Resenha: “From Bakunin to Lacan: Anarquismo Lacaniano e a Esquerda”

61MHVzF1dcL._SL1360_Por Todd May

Fonte: Literatura Anarquista

Resenha: Saul Newman, De Bakunin à Lacan: Anti-Autoritarismo e Deslocamento do Poder (Lexington Press).

1. O objetivo mais geral do novo livro de Saul Newman, From Bakunin to Lacan: Anti-Authoritarianism and the Dislocation of Power, é oferecer uma crítica ao modo pelo qual o poder, e especificamente o poder político, é comumente concebido. Ele evita a abordagem padrão a tais discussões que giram em torno de um abraço ou uma modificação de Marx, voltando-se, ao invés, à desprezada arena do anarquismo e articulando-a com pensadores atuais associados ao termo “pós-estruturalismo”. Newman argumenta que aquilo que ele chama de “local do poder”, a idéia de que os tratamentos dados ao poder parecem freqüentemente constrangê-lo conceitualmente a uma certa região ou tipo – com efeito, essencializando o poder numa categoria natural – não condiz com a verdadeira operação do poder. O poder, como tantos pensadores recentes argumentaram, é mais difuso e incircunscrito do que foram capazes de reconhecer os tratamentos progressistas tradicionais dados ao tema, especialmente o marxismo.

2. O livro se inicia com um tratamento do marxismo, mostrando que, para os marxistas, o local do poder é sempre na economia, e abordagens não-economicistas ao poder são desconsideradas. Aqui a discussão foca a idéia de que, desde que os marxistas freqüentemente pensaram o Estado como sendo determinado pelo poder econômico, não se embaraçaram em assumir o controle do Estado a fim de mudança nas relações econômicas. As conseqüências de tal pensamento, longamente criticado pelos anarquistas, manifestaram-se durante toda a história de nosso século.

3. Em contraste, o anarquismo vê acertadamente que o marxismo perdeu de vista o papel do poder de Estado nas relações sociais. Infelizmente, os anarquistas parecem querer colocar todo poder no nível do Estado, e assim simplesmente substituir um local de poder pelo outro. Ao seu ver, o Estado é o local do poder, e a resistência reside nos impulsos naturais de uma humanidade não-contaminada por tal poder. Elimine o estado, e as deletérias relações de poder cairão por si mesmas.

4. Nesse ponto, Newman volta-se, num interessante desvio das explicações padrão, ao anarquista Max Stirner, a fim de criticar o tipo de humanismo inerente ao pensamento de tantos outros anarquistas. Para Stirner, o humano não é um recurso natural de resistência não-contaminado, mas um local vazio, um projeto a ser realizado. Este projeto pode ser realizado igualmente por meios opressivos ou não-opressivos. A questão, então, é como conceber o poder e a resistência se nenhum deles encontra-se num local natural.

5. Michel Foucault começa esse processo através da análise dos meios polimorfos pelos quais opera o poder. Entretanto, vacila, pois, ao enxergar o poder em todo lugar, parece prescindir da possibilidade de conceitualizar a resistência sem retornar a um lugar externo e não-contaminado pelo poder. Esse lugar seria tão essencialista como aquele oferecido pelo anarquismo.

6. Deleuze e Guatarri, buscando novas categorias conceituais para o poder, minam a idéia de locais distintos para o poder e a resistência, especialmente com seu conceito de “máquina de guerra”. Entretanto, contrapondo o desejo ao social, acabam retornando à muitas categorias que sua obra pretende resistir.

7. Derrida, deslocando muito da estrutura oposicional que caracteriza o pensamento político (e outros), oferece uma abertura para re-conceber o poder e a resistência. Se o poder e a resistência estão entrelaçados a ponto de prescindir de uma separação em dois locais distintos, então um pensamento envolvendo categorias derrideanas, como differance e infra-estrutura, poderia ser mais apropriado para compreender esta operação. Derrida, entretanto, não oferece um tratamento ao sujeito da resistência, ao ator político.

