Ocupação Jardim União: Na zona sul, uma pequena cidade autônoma

IMG_4995-610x350

Fonte: Vai dar pé

Na zona sul de São Paulo, a ocupação Jardim da União reúne mais de 800 famílias, conta com educação própria, reciclagem e pode sofrer reintegração de posse a qualquer momento

Por Henrique Santana

Fotos: André Zuccolo

IMG_4922O Jardim da União está há um ano e meio no distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo. Com 820 famílias distribuídas em quatro quadras, a ocupação se tornou uma pequena cidade autônoma. Com a falta de políticas do Estado, o número de famílias dobrou no decorrer do último ano. Hoje, conta com educação própria, reciclagem e agricultura.

A caminhada das famílias passou por uma violenta reintegração de posse em uma ocupação localizada no Itajaí, também no Grajaú, em setembro de 2013. Sem teto e sem terra, as cerca de 200 famílias que perderam os barracos – destruídos pela Tropa de Choque – passaram a ocupar o terreno do Varginha e fizeram o batismo: Jardim da União.

Mesmo com a função social que exerce, o Jardim da União pode sofrer reintegração de posse a qualquer momento. O terreno, ironicamente, pertence ao CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), empresa do governo estadual responsável pelo desenvolvimento urbano e de habitações populares para pessoas de baixa renda. As autoridades alegam que a ocupação se localiza em área de manancial e, por isso, deve ser desocupada.

Educação é nóis que faz

A creche “Filhos da Luta” foi a mais recente construção dos moradores, realizada em outubro (12) do ano passado e inaugurada no dia das crianças. A tarefa de cuidar dos mais novos é divida entre quatro mulheres, duas fazem o trabalho no turno da manhã e as outras duas à tarde.

Biblioteca pública do Jardim União. Educando na luta

Biblioteca pública do Jardim União. Educando na luta

Aldenira Amarante é conhecida por sua simpatia, o que lhe rendeu o apelido de Sorriso. Chega à creche no segundo período, já que de manhã vai ao Curso de Educação de Jovens e Adultos (Eja). “A creche foi construída com muita dificuldade. Todos os moradores ajudaram com mutirões. A gente tinha 17 crianças, esse ano diminuiu porque algumas foram chamadas para a escola”, conta a cearense, que tem três filhos cursando a faculdade graças às notas obtidas no Enem.

Sorriso diz que gosta de trabalhar com crianças e que, depois da experiência com a creche, pretende cursar pedagogia. Além de frequentar o Eja, Sorriso também vai às aulas de espanhol da ocupação, ministradas por Samuel, boliviano que também ocupa o terreno do CDHU.

IMG_4734Sandra de Moura, uma das coordenadoras da ocupação, ressalta que os moradores realizam trabalhos deixados ao léu pelo governo, como o coletivo de educação. A iniciativa conta com uma escola de futebol, aulas de capoeira e atende não só crianças da ocupação, como também de bairros vizinhos.

O Jardim da União não para por aí. Aulas de alfabetização, jiu-jitsu, cooperativa de costura e dezenas de hortas comunitárias também compõem o leque de iniciativas promovidas pela ocupação. A ideia é que as pautas se expandam em um projeto de educação popular promovido pelos próprios moradores.

É uma tentativa de educação popular. Educar dentro da luta”, afirmou Carolina Moura, pedagoga e militante da Rede Extremo Sul, um ano atrás, quando a ocupação começava a ganhar seus moldes.

Eco-ocupação

Hortas comunitárias no Jardim União

Hortas comunitárias no Jardim União

Apesar de se localizar em área de mananciais, o Jardim da União está a frente de muitos bairros no quesito reciclagem. Lixo na rua não tem. Quando tem a comunidade cobra. “Tem que recolher isso aí. Se não vai entrar cobra na sua casa”, reclama Aricleiton, também coordenador, ao ver algumas caixas de madeira no meio da rua.

Sete pessoas trabalham na reciclagem, dois homens e cinco mulheres. Entre as tarefas, há o recolhimento do lixo e a divisão de materiais que vão ser reciclados. O resto dos moradores também participam do processo, organizando o despejo para facilitar a coleta. As poucas coisas que não servem para reciclagem são levadas para uma caçamba do lado de fora da ocupação e levados pelo caminhão da prefeitura.

Maria Aparecida é mais conhecida na ocupação como Cida, a “manda chuva” da reciclagem, brinca. “Se não fosse nóis aqui dentro, ia tá cheio de lixo. Porque nóis cata o lixo todinho e traz para cá”, conta.

A coleta se dá a cada dois dias, das 8h até às 12h. O dinheiro da venda dos materiais é dividido. Parte dele fica no caixa da ocupação e o resto é distribuído igualmente entre quem trabalha na reciclagem. Em média, os trabalhos rendem R$ 250 para cada envolvido.

Sorriso esbanjando simpatia na ocupação

Sorriso esbanjando simpatia na ocupação

As mercadorias saem da ocupação no caminhão de Bruno, também morador do Jardim da União. Ele não cobra pelo deslocamento e ajuda na venda de reciclados. “Se for pagar caminhão por fora, nóis não ganha nada. Só o deslocamento do material em um carreto custa R$ 40”, explica a “manda chuva”.

IMG_4557Cida morava antes em casa alugada, saiu porque não tinha condição de pagar, assim como muitos dos que vivem na ocupação. “Eu pagava R$ 450 de aluguel, fora água e luz. Com o salário que eu tinha não dava para se manter. Era eu, meu marido, filho pequeno e meu outro filho rapaz.”

A ocupante conta que atualmente sua situação melhorou. O filho mais novo vai para a creche de manhã enquanto a reciclagem funciona a todo vapor. A creche é a grande paixão de João Victor, atualmente com três anos. Aos sábados e domingos, sem os compromissos escolares, ele “chora e esperneia” e Cida tem que levá-lo até a creche para mostrar que está fechada.

Aqui não tem patrão!

A estrutura do Jardim União se diferencia de muitos movimentos de moradia, buscando quebrar as estruturas de hierarquização na luta. Toda quarta-feira, o salão de assembleias ganha vida. Os moradores se reúnem para discutir questões da ocupação e deliberar decisões em conjunto. Não existe pauta fixa, os próprios ocupantes que decidem o que será discutido.

A atual coordenadora, Sandra, pontua que todas as decisões são tomadas em conjunto. “Então, quando eu saio para trabalhar não faz falta, porque tem outra pessoa que pode tocar as tarefas”, comenta.

A ocupação é uma responsabilidade de todo mundo. Um exercício que coloca dificuldades porque é muito mais fácil chegar alguém dizendo que manda. A gente não quer isso”, explica Guto, que também milita na Rede Extremo Sul. O movimento se divide em grupos de coordenadores rotativos, uma forma de todos participarem e entenderem mais a fundo o funcionamento da ocupação.

Mariano está no terreno desde a chegada dos moradores. No passado, trabalhava na roça e hoje cuida de uma bela horta na ocupação. Com um galo embaixo do braço e um pé de couve na outra mão, desabafa: “Na roça eu trabalhava para patrão e nóis aqui não quer ter patrão”.

IMG_4604

Zona Autônoma Permanente

16156483299_21201b6530

Por Hakim Bey

Fonte: Protopia

A teoria da Zona Autônoma Temporária (TAZ) busca tratar de situações existentes ou emergentes, mais que do utopismo puro. Por todo o mundo existem pessoas que estão deixando ou “desaparecendo” da Grade[1] da Alienação e buscando formas de restaurar o contato humano. Um exemplo interessante disto – no nível da “cultura popular urbana” – pode ser encontrado na proliferação de redes e conferências vinculadas a passatempos. Recentemente descobri zines destes grupos, Joias da Coroa das Altas Ondas[2] (dedicado ao colecionismo de isoladores elétricos de cristal) e uma revista sobre cucurbitologia (A Abóbora). Enormes quantidades de criatividade são dedicadas a estas obsessões. Os diversos encontros periódicos de companheiros-maníacos vêm a ser verdadeiros festivais cara-a-cara (não-mediados) de excentricidade. Não é só a “contra-cultura” quem busca suas zonas autônomas temporárias, seus acampamentos nômades e noites de liberação do consenso. Grupos auto-organizados e autônomos estão brotando entre todas as “classes” e “subculturas”. Vastas extensões do Império Babilônico estão agora vazias, povoadas somente pelos agentes secretos dos Meios de Massas e uns poucos policiais psicóticos.

A teoria da zona autônoma temporária dá conta disto que ESTÁ ACONTECENDO – não estamos falando sobre o que “deveria” ou será – estamos falando de um movimento já existente. Nosso uso de uma série de meios reflexivos e experienciáveis – poesia utópica e crítica paranóica (etc.) pretende ajudar a clarificar este movimento complexo ainda em grande medida não documentado, dar-lhe algum foco teórico e consciência de si mesmo, e sugerir táticas baseadas em estratégias integralmente coerentes – atuar como parteira ou panegírico, e não como “vanguarda”!

Então tivemos que considerar o fato de que nem todas as zonas autônomas existentes são “temporárias”. Algumas são (ao menos nas intenções) mais ou menos “permanentes”. Certas rachaduras no Monolito Babilônico parecem tão vazias que grupos inteiros podem se mudar para elas e lá se instalarem. Certas teorias, como a “permacultura”, têm sido desenvolvidas para lidar com esta situação aumentando as possibilidades. “Vilas”, “comunas”, “comunidades”, incluindo aí “arcologias” e “biosferas” (ou outros modelos de cidade-utopia) estão sendo experimentadas e implementadas. Mesmo nesse contexto a teoria da TAZ pode oferecer algumas ferramentas de pensamento, esclarecimentos e úteis reflexões.

E se tratarmos de uma poética (um “modo de fazer”) e de uma política (uma “forma de viver juntos”) para a TAZ “permanente” (ou ZAP)? O que existe na relação atual entre a temporalidade e a permanência? E como pode a ZAP periodicamente renovar-se com o aspecto festivo da TAZ?

A Questão da Publicidade

Os recentes eventos nos Estados Unidos e na Europa mostraram que os grupos auto-organizados/autônomos levam o temor ao coração do Estado. O MOVE[3] na Philadelphia, os Koreshitas de Waco,[4] os Dreadheads,[5] as Tribos do Arco-iris,[6] os piratas informáticos,[7] os okupas[8] (etc.) têm se tornado alvos do extermínio em vários níveis de intensidade . E ainda outros grupos autônomos seguem desapercebidos, ou pelo menos não são perseguidos. O que faz a diferença? Um fator pode ser o efeito maligno da publicidade ou mediação. A Mídia experimenta uma sede vampírica pela sombra-paixão do “Terrorismo”, o ritual público de expiação, o bode expiatório e sangue sacrificial da Babilônia. Uma vez que qualquer grupo autônomo permite que este “olhar” particular caia sobre ele, a merda bate no ventilador – a Mídia tentará organizar um mini-Armagedom para satisfazer sua viciosa ansiedade por espetáculo e morte.

Na atualidade, a ZAP dá um ótimo alvo, fácil para essa bomba inteligente midiática. Assediado dentro de seu “composto”, o grupo auto-organizado só pode sucumbir a algum tipo de martírio barato predeterminado. Seria presumível que este papel atraia somente aos masoquistas neuróticos??? Em todo caso, a maioria dos grupos desejam viver seu período natural ou suas trajetórias em paz e calma. Uma boa tática aqui pode ser evitar a publicidade da Mídia de Massas como se fosse uma praga. Um pouco de paranóia natural pode ser útil, contanto que não se converta em um fim em si mesma. A gente deve ser astuto para evitar ser apanhado. Um toque de camuflagem, uma aptidão para a invisibilidade, um sentido de tato como tática… poderiam ser tão úteis para uma ZAP como o são para uma TAZ. Humildes sugestões: use somente “mídias íntimas” (zines, rodas de telefones, BBSs[9], rádios livres e mini-FM, TV a cabo de acesso público, etc.); evite atitudes confrontacionistas de macho fanfarão – você não precisa de cinco segundos no telejornal diário (“Polícia derruba Seita”) para dar sentido a sua existência. Nosso slogan poderia ser: “Busque a vida, não um estilo de vida”.

Acesso

As pessoas provavelmente deveriam escolher as pessoas com quem querem viver. As comunas de “participação aberta” acabam invariavelmente atoladas com aproveitadores[10] e patéticos abobados sedentos por sexo. As ZAPs devem eleger mutuamente seus próprios membros – isto não tem nada que ver com “elitismo”. A ZAP pode exercer uma função temporalmente aberta – como abrigar festivais ou compartilhar comida gratuita –, mas não precisa estar permanentemente aberta a qualquer autoproclamado simpatizante que apareça.

A Emergência de uma Economia Alternativa Genuína

Uma vez mais, isto já está acontecendo, mas ainda precisa de uma imensa quantidade de trabalho antes de entrar em foco. As sub-economias do “lavoro nero”[11], as transações livres de taxas, o truque, etc., tendem a ser severamente limitadas e localizadas. As BBSs e outros sistemas de redes podem ser usados para colocar em relação estas economias regionais/marginais (”empresas caseiras”) em uma economia alternativa viável de certa magnitude. “P.M.”[12] delineou já há algum tempo alguma coisa semelhante a isto em “bolo’bolo”[13] – de fato já existe um número de possíveis sistemas, ao menos em teoria. O problema é: como construir uma verdadeira economia alternativa, isto é, uma economia completa sem atrair o Imposto de Renda e outros cães de caça capitalistas? Como posso trocar minhas habilidades como, digamos, escavador de poços ou destilador de álcool, pelos alimentos, livros, abrigo e plantas psicoativas que desejo – sem pagar impostos, bem como sem utilizar nenhum dinheiro forjado pelo Estado? Como posso viver uma vida confortável (inclusive luxuosa) livre de toda interação e transação com o Mundo da Mercadoria? Se tomássemos todas as energias que os esquerdistas colocam em suas manifestações inúteis e toda a energia que os ultra-liberais[14] despendem em seus fúteis joguinhos de terceiro partido, e se nós redirecionássemos toda esta potência para a construção de uma verdadeira economia subterrânea, já teríamos alcançado “a Revolução” há muito tempo atrás.

O “Mundo” Chegou ao Seu Fim em 1972

A efígie frívola do Estado absoluto finalmente veio abaixo em “1989”. A última ideologia, o Capitalismo, não é mais que uma doença de pele do Neolítico muito tardio. É uma máquina-de-desejos que segue funcionando vazia. Tenho a esperança de vê-lo desaparecer ainda durante a minha vida, como uma das paisagens mentais de Dali[15]. E quero ter algum lugar para onde “ir” quando a merda toda vier abaixo. É claro que a morte do capitalismo não implica necessariamente na destruição ao estilo Godzilla de toda cultura humana; este cenário é meramente uma imagem de terror propagandeada pelo próprio capitalismo. É claro que o cadáver sonolento terá contrações e espasmos violentos antes que o rigor mortis se estabeleça – e Nova Iorque ou Los Angeles podem não ser os locais mais inteligentes para se esperar pelo fim da tempestade. (E a tempestade pode já ter se iniciado). [Por outro lado Nova Iorque e Los Angeles podem não ser os piores lugares para se criar o Mundo Novo; alguém poderia imaginar bairros inteiros ocupados, gangues transformadas em Milícias Populares, etc.] Agora, o modo de vida cigano-realidade virtual pode ser uma forma de lidar com o atual processo de fundir-se do Capitalismo Muito Tardio – mas no que me consta, preferiria um belo monastério anarquista em algum lugar – um local típico para que os “eruditos” possam suportar a “Idade das Trevas”[16]. Quanto mais nos organizarmos AGORA neste sentido, menos problemas teremos para enfrentarmos no futuro. Não estou falando de “sobreviver” – não estou interessado na mera sobrevivência. Quero florescer. VOLTEMOS A UTOPIA.

Festivais

A ZAP desempenha uma função vital, como um nodo na rede de TAZs, um ponto de encontro para um círculo amplo de amizades e alianças que podem realmente não viver realmente o tempo todo na “fazenda” ou na “aldeia”. As antigas aldeias celebravam feiras que traziam riqueza para a comunidade, proporcionavam mercados para os viajantes e criavam um tempo/espaço festivo para todos os seus participantes. Hoje em dia o festival está emergindo como uma das formas mais importantes para a própria TAZ, mas ele também pode proporcionar renovação e avivamento para a ZAP. Recordo ter lido em algum site que na Idade Média havia cento e onze dias festivos ao ano; deveríamos tomar isto como nosso “mínimo utópico”[17] e nos esforçarmos para conseguir algo ainda maior.

