidos pelos bárbaros que utilizavam o latim (denominado vulgar). As regras, principalmente ortográficas, são extremamente arbitrárias e ambíguas. Por que o som “s” é representado por tantas letras (a saber: x, c, ss, ç, s, xc, sc)?

A GT guarda em sua essência um caráter discriminatório, legitimador da variante de prestígio social. Quando dizemos que tal coisa é errada porque na GT é dito algo contrário, estamos, automaticamente, dando validade a essa opressão.

Também é preciso lembrar-se do prestígio da escrita sobre a fala, mas isso é assunto para outro texto.

  1. A gramática interna

Um mito de que a língua é um caos, sem regras definidas e que pode acabar caso não conte com a ajuda dos bondosos Pasquales é bastante difundido. A isso não é muito difícil se opor, pois basta lembrar de que pessoas sem nenhuma escolaridade conseguem se comunicar normalmente em sociedade. É preciso entender que a língua já possui regras internalizadas pelos seus falantes. Ela não funciona em meio a um caos, mas segue regras rígidas. E, na verdade, estudos recentes apontam que a língua dita “errada” é mais regular e lógica que a língua gramatical, cujas regras e exceções já se perderam no tempo.

Qualquer falante responderá que frases como (1) não lhe fazem sequer sentido, assim como jamais produzirá uma semelhante.

(i) para foram meninos o casa.

Tal fato apenas corrobora que já possuímos regras internalizadas que regem a língua. Essas regras, como se sabe, não são rígidas e estão sempre em mudanças, assim como tudo o que é natural e humano. No caso de (II), por exemplo, a mudança decorre de uma economia lingüística.

(ii) Os menino foi pra casa.

Sabemos que no português o determinante (artigo) traz as informações de gênero e número do substantivo. As flexões ocorrem primeiramente nele. Tal fato se comprova quando qualquer falante compreende que em (II) mais de um menino foi para casa. A queda do “s” plural se dá pela redundância na estrutura sintática. O falante não sente mais necessidade de marcar o substantivo no plural porque já o faz no determinante e assim é entendido o que pretende expressar.

Essa mudança não se dá no meio individual, mas no meio social.

Podemos concluir, então, que as mudanças estigmatizadas não possuem nada de grotesco ou ignorante; são, na verdade, câmbios regulares que aprimoram a capacidade comunicativa da língua.

  1. Vale tudo?

Um dos argumentos falaciosos utilizados por quem critica tais fatos é de que se nada é errado, se não houver um padrão, ninguém se entenderá mais. Um astrólogo conhecido por dar palpites na filosofia dá a entender que os que não possuem o domínio da norma culta são preguiçosos. Ele diz que na Espanha e na França não há esse tipo de problema porque as crianças são, desde cedo, iniciadas na leitura.

O primeiro argumento mostra-se incorreto em dois pontos: nunca se defendeu o fim da GT e as variações não podem ser controladas.

O que se defende é o conhecimento dos contextos comunicativos. Em contextos formais a língua deve ser formal, isto é, deve seguir a norma culta. Já em contexto informal, a língua pode flexibilizar essas regras sem nenhum problema. Ninguém é obrigado a escrever no estilo acadêmico. É até estranho quando alguém fala de modo pomposo numa conversa espontânea de amigos. Pede-se apenas que essas situações sejam compreendidas e que, em caso de desvio, o falante não seja zombado como o é hoje em dia. Pede-se, também, que não se estigmatizem formas características da língua das minorias, por motivos amplamente citados acima.

Outro ponto a ser observado é que, no fim das contas, cada um fala de seu modo e nenhuma gramática poderá conter essas variações. Entretanto, faz-se necessário, por questões pragmáticas, que haja um padrão a ser seguido na escrita. Repito: nunca se defendeu o fim da gramática.

Sobre os casos na Espanha e França, fica mais do que claro que isso é pura ingenuidade ou má fé. Só quem não conhece a realidade desses países pensa assim. Na frança, há muito tempo atrás, já se falava em “fim do francês”. Na Espanha, bastam apenas alguns minutos de conversa e verá que os desvios gramaticais são bastante comuns, assim como o preconceito.

  1. Considerações finais

Como pôde ser observado, os pontos dessa discussão foram expostos de forma bastante superficial, para que sirva apenas como uma introdução ao assunto. Expor todas as reflexões contidas nesse tema tão vasto seria extremamente cansativo e impossível para apenas um texto. Lembro, porém, que virão outros textos, com a mesma problemática, que focalizarão e aprofundarão o leitor em outros tópicos diversos da relação entre língua e sociedade. Por ora é só. Este autor se despede e agradece a atenção.