8. Aqui, finalmente, Lacan, o verdadeiro herói de Newman neste livro, se torna relevante. Para Lacan, o poder contém sua própria falta. O significante é internamente fendido, permitindo que a resistência ocorra no poder e não fora dele. Se o sujeito lacaniano é incrustado no e resistente ao poder em sua estrutura mesma, então ambos poder e resistência existem sem locais distintos e essenciais, são dispersos e polimorfos, e podem ser pensados sem os problemas que caracterizaram os tratamentos dados de Marx à Deleuze e Guatarri. Um pensamento pós-anarquista, que leva a sério o impulso anti-autoritário do anarquismo, ao passo que se livra do tratamento humanista dado ao poder e a resistência, inicia-se a partir daqui.

9. Newman acredita que usando um framework lacaniano, também usado na obra de Ernesto Laclau, na sua discussão sobre a lógica do significante vazio, pode ao mesmo tempo abraçar uma ética da crítica e evitar qualquer caráter essencializante aos quais os termos da crítica poderiam prestar-se. Se isto soa como uma abordagem desconstrutiva de Derrida à linguagem, deveria. O que Newman busca fornecer é uma abordagem ao pensamento progressista que parte do anarquismo e do pós-estruturalismo, e não do marxismo, e vê nos impulsos por trás destes movimentos não só uma abordagem para conceber o poder, mas também, indissociavelmente, uma abordagem à linguagem.

10. Há diversos aspectos de From Bakunin to Lacan que particularmente o recomendam. Em primeiro, diferentemente de tantas explicações referentes aos citados pensadores, o livro é claro e coerente. As visões sumárias que fornece de filósofos tão difíceis como Lacan e Deleuze são ambas acuradas e legíveis. É uma virtude difícil de alcançar nesse tipo de trabalho. Em segundo, Newman afunilou uma vasta gama de visões num único programa de teoria política. Não se lê o livro como um conjunto de capítulos desconectados, mas como um movimento progressivo atravessando diversas visões em direção a uma abordagem teórica coerente em torno de uma concepção política. Finalmente, em contraste com minha própria obra, que focava Foucault, Deleuze e Lyotard em contraste a Derrida e Lacan, o livro de Newman busca articular um anarquismo alinhado a elementos desconstrutivos do pensamento francês atual.

11. A questão que resta para mim é se tal intento logrou êxito. Eu acredito que não, sobretudo pelas razões que, num primeiro momento, motivaram o meu afastamento de Derrida e Lacan. Não estou convencido de que utilizando uma abordagem desconstrutiva à linguagem e à política, haveria lugar para o tipo de ação coletiva que parece necessária ao sucesso político. A indeterminação, no meu entender, é uma base fraca para o pensamento e para a organização política. Ele tende a afastar as pessoas e não a juntá-las. Eu entendo que Newman põe em causa, e corretamente, que juntar também traz o risco de abraçar novamente conceitos essencializantes e formas autoritárias de poder. Para mim, parece que uma abordagem política adequada não pode se furtar a esse risco; sua tarefa é articular uma concepção de linguagem que enxergue o significado – e as categorias políticas que daí ascendem – como determinado, mas contingentemente, e não como necessariamente indeterminado. A escolha, em suma, me parece não residir unicamente entre a indeterminação derrideana/lacaniana (ou determinação sempre ameaçada) e uma determinação autoritária essencializante. Uma terceira possibilidade, e na minha opinião a mais acertada, seria a de uma determinação contingente, uma determinação que pode flutuar em volta das margens, ser criticada e alterada pela crítica genealógica ou outra crítica, mas que retenha seu poder de fornecer o tipo de margem ética que Newman busca (mas me parece não encontrar) em Derrida e Lacan.

12. Dito isto, recomendo altamente o livro a pesquisadores do pensamento progressista. Newman, para mim, parece estar correto em seu alvo, enxergando o anarquismo e não o marxismo como o ponto de partida apropriado para a teoria política progressista; e nisso, além do mais, seu trabalho está em consonância com a tendência atual dos movimentos anti-globalização ao redor do mundo. Se escolhemos finalmente Foucault/Deleuze/Lyotard ou Derrida/Lacan como herdeiros e modificadores do pensamento anarquista clássico, continua em aberto. Que Newman está fornecendo uma perspectiva interessante e original, enraizada no local certo, não pode ser negado.