A Terra Vivente

Acredito que há uma abundância de boas razões egoístas para desejar o “orgânico” (é mais sexy), o “natural” (que é mais gostoso), o “verde” (é mais belo) e o Selvagem[18] (é mais excitante). A Communitas[19] (como denominada por Paul Goodman[20]) e a convivialidade (como chamada por Ivan Illich[21]) são mais prazerosas que seus opostos. A terra vivente não tem porque excluir a cidade orgânica – a pequena mas intensa conglomeração de humanidade dedicada às artes e aos prazeres ligeiramente decadentes de uma civilização expurgada de todo seu gigantismo e solidão forçada – no entanto mesmo aqueles de nós que gostamos das cidades podemos ver motivos imediatos e hedonistas para lutar pelo “meio ambiente”. Somos biófilos militantes. Ecologia profunda, ecologia social, permacultura, tecnologia apropriada… não somos exigentes demais com as ideologias. Que brotem mil flores.

Tipologia da ZAP

Uma “religião esquisita” ou um movimento de arte rebelde pode se tornar um tipo de ZAP não-local, algo como uma rede de hobbies muito intensa e abrangente. A Sociedade Secreta (como a Tong chinesa) também proporciona um modelo para uma ZAP sem limites geográficos. Mas o “cenário do tipo ideal” implica num espaço livre que se estende em um tempo igualmente livre. A essência da ZAP deve ser a intensificação prolongada dos prazeres – e riscos– da TAZ. E a intensificação da ZAP será… a Utopia Agora.

Hakim Bey Zona Autônoma Permanente de DreamTime, Agosto de 1993

Referências

  1. A ideia de grade aqui evocada por Bey relaciona-se à cartografia, faz referência às linhas e paralelos dos mapas, coordenadas polares e geodésicas, latitude e longitude. Todos os espaços e alterações mapeados, estão sob o julgo do poder (N. do T.).
  2. No original Crown Jewels Of The High Wire(N. do T.).
  3. MOVE é uma organização formada na Philadelphia, Pennsylvania em 1972 por John Africa (1931 – 1985) e Donald Glassey (1946). Se organiza na forma de uma rede descentralizada de negros (afro-americanos) cujos membros em sua grande maioria adotaram o sobrenome África, defendendo um estilo de vida de “retorno a natureza” sendo em muitos sentidos contrários à tecnologia. Em 1985 o grupo foi alvo de uma operação de ataque do Departamento de Polícia da Filadélfia. Nesta operação foram mortos 7 de seus membros incluindo seu fundador John Africa. Mumia Abu-Jamal é um dos apoiadores mais ativos do MOVE escrevendo em 1998 de dentro da prisão onde se encontra uma longa carta intitulada ‘Longa Vida a John Africa’! (N. do T.)
  4. Nome dado aos seguidores da seita de David Koresh (1959 – 1993), uma facção davidiana. Em 1993 a ATF e o FBI realizaram um cerco ao centro espiritual koreshita, estes por sua vez responderam ao cerco atirando com suas armas, ao final desta operação estavam mortos 82 membros da seita incluindo o próprio David Koresh. Na época do cerco, Koresh encorajava seus seguidores a pensar neles próprios como “estudiosos dos Sete Selos” mas do que “Davidianos”. Outras facções de Davidianos nunca aceitaram sua liderança.
  5. “Dreadheads” foi um dos termos utilizados pela mídia norteamericana para designar os homens e mulheres que se insurgiram contra a polícia e os símbolos do Capital durante as manifestações contra a OMC em Seattle em 1999, já que a maioria destes possuíam cortes de cabelo afro chamados dreads. Especula-se que muitos deles eram adeptos do anarco-primitivismo influenciados principalmente pelas ideias de John Zerzan (N. do T.).
  6. “Rainbow Tribes” é o nome de uma ampla rede anarco-xamânica que tem entre seus adeptos muitos defensores da ecologia profunda. Cada “tribo” no entanto, possui suas particularidades (N. do T.).
  7. Bey refere-se à pirataria politizada de centenas de grupos e indivíduos localizados principalmente nos países da Europa Oriental. Estes piratas têm como principal ação política o crackeamento e a livre disponibilização de uma infinidade de softwares, livros, filmes e álbuns musicais. No Brasil a pirataria politizada ganhou alguma notoriedade nas ações do Coletivo Sabotagem, um grupo de anarquistas que vem já há algum tempo, contrariando as leis de direitos autorais, disponibilizando livros digitalizados através de seu site na Internet (N. do T.).
  8. Okupas (“Squats”em inglês) é uma prática comum na Europa e Estados Unidos que consiste na ocupação e reforma de construções abandonadas por grupos libertários, transformando-as em locais para moradia, centros culturais e pontos de referência e descanso para viajantes anarquistas, além de abrigarem festivais de música e espaços de exposição. Okupa é também a denominação de pertencimento dos habitantes deste tipo de ocupação (N. do T.).
  9. BBS (acrônimo inglês de bulletin board system) é um sistema informático, um software, que permite a ligação (conexão) via telefone a um sistema através do seu computador e interagir com ele, tal como hoje se faz com a internet. Essas redes se tornaram populares nas décadas de 70 e 80 e podem ser consideradas o início da internet. (N. do T.)
  10. O termo utilizado aqui originalmente é “freeloader”, que significa alguém que, se aproveitando de uma relação igualitária comunal, consome excessivamente mais do que o justo compartilhamento dos recursos (N. do T.).
  11. Do italiano, significa “trabalho negro” e é empregado aqui para definir as muitas formas de trabalho sujo, pesado e mal remunerado que na Europa são geralmente efetuadas por imigrantes ilegais (N. do T.).
  12. P.M. é o pseudônimo utilizado por um autor libertário anônimo nascido na Suíça (N. do T.).
  13. Bolo’bolo é o famoso livro anti-capitalista e autonomista escrito por p.m. e publicado em 1983 em Zürich, pela editora Paranoid City (N. do T.).
  14. No original, “libertarian”. Nos EUA o termo significa ultra-liberal ou (polemicamente) anarco-capitalista. Em termos semânticos “libertarian” pouco tem a ver com a ideia por trás do termo “libertário” nos países de língua latina. Os ultra-liberais (libertarians) defendem o fim do Estado, ou pelo menos a minimização deste, por o considerarem demasiadamente intervencionista na “liberdade de Mercado”, que para eles é a única forma de liberdade realmente verdadeira. Durante os anos de 1980 o Partido Libertário alcançou certa relevância nos EUA, chegando a ser o terceiro em votos, ainda que muito abaixo dos democratas e dos republicanos (N. do T.).
  15. Salvador Dalí (1904 – 1989), pintor expoente do surrealismo, nascido na Espanha (N. do T.).
  16. O termo utilizado originalmente no inglês, ”Dark Ages”, é uma das formas como os expoentes da Idade Moderna chamavam pejorativamente a Idade Média. (N. do T.)
  17. Os “Mínimos Utópicos” propostos por Charles Fourier consistiam em mais comida e sexo que a quantidade desfrutada pelo aristocrata mediano do século XVIII; Buckminster Buller propôs o termo “mínimo nú” como um conceito similar (N. do A.).
  18. No original “Wild(er)ness” abrangendo tanto a ideia de “selvagem”, como a ideia de “Natureza Intocada” (N. do T.).
  19. O título de um dos livros escritos por Paul Goodman e seu irmão Percival Goodman, publicado em 1947 (N. do T.).
  20. Paul Goodman (1911 – 1972), anarquista sociólogo, poeta e escritor nascido nos Estados Unidos. Goodman é atualmente lembrado como o autor do livro Absurdo Crescente (Growing up Absurd) e por sua militância pacifista durante os anos de 1960 tornando-se uma fonte de inspiração para a contracultura daquela época (N. do T.).
  21. Ivan Illich (1926 – 2002), filosofo anarquista nascido na Áustria, autor de uma série de críticas muito bem fundamentadas às instituições centrais da cultura ocidental contemporânea tais como a educação, o trabalho e o desenvolvimento econômico. No início de sua vida, Illich foi padre, mas rompeu com a igreja se tornando um de seus maiores críticos (N. do T.).

Syntagma, Syriza: entre a praça e o palácio (entrevista com Stavros Stavrides)

Stavros-Stavrides-foto-Burkhard-Lahrmann_EDIIMA20150206_0374_5

Stavros Stavrides, foto de Burkhard Lahrmann

 

Como relacionar Syriza e movimentos contra a crise, uma vez que a ocupação de Praça Syntagma em 2011 acabou porpor abaixo e reinventar a política?

Entrevista com Stavros Stavrides, ativista presente na ocupação da praça Syntagma e professor de arquitetura na Universidade Técnica de Atenas.

Fonte: El Diario.Es

Tradução para o Português (Coletivo Anarquia ou Barbárie com Google Tradutor)

Diz-se que a ocupação da Praça Syntagma, em Atenas era um efeito de 15M. Alguém na Puerta del Sol levou um cartaz dizendo: “Silêncio, que vão despertar os gregos” e eles tomaram as ruas. Em 25 de maio de 2011 os gregos levaram o recado a sério e ocuparam a praça Syntagma e centenas de locais em todo o país. 100.000 pessoas cercaram o Parlamento com um grande sinal em espanhol: “Estamos acordados. Que horas são? É hora de sair. ”

Houve movimentos sociais, mas sim (como em 15M) a sociedade em movimento. Stavros Stavrides, ativista e professor de arquitetura em Atenas, estava lá, viveu na experiência de profundidade Syntagma e já havia amplamente pensado nisso . Para ele, a ocupação da praça não era simplesmente uma forma coletiva de protesto ou reclamação, mas também “uma forma de recuperar nossas próprias vidas e de propor uma maneira diferente de compor vida social”. A reinvenção da democracia, espaço público e as relações sociais com base em idéias e igualdade prática, auto-ajuda, co-implicação, nenhuma delegação.

E agora, três anos e meio após, ocorre a vitória do SYRIZA. Como interpretar a partir da perspectiva da Syntagma? Como pode pensar o relacionamento, agora na Grécia, talvez amanhã, em Espanha, entre os movimentos a partir de baixo e os governos que desafiam o neoliberalismo? Nós conversamos sobre isso com Stavros Stavrides. Sua obra teórica centra-se em movimentos urbanos e conflitos. E seu livro Para uma cidade de limiares, que investiga, entre outros, a experiência da ocupação de Praça Syntagma, foi publicado em 2015 na Espanha, a editora Akal.

***

1. Até o momento, o que é a realidade e vitalidade dos processos de auto-organização que eclodiram em 2011? Você ainda está vivo, e como o legado de Praça Syntagma?

Stavros Stavrides. O legado de Syntagma é uma realidade que nem sempre é visível no primeiro plano da vida social e política. Deve ser rastreada em várias iniciativas, de modo coladas às cotidiano das pessoas, tais como cozinhas coletivas em bairros, centros de saúde municipal autónomas ou que atendem quem foi deixado de fora da segurança social, a partilha de práticas, produtos e serviços sem intermediários, os movimentos contra os despejos em massa na Espanha, cooperativas que surgem uma após o outra, etc.

Syntagma tem contribuído para redes de ajuda mútua que sustentam a vida de muitas pessoas na Grécia e também geram novas relações sociais, além do individualismo. Há um legado, uma herança viva de Syntagma, que mudou a mentalidade social em muitas maneiras.

2. Como Syriza foi relacionada ao movimento de Syntagma?

Stavros Stavrides. É importante dizer que Syriza foi o único partido Esquerda que oficialmente não era contra Syntagma, como foi explicitamente KKE (comunistas stalinistas). Não houve uma posição única dentro do partido, mas muitos militantes do Syriza contribuíram para as actividades de Syntagma. Mesmo alguns deputados (não todos) simbolicamente se aproximaram da praça e dizendo “estamos com vocês e não com um parlamento sequestrado e longe da vontade das pessoas”. Syriza não era contra Syntagma, mas sim o contrário, mas também não é um resultado desses movimentos, como o Podemos pode ser capaz.

3. O que você quer dizer?

Stavros Stavrides. Syriza preexistiu ao Syntagma. Está ligado a uma longa tradição de partidos de esquerdas não-soviéticos na Grécia. Ela remonta a 1968, quando o Partido Comunista, ainda ilegal, se partiu em dois: a parte eurocomunista e o partido stalinista. Syriza é a evolução do Partido Comunista eurocomunista e compartilha mais ou menos sua tradição em termos de organização, a visão do Estado, a relação entre o partido e os movimentos, etc.

4. Mas, há alguns anos o seu âmbito eleitoral foi insignificante, 3 ou 4%. Que influência você acha que pode ter tido movimentos Syntagma na recente vitória do SYRIZA?

. Stavros Stavrides Não há uma conexão determinista, causa e efeito, entre os dois momentos, mas eu e um monte de outras pessoas gostamos de pensar que a Syntagma criou uma nova consciência na sociedade e contribuiu decisivamente para neutralizar um pouco do medo que atravessa hoje a Grécia e que aparece quando se questiona a “necessidade” de políticas de austeridade. O movimento na praça Syntagma foi destruída pela força e repressão, mas o espírito de resistência e rebeldia ao destino permaneceram e se espalhou para fora da praça. O SYRIZA não teria vencido a eleição se não tivesse sido esse espírito,se o medo não fosse desafiado.

5. Embora as pessoas na Syntagma não defendessem o voto como um meio de transformação …

Stavros Stavrides. Exato. O espírito da Syntagma foi baseado sobre a idéia de resistência popular e da redescoberta da democracia e democracia direta, com uma coordenação complexa e sem qualquer centralização, prenhe de uma pluralidade de iniciativas coletivas. Foi um movimento contra a democracia representativa.

Mas na ausência de vitória do movimento sobre as políticas de austeridade, Syriza apareceu para a população como a única opção para a mudança. A única organização que não era corrupta, não sujeitos à Troika, o que poderia garantir mudança democrática e medidas que contribuam para conter os fatores que destroem a vida social. O deslocamento de pessoas e o movimento em direção a votação foi uma conjuntura que deixava claras as condições de um deslocamento forçado.

Em qualquer caso, o Syriza não substitui os movimentos. E talvez, com Syriza no governo, seja gerado um ambiente em que os movimentos podem se desenvolver mais e melhor.

Conversacion-colectiva-Atenas-Enrique-Flores_EDIIMA20150208_0030_5

Conversación en Atenas, Enrique Flores (4ojos.com/blog)

6. Que capacidade de afetar as políticas do SYRIZA reter as experiências de mobilização?

Stavros Stavrides. Basta esperar e ver. Ninguém pode ter certeza que vai acontecer. Syriza fez declarações muito positivas sobre algumas demandas importantes dos movimentos nas áreas de educação e saúde, com relação ao salário mínimo, etc. Há uma vontade explícita do SYRIZA para atender a essas demandas. Estas medidas não podem ser tomadas em dois dias, mas SYRIZA também conhecido por não desfrutar de um longo período de tolerância e deve agir imediatamente para mostrar que realmente acredita no que diz. Caso contrário, haverá novas erupções sociais. Mas agora estamos naquele período de esperar para ver.

7. O artigo “Depois Syntagma” , falou sobre isso na esquerda e abaixo, na Grécia teve duas idéias de democracia: uma idéia de democracia participativa (representado por SYRIZA) e uma idéia de democracia direta (representado por Syntagma ). Como você imagina que você pode ser a coexistência entre os dois?

Stavros Stavrides. Coexistência, não. Infelizmente, Syriza tem evoluído nos últimos tempos para um modelo de partido está fechado em torno de uma pequena cúpula. Ele tem sido verticalizado e “presidencializado” muito. É uma crítica feita até mesmo dentro do próprio partido. Eu não acho que SYRIZA pode ser cidadão e um transmissor direto que canalizará a participação das pessoas. Pode, no entanto, representar os eleitores, escolhendo políticas que canalizem demandas da sociedade.

A democracia direta joga em outro nível, redefinir a política como uma atividade não-especializado que atravessa todos os níveis da vida diária. É uma política do cotidiano.

Eu acho que agora nós podemos intervir em dois níveis: empurrar a democracia representativa além dos seus limites, através de formas radicais de democracia direta, mas considerando que a democracia representativa (com um jogo como SYRIZA no poder) pode abrir áreas mais propícias à liberdade e experimentos autônomos que prefiguram uma outra sociedade. Podemos reivindicar, por um lado, as medidas contra a corrupção ou a favor da transparência na gestão e desafiar ao mesmo tempo, os limites da representação, mediante conflitos e contra-exemplos, construindo formas de governo que vão além de autoridade pública. Jogar em ambos os níveis.