Todd May é Professor de Filosofia na Clemson University. Escreveu consideravelmente sobre o pensamento de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Seu quinto livro, Our Practices, Our Selves, Or, What it Means to be Human, foi recentemente publicado pela Penn State Press. Ele pode ser encontrado em mayt@clemson.edu

Fonte: Project Muse
http://muse.jhu.edu/login?uri=/journals/theory_and_event/v006/6.1may.html

May, Todd, 1955-
Lacanian Anarchism and the Left
Theory & Event – Volume 6, Issue 1, 2002

Considerações Filosóficas sobre o fantasma divino, sobre o mundo real e sobre o homem (1870)

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Fonte: Arquivo Bakunin

 

Breve nota introdutória
É com muito orgulho que o Arquivo Bakunin em Português (ABP) apresenta a seus leitores e camaradas o primeiro capítulo da obra Considerações Filosóficas. Essas Considerações são um apêndice de Federalismo, Socialismo e Anti-teologismo (FSAT). Sua datação é baseada em uma carta de Bakunin enviada a Ogarev em 19 de novembro de 1870. O presente texto foi traduzido do espanhol de forma voluntária e coletiva pelos colaboradores do ABP. Os demais capítulos serão publicados de acordo com o término das traduções. No prólogo do volume 3 das Obras de Bakunin, publicadas por Ediciones Júcar em 1977, Max Nettlau diz que “a leitura destes dois escritos, Federalismo… e Considerações… , é um pouco difícil, porém o leitor é gradualmente iniciado no assunto e realizará o estudo do segundo mais bem preparado pelo estudo do primeiro.” Nettlau recomenda primeiro a leitura do FSAT e depois o Considerações. Mas acima de tudo ele realça o elo de ligação epistemológica entre as duas obras. Em breve, além das traduções dos próximos capítulos de Considerações, estaremos disponibilizando para nossos leitores e demais camaradas de luta a digitalização de Federalismo, Socialismo e Anti-teologismo.
Os Editores,
Brasil, janeiro de 2011.


Considerações Filosóficas sobre o fantasma divino, sobre o mundo real e sobre o homem
(1870)
Mikhail Bakunin
1-O Sistema do Mundo
Não é este o lugar para entrar em especulações filosóficas sobre a natureza do ser. Mas como me vejo forçado a empregar muitas vezes a palavra natureza, creio que devo dizer aqui o que entendo por ela. Poderia dizer que a natureza é a soma de todas as coisas realmente existentes. Mas isso me daria uma idéia completamente morta da natureza, que apresenta a nós, ao contrário, todo movimento e toda a vida. Além disso, o que é a soma das coisas? As coisas tal como são hoje não serão amanhã; amanhã não haverão se perdido, senão inteiramente transformadas. Aproximarei-me muito mais da verdade dizendo que a natureza é a soma das transformações reais das coisas que se produzem e que se produzirão incessantemente em seu seio; e para dar uma idéia um pouco mais determinada do que possa ser essa soma ou essa totalidade, que chamo natureza, enunciarei, e creio poder estabelecer-la como um axioma, a proposição seguinte:

Tudo o que existe, os seres que constituem o conjunto indefinido do universo, todas as coisas existentes no mundo, qualquer que seja por outra parte sua natureza particular, tanto desde o ponto de vista da qualidade como da quantidade, as mais diferentes e as mais semelhantes, grandes ou pequenas, próximas ou imensamente distantes, exercem necessária e inconscientemente, seja por via imediata e direta, seja por transmissão indireta, uma ação e uma reação perpétuas; e toda essa quantidade infinita de ações e de reações particulares, ao combinar-se em um movimento geral e único, produz e constitui o que chamamos vida, solidariedade e causalidade universal, a natureza.
Chame isso de deus, de absoluto, se os diverte, nada disso me importa, desde que não deis a essa palavra, deus, outro sentido que o que acabo de precisar: o da combinação universal, natural, necessária e real, mas de nenhum modo predeterminada nem preconcebida, nem prevista, dessa infinidade de ações e de reações particulares que todas as coisas realmente existentes exercem incessantemente umas sobre todas. Definida assim a solidariedade universal, a natureza, considerada no sentido do universo sem limites, se impõe como uma necessidade reacional a nosso espírito; mas não podemos abarcar-la nunca de uma maneira real, nem sequer pela imaginação ou pelo reconhecimento. Por que não podemos reconhecer mais que essa parte infinitamente pequena do universo que nos é manifestada por nossos sentidos; e quanto ao resto, nós supomos, sem poder constatar realmente sua existência.
É claro que a solidariedade universal, explicada desse modo, não pode ter o caráter de uma causa absoluta e primeira; não é, ao contrário, mais que uma resultante [1], produzida e reproduzida sempre pela ação simultânea de uma infinidade de causas particulares, cujo conjunto constitui precisamente a causalidade universal, a unidade composta, sempre reproduzida pelo conjunto indefinido das transformações incessantes de todas as coisas que existem e, ao mesmo tempo, criadora de todas as coisas; cada ponto atuando sobre o todo (eis ai o universo produzido), e o todo atuando sobre cada parte (eis ai o universo produtor e criador).
Havendo explicado bem, posso dizer agora, sem medo de dar lugar a algum mal entendido, que a causalidade universal, a natureza, cria os mundos. É ela que tem determinado a configuração mecânica, física, química, geológica e geográfica de nossa Terra, e que, depois de haver coberto sua superfície com todos os esplendores da vida vegetal e animal, continua criando ainda, no mundo humano, a sociedade com todos seus desenvolvimentos passados, presentes e futuros.
Quando o homem começa a observar com uma atenção perseverante e seguida essa parte da natureza que o rodeia e que encontra em si mesmo, acaba por perceber que todas as coisas são governadas por leis que lhe são inerentes e que constituem propriamente sua natureza particular; que nessa transformação e essa ação existe uma sucessão de fenômenos e de fatos que se repetem constantemente, nas mesmas circunstancias dadas, e que, sob a influencia de circunstâncias determinadas, novas, se modificam de uma maneira igualmente regular e determinada. Essa reprodução constante dos mesmos fatos pelos mesmos pelos mesmos procedimentos constitui propriamente a legislação da natureza: a ordem na infinita diversidade dos fenômenos e dos fatos.
A soma de todas as leis, conhecidas e desconhecidas, que trabalham no universo, constitui a lei única e suprema. Essas leis se dividem e se subdividem em leis gerais e em leis particulares e especiais. As leis matemáticas, físicas e químicas, por exemplo, são leis gerais que se manifestam em todo o que existe, em todas as coisas que tem uma existência real, leis que, em uma palavra, são inerentes a matéria, ou seja, ao ser real e unicamente universal, o verdadeiro substratum de todas as coisas existentes. Acrescentarei também que a matéria não existe nunca e em nenhuma parte como substratum, que ninguém pode perceber-la sob essa forma unitária e abstrata; que não existe e que só pode existir sob uma forma muito mais concreta, como matéria mais ou menos diversificada e determinada.