8. É o fim da austeridade, como dizem todos os lugares? O que pode um governo contra a lógica neoliberal do capitalismo contemporâneo?

Stavros Stavrides. Um governo que não se apresse procurando o proprietário,a burguesia, vamos ver. Podem haver mudanças sérias e importantes em direção a uma hora de questionamento geral do contexto neoliberal. As lutas de baixo podem influenciar o que faz um Estado. Um governo verdadeiramente progressista pode desempenhar um papel importante para reverter o equilíbrio de forças no seio da UE. Existem vários níveis de desempenho, não necessariamente contraditórios. Quer dizer, a renegociação da dívida é muito importante, mas também é preciso repensar e questionar os modelos dominantes de desenvolvimento e crescimento. De cima você pode influenciar as políticas neoliberais, mas acho que as mudanças necessárias que só podem ser produzidos a partir de baixo para sair do quadro neoliberal são.

9. Depois de três anos de muito fortes lutas sociais na Espanha, jogamos com uma série de limites. Por fora, as políticas de austeridade continuam devastadora. Internamente,, uma certa crise de imaginação política dos movimentos (como e para onde ir). E agora a atenção e desejo parece ter-se deslocado da praça para partir em assalto ao palácio. Você acha que os movimentos autônomos e processos de auto-organização tem limites intrínsecos?

Stavros Stavrides. Eu não estou em posição de oferecer respostas claras. Basta tentar pensar com você, e com colegas de todo o mundo, como podemos superar esta situação.

Eu acho que há as fronteiras que são históricas, não lógicas ou ontológicas. Nós não chegamos a uma espécie de limite absoluto para além do qual você tem que fazer as coisas de acordo com as formas de política tradicional, eu não penso assim. O estado é um elemento específico, historicamente datado, uma forma de organizar as relações sociais. Ele não é eterno, nem a única forma possível de organização social. Podemos ir além do modelo de estado.

Nesse sentido, a criatividade social implantada na Primavera Árabe, praças 15M ou Syntagma deve ser a nossa única guia. Então,por esse jugo, a política deve existir abrindo mais espaço para os processos debaixo. Se estes processos são subordinados à política de cima, então não é profunda e nem produz mudança real possível. Os vestígios deixados pelos movimentos das praças são apenas sementes que necessitam de tempo para germinar e dar frutos plantados. E nós temos que tomar cuidado e garantir o seu crescimento.

Conversacion-Atenas-Enrique-Flores_EDIIMA20150208_0029_5

Conversación en Atenas, Enrique Flores (4ojos.com/blog)

10. Diferentes autores, como Alain Badiou ou o Comité Invisible , acho que a única maneira de ir além do pêndulo entre neo-liberalismo e da democracia social é reabrir e reconsiderar a questão revolucionária, o problema da transformação radical da sociedade. O que você acha?

Stavros Stavrides. Eu concordo, mas se repensarmos a revolução fora do imaginário religioso e de vida após a morte, um acontecimento que divide a história da humanidade em um ”antes” em um “depois”. As sociedades não se transformam por um tipo de erupção vulcânica instantânea que consome o passado pra construir o futuro. O tempo para a mudança tem diferentes ritmos, diferentes níveis, nem sempre sincronizados.

Devemos preservar, claro, a ideia de ruptura, as alterações não são fluidas e suaves, mas tenho medo da idéia de mudança como algo extraordinário e estrelado por sujeitos extraordinários. Eu acredito mais na ideia Zapatista: os rebeldes são pessoas comuns. Nem heróis nem pessoas excepcionais, não há um “escolhido”, mas pessoas comuns que precisam se rebelar para uma vida digna.

Se repensarmos a revolução a partir de baixo, acho que a revolução é o já,ela já está e já está mostrando exemplos de que a sociedade desejada pode ser construída. Já é possível: nós sabemos o que a solidariedade e generosidade pode criar. A revolução não é uma mudança total e imediata, mas uma série de experiências em que são produzidas alterações. As erupções repentinas não são mais importantes do que o que acontece todos os dias abaixo do radar da mídia e, finalmente, gera as mudanças decisivas.

11. Um argentino amigo me perguntou se eu acreditava que o movimento de fundo do que aconteceu desde 2011 em Espanha foi o desejo de viver em um “capitalismo pacífica” ou a busca de novas formas de vida. O que você diz, em relação à Grécia?

Stavros Stavrides. Parece que o desejo de inventar novas formas de vida continua a ser um desejo minoritário, mas não tão pequeno como ele costumava ser. E isso não é mais uma questão de ideologia, mas de experiência. Os grupos de bairro reinventaram a solidariedade não porque eles são comunistas ou anarquistas, mas porque é a única maneira de viver com dignidade.

É claro que há muitas pessoas com o desejo de viver com as ilusões de antes (eu digo ilusões, porque o “capitalismo pacífica” nunca foi uma realidade para a maioria), mas também se abre uma oportunidade muito poderosa para influenciar o imaginário social. Porque hoje em dia modos de vida individualistas não podem se realizar, não conseguem se sustentar. As novas formas de vida são construídas lentamente, cheio de contradições e sem pureza, são construídas e influem cada vez mais em cada vez mais consciências.

Alvaro Diego e Pepe me ajudou a pensar sobre as perguntas, muito obrigado! Eugenia Michalopoulou ajudou com a tradução. Enrique Flores facilitou o contato e ilustrações.

Isso se traduziu em entrevista Inglês

As máscaras e o Black Bloc

blocs

 

Fonte: Protopia

Por Black Bloc

Uma matéria sobre as origens do Black Bloc para desmistificar o caráter “porra-louca” que recebe de alguns camaradas, no mínimo, desinformados…

A história pré-Seattle

Aqueles que possuem autoridade, temem a máscara pelo seu poder em identificar, rotular e catalogar comprometido: em saber quem você é… nossas máscaras não servem para esconder ou ocultar a nossa identidade, mas para revelá-la… hoje nós devemos dar um rosto a essa resistência; colocando nossas máscaras mostramos a nossa união; e levantando as nossas vozes nas ruas, nós botamos pra fora toda a raiva contra os poderoso sem rosto…”

(Tirado de uma mensagem imprimida dentro das 9000 máscaras distribuídas no dia 18 de junho de 1999, carnaval anti-capitalista, que destruiu o distrito financeiro central de Londres.)


Nos protestos contra a OMC em Seattle ano passado, havia entre 100 e 300 anarquistas e outros vestidos de preto que literalmente demoliram as vitrines das odiosas corporações multinacionais. Desde então a tática do Black Bloc vem despertando o interesse e chamando a atenção de diferentes pessoas preocupadas com transformação social. Todos os setores da classe média alta, progressistas e liberais tem pregado moralmente a grande distância sobre como não existe vez para tal comportamento no movimento deles. Ao mesmo tempo, o Black Bloc em Seattle inspirou e renovou o interesse nas táticas militantes, as quais não aceitam autoridade e nem baixam a cabeça perante o seu poder. O Black Bloc N30, junto com muitos outros aspectos dos eventos de Seattle, tem inspirado também anarquistas radicais a parar de se esconder dentro de grupos ativistas liberais com pautas reformistas, e começar a Ter mais voz ativa nas suas exigências pela revolução e total transformação social. Além da rápida proliferação de organizações e publicações anarquistas, está clara a evidência do ressurgimento do anarquismo nos EUA, que pode ser vista nos Black Blocs maiores, os quais estavam presentes no dia 16 de abril em Washington DC, na Assembléia Nacional dos Republicanos e Democratas, neste verão. Pra bem ou pra mal, parece que no último ano, o Black Bloc virou uma tradição americana, e tudo começou com aqueles bravos garotos e garotas em Seattle…

Será?! De fato, 30 de novembro esteve longe de ser a primeira vez que um grande grupo de radicais vestidos de preto com máscaras pretas estiveram prontos para se empenhar na militância com solidariedade e anonimato. O Black Bloc como uma associação pra estratégia em protesto pode ter mais de 20 anos. Sua origem, de fato, vem dos Autônomos Europeus, um movimento social radical que não necessariamente se proclamou anarquista, mas muitas das suas táticas e idéias tem se tornado bem apreciadas e adotadas pelos auto-proclamados anarquistas.

Sobre autonomia

Autonomia, autônomos, ou autonomistas têm sido os nomes usados por vários movimentos populares de transformação social e contra-cultura na Itália, Alemanha, Dinamarca, Holanda e outras partes da Europa nas últimas três décadas. Todos esses diferentes movimentos têm procurado se opor radicalmente à autoridade, dominação e violência, onde quer que ela exista na vida cotidiana (quase todo lugar). Autonomia, neste caso, não significa um tipo de superioridade complexa regional, ou isolamento, como o nacionalismo, estatismo… e também não significa autonomia individual ás custas da maioria, como existe na base do capitalismo. O que os autônomos valorizam e desejam, é a liberdade para os indivíduos que escolheram outros com os quais possa dividir afinidades, e unir-se com eles para sobreviver e preencher todas as necessidades e desejos coletivamente, sem interferência da ganância, indivíduos violentos ou enormes burocracias desumanas.

Os primeiros assim chamados autônomos foram aqueles indivíduos envolvidos no movimento Autonomia Italiana, que começou no quente verão de 1969, uma época de intensa inquietação social. Através da década de 70, um grande movimento pela transformação social total era formado na Itália pelos grupos autônomos de operários, mulheres e estudantes. Capitalistas, sindicatos e a burocracia estatistas do Partido Comunista não tinham nada a ver com esse movimento, e de fato, deu duro para reprimí-lo e pará-lo.

Ainda, a estrutura do poder estava, frequentemente, prejudicada em como lidar com a recusa completa, de vários setores da população, a obedecer as ordens das autoridades. Apesar da rápida proliferação da ação direta, greves moratórias, ocupações de massa, batalhas urbanas, ocupações de universidades e outras ações radicais popularmente apoiadas durante a década de 70, o movimento dos Italianos “acalmou-se”. Isto era em parte, devido aos ataques violentos, prisões e assassinatos de radicais pela polícia e pelo governo centralizador do Partido Comunista. Ao mesmo tempo, a reação à esta escala de violência estatal era, frequentemente, a escolha do terrorismo pelos grupos de guerrilha urbana radical.

O terrorismo de auto-defesa, muitas vezes serviu para afastar as pessoas do movimento público de transformação social. Alguns escolheram se tornar mais militantes e reservados enquanto outros abandonaram a política, para viver uma aparente pacífica vida de obediência à autoridade.

Construindo o poder de enfrentamento revolucionário – A cultura dos autônomos

Apesar do potencial revolucionário do Autonomia Italiana de 70 ter sucumbido, sua agitação, confiança e “atrevimento” serviram de inspiração para os jovens da Alemanha Ocidental de 1980. Inspirados também pelo movimento squatter de Amsterdam e as organizações jovens na Suíça, Alemanha e outras cidades maiores, começaram a formar a sua própria cultura autônoma com grupos sociais baseados na resistência radical e formas de vida alternativas.

A direção e a composição da organização radical na Alemanha Ocidental de 1980 era em parte determinado pelo domínio da recessão econômica e os caminho que ela seguiu. Por causa das conecções bem-estabelecidas entre os industriais e o governo alemão, os efeitos da recessão não foram tão sentidos pelos blue collar workers, mas pelos jovens que acharam impossível assegurar trabalho e moradia, e, que antes haviam se mudado da casa do pais e se tornaram economicamente e socialmente “independentes”. Consequentemente, os motivos para a mobilização da juventude autônoma incluíram abalar o conformismo da sociedade rural alemã e da família nuclear, sérias deficiências domésticas, alto desemprego –bem como o status ilegal de aborto e planos governamentais para a expansão massiva do poder nuclear.

Como resultado da recessão econômica e visitas aos subúrbios, no fim de 1970, enormes regiões prediais residenciais, em diferentes cidades interioranas alemãs, especialmente na Alemanha Ocidental, foram abandonadas pelos empreendedores e as agências do governo. Ocupar esses prédios era uma opção viável para os jovens empobrecidos que procuravam independência da casa da família nuclear. Comunidades squatters cresceram na vizinhança de Kreusberg, em Berlim; os squats de Haffenstrasse, em Hamburgo; e em outros pontos de concentração. A pedra angular dessas comunidades era a vida em comum, e a criação de centros sociais radicais: infoshops, livrarias, cafeterias, lugares de encontro, bares, galerias de arte, e outros espaços multivalentes, onde as raízes políticas artísticas e culturais são desenvolvidas como uma alternativa para a vida da família nuclear, utopias de TV, e “cultura” pop de massa. Desses espaços sociais seguros, cresceram maiores iniciativas radicais para lutar contra o poder nuclear, ou centralizador; destruir a sociedade patriarcal e os papéis de gênero; mostrar solidariedade com os oprimidos do mundo atacando corporações multinacionais européias ou instituições financeiras como o Banco Mundial; e depois da reunificação alemã, lutar contra o crescente neo-nazismo.

Iniciativas semelhantes para uma vida alternativa como resistência estavam acontecendo nos anos 80 ( e em alguns lugares, bem antes) na Holanda, Dinamarca, e qualquer lugar da Europa Setentrional. Eventualmente, todas essas vivências norte-européias em grupos sociais descentralizados, os quais estavam dedicados a criar uma sociedade não-coercitiva e anti-hierárquica, tornaram-se rotulados como Autônomas. Com o tempo, as idéias e táticas autonomistas também migraram através da reunida Cortina de Ferro européia. Eu, pessoalmente, tenho visitado centros sociais autônomos radicais na Inaglaterra, Espanha, Itália, Croácia, Eslovênia e República Tcheca.

Repressão linha dura, resistência militante e o Black Bloc

Desde o começo, a Alemanha Ocidental não encarou bem os jovens autônomos, quer quando eles estavam ocupando usinas nucleares ou prédios desabitados. No inverno de 1980, o governo da cidade de Berlim decidiu reprimir duramente os milhares de jovens squatters pela cidade: eles decidiram incriminá-los, atacá-los e despejá-los nas ruas geladas do inverno. Essa foi uma ação muito mais chocante e diferente na Alemanha, do que seria nos EUA, e teve como resultado o repúdio e condenação da polícia e do governo pela opinião pública.

De 1980 em diante, houve um ciclo crescente de prisões em massa, batalhas urbanas, e novas ocupações em Berlim e no resto da Alemanha. Os autônomos não estavam assustados, e cada despejo era respondido como novas ocupações. Quando os squatters de Freiburg foram presos, passeatas e manifestações os apoiaram, e, condenaram a política de despejo da polícia estatal, em quase todas as grandes cidades do país. Naquele dia, em Berlim, posteriormente chamado “sexta-feira negra”, 15000 a 20000 pessoas tomaram as ruas e destruíram uma área de consumo da classe média alta.

Esse era o caldeirão fervente de opressão e resistência, do qual o Black Bloc surgiu…

Em 1981, o governo alemão começou a legalizar certo squats, numa tentativa de dividir a contra-cultura e marginalizar os segmentos mais radicais. Mas, essas táticas eram lentas demais para pacificar o movimento popular radical –especialmente, desde 1980-81 não só se havia visto tamanha brutalidade como os squatters, mas além disso, a maior mobilização policial da Alemanha desde o III Reich, com o objetivo de atacar manifestantes não-violentos na “livre república de Wendland”, um acampamento de 5000 ativistas que bloquevam a construção da usina Gorlebein de lixo nuclear. Mesmo anteriormente, ardentes pacifistas haviam sido radicalizados pela experiência da violenta repressão policial contra diversos squats e ocupações.

Em resposta à violenta repressão estatal, os ativistas desenvolveram a tática do Black Bloc: eles foram protestar e marchar, usando capacetes pretos de motoqueiros, máscaras de ski, e vestindo-se de preto (ou, para os mais preparados, estofamento de espuma e botas com ponta de aço, carregando seus próprios escudos). No Black Bloc, os autônomos e outros radicais poderiam se defender ou desviar, mais eficientemente, dos ataques policiais; sem serem reconhecidos como indivíduos, evitando prisões e batidas posteriores. E, como todos rapidamente perceberam, ter um grupo grande de pessoas, todas vestidas com a mesma cor de roupa, com os rostos cobertos, não só ajuda a escapar da polícia, mas também deixa mais fácil a tarefa dos sabotadores em destruir vitrines, bancos, e muitos outros símbolos materiais do poder do capitali$mo e do Estado. Nesse sentido, o Black Bloc é uma forma de militância que alivia a problemática entre desobediência civil não-violenta e, sabotagem e “terrorismo” guerrilheiro.