As leis do equilíbrio, da combinação e da ação mutua das forças ou do movimento mecânico; as leis da gravidade, do calor, da vibração dos corpos, da luz, da eletricidade, tanto como as de composição e decomposição química dos corpos, são absolutamente inerentes a todas as coisas existem, sem excetuar de nenhum modo as diferentes manifestações do sentimento, da vontade e do espírito; pois estas três coisas, que constituem propriamente o mundo ideal do homem, não são mais que funcionamentos completamente materiais da matéria organizada e viva , no corpo do animal em geral e sobre todo do animal humano em particular [2]. Por conseguinte, todas essas são gerais, as quais estão submetidos todas as ordens conhecidas e desconhecidas de existência real no mundo.
Mas existem leis particulares que são próprias apenas a certos ordens particulares de fenômenos, de fatos e de coisas, e que formam entre si sistemas ou grupos aparte: tais são, por exemplo, o sistema de leis geológicas; o das leis de organização animal; em suma, as leis que governam o desenvolvimento social e ideal do animal mais perfeito da Terra, o Homem.
Não se pode dizer que as leis que pertencem a um desses sistemas sejam absolutamente estranhas às que compõem os outros sistemas. Na natureza, tudo esta ligado muito mais intimamente do que se pensa, e do que os pedantes da ciência podem querer, no interesse de uma maior precisão em seu trabalho de classificação. Mas, no entanto, pode-se dizer que um tal sistema de leis pertence muito mais a tal ordem de coisas e de fatos que a outro, e que se, na sucessão em que lhes apresentei, as leis que dominam no sistema anterior continuam manifestando sua ação nos fenômenos e nas coisas que pertencem a todos os sistemas que se seguem, não existe ação retrógrada das leis dos sistemas seguintes sobre as coisas e os fatos dos sistemas anteriores.Assim , a leido progresso, que constitui o caráter essencial do desenvolvimento social da espécie humana, não se manifesta de nenhum modo na vida exclusivamente animal, e ainda menos na vida exclusivamente vegetal; enquanto que todas as leis do mundo vegetal e do mundo animal se encontram, sem dúvida, modificadas por novas circunstancias, no mundo humano.
Em fim; no próprio seio dessas grandes categorias de coisas, de fenômenos e de fatos, assim como das leis que lhe são particularmente inerentes, existe ainda divisões e subdivisões que nos mostram essas mesmas leis particularizando-se e especializando-se mais e mais, acompanhando, por assim dizer, a especialização mais e mais determinada, – e que volta mais restringida a medida que se determina mais – , dos próprios seres.
O homem não tem, para constatar todas essas leis gerais, particulares e especiais, outro meio que a observação atenta e exata do fenômenos e dos fatos que se sucedem tanto fora dele como nele mesmo. Distingue neles o que é acidental e variável do que se reproduz sempre e em todas as partes de uma maneira invariável. O procedimento invariável pelo qual se reproduz constantemente um fenômeno natural, seja exterior, seja interior; a sucessão invariável dos fatos que o constituem, são precisamente o que chamamos a lei desse fenômeno.
Essa constância e essa repetição não são, no entanto, absolutas. Deixam um vasto campo ao que chamamos impropriamente as anomalias e as exceções – maneira muito pouco justa, por que os fatos ao qual nos referimos provam sozinhos que essas regras gerais, reconhecidas por nós como leis naturais, não sendo mais que abstrações deduzidas por nosso espírito do desenvolvimento real das coisas, não estão em estado de abarcar, de esgotar, de explicar toda a infinita riqueza desse desenvolvimento.
Essa multiplicidade de leis tão diversas, e que nossa ciência separa em categorias diferentes, formam um único sistema orgânico e universal, um sistema no qual estão ligados os próprios seres que manifestam as transformações e os desenvolvimentos? É muito provável. Mas, o que é mais que provável, o que é verdade, é que não podemos chegar nunca, não só a compreender, senão também a abarcar esse sistema único e real do universo, sistema infinitamente extenso por uma parte e infinitamente especializado por outra; de modo que ao estudar-lo teremos que enfrentar dois infinitos: o infinitamente grande e o infinitamente pequeno.
Os detalhes são inesgotáveis. Não será possível nunca ao Homem conhecer mais que uma parte infinitamente pequena deles. Nosso céu estrelado, com sua multidão de sóis, não são mais que um ponto imperceptível na imensidão do espaço, e ainda que possamos vê-lo, não sabemos quase nada dele.