Realizações do Black Bloc e da resistência Autônoma

Black Blocs, militância autônoma e resistência popular ào Estado-polícia e à Nova Ordem Mundial se espalharam entre os europeus nos anos 80. Apesar dos radicais holandeses não se intitularem autônomos desde o começo (até 1986), os ativistas contraculturais holandeses dividiram táticas, organizaram estruturas e militâncias com os auto-proclamados Autônomos. O movimento squatter da Holanda realmente começou em 1968, e por volta de 1981, mais de 1000 casas e apartamentos foram ocupadas em Amsterdam, e havia por volta de 15000 squats no resto do país. Restaurantes, bares, cafés e centros de informação ocupados eram lugar comum, e os organizados squatters (costumeiramente chamado kraakers) tinham seu próprio conselho para planejar a direção do movimento e sua própria estação de rádio.

Contudo, alguns autônomos holandeses se recusaram a usar máscaras de ski enquanto estavam no Black Bloc, isso não quer dizer que o movimento deixou de ser militante. Um livro sobre o movimento squatter holandês mostra que “ desde o início havia existido uma ‘brigada de capacetes pretos’, a qual parecia Ter entrado numa batalha”.

Batalhas nos despejos dos squats de Amsterdam, frequentemente, mostravam a construção de enormes barricadas e, encurralados squatters arremessando mobília e outros projéteis, de vários tamanhos e formatos, pelas janelas, visando abater a polícia. Nos anos iniciais, existiam certos limites para o uso da violência, a qual os squatters usariam para retaliar os ataques policiais. De qualquer maneira, em 1985, quando um squatter chamado Hans Kok morreu sob custódia policial, ao ser preso durante um brutal despejo e evacuação, os limites foram superados. Seguindo as notícias de sua morte, uma noite de ávida destruição reinou em Amsterdam, e mesmo carros da polícia foram queimados em frente de vários distritos. Um squatter disse: “todos tinham a idéia, agora nós usaremos dos últimos meios, apenas antes das armas mesmo: Molotovs…todos caminhavam com Molotovs em seus bolsos, todos tinham garrafas cheias com gasolina…era o novo método de ação direta”. Apesar da morte de Hans Kok e da resposta á altura terem tido um efeito negativo sobre o movimento, a nova estratégia se mostrou útil em alguns meios ativistas. Em 1985, o grupo holandês Ação Anti-racista (RARA), fez uma campanha bem-sucedida forçando a rede de supermercados holandeses MARKO a sair da África do Sul: a campanha foi realizada através de numerosos bombardeios, extremamente caros e danosos para eles, nas lojas e escritórios da MARKO.

Na Alemanha, em 1986, crescentes ataques policiais e tentativas de despejo, contra um complexo de casas ocupadas em Hamburgo, chamada Haffenstrasse, foram recebidas pela contra-ofensiva marcha de 10000 pessoas, entre elas, no mínimo, 1500 do Black Bloc, carregando uma faixa enorme que dizia: “Construa o poder de enfrentamento revolucionário!”. No fim da passeata, o Black Bloc foi capaz de, vitoriosamente, levar á cabo uma batalha de rua, na qual a polícia bateu em retirada. No dia seguinte, 13 lojas de departamentos foram queimadas, causando um prejuízo de $10 milhõe$ de dólare$.

Naquele mesmo ano, o desastre de Chernobyl trouxe uma nova onda de manifestações contra a construção de novas usinas nucleares na Alemanha. Um relato dessas manifestações anti-nuclear mostrou: “essas cenas lembram uma ‘guerra civil’; capacetes, Autônomos e anarquistas armados com estilingues, Molotovs e maçaricos colidiram brutalmente com a polícia, a qual usou canhões d’água, helicópteros e gás CS (oficialmente banido para uso em civis)”.

Em junho de 1987, quando Ronald Reagan foi à Berlim, cerca de 50000 pessoas se manifestaram contra a Guerra Fria, incluindo 3000 pessoas do Black Bloc. Um par de meses depois, os ataques policiai à Haffenstrasse se intensificaram novamente. Em novembro de 1987, moradores e milhares de outros autônomos fortificaram o complexo, construíram barricadas nas ruas e lutaram contra a polícia cerca de 24 horas. No fim, a cidade decidiu legalizar as residências ocupadas.

Mais de 10 anos antes de Seattle e o protesto contra a OMC, os Autônomos mobilizaram um evento semelhante com um grande grupo de resistentes. Em setembro de 1988, o Banco Mundial e o FMI se encontraram em Berlim. Os Autônomos se valeram deste encontro como foco para a resistência mundial contra o capitali$mo corporativo globalizante e, contra a destruição governamental de bases autônomas e comunitárias. Milhares de ativistas de toda a Europa e EUA foram mobilizados, e 80000 manifestantes foram “encontrar” os banqueiros (no mínimo, 30000 a mais que Seattle). A polícia, completamente superada em número, e a segurança privada do evento tentaram manter a “ordem” banindo todos os manifestantes e atacando brutalmente qualquer assembléia pública, mas as revoltas ainda estraçalharam os centros consumistas de classe média (já era tradição).

Black Blocs pré-Seattle

Em novembro de 1999, a tática do Black Bloc parecia nova para muitos americanos porque, em parte, as ações e as idéias do movimento Autônomo europeu eram obscurecidas ou ignoradas pela mídia americana e quase nem foram divulgadas. Contudo, a ignorância pelo Black Bloc também provém do fato que muitos americanos recebem notícias de acontecimentos regionais de uma mídia manipuladora, a qual ignora quaisquer acontecimento que não servem para os seus propósitos, apresentando qualquer evento que tom o lugar como um espétaculo singular, desconectado do passado e do futuro, a ser esquecido em pouco tempo, mesmo se aconteceu recentemenete.

Radicais nos EUA nunca foram totalmente ignorantes a respeito das idéias e ações dos Autônomos europeus, e o desenvolvimento da subcultura punk/hardcore, dos anos 80, nos EUA, se espelhou na cultura Autônoma. Desde o começo de 1990, anarquistas e outros radicais nos EUA, estavam usando máscaras nas passeatas e protestos, criando laços de solidariedade entre os manifestantes e o anonimato perante as autoridades. Enquanto durava a Guerra do Golfo, um protesto nas ruas de Washington D.C. incluiu o Black Bloc, que quebrou as vidraças do prédio do Banco Mundial. Naquele mesmo ano, no Columbus Day, em São Francisco, um Black Bloc apareceu para mostrar à resistência militante, o contínuo genocídio da dominação norte-americana pelos europeus. Pessoalmente, o maior Black Bloc que eu já vi foi no M4M (millions for Mumia), na Filadélfia, em abril de 1999.

Eu diria que havia, no mínimo, 1500 vestidos de preto, mascarados e carregando faixas como: “Vegans por Mumia”. Apesar de não ter acontecido nenhuma batalha de rua e, particularmente, nenhuma destruição de propriedade privada, alguns garotos entraram em um estacionamento, ao longo da passeata, e subiram no teto, agitando a bandeira negra.

O futuro global da máscara preta

O símbolo do militante autônomo mascarado se espalhou pelo terceiro mundo. Ao mesmo tempo que o NAFTA, política econômica destrutiva neoliberal foi declarado no dia 1 de janeiro de 1994, a revolta guerrilheira explodiu em Chiapas, um estado do sul do México. O levante procurava criar espaços, para o desenvolvimento de uma organização social autônoma entre a marginalizada população indígena. A ala armada dessa luta pela autonomia comunitária e a democracia direta sem coerção ou hierarquia, tem sido e continua sendo, os Zapatistas, homens e mulheres que sam máscaras negras sempre que aparecem em público. Muitos autônomos e anarquistas têm os visitado e tentado ajudá-los com conhecimento, dinheiro, materiais, e criando solidariedade e atenção internacional para a situação em Chiapas.

Voltando a Alemanha, os Autônomos passam por tempos difíceis. Dizem por aí que os squatters anteriores tomavam conta de, no mínimo, 165 grandes apartamentos na Alemanha Ocidental, mas até 1997, sobraram apenas 3 apartamentos. Legalizar alguns squats enquanto brutalmente despejavam outros, funcionou como política eficiente para o Estado-polícia. Muitas pessoas que vivem em squats legalizados estão impedidos de virar o jogo, encorajando e expressando solidariedade com estratégias praticadas por outros squatters, e essa marginalização deixa mais fácil a derrota squatter, nas batalhas urbanas, pelas crescentes forças policiais.

O ressurgimento do neo-nazismo, no que um dia foi Alemanha Ocidental, e em outras áreas do país significou maiores problemas para os Autônomos alemães. Eles enfrentam a violência e o assassinato de ataques neo-nazistas, onde essas gangues policiam as ruas como uma “tropa contra punks e imigrantes”.

A maior parte do tempo e esforço dos Autônomos, vai para a organização de ações e grupos anti-fascistas, mas isso também significa negligenciar as tarefas para o desenvolvimento de alternativas para uma sociedade anti-autoritária, um dos objetivos originais dos Autônomos. “Antifa” ou grupos anti-fascistas levam os Autônomos a confrontos ainda mais violentos com a polícia alemã, que basicamente apoia os grupos neo-nazistas e sua ideologia nacionalista, racista –isso quando oficiais da polícia não estão diretamente ligados a grupos fascistas.

Rumores dizem que muitos militantes na Europa Sententrional, onde o Black Bloc têm sido uma estratégia de manifestação comum, têm desistido ao mesmo tempo que paravam de atingir seu objetivo. O poder de repressão estatal tem desenvolvido e usado forças tecnológicas, legais e físicas ainda maiores para isolar, observar, perseguir e localizar os envolvidos com os Black Blocs. Um processo semelhante está acontecendo nos EUA, com o ressurgimento das táticas ao estilo COINTELPRO, tendo como alvo os radicais que se opõe ao império estatal americano de capitali$mo globalizante.

Mesmo que o Black Bloc continue como estratégia, ou seja abandonado, certamente, serviu ao seu propósito. Em certas épocas e lugares, o Black Bloc efetivamente, levou as pessoas a agir em solidariedade coletiva contra a violência do capitalismo e do Estado. É importante que nós não fiquemos presos à nostalgia como um ritual ou uma tradição ultrapassada, nem rejeitar tudo porque, ás vezes, parece inapropriado. Em vez disso, devíamos continuar lutando pragmaticamente (e teoricamente), para preencher nossa necessidades e desejos individuais através de várias táticas e objetivos, quando elas forem apropriadas ao momento específico. “Disfarçar-se” como um Black Bloc tem sua hora e seu lugar, assim como as outras estratégias que se confrontam com ela…


MANIFESTO: CONSTRUIR UM POVO FORTE PARA POSSIBILITAR OUTRO MUNDO

capturar9

Fonte: Coletivo Libertário Évora

(Manifesto apresentado hoje em Madrid por vários activistas libertários)*

Muitas pessoas recordam que na “Transição” a sociedade acreditou que era possível acabar com um regime que se desmoronava para criar novos modelos de ruptura. Lutou-se, mas acabou-se perdendo: os movimentos sociais foram assimilados; as organizações desmanteladas; e as lutas desarticuladas.

Actualmente o sistema enterrou a política do “consenso” e do “pacto social” própria do Regime de 1978 e da chamada Cultura da Transição. Uma forma de organização criada pelo próprio sistema para fazer frente às exigências de transformação social de uma classe operária poderosa e fortemente organizada. Negociar a mudança para que nada mudasse. Uma vez que fomos despojados das nossas referências ideológicas e organizativas e que conseguiram desvanecer a confiança em nós próprios, o regime, apoiado na desculpa da crise, deu por finalizada a estratégia de concertação social e lançou-se de cabeça na imposição do neoliberalismo por decreto com a justificação da crise económica.

Apesar da orfandade e da indefinição que nos foi inculcada como classe durante as últimas décadas, os níveis de descrédito e de afastamento que o sistema alcançou fez com que nos tivéssemos procurado e reencontrado novamente nas ruas e praças para enfrentar com ânimo a defesa das nossas liberdades e dos bens comuns frente a uma elite que deles se quer apropriar a preço de saldo.

Nós, subscritores e subscritoras deste manifesto, também partilhamos esse desejo de nos reconstruirmos como sociedade livre e soberana, assumirmo-nos como protagonistas das nossas próprias vidas e fazer perceber à elite do velho regime que “não nos representa”. E como outros companheiros e companheiras também sentimos que a este ciclo de mobilizações sociais faltava “alguma coisa” para que nos constituíssemos como alternativa suficiente e capaz de se impor à elite, à casta, ao 1% ou como queiram que seja denominada a classe social que domina as nossas vidas.

Respeitamos os companheiros e as companheiras que face ao mesmo diagnóstico estão a optar pela via da participação institucional através de iniciativas eleitorais, mas apelamos à memória colectiva para sublinhar que os direitos, as conquistas e as grandes transformações sociais nunca nos foram oferecidas a partir das instituições. Foram lutas travadas e ganhas nas ruas, nos locais de trabalho e nos bairros. A nossa memória vem de muito longe para nos recordar que só um povo forte e combativo se impõe às elites que nos governam. Por isso entendemos que é necessária uma grande INICIATIVA SOCIAL que nos ajude a organizarmo-nos, fazermo-nos reconhecer e tornarmo-nos visíveis com todo o potencial que albergamos.

Chegou o momento de impulsionar a independência popular face a outras estruturas para podermos dar um passo em frente e nos erigirmos como povo para vencer. Superar a simples defesa do que já foi alcançado para passar à ofensiva. Impulsionar a auto-organização e o autogoverno para recuperarmos a confiança na nossa capacidade para atingirmos uma sociedade livre e igualitária. Conquistar em conjunto uma verdadeira democracia:

. DEMOCRACIA ECONÓMICA, com um modo de produção que sibstitua o capitalismo pela economia de propriedade colectiva, gerida pelos produtores e consumidores de forma cooperativa.

. DEMOCRACIA POLÍTICA, com um regime que substitua o Estado pela decisão confederal com todas as pessoas que habitam cada território em pé de igualdade.

.DEMOCRACIA DE PARTICIPAÇÃO DIRECTA E EFECTIVA, com representantes que cumpram o que for decidido pelos seus representados e sejam revogáveis a qualquer momento.

. DEMOCRACIA INCLUSIVA DE TODOS E PARA TODOS, que escute, tenha proximidade e compreenda que no mundo há muitos mundos, que assuma e integre todas as lutas que procuram uma mudança para uma sociedade mais igualitária.

. UMA DEMOCRACIA LIBERTÁRIA, DAS PESSOAS E NÃO DOS MERCADOS.

Para isso consideramos como necessárias as iniciativas que actuem nas organizações de trabalhadores e trabalhadoras, de vizinhos e vizinhas, nas cooperativas, nas organizações feministas e de estudantes. Fomentando a sua melhoria qualitativa e quantitativa, a sua democracia interna e a sua eficácia. Actuando para favorecer a sua autonomia face à administração e aos partidos ou candidaturas eleitorais e de forma a respeitar a sua pluralidade interna.

Iniciativas que sejam capazes de elaborar análises e discursos para que possam ser identificadas as necessidades de cada momento e aumentar a nossa preparação como activistas. Que sejam capazes de elaborar estratégias sobre as quais se construa a democracia e que nos permitam acumular forças enquanto caminhamos nessa direcção. Agindo com humildade e reconhecendo a pluralidade existente porque é o povo, e não os projectos ou siglas concretas só por si, quem pode conseguir novos avanços”.

Tradução Portal Anarquista

Aqui: https://construyendopueblofuerte.wordpress.com/

*O manifesto foi apresentado em 19 de fevereiro de 2015 (Nota do coletivo Anarquia ou Barbárie)

A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

ethos

Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.

Tomás Ibáñez: “Nunca se toma o poder, é sempre o poder que nos toma” (entrevista)

 

tomas-680x365

Fonte: Coletivo Libertário Évora

Tomáz Ibáñez (Zaragoza, 1944) vive com os ideais libertários como guia. Filho do exílio em França, começou as suas andanças políticas nos grupos juvenis anarquistas franceses e de jovens exilados espanhóis. Desde o início dos anos 60 até inícios dos anos 80 centrou as suas energias na construção de organizações libertárias, na luta antifranquista e na reconstrução da CNT em 1976. Autor de numerosos ensaios sobre a dissidência, o anarquismo e a luta contra a dominação, publicou recentemente “Anarquismo é movimento” (Virus, 2014), no qual analisa a vigência dos ideais e postulados anarquistas na actualidade. Ibáñez analisa o ressurgimento do anarquismo no século XXI e como este impregnou as lutas dos movimentos sociais, desde o 15 M (assembleias de rua, ndt) à expansão dos centros sociais autogestionados, as cooperativas de consumo e as redes de economia alternativa. Alerta para os perigos com que estes movimentos se vão confrontar se adoptarem a luta por via eleitoral que alguns já estão a preparar.

 “Os cantos de sereia que anunciam amanheceres radiosos extinguiram-se”, diz no livro. Já não é possível esperar a libertação, ‘anarquia’ como estado das coisas, como postulava o anarquismo?

Esses cantos de sereia situavam num futuro mais ou menos longínquo a recompensa que receberiam as lutas emancipadoras, e essa recompensa era tão fabulosa que servia para avaliar as lutas em função daquilo que nos aproximavam da meta desejada. Já não é possível manter esse tipo de discurso de raiz claramente religiosa, hoje aprendemos que o valor das lutas não depende das promessas que encerram, mas sim do seu próprio acontecer, das suas características substantivas e naquilo que permitem criar no presente. A extinção desses cantos diminui o fascínio pela terra prometida e a subordinação do caminho ao seu destino, mas nada nos diz sobre a possibilidade ou não de algum dia alcançarmos uma sociedade de tipo anarquista. Independentemente de isto acontecer ou não, a anarquia não radica no futuro mas sim no presente, em cada luta, em cada conquista que esteja conforme os seus princípios. Com o fim dos cantos de sereia também se derruba a crença no advento brusco de uma sociedade que caminha para a anarquia sobre as ruínas ainda fumegantes do actual sistema. A grande e fulgurante explosão revolucionária que traria a libertação definitiva é apenas um mito, como também é um mito uma sociedade livre de conflitos, tensões e lutas. Não há nenhum amanhecer radioso no fim do caminho, simplesmente porque o caminho não tem final, cada amanhecer deve ser conquistado dia a dia, uma e outra vez. Mas isto não significa que não se deva cultivar a utopia, mas sabendo que ela só representa um guia para actuarmos no presente e não a prefiguração da meta que se vai alcançar algum dia.

Defende que “o anarquismo ressurge no século XXI, reinventa-se”. Que características deixa para trás e que outras aparecem?

Na medida em que o anarquismo se forja no seio das lutas contra a dominação é lógico que mude quando estas se modificam, de forma a continuar a fazer frente à emergência dos novos dispositivos do poder. Ou seja, quando aquilo que o anarquismo combate muda isso fá-lo mudar também. O que o anarquismo contemporâneo deixa para trás é, entre outras coisas, um conjunto de ideias influenciadas pela Modernidade, tais como a fé inquebrantável no progresso, o enaltecimento acrítico da Razão, uma concepção demasiado simplificadora do poder, uma prática de acordo com o que foi a centralidade do trabalho e deixa também um imaginário revolucionário construído em torno da grande insurreição do proletariado. Configura-se hoje um anarquismo mais táctico que estratégico, mais virado para o presente do que o utópico, em que o que importa é a subversão pontual, local, limitada, mas radical, dos dispositivos de dominação e a criação aqui e agora de práticas e de espaços que afirmem a revolução no presente, transformando radicalmente as subjectividades de quem nelas se envolve. O que também caracteriza o anarquismo contemporâneo é um menor fechamento em si mesmo, uma maior abertura para construir em conjunto com outras tradições não especificamente anarquistas uma série de projectos e de lutas em comum.

Assinala que o anarquismo “é uma coisa de hoje, aqui e agora”. Em que é que isso se concretiza actualmente nos nossos bairros?

O anarquismo envolveu-se na tentativa de construir uma realidade de proximidade (de vizinhança, ndt) feita de realizações concretas, como são as cooperativas de consumo, de produção, de educação, os CSOA (Centros Sociais Ocupados e Autogestionados, ndt), as livrarias, as redes de economia alternativa. Não se deve esquecer que a progressiva destruição das relações de vizinhança foi um dos factores que tirou força ao anarquismo, uma vez que é precisamente nos bairros que se podem tecer relações transversais que questionem distintos dispositivos de dominação e não apenas os que se situam no âmbito laboral.

Faz também referência aos “guardiães do templo”, que pretendem um “anarquismo embalsamado”, como uma ameaça para a sobrevivência do anarquismo. Quem são os “guardiães do templo”? Que anarquismo pretendem preservar contra a força das mudanças?

Digo no livro que estive a combater durante algum tempo contra os “guardiães do templo” e, com efeito, durante os anos da minha militância anarquista mais intensa, desde princípios dos anos sessenta até aos oitenta, estes constituíam um problema sério no seio dos movimentos libertários de França, Itália ou Espanha para citar apenas os que conheço melhor. A sua vontade de preservar a pureza do anarquismo herdado, de evitar qualquer contaminação por ideias ou por práticas surgidas fora das suas fronteiras, a sua fé, quase religiosa, na superioridade inquestionável do anarquismo, e a sua dedicação na tarefa de velarem pela imutabilidade da sua essência, fechava-os num dogmatismo e num sectarismo impróprios de qualquer sensibilidade minimamente anarquista. As expulsões, as desqualificações, as cisões, não eram, naquela altura, nada raras. Hoje a própria força das mudanças esvaziou de energia as tendências sectárias e os “guardiães do templo” já não representam nenhum problema, ainda que não seja de mais permanecermos atentos a eventuais ressurgimentos de atitudes fundamentalistas.

O que é que o anarquismo pode aportar aos movimentos sociais actuais?

Muito. O anarquismo pode fazê-los beneficiar da larga experiência que acumulou relativamente aos modos de funcionamento que estes movimentos estão a reinventar na actualidade, mas que ele vem a praticar desde há muito tempo: modos de debater, de decidir, de actuar baseados na democracia directa, na horizontalidade, no respeito pelas minorias, na não delegação permanente, na acção directa, etc. Também pode fortalecer-lhes a apreensão que já manifestam face ao exercício do poder, o na sua desconfiança perante a figura política da “representação”. Vale a pena aqui recordar a maneira como Michel Foucault denunciava a “indignidade de falar em nome dos outros”. Na medida em que a memória histórica de inumeráveis lutas surgidas “desde baixo” sedimentou-se no seio do anarquismo e na medida em que as experiências e os saberes históricos ajudam a entender melhor o presente, é óbvio que o anarquismo pode ser de grande utilidade para os movimentos emergentes. Por fim, o anarquismo pode também revelar-se útil pondo a claro, de forma crítica, os erros que cometeram debaixo das dobras da sua própria bandeira.

E que práticas dos movimentos sociais actuais se podem inscrever nos princípios do anarquismo?

A horizontalidade, o modo de conduzir os debates, de elaborar as propostas e de tomar as decisões, o acento posto no carácter “prefigurativo” que deve impregnar os conteúdos e as formas das lutas, ou seja, a necessidade de que as práticas que se desenvolvem não contradigam os fins que se perseguem. Cabe aqui também mencionar a prática da acção directa e do cepticismo frente às mediações, a crítica da delegação e da representação, ou a recusa do centralismo e do vanguardismo, sem esquecer a aversão face a qualquer forma de dominação, etc.

Houve anarquismo na eclosão do 15M (assembleias de rua no Estado Espanhol, ndt)?

Claro que houve. Subscrevo completamente as palavras de Rafael Cid quando se refere a ele como uma “inesperada primavera libertária”. A partir do momento em que o único sujeito político legítimo foram as próprias pessoas que estavam presentes nas praças e que estava implicada na luta, à margem de qualquer instância que lhes fosse exterior, já estávamos em pleno coração dos princípios anarquistas. Se juntarmos a isto, a apreensão face à representação que se manifestava com uma força impressionante, ainda ressaltam com maior nitidez os traços libertários que o caracterizavam. A partir da minha própria concepção do anarquismo, o próprio facto de não aceitarem manifestações identitárias, ainda que fossem anarquistas, reforça o carácter anarquista do 15M. Saber se há anarquismo hoje, no movimento 15M, é algo que me escapa por não ter seguido com suficiente atenção a sua evolução mais recente, mas intuo que o seu carácter heterogéneo e polimorfo terá sabido preservar focos de anarquismo.

O que aconteceu em Can Vies (no bairro de Sants de Barcelona) em que os seus ocupantes, com os vizinhos, continuaram a trabalhar à margem daquilo que a Câmara pretendia (por exemplo, reconstruíndo o centro) reflecte a continuidade das ideias anarquistas?

Mais do que a continuidade das ideias anarquistas, o que aconteceu em Sants reflecte é a similitude ou a sintonia entre algumas das características do anarquismo, por uma parte, e o tipo de práticas que existiram e que continuam a existir no conflito de Can Vies, por outra. Sintonia também com a sensibilidade manifestada por amplos sectores dos colectivos que protagonizam a actual insubmissão de carácter social e político. As assembleias abertas, a recusa em negociar o que se considera inegociável, a recusa de qualquer pacto que implique participar no sistema e submeter-se à sua lógica, a fusão do existencial e do político, quer dizer, a não separação entre a forma de viver e de ser, por uma parte, e as práticas políticas, por outra, a acção directa manifestada inclusive na decisão de não deixar em mãos alheias a reconstrução do edifício, tudo isto estabelece fortes ressonâncias entre o anarquismo e o que aconteceu em Can Vies. A continuidade ou, inclusive, a actual pujança do anarquismo barcelonês no seio de alguns colectivos jovens manifestou-se nos confrontos nutridos, em parte, por colunas que confluíram em Sants a partir de vários bairros.

Numa passagem do livro afirma que “lutar contra o Estado consiste também em mudar as coisas “em baixo”, nas práticas locais”. Nos últimos anos surgiram diversas experiências autogestionadas e movimentos sociais que, como a PAH, têm-se posicionado como contrapoder face ao Estado. Se estas optarem pela via eleitoral correm o perigo de perderem a sua força emancipadora?

Desde o meu ponto de vista esse perigo é evidente. A integração no sistema, assumindo algumas das suas práticas e adquirindo parcelas de poder, com o louvável propósito de o combater e de o transformar a partir de dentro, desactiva mais cedo que tarde a força de qualquer política emancipadora. Não é que, como refere a conhecida frase, “o poder corrompe…”, mas sim que “para chegar ao poder já é preciso estar corrompido”, é impossível de outra forma porque não há caminho para o poder que não implique práticas mais ou menos enviesadas, assim como inúmeros abandonos e compromissos de maior ou menor envergadura. Por isso sou tão fervoroso defensor do exercício do “contrapoder” como virulento crítico do “poder popular”. O facto de se reivindicar e de se trabalhar para consolidar este último conduz quase sempre a que se dê o salto final para a via eleitoral e, claro, é preciso que perguntemos o que é que acontece ao clamor de que “não nos representam”, ou ao legítimo grito de “que se vão todos?”

Em linha com a anterior pergunta, se movimentos sociais e grupos com práticas horizontais, assembleárias e autogestionárias chegarem ao ‘poder”, tomarem as instituições, podem perder estas características?

Não é que as possam perder, é que as perderão de facto, inevitavelmente. Nunca se “toma” o poder, é sempre o poder “quem nos toma”, por como muito bem dizia Augustín Garcia Calvo, “o inimigo está inscrito na própria forma das suas armas”, usá-las é reconhecer a sua vitória e adoptar o seu rosto. Não é preciso ter estudado muita psicologia nem muita sociologia para saber que a imersão num determinado contexto e o facto de assumir as suas práticas incide sobre a forma de ser e de pensar de qualquer um que a isso se preste. Para podermos autojustificar a nossa conduta é preciso que ponhamos em consonância as ideias defendidas até então com as práticas efectivamente tidas, ignorando a indeslindável simbiose entre ideias e práticas propugnada pelo anarquismo, e esquecendo aquela famosa pintada nas paredes de Paris de 1968 que dizia: “Actua como pensas ou acabarás pensando como actuas”. Um movimento como o que mencionas na tua pergunta não tentaria dar o salto para a conquista do poder se estivesse animado pela profunda convicção de que nunca nenhum exercício de poder conseguirá engendrar um espaço de liberdade.

http://www.lamarea.com/2014/06/29/tomas-ibanez/

tradução Portal Anarquista

Os anarquistas e a geografia urbana (1): Kropotkin

Fonte: Passa Palavra

Fonte: Passa Palavra

Fonte: Passa Palavra

O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade. Por Manolo

Embora seja possível traçar seus antecessores em diversos momentos da história, o movimento anarquista, tal como o compreendemos hoje, consolidou-se como expressão de um projeto político apenas nas quatro últimas décadas do século XIX, e a força, presença e relevância deste projeto político inicial influenciaram incontáveis organizações e iniciativas políticas até a década de 1930, quando eventos que culminaram na chegada ao poder político entre 1917 e 1939 de organizações políticas historicamente inimigas do anarquismo – que vão desde comunistas até fascistas, passando por organizações influenciadas pelo liberalismo, pelo conservadorismo, pelo nacionalismo e pelo fundamentalismo religioso – resultaram numa onda de perseguição política aos anarquistas cujo saldo foi o desmantelamento de suas organizações e a destruição de seus arquivos pessoais, além de prisões, exílios e assassinatos.

Somente na década de 1960 o anarquismo retornou com força à cena política, perseguido e marginalizado (WOODCOCK, 2008). Por isto, optou-se neste artigo por chamar o movimento anarquista existente nos setenta anos compreendidos entre as décadas de 1860 e 1930 de primeira onda do anarquismo, para diferenciá-lo da retomada iniciada na década de 1960, cujos efeitos são sentidos até hoje.

Nesta primeira onda do movimento anarquista, houve dois militantes, geógrafos de profissão, que apresentaram versões alternativas e bastante funcionais a muitas das teorias atualmente empregues na compreensão do fenômeno citadino e no planejamento urbano [1]: Elisée Reclus e Piotr Kropotkin. Para ambos, “anarquismo e geografia são uma combinação lógica” (DUNBAR, 1989, p. 78), seja enquanto filosofia política, seja enquanto fundamento epistemológico.

Kropotkin e Reclus veem na livre associação dos indivíduos e na solidariedade duas forças motrizes do desenvolvimento social, econômico, político e geográfico; por isto mesmo, são críticos acerbos de tudo quanto possa obstaculizar estas duas forças: Estado, capital, exploração do homem pelo homem, colonialismo, imperialismo, tirania e autoritarismo são temas constantes de seus ataques.

Por caminhos teóricos ligeiramente diferentes, Kropotkin e Reclus chegam à conclusão de que as cidades são um lugar de encontros e um espaço fértil para atuação política, por terem sido os lugares onde surgiram os embriões da democracia moderna – embora vejam no governo representativo e no Estado, mesmo o mais democrático, entraves à solidariedade e à livre associação dos indivíduos. Por terem sido quase vizinhos em seu exílio suíço (1877-1881), Kropotkin e Reclus influenciaram-se mutuamente, um “polindo” o entendimento do outro através do diálogo: Reclus dando foco mais social e ecológico à geografia física de Kropotkin, e este último conferindo à geografia social e ecológica de Reclus caráter mais comunal e mais atento no fenômeno urbano (WARD, 2010, p. 209-210).

1 Piotr Kropotkin e a revolução urbana na Europa

1.1 Breve biografia

Piotr Kropotkin em 1864

Príncipe da dinastia ruríquida, senhora dos territórios da Rússia e Ucrânia entre 862 e 1610, Piotr Kropotkin (1843-1921) recusou o título aos 12 anos para tornar-se uma das figuras centrais do movimento anarquista no século XIX, e repreendia duramente os amigos que ainda o tratavam como se fosse nobre (BALDWIN, 1970, p. 13).

Quando jovem, na Rússia, esteve envolvido com atividades administrativas, militares e de corte; entre 1866 e 1872 dedicou-se a expedições científicas à Sibéria, tendo em seguida, numa viagem à Suíça, tido contato com o movimento operário, filiando-se à seção genebrina da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

Por influência de militantes da Federação do Jura suíço, ingressou no movimento anarquista, que não abandonou até sua morte. Voltou à Rússia ainda em 1872, e já em 1874 estava preso na fortaleza de Pedro e Paulo por sua atividade política com o Círculo Tchaikovsky. Tendo escapado das prisões russas em 1876, passou a viver no exílio, entre a França, Suíça e Inglaterra, sempre ativo no movimento anarquista então em pleno vigor.

Voltou à Rússia apenas em 1917 para colaborar com o processo revolucionário, mas a escalada dos bolcheviques ao poder através de um golpe de Estado fê-lo crítico acerbo desta forma de condução de um processo revolucionário – em conformidade com sua longa crítica a qualquer governo, mesmo revolucionário. Morto em 8 de fevereiro de 1921, seu funeral, em 13 de fevereiro, foi o último ato público de anarquistas durante a Revolução Russa; a Cheka, polícia política bolchevique, se encarregaria de aniquilá-los a partir de então.

1.2 As cidades medievais europeias como berço da democracia e do Estado modernos

Não cabe aqui fazer um inventário completo das ideias políticas e Kropotkin quando uma boa introdução ao assunto (WOODCOCK, 2002, pp. 207-250) ainda se encontra em catálogo editorial. Basta mencionar, introdutória e esquematicamente, que para Kropotkin tanto o feudalismo quanto o capitalismo criam escassez artificial e baseiam-se na força bruta e em privilégios; ele propôs um sistema político e econômico descentralizado, baseado no apoio mútuo e na cooperação voluntária, duas tendências que identificou como já presentes na vida social (KROPOTKIN, 2000, 2005, 2009, 2011).

Nuremberg, 1493

Interessam, para os fins deste artigo, sobretudo as ideias de Kropotkin sobre as cidades e sua inter-relação, ainda mais justificadas quando sua obra geográfica não tem sido objeto do mesmo revival que a de seu amigo Élisée Reclus. Será necessário, como pano de fundo desta subseção, criticar duas opiniões. A primeira, mais comum, diz que Kropotkin teria sido fundamentalmente um geógrafo físico. O geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2011, p. 10), após breve apresentação desta opinião, está também entre os que a criticam; não obstante a fama de Kropotkin como geógrafo físico ser merecida, por ter sido o primeiro a cartografar certas regiões do norte da Ásia (WARD, 2010, p. 214), ela espraia uma cortina de fumaça sobre sua não menos significante contribuição à geografia social presente em obras como Campos, fábricas e oficinas (KROPOTKIN, 1901) e A conquista do pão (KROPOTKIN, 2011), reconhecida por entusiastas de primeira hora como Lewis Mumford [2]. A segunda opinião, menos difundida, leva em conta a contribuição de Kropotkin à geografia social, mas quanto à questão urbana defende que “sua preocupação com a cidade é mais indireta” (VASCONCELOS, 2012, p. 71); a questão urbana, muito pelo contrário, está no cerne das preocupações de Kropotkin, quer no âmbito historiográfico, quer no âmbito geográfico, quer no âmbito político.

Kropotkin, geógrafo evolucionista e biólogo neolamarckista (ALSINO, 2012), e por isso mesmo muito atento ao desenvolvimento histórico da relação homem-meio, encontrou nas comunasurbanas europeias existentes entre os séculos X a XIV, herdeiras diretas das comunas rurais, tanto um antecessor cronológico das cidades modernas quanto uma base para a reflexão política de sua militância revolucionária.

As comunas urbanas e as primeiras cidades medievais eram, para Kropotkin, um modelo de resistência à tirania. Em várias passagens de sua obra (KROPOTKIN, 1901, 1955, 2000, 2005h, 2009, 2011) mostrou como estas comunas lutaram contra os senhores feudais, sendo em alguns momentos vitoriosas.

Para Kropotkin, as cidades medievais foram formadas por um lento e conflituoso desenvolvimento histórico, impulsionado por um conjunto de fatores em influência recíproca: a federação de vilarejos em prol da defesa comum contra inimigos externos (KROPOTKIN, 2009, p. 128); a restauração da paz interna em situações de desrespeito aos costumes, num embrião de função jurisdicional (idem, p. 120-131); o surgimento e consolidação das guildas e dos mercados (idem, p. ); a consolidação dos direitos fundamentais da posse comum da terra e daautojurisdição, que significava na prática autoadministração e autolegislação (idem, p. 133); e as conjurações, fraternidades e amizades, pactos políticos consolidados em cartas constitucionais, forjados na luta para “sacudir o jugo de seus senhores laicos e clericais” (idem, p. 132). O europeu medieval, para Kropotkin, seria “essencialmente federalista” (KROPOTKIN, 2000, p. 53), “preferia invariavelmente a paz à guerra” (KROPOTKIN, 2009, p. 128).

Representação da cidade livre de Aachen (Alemanha) na Idade Média

Em termos atuais, pode-se dizer que Kropotkin viu na história das cidades europeias medievais o espaço urbano como produto da associação de indivíduos em busca da libertação do jugo feudal e da dominação eclesial: “O principal objetivo da cidade medieval era o de garantir a liberdade, a autoadministração e a paz, e sua principal base, o trabalho” (KROPOTKIN, 2009, p. 142). Não apenas o espaço físico e o desenho urbano [3], como as instituições sociais criadas nestas cidades foram para ele resultados desta luta. A tese das cidades medievais como berço da democracia ocidental só veio a ser retomada – com as nuances hermenêuticas e idiossincráticas peculiares a cada autor – no início do século XX por Max Weber (2002, pp. 955-975) e Henri Pirenne (1927, 1969).

O final deste período de lutas libertárias teria sido determinado por um conjunto de fatores, também em influência recíproca, verificados por Kropotkin entre os séculos XIV e XVI. A partir da iniciativa de senhores feudais que, tendo acumulado mais riquezas que seus circunvizinhos, escolhiam como sede de seu domínio “um grupo de aldeias bem situadas e ainda sem a experiência da vida municipal livre” (KROPOTKIN, 2009, p. 168), surgiram as cidades nobres fortificadas, imitações tortas das cidades livres, às quais estes senhores feudais atraíam companheiros de armas (por distribuição de aldeias), mercadores (por privilégios ao comércio), juristas versados no direito romano e bispos. Estas cidades nobres, em constante conflito com as cidades livres, foram o embrião do Estado absolutista (idem, p. 169).

Soma-se a este fator a mudança da tática política da Igreja: ao invés da recalcitrante tentativa de criação de uma teocracia unificada, “bispos mais inteligentes e ambiciosos passaram a apoiar quem consideravam capazes de reconstituir o poder dos reis de Israel ou dos imperadores de Constantinopla” (idem, p. 169), espraiando-se assim entre os nobres como conselheiros, jurisconsultos e diplomatas.

Os camponeses ainda sob o jugo feudal, ao verem a incapacidade dos habitantes dos burgos para pôr fim às guerras entre cavaleiros, afiançavam sua liberdade agora àqueles nobres mais poderosos (idem, p. 169), cujas famílias – a família Kropotkin inclusive – no futuro seriam as mais poderosas dinastias absolutistas da Europa.

Havia também um fator interno, as “divisões que haviam surgido dentro das próprias cidades” (idem, p. 169): as famílias dos fundadores da cidade disputavam privilégios de comércio com as famílias de habitantes mais recentes; os citadinos, ou burgueses, não faziam questão de proteger as aldeias dos arredores, formadas por camponeses, a quem deixavam frequentemente sob o jugo de senhores feudais; mas para Kropotkin “o erro maior e mais fatal da maioria das cidades foi o de basear sua riqueza no comércio e na indústria, em detrimento da agricultura” (idem, p. 169), o que além de dificultar a integração com as aldeias circunvizinhas, fomentou o colonialismo e, como consequência, guerras coloniais consumidoras das riquezas citadinas [4].

Florença no Renascimento

Ao contrário do que se possa imaginar à primeira leitura, o retorno de Kropotkin às cidades medievais não era uma utopia regressiva, uma idealização do passado proposta como horizonte político, mas sim uma crítica historicista às utopias socialistas do século XIX: “não só as aspirações de nossos radicais modernos já eram realidade na Idade Média, assim como muito do que se chama hoje de utopia era comum naquela época” (KROPOTKIN, 2009, p. 157; HORNER, 1989, p. 142).

1.3 As cidades como palco privilegiado da luta de classes na Europa

A tese geográfico-política kropotkiniana, entretanto, não se encerra aí. As cidades europeias teriam sido palco desde o século XIV de uma luta encarniçada do “povo” contra os burgueses, senhores feudais, aristocratas e reis absolutistas pela defesa de suas liberdades e pelo uso comum da terra. Toda a história das revoluções europeias, para Kropotkin, explica-se por esta chave. A análise da Revolução Francesa feita por Kropotkin é exemplar neste sentido.

Para Kropotkin, a Revolução Francesa foi impulsionada não apenas pelos panfletos iluministas, mas pela decidida ação popular de libertação de obrigações feudais e de retomada de terras das mãos de senhores laicos e religiosos. Desabrochavam no seio das massas ideias “a respeito da descentralização política, do papel preponderante que o povo queria dar às suas municipalidades, às suas seções nas grandes cidades, e às assembleias de aldeia” (KROPOTKIN, 1955, vol. 1, p. 23). Ou ainda: “a revolta dos camponeses para a abolição dos direitos feudais e a reconquista das terras comunais tiradas às comunas aldeãs desde o século XVII pelos senhores laicos e eclesiásticos – eis a própria essência, a base da grande Revolução” (idem, p. 114). Ou então:

Em França, o movimento não foi somente um levante para conquistar a liberdade religiosa ou apenas a liberdade comercial e industrial para o indivíduo, ou ainda para constituir a autonomia municipal nas mãos de alguns burgueses. Foi, sobretudo, uma revolta dos camponeses: um movimento do povo para reentrar na posse da terra e a libertar das obrigações feudais que sobre ela pesavam; e além de haver nisso um poderoso elemento individualista – o desejo de possuir a terra individualmente – havia também o elemento comunista: o direito de toda nação à terra – direito que veremos altamente proclamado pelos pobres em 1793. (idem, pp. 116-117)

Tomada da Bastilha

A luta de classes eclodiu também nas cidades. Na França do século XVIII, a autoridade real demorara duzentos anos para construir uma estrutura institucional capaz de submeter a seu jugo as cidades anteriormente livres; tais instituições – conselhos municipais vitalícios, direitos feudais, síndicos, almotacéis, direitos eclesiais de intervenção nas instituições municipais, isenções tributárias a membros da Igreja Católica e aristocratas etc. – encontravam-se em franca decrepitude às vésperas da Revolução Francesa (idem, pp. 118-120). Assim que a notícia da queda da Bastilha circulou pela província, o povo sublevou-se, apoderando-se dos Paços dos Conselhos e elegendo “uma nova municipalidade”; esta foi a base da revolução comunalista posteriormente sancionada pela Assembleia Constituinte em 1789 e 1790 (idem, p. 121). O “povo”, territorializado a partir dos distritos (arrondissements) de Paris e de outras cidades grandes, “fez a revolução nas localidades, estabelece revolucionariamente uma nova administração municipal, distingue entre os impostos que aceita e os que recusa pagar, e dita o modo de repartição igualitária daqueles que pagaria ao Estado ou à Comuna” (idem, p. 130).

Daí por diante, estabelecido o pano de fundo, a densa análise de Kropotkin, baseada em rigorosa pesquisa documental e arquivística [5], segue a mesma tônica. A Revolução Francesa é analisada em termos territoriais, e especificamente em sua expressão urbana. A luta dos habitantes das cidades contra as instituições feudais ressurgia, desta vez inaugurando na prática ocomunismo.

1.4 As cidades nos processos revolucionários

Mas é na passagem da sociedade capitalista para a sociedade anarquista – ou seja, durante a revolução – que Kropotkin apresenta vislumbres interessantes. Para ele, “a revolução social deve ser feita pela libertação das comunas, e (…) apenas as comunas, absolutamente independentes, libertas da tutela do Estado (…) poderão nos dar o meio necessário à revolução e o meio de realizá-la (…)” (KROPOTKIN, 2005a, p. 91). Pontuou, na esteira de suas análises histórico-geográficas posteriores ao período medieval, que a revolução das comunas não se tratava de simples retorno à comuna medieval, mas sim da construção de uma nova comuna que, devido à ciência e à tecnologia de então, seria “um fato absolutamente novo, situado em novas condições e que, sem dúvida, traria consequências totalmente diferentes” (idem, p. 91), e que “deve destruir o Estado e substituí-lo pela federação” (idem, p. 93). Neste processo, Kropotkin mostra atenção para as relações “cidade-província”, para que as cidades não fiquem desabastecidas (KROPOTKIN, 2011, p. 53). Tal como se verá adiante e com mais detalhe sobre Élisée Reclus, Kropotkin já intuía entre 1880 e 1882 aquilo que só na década de 1930 veio a ser chamado de rede urbana, dando-lhe o nome de federação de comunas e projetando-a no futuro a partir de tendências do presente:

Graças à infinita variedade das necessidades da indústria e do comércio, todos os lugares habitados já possuem vários centros aos quais se ligam, e, à medida que suas necessidades desenvolverem-se, ligar-se-ão a novos centros, que poderão prover às novas necessidades. (…) A comuna sentirá, portanto, necessidade de estabelecer outros contratos de aliança, entrar para outra federação. Membro de um grupo para aquisição de gêneros alimentícios, a comuna deverá tornar-se membro de um segundo grupo para obter outros objetos que lhe serão necessários (…). Tomai um atlas econômico de qualquer país e vereis que não existem fronteiras econômicas; as zonas de produção e de troca de diversos produtos penetram-se mutuamente, confundem-se, superpõem-se. Do mesmo modo, as federações de comunas, se seguissem seu livre desenvolvimento, viriam rápido confundir-se, cruzar-se, superpor-se e formar, assim, uma rede de maneira diversamente compacta, “una e indivisível”, daqueles agrupamentos estatistas, que são apenas justapostos como as varas em feixe em torno da machadinha do lictor. (…) [A] íntima ligação já existe entre as diversas localidades, graças aos centros de gravitação industrial e comercial, graças a um grande número destes centros, graças às incessantes relações (KROPOTKIN, 2005a, pp. 97-98).

A este nível territorial da federação de comunas soma-se outro, ligado aos interesses dos indivíduos, apto a formar “uma comuna de interesses cujos membros estão disseminados em mil cidades e vilarejos” (KROPOTKIN, 2005a, p. 99); trata-se das associações, cooperativas e todas as outras formas de sociedades livremente constituídas para a atividade humana – ou seja, aquilo que, usando um vocabulário contemporâneo, se chamaria sem equívoco de sociedade civil – verdadeira “tendência, o traço distintivo da segunda metade do século XIX” (idem, ibidem) que ocupava “a cada dia novos campos de ação, até aqueles que, outrora, eram considerados como uma atribuição especial do Estado” (idem, ibidem). A convergência entre ascomunas territoriais e as comunas de interesse formava o solo onde a propaganda feita pelas minorias revolucionárias, ao romper com preconceitos políticos arraigados no seio do povo, germinaria em ações revolucionárias cujos fins últimos são a abolição do Estado, dos privilégios e da exploração (KROPOTKIN, 2005 e, 2005f, 2005g).

Casas proletárias na Londres do século XIX

E a questão urbana, mais especificamente a questão da moradia, é um dos pontos, para Kropotkin, por onde pode-se começar a ação revolucionária. Plenamente consciente dos mecanismos de formação da renda fundiária urbana, Kropotkin deslegitimou-a, pois não somente as vantagens locacionais capazes de valorizar imóveis seriam resultado pura e simplesmente de um trabalho coletivo a que o proprietário do imóvel não deu causa e do qual se beneficia, como o próprio imóvel seria resultado de trabalho alheio indevidamente apropriado:

Finalmente – e é aqui sobretudo que a enormidade salta aos olhos – a casa deve o seu valor atual ao rendimento que o proprietário puder tirar dela. Ora, esse rendimento será devido à circunstância de a propriedade estar edificada em uma cidade calçada, iluminada a gás, em comunicação regular com outras cidades e reunindo no deu seio estabelecimentos de indústria, de comércio, de ciência, de arte; ao fato de esta cidade ser ornada de pontes, de cais, de monumentos, de arquitetura, oferecendo aos habitantes muitos confortos e muitos agrados desconhecidos nas aldeias; ao fato de que 20, 30 gerações têm trabalhado para a tornar habitável, saneá-la e embelezá-la.

O valor de uma casa em certos bairros de Paris é 1.000.000, não que nas suas paredes haja 1.000.000 em trabalho, mas porque está em Paris; porque desde séculos, os operários, os artistas, os pensadores, os sábios e os literatos têm contribuído para fazer Paris o que ela é hoje; um centro industrial, comercial, político, artístico e científico; porque tem um passado; porque as suas ruas são conhecidas graças à literatura, na província como no estrangeiro; porque é o produto de um trabalho de 18 séculos, de 50 gerações, de toda a nação francesa.

Quem, pois, tem o direito de se apropriar da mais ínfima parcela desse terreno ou da última das construções, sem cometer uma clamorosa injustiça?

Quem tem o direito de vender, seja a quem for, a menor parcela do patrimônio comum? (KROPOTKIN, 2011, pp 59-60)

Casas proletárias em Paris, 1912

A solução deste problema, para Kropotkin, é o alojamento gratuito, como proposta pós-revolucionária, e a expropriação das casas, como ação revolucionária imediata. Na verdade, Kropotkin não fez nada além de sistematizar e discutir a prática, já existente no século XIX:

Repugna-nos traçar nos seus menores detalhes planos de expropriação. […] Assim, esboçando o método segundo o qual a expropriação e a repartição das riquezas expropriadas “poderiam” fazer-se sem a intervenção do governo, não queremos senão responder aos que declaram a coisa impossível. […] O que somente nos importa é demonstrar que a expropriação “pode” fazer-se pela iniciativa popular e “não pode” fazer-se de outro modo.

É de prever que, desde os primeiros atos de expropriação, surgirão no bairro, na rua ou no agregado de casas, grupos de cidadãos de boa vontade, que virão oferecer os seus serviços para se informarem do número de apartamentos vazios, dos apartamentos atulhados de famílias numerosas, dos alojamentos insalubres e das casas que, demasiado espaçosas para os seus ocupantes, poderiam ser ocupadas por aqueles que não têm ar em seus casebres. Em alguns dias, esses voluntários espalharão pela rua, pelo bairro, listas completas de todos os apartamentos, salubres e insalubres, estreitos e largos, alojamentos infectos e moradias suntuosas.

Comunicarão livremente entre si as suas listas e em poucos dias terão estatísticas completas. […]

Então, sem esperar coisa alguma de ninguém, esses cidadãos irão provavelmente encontrar os seus camaradas que habitam espeluncas e lhes dirão muito simplesmente: “Desta vez, camaradas, é a Revolução a valer. Venham esta tarde a tal lugar. Todo o bairro lá estará, repartiremos os apartamentos de cinco peças que estão disponíveis. E logo que estiverdes “em casa”, será negócio feito. O povo armado responderá a quem quiser desalojar-nos. (KROPOTKIN, 2011, pp. 61-62)

De um só golpe, Kropotkin antecipou em quase cem anos – o texto é de 1892 – conceitos criados no contexto do movimento de reforma urbana, como o défice habitacional quantitativo e qualitativo, a retenção especulativa de imóveis, a discussão sobre a destinação dos imóveis vazios, a ocupação de imóveis cujos proprietários não lhes dão função social e o método de ação dos movimentos de luta por moradia. Não estamos tão longe dele quanto se poderia supor. Kropotkin influenciou diretamente, por exemplo, a campanha de ocupação de bases militares para moradia na Inglaterra, em 1946, e as ideias de John Turner sobre a autoconstrução em Lima (Peru) (WARD, 1996, pp. 67-73).

1.5 Um balanço

Como se vê, o pensamento político de Kropotkin não lida com conceitos e categorias abstratas ou idealizadas; enraíza-os num meio geográfico, territorializa-os. A relação homem-meio, sociedade-natureza, é vista por Kropotkin como um todo unitário, pleno de relações biunívocas e complexas.

O espaço, em Kropotkin, é produto também do desenvolvimento histórico, e a História se desenvolve no espaço. O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade.

Por isso, a questão urbana, em Kropotkin, pode ser vista como o conjunto dos fatores que obstaculizam o pleno desenvolvimento dos indivíduos e sua livre organização nas cidades, fatores estes que variam em cada momento histórico; o conhecimento destes fatores só pode se dar através da pesquisa histórica da produção e do uso do espaço de cada cidade e das lutas em torno desta produção e deste uso, na tentativa de produzir sínteses orientadoras da ação política.

Leia aqui a segunda parte deste artigo.

Notas

[1] Não por acaso Patrick Geddes, um dos fundadores do planejamento regional e urbano modernos, foi amigo e discípulo dos dois (DUNBAR, 1989, pp. 89-90; HALL, 2007, pp. 161-170).

[2] Lewis Mumford considerava Piotr Kropotkin “inteligência sociológica e econômica de primeira ordem, baseada na competência especializada […] como geógrafo, e na sua generosa paixão social como líder do anarquismo comunista” (MUMFORD, 1998, p. 658). Fez comentários entusiásticos a dois livros de Piotr Kropotkin em sua obra A cidade na história: sobre Campos, fábricas e oficinas, disse ser “recomendado especialmente a todos os que se interessam em planejar para áreas não-desenvolvidas” (idem, ibidem); sobre O apoio mútuo, disse ser “obra pioneira sobre a simbiose na sociologia; uma das primeiras tentativas para reformar a unilateral ênfase darwiniana nos aspectos mais predatórios da vida. Note-se o capítulo sobre Ajuda Mútua na Cidade Medieval” (idem, ibidem).

[3] “Geralmente a cidade era dividida em quatro partes, ou em cinco a sete setores que se irradiavam de um centro, e cada um deles correspondia mais ou menos a um certo comércio ou ofício que nele prevalecia, mas continha habitantes de diferentes posições sociais e ocupações – nobres, comerciantes, artesãos ou mesmo semisservos. Cada setor ou parte constituía um aglomerado bem independente. […] Portanto, a cidade medieval é uma dupla federação: de todos os domicílios unidos em pequenas associações territoriais – a rua, a paróquia, o setor – e de indivíduos ligados por juramento em corporações de ofício. A primeira foi resultante da origem na comunidade aldeã e a segunda, uma ramificação subsequente gerada por novas condições” (KROPOTKIN, 2009, p. 142).

[4] “Colônias foram fundadas pelos italianos no sudeste, pelas cidades alemãs no leste, pelas eslavas no extremo nordeste. Passaram a existir exércitos mercenários para as guerras coloniais, e logo também para a defesa local” (KROPOTKIN, 2009, p. 170).

[5] Num artigo escrito entre 1880 e 1882, Kropotkin explicitou o método que resultou na obra A grande revolução: “Quanto às insurreições, que precederam a revolução e sucederam-se durante o primeiro ano, o pouco que posso dizer disso, neste espaço restrito, é o resultado de um trabalho de conjunto, que realizei em 1877 e 1878, no Museu Britânico e na Biblioteca Nacional [da França], trabalho que ainda não terminei, e no qual me propunha expor as origens da revolução e de outros movimentos na Europa. Aqueles que quiserem lançar-se neste estudo deverão consultar (além das obras conhecidas […]) as memórias e as histórias locais […]. Entretanto, não devem contar com o fato de poder reconstituir, só com estes documentos, uma história completa das insurreições, que precederam a revolução. Para fazê-lo, só há um meio: dirigir-se aos arquivos, onde, apesar da destruição dos documentos feudais, ordenada pela Convenção, acabar-se-á, com certeza, por encontrar fatos muito importantes” (KROPOTKIN, 2005f, nota 27).

Referências bibliográficas

ALSINO, Rodolfo. “Evolución y apoyo mutuo: Kropotkin em el contexto de las teorías evolutivas”. Erosión: revista de pensamiento anarquista, ano 1, nº 1, jul.-dez. 2012, pp. 29-41.

BALDWIN, Roger N. “The Story of Kropotkin’s Life”. In: _____________ (org.). Kropotkin’s anarchism: a collection of revolutionary writings. Mineola: Dover, 1970.

DUNBAR, Gary. “Elisée Reclus, geógrafo y anarquista”. In: PEET, Richard (org.). Anarquismo y geografía. Madrid: Oikos-Tau, 1989, pp. 77-90.

HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 2007.

HORNER, G. M. “Kropotkin y la ciudad: el ideal socialista en urbanismo”. PEET, Richard (org.). Anarquismo y geografía. Madrid: Oikos-Tau, 1989, pp. 123-154.

KROPOTKIN, Piotr. Fields, factories and workshops, or industry combined with agriculture and brain work with manual work. 2ª ed. Nova Iorque: G. P. Putnam Sons, 1901.

_____________. A grande revolução 1789-1793. 2 vols. Salvador: Progresso, 1955.

_____________. O Estado e seu papel histórico. São Paulo: Imaginário/NU-SOL/Soma, 2000.

_____________. “A comuna”. In: _____________. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2005a, pp. 91-100.

_____________. “A comuna de Paris”. In: _____________. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2005b, pp. 101-115.

_____________. “A decomposição dos Estados”. In: _____________. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2005c, pp. 27-31.

_____________. “A lei e a autoridade”. In: _____________. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2005d, pp. 163-184.

_____________. “As minorias revolucionárias” In: _____________. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2005e, pp.

_____________. “O espírito de revolta”. In: _____________. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2005f, pp. 205-223.

_____________. “O governo representativo” In: _____________. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2005g, pp. 133-162.

_____________. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2005h.

_____________. A ajuda mútua: um fator de evolução. São Sebastião: A Senhora, 2009.

_____________. A conquista do pão. 2ª ed. revista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2011.

MUMFORD, Lewis. A cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

PIRENNE, Henri. Les villes du Moyen Age: essai d’Histoire économique et sociale. Bruxelas: Maurice Lamertin, 1927.

_____________. Histoire économique et sociale du Moyen Age. 2ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1969.

SOUZA, Marcelo Lopes de. “Uma geografia marginal e sua atualidade: a linhagem libertária”. Texto apresentado durante o Primeiro Colóquio Território Autônomo (UFRJ, 26 e 27 de outubro de 2010). Disponível na internet: http://territorioautonomo.files.wordpress.com/2010/10/uma-geografia-marginal-e-sua-atualidade2.pdf . Acesso em 15 mai. 2014.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Dois séculos de pensamento sobre a cidade. 2ª ed. rev. atual. Salvador: EdUFBA/Editus, 2012.

WARD, Colin. Anarchy in action. Londres: Freedom, 1996.

_____________. Talking houses: ten lectures by Colin Ward. Londres: Freedom, 1990.

_____________. Anarchy in action. Londres: Freedom, 1996.

WARD, Dana. “Alchemy in Clarens: Kropotkin and Reclus, 1877-1881”. In: JUN, Nathan J.; WAHL, Shane (orgs.). New perspectives on anarchism. Plymouth: Lexington, 2010, pp. 209-277.

WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología compreensiva. 2ª ed., 2ª reimpr. Madri: Fondo de Cultura Económica, 2002.

WOODCOCK, George. História das ideias e movimentos anarquistas, vol. 1: a ideia. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2002.

_____________. História das ideias e movimentos anarquistas, vol 2: o movimento. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2008.

Não se intimidar, não desmobilizar! Toda nossa solidariedade ao companheiro Vicente!

bloco-de-lutas

Fonte: FAG – Federação Anarquista Gaúcha

Janeiro de 2015, às vésperas da retomada das lutas contra o aumento das passagens e em defesa de um transporte 100% púbico em Porto Alegre, recebemos a notícia da sentença dada ao companheiro Vicente, militante da FAG e lutador social do Bloco de Luta pelo Transporte Público de Porto Alegre. Vicente está sendo condenado a um ano e meio de prisão por dano ao patrimônio público e crime ambiental, “crimes” que teria cometido em Abril de 2013 durante uma manifestação do Bloco de Luta em frente a Prefeitura de Porto Alegre. Trata-se da primeira condenação em Porto Alegre e para nós uma clara tentativa de intimidar e colocar medo no conjunto de lutadores e organizações que estão rearticulando as lutas nesse início de 2015. Um expediente político e histórico utilizado pelos setores dominantes de nossa cidade e de todo o mundo: o encarceramento dos que se levantam. Não nos desmobilizaremos e a nossa solidariedade será militante e nas ruas!!!

repressao_policial

E a criminalização continua…

O fato de a condenação nos ter sido comunicada apenas uma semana antes do primeiro protesto do ano do Bloco de Lutas pelo Transporte Público é tudo menos uma obra do acaso ou de um processo regular do poder judiciário. Inicia-se o ano e ao mesmo tempo se começa a mexer nos processos que estavam tramitando desde 2013: adicionando nomes à alguns, novos crimes à outros. O processo neste contexto busca ter o mesmo efeito de uma bala de borracha ou de uma bomba de efeito moral: uma tentativa de intimidar e freiar as lutas nas ruas que ousam questionar os lucros dos empresários e os conchavos já evidente das empresas com os poderes públicos.

A situação está longe de ser apenas uma situação local: quem achou que a conjuntura de criminalização havia se esgotado em virtude do descenso das mobilizações de rua após a Copa do Mundo em 2014, a recente movimentação dos governos e dos aparelhos repressivos indicam o contrário. Em São Paulo, Rio de Janeiro e uma série de outras cidades no Brasil que iniciaram o ano com mobilizações contra o aumento das tarifas de ônibus a repressão tem usado dos mesmos expedientes contra os manifestantes: gás lacrimogênio, bala de borracha e detenções arbitrárias. O carioca Rafael Braga Vieira, que era até então o único condenado dos protestos de junho de 2013 continua preso e em Porto Alegre os processos voltam a ser movidos, novos nomes são inseridos e agora a primeira sentença é dada, sem prova alguma. É a velha justiça burguesa tomando lado em uma luta entre opressores e oprimidos que está longe de acabar.

Contudo, a luta e organização dos de baixo não começou hoje e também continuará. Mobilizam-se os jovens, os trabalhadores, os sem tetos e as comunidades de periferia. As mobilizações de rua de 2013 abriram novas possibilidades na gestação de experiências organizativas e de luta que o conjunto da esquerda combativa e anti capitalista precisa ajudar a fomentar e impulsionar, descartando as velhas práticas vanguardistas, sectárias e impositivas que infelizmente ainda permeiam discursos e práticas de muitas organizações. Acreditamos que só assim podemos criar força social que desde baixo vá gestando mecanismos de auto-organização e cravando em seu horizonte a necessidade de transformação social do conjunto da sociedade. Uma verdadeira frente de oprimidas e oprimidos solidária a todo e qualquer companheiro preso, torturado, assassinado e desaparecido.

manifestac3a7c3a3o-porto-alegre-gilmar-luis-17-06-2013-3

2015: avançar em organização, cercar ainda mais de solidariedade @s que lutam!

A seletividade do sistema penal também se torna evidente neste caso. Ao longo desse processo que começa com mais de uma dezena de acusados pelos danos realizados em uma manifestação com mais de mil pessoas, vimos arquivarem um a um todos os suspeitos, responsabilizarem o único rapaz negro de ideologia anarquista que estava entre os acusados e agora incluírem outro militante negro do Pstu. Sabemos que o motivo central dessa condenação é de ordem político-ideológica mas não podemos omitir o fato de que a cor negra dos acusados tem um peso importante.

Os últimos processos tiveram como destaque a criminalização contra os coletivos e movimentos anarquistas. Em 2013, tivemos os nossos espaços públicos invadidos e nossos livros recolhidos, passando por pesados processos de inquéritos onde o que era avaliado era nossa posição em relação a temas como autoridade, governo, forças policiais e outros assuntos caros à ideologia anarquista. Panfletos, cartazes e literatura foram anexadas nos processos, como se fossem provas circunstanciais que mostrassem algum papel de mentor intelectual da nossa ideologia nas depredações ou saques realizados nas manifestações de 2013, que contavam com mais de 50 mil pessoas em Porto Alegre.

O companheiro Vicente, assim como os demais militantes e lutadores de outras organizações, coletivos e ideologias, não foi o primeiro e não será o último jovem negro e anarquista a ser condenado nesse Brasil racista. São milhares de homens e mulheres negros/as e pobres exterminados e condenados diariamente pelas polícias militares e pela justiça burguesa e racista. É a elas e eles que nossa solidariedade militante é direcionada e será junto de cada trabalhador/a que cerraremos nossos punhos. Não nos intimidaremos e em cada marcha de rua, piquete, greve, ocupação estaremos ombro a ombro com todos e todas que lutam!

Solidariedade à todos e todas companheiros e companheiras perseguidos por lutar!

Pelo fim da polícia militar!

Nossa ideologia anarquista não se presta a caricaturas!!!

Federação Anarquista Gaúcha – FAG

O ir e vir, a esquerda, os partidos, o governo, Kobane e a Grécia

fonte: coletivo Krisis: http://3.bp.blogspot.com/-DNZ08pG_syg/T2v3OSuWhPI/AAAAAAAAAWw/nvZmhNZixNc/s1600/CIMG0333.JPG

fonte: coletivo Krisis: http://3.bp.blogspot.com/-DNZ08pG_syg/T2v3OSuWhPI/AAAAAAAAAWw/nvZmhNZixNc/s1600/CIMG0333.JPG

por Gilson Moura Henrique Junior

Em pleno janeiro de 2015 e temos um cadinho de movimentação política pela esquerda mundial que causa terremotos interpretativos nas mentes socialistas e anarquistas, especialmente depois da comoção brasileira em torno da “Dilmãe de coração valente” que atingiu até a dita esquerda radical partidária e até anarquistas nas eleições de 2014.

Logo neste início de ano temos o burburinho das manifestações contra a tarifa, que se movimentam para também se tornarem protestos contra todas as tarifas e não só as de transporte, e o eco feliz da esquerda partidária à vitória do Syriza na Grécia.

Além disso, há o escândalo socialista e anarquista diante do governo da “Dilmãe” que se apresenta um governo muito mais parecido com o que seria o de Aécio Satã do que com a propaganda que petistas e abestados seguidores “responsáveis” da súbita transformação do governo pragmático de Dilma num governo “de esquerda” gostariam de admitir.

Aliás, salta aos olhos a desilusão de uma esquerda madura o suficiente pra tomar decisões “responsáveis” com um governo que guina à direita, cada vez mais, desde 2002, em um segundo turno de 2014, como se morasse em Marte e não tivesse noção da perseguição que o governo federal moveu contra anarquistas e autonomistas junto a governos estaduais como os do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo; como se não soubesse dos ataques a indígenas e quilombolas e como se os recuos na demarcação de terras,etc fossem ilusões; como se fossem lenda a franca postura homofóbica do governo incluindo omissões que permitiram Feliciano na comissão de DH da Câmara federal e os recuos nas políticas de Gênero e como se as indicações de abraço neoliberal na política econômica não fossem dadas desde 2013.

Essa esquerda talvez tenha sofrido um surto súbito de Alzheimer temporário ou sucumbiu à lógica oportunista eleitoral imediata e mal tentou fingir que não. Diante da dúvida entre a responsabilidade concreta com movimentos e mudanças e o medo de desagradar eleitores escolheu a segunda opção, abraçou Dilmãe e agora faz a egípcia com o resultado das opções.

Agora em janeiro de 2015 essa mesma esquerda “responsável”, além de se chocar com um governo Dilmãe que nomeia Katia Abreu ministra da Agricultura e o negacionista Aldo Rebelo para ministro da ciência e tecnologia, se põe calada diante da covardia de suas figuras públicas no apoio aos 23 presos políticos perseguidos pelo estado do Rio de Janeiro, se omite diante das manifestações contra aumento das passagens e tarifas em geral, ignora a crise hídrica como parte da crise ecológica e climática que jamais confrontou concretamente em seus programas e ainda tem o disparate de dizer que quer ser o PODEMOS brasileiro.

Não sei como se quer ser um movimento que buscou ser horizontal e discutir amplamente desde o cancelamento da dívida pública à mobilidade urbana, ecossocialismo, fim do uso dos combustíveis fósseis,etc de forma aberta sem que se consiga sequer discutir mobilidade de forma franca, ser solidário com perseguidos políticos além do Rafael Braga ou ao menos tentar dialogar com o movimento contra mudanças climáticas. Talvez se esteja dizendo que será o PODEMOS brasileiro no que tange aos defeitos do PODEMOS, e aí concordo, já que está até à frente do PODEMOS na cooptação pelo estado.

No Rio essa esquerda que quer ser PODEMOS foi brilhantemente ativa na negação de prestar solidariedade aos 23 presos políticos julgados pelo estado por supostamente estarem organizando ataques no dia da final da copa, presos que inclusive foram indiciados junto com Bakunin (sim o anarquista russo morto em 1876 em Berna na Suíça), em uma manifestação contra o aumento das passagens que desde o inicio indicava que iria até o Tribunal de Justiça prestar solidariedade, mas cuja “responsabilidade” da esquerda a fez negar o trajeto e optar por ficar ao redor da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, na Cinelândia, local que frequenta alegre com seus mandatos e que talvez seja uma espécie de centro nervoso de sua existência e que por isso não pode se afastar muito deste totem geográfico.

Em SP a esquerda que quer ser PODEMOS faz uma atuação comovente em ser secundária diante do MPL e parece participar dos atos apenas como coadjuvante envergonhado que precisa ir para não parecer negar aquele movimento e necessidade dele.

Enquanto isso, a esquerda que quer ser PODEMOS prega com voracidade a reforma política, uma reforma política que tem de passar pelo congresso, uma reforma política que precisa estar vinculada à institucionalidade, uma reforma política que quer fazer uma mudança no estado por dentro do estado e que mobiliza ou tenta mobilizar os movimentos sociais para sustentarem essa lógica surreal em pleno auge da crise hídrica.

Ou seja, enquanto a crise ecológica atinge o auge de seus efeitos visíveis nas principais cidades do país, enquanto os governos cagam solenemente pra necessidade dos mais pobres e aumentam as tarifas de transporte; enquanto o governo federal que recebeu apoio “responsável” desta esquerda que quer ser PODEMOS ataca direitos trabalhistas e retira acesso a seguro desemprego e seguro-defeso; enquanto os governos, todos, em plena crise hídrica mentem pra população e a sacrificam com racionamento assumido ou não e permitem que indústria, agronegócio, termelétricas e mineração continuem desperdiçando água e usando-a de forma predatória, a esquerda que quer ser PODEMOS faz movimentinho para uma reforma política que deve passar pelo congresso mais conservador de todos os tempos e sequer, repito, SEQUER, se posiciona a partir de seus mandatos, setoriais,etc para uma política CON-CRE-TA de ataque às mudanças climáticas, uso de combustíveis fósseis,etc, nenhuma defesa concreta de mudanças na mobilidade urbana, nenhum debate, nada, apenas o velho e modorrento movimento para fortalecimento de figuras públicas.

Enquanto isso a esquerda que quer ser PODEMOS louva a vitória do Syriza na Grécia, e sonha em fazer igual aqui. Talvez por usarem táticas semelhantes ao que o Syriza fez com Tsipras e o PODEMOS faz com Iglesias, movimentos de reforço e anabolização de figuras públicas com objetivos eleitorais que eclipsam o surgimento de organizações mais horizontais, democráticas e anti hierárquicas, essa esquerda que quer ser PODEMOS vê no Syriza o surgimento de uma terra sem males na Grécia e em breve em toda a Europa.

Se a vitória do Syriza é um alento no sentido de interromper a sanha da Troika e o avanço das políticas de austeridade, impondo um novo programa para a Grécia e a Europa, atrapalhando o avanço da extrema-direita, ela também é um sinal de problemas quando a esquerda auto-proclamada radical já desde cedo sacrifica parte de seu programa, como a defesa do casamento civil igualitário, para permitir coalizões com partidos de direita que a permitam governar.

A coalização com os gregos independentes inclusive traz em seu bojo a entrega do ministério da defesa a um xenófobo homofóbico e racista que já adianta que trará políticas anti imigração e já ressuscita questões de soberania que cria litígios com a Turquia. Tudo isso é preocupante demais e soa mais preocupante quando parte da esquerda mundial opta por ignorar essas manobras para atacar o KKE, partido stalinista grego que anunciou por motivos que vão de sectários a lógicos que não se aliaria ao Syriza, enquanto faz a egípcia com movimentos do próprio Syriza.

Se o KKE é sectário, e é, o Syriza manifesta preocupantes movimentos de adequação à lógica do capitalismo promovendo menos uma guinada radical anti austeridade e mais um movimento de renegociação agressiva da dívida pública sem romper com o euro, a zona do euro e a lógica econômica do Banco Central Europeu.

Se o Syriza tensiona o mercado ao negociar com os credores sem passar pelo BCE e FMI, ele deveria tensionar a esquerda pela indicação de pouco rompimento e muita adequação à lógica do estado, promovendo uma ação deveras similar à assimilação que a social-democracia europeia fez nos anos 1950, só que pintada com tintas radicais.

A esquerda deveria ser mais crítica com o Syriza, mesmo considerando o simbólico de sua vitória, para evitar danos graves no futuro a partir de sua assimilação pelo estado e capital. Se o Syriza na Grécia, em uma situação de concreta força política para implementação de medidas radicais de transformação do estado através de plataformas reformistas radicais, já dá pinta de assimilação, isso simboliza uma paulada na cabeça de qualquer sonho de reforma radical na Europa e no mundo. E ao silenciar sobre isso a esquerda que quer ser PODEMOS é cúmplice de uma tática que já vimos no Brasil a partir da eleição do PT.

Aliás, a similaridade entre PT e Syriza, no todo da história, deveria saltar aos olhos brasileiros e fazê-los ajudar observadores europeus a entenderem os limites das ações deste no cenário político europeu.

O Syriza assim como o PT não é um partido nos moldes clássicos europeus, é uma força política complexa, mais similar a uma frente de correntes e vertentes da política partidária de esquerda e que contempla setores mais ou menos pragmáticos que se entendem socialistas e que vão além de elementos marxistas-leninistas. Ambos os partidos rompem com a social-democracia clássica e também com os PCs e ambos os partidos contemplam reformismos diversos, de tonalidades diversas, mais ou menos pragmáticos, mais ou menos marxistas, mais ou menos libertários. Ambos os partidos promoveram mudanças radicias no quadro político da esquerda local e mundial, apresentam lideranças carismáticas e programas radicais de reforma do estado com foco na eliminação da pobreza.

O Syriza chega no poder, no entanto, em uma situação mais parecida com o PT na eleição de 1989, com um quadro econômico parecido com a chegada do PT ao poder em 2002. O quadro do Syriza é, portanto, um quadro que lhe permite mais autonomia e legitimidade nas decisões, possui quadros e políticas mais radicais em um cenário de terra arrasada parecido com o brasileiro em 2002.

A questão é que mesmo com mais força política que a obtida por qualquer partido da esquerda mundial nos últimos trinta anos, o Syriza faz movimentos confusos, contraditórios e que não nos deixam exatamente alheios à sua similaridade com a história de assimilação ao estado e ao capitalismo que faz quase parte do DNA político da esquerda partidária.

E isso nos leva às contradições inerentes entre PODEMOS, Syriza, PSOL e suas “responsabilidades” diante dos cenários políticos dos quais fazem parte e a enigmática parte de um DNA organizado em partidos que centralizam, hierarquizam, diferenciam-se das ruas em nome da conquista do estado para supostamente através dele promover reformas que ajudem na revolução e que paulatinamente acaba fazendo parte deste estado, parte daquele aparato que deveria combater e agora ajuda a sustentar.

Sacaram a contradição?

O PODEMOS ao focar no Iglesias, e o Syriza ao focar no Tsipras, já amplificam a lógica hierárquica, criando a figura de uma liderança centralizadora que recebe a energia de milhares de partidários, o foco da esperança,etc, com o fim de ser ungido como capitão das massas em processos eleitorais.

A questão piora quando a partir dos processos eleitorais feitos para que a burguesia seja sempre eleita, construído com regras da burguesia, organizado para a vitória do capital, se busca organizar um processo de mudanças políticas estruturais, de transformação do estado. Pior mais ainda quando estas forças se afastam da construção de processos de mudança cotidiana por fora da institucionalidade.

E isso se repete no PSOL ao se elegerem figuras públicas que absorvem a força militante em sua defesa, como Marcelo Freixo e Luciana Genro, sem a força construída nas ruas pelo Syriza e PODEMOS. E por isso talvez vemos no Brasil o distanciamento destes elementos das movimentações das ruas, dos movimentos independentes como o MPL, de organizações como FIP, de coletivos anarquistas e um afastamento que grita alto na rua para tentar se desvincular de pessoas presas por se colocarem como lideranças alternativas aos partidos na construção de lutas cotidianas.

Em plena crise hídrica, em plena contestação da taxação do direito de ir e vir e temos distanciamento dos partidos das luta cotidianas, desvinculação dos partidos das lutas das periferias, omissão na defesa e solidariedade com lutadores presos e nenhum partido brasileiro fortalecendo lutas que juntam milhares e podem juntar milhões na defesa do básico, do direito de ter água e de não pagar passagem para ir e vir.

A lógica parece de disputa por espaço, como se a eleição dependesse do enfraquecimento de movimentos independentes que fujam ao controle dos partidos.

Enquanto se luta contra as tarifas, os partidos fazem campanha para Presidência da Câmara, elogiam o Syriza de forma acrítica, querem ser PODEMOS, faltam ao depoimento que poderia ajudar presos políticos que estão sendo presos de forma absolutamente autoritária e ainda querem ser representantes da mudança nas próximas eleições.

E é sintomático que, em todo este período, a Grécia e a Europa tenham sido o foco central dos partidos, invejando o PODEMOS e seus milhões nas ruas, invejando Tsipras sendo eleito, mas silenciando tanto pra o debate sobre tarifa zero, um debate concreto que abranja toda a sociedade e que mire em políticas públicas concretas, quanto para um movimento revolucionário em curso em Rojava, no Curdistão Sírio e que recentemente ganhou atenção só após a libertação de Kobane do assédio do Estado Islâmico.

Mesmo com fome de ocupar o estado, pouco se discute nos partidos sobre políticas concretas a respeito de mobilidade urbana, de uso de combustíveis fósseis, sobre a gestão de recursos hídricos, sobre a economia a partir do decrescimento e sobre a própria gestão do estado, discutindo democracia direta concreta e não um referendismo mal formulado e que não propõe nenhuma democracia direta concreta.

Diante de um quadro mundial que pouco oferece ventos de mudança fora da institucionalidade, a esquerda partidária despreza fortemente tudo o que envolve a experiência curda de confederalismo libertário, com construção de conselhos feministas, de jovens, administração comunal da economia,etc. E isso em um quadro geopolítico ímpar que é o oriente médio.

Estes elementos são sinais fortes que medem a vontade partidária de construir concretamente mudança para além do estado, de sair do estado, de mudar o estado e não de apenas subir no trono do estado para reformas leves que não alterem a dinâmica das relações humanas e a dinâmica hierárquica da própria constituição partidária.

A ausência de discussão veemente sobre mudanças na estrutura de poder e gerência do estado e fora dele são sintomas de uma negativa de tentar construir um mundo pós-estado, ou seja, a negativa de discutir a construção de poder exercido pela sociedade é um sintoma que a defesa do comunismo e de uma sociedade socialista e pós-socialista vai até a página dois, dado que se a manutenção da institucionalidade sem questionamento da hierarquização dela e da presença do estado é a norma, que sociedade livre é essa que se constrói mantendo o estado, e não a sociedade, no controle das necessidades da vida cotidiana?

Essa negativa de debater sobre democracia direta concreta é parte do problema que coloca a esquerda partidária como produtivista e que pensa o estado na gerência da economia, dá pouca abertura pra uma discussão sobre crescimento econômico, alimentação, descentralização energética,etc e que por isso é avessa ao debate ecológico. Essa esquerda, por isso, jamais entende o que rola no Curdistão Livre.

Rojava pra essa esquerda é um reino encantado.

Em um cenário de avanço da extrema-direita mundial e no Brasil a esquerda partidária assume apenas parte da responsabilidade na construção do contraponto e nega-se a qualquer diálogo que fuja da relação pela institucionalidade.

E diante da omissão diante dos 23 presos podemos até ir além e achar que a esquerda partidária não só se nega a pensar pra fora do estado como se nega sequer a pensar pra fora de qualquer coisa que cause risco leve em suas eleições.

Por isso o mais avançado partido da esquerda mundial, o Syriza, não teve escrúpulos em mandar às favas os escrúpulos de consciência e rifar direitos LGBT, em por em risco a vida de imigrantes, em nome do que considera maior e prioritário: o combate à Troika.

Por isso o partido que se proclama PODEMOS do Brasil se nega a qualquer solidariedade com quem é perseguido político do estado, evitando assim correr risco na eleição de sua maior figura pública para prefeito do Rio: Marcelo Freixo.

Da mesma forma que o PODEMOS na Espanha se nega a ser solidário com os anarquistas presos pela operação Pandora, o PSOL no Rio tem coisas mais importantes do que manifestar solidariedade com autonomistas presos de forma absolutamente canalha.

E a nave da cooptação, da assimilação pelo estado, vai, segue adiante enquanto anarquistas são presos no Chile, no Brasil, na Espanha e enquanto a esquerda partidária se anima com a conquista do governo por um co-irmão, fazendo aquecer corações carentes de postos administrativos no estado pularem de felicidade mundo afora.

E a água acaba, e o clima pira, mas tá tudo bem, o Syriza chegou ao poder.