Por necessidade, portanto, devemos nos contentar em conhecer um pouco o nosso sistema solar, do qual temos que presumir a perfeita harmonia com todo o resto do universo, por que se não existisse essa harmonia, ou ela se estabeleceria ou nosso mundo solar pereceria.
Já conhecemos muito bem este último desde o seu ponto de vista mecânico, e já começamos a conhecer-lo um pouco desde o ponto de vista físico, químico, até geológico. Nosso ciência dificilmente irá muito além disso. Se queremos um conhecimento mais concreto, devemos nos ater ao nosso globo terrestre. Sabemos que ele nasceu em um dado momento e presumimos que – não sei em que número indefinido de séculos ou de milhões de séculos – será condenado a perecer, assim como tudo o que existe nasce e morre, ou melhor, se transforma.
Como nosso globo terrestre, primeiro matéria em combustão e gasosa, condensou e esfriou; por vasta gama de evoluções geológicas teve que passar, antes de poder produzir em sua superfície toda essa infinidade de riqueza da vida orgânica, vegetal e animal, desde a simples célula até o Homem; como ela se manifestou e continua desenvolvendo-se no nosso mundo histórico e social; qual é o fim para o qual marchamos, impulsionados por essa ley suprema e fatal de transformação incessante que na sociedade animal se chama progresso: eis aqui as únicas questões que nos são acessíveis, as únicas que podem e devem ser realmente abarcadas, estudadas e resolvidas pelo Homem. Não formando mais que um ponto imperceptível na questão ilimitada e indifinível do universo, essas questões humanas e terrestres oferecem no entanto ao nosso espírito um mundo realemente infinito, não no sentido divino, ou seja, no sentido abstrato dessa palavra, não como o ser supremo criado pela bstração religiosa; infinito, ao contrário, pela riqueza dos seus detalhes, que nenhuma observação e nenhuma ciencia jamais conseguirão apreciar.
Para conhecer esse mundo, nosso mundo infinito, a observação sozinha não seria suficiente. Abandonada a própria sorte, voltaria a nos levar infalivelmente ao ser supremo, a deus, ao nada, como já o fez na história, como explicarei em breve. É preciso – continuando ainda na aplicação dessa faculdade de abstração, sem a qual não poderíamos nunca nos elevar de uma ordem de coisas inferior para uma ordem de coisas superior nem, portanto, compreender a hierarquia natural dos seres -, é necessário que nosso espírito se submirja ao mesmo tempo, com respeito e com amor, no estudo minucioso dos detalhes e do infinitamente pequeno, sem o qual não poderíamos conceber jamais a realidade vivente dos seres. É, portanto, unindo essas duas faculdades, esses dois atos do espírito em aparência tão contrários: a abstração e a análise escrupulosa, atenta e paciente dos detalhes, como podemos elevar-nos à concepção real de nosso mundo. É evidente que se nosso sentimento e nosso imaginação podem dar-nos apenas uma imagem, uma representação mais ou menos falsa deste mundo, só a ciência poderá nos dar uma idéia clara e precisa.
Qual é então essa curiosidade imperiosa que impulsiona o Homem a reconhecer o mundo a sua volta, a perseguir com uma incansável paixão os segredos dessa natureza da qual ele mesmo é, sobre esta Terra, a última e a mais perfeita criação? Esta curiosidade, é um simples luxo, um agradável passatempo, ou uma das principais necessidades inerentes ao seu ser? Não vacilo em dizer que de todas as necessidades que constituem a natureza do Homem, essa é a mais humana, e que o Homem não se distingue efetivamente dos animais das demais espécies senão por essa necessidade insaciável de saber, que não é realmente e completamente Homem senão pelo despertar e pela satisfação progressiva dessa imensa necessidade de saber. Para realizar-se na plenitude de seu ser, o Homem deve reconhecer-se, e nunca se conhecerá de uma maneira completa e real enquanto não tenha reconhecido a natureza a sua volta e da qual é produto. Portanto, ao contrário de renunciar sua humanidade, o Homem deve saber, deve pensar com seu pensamento todo o mundo real, e sem esperança de chegar nunca ao fundo, deve aprofundar mais e mais a coordenação e as leis, por que sua humanidade não existe senão a esse preço. Lhe é preciso reconhecer todas as regiões inferiores, anteriores e contemporâneas ao mesmo tempo, todas as evoluções mecânicas, físicas, químicas, geológicas, vegetais e animais, ou seja, todas as causa e todas as condições de seu próprio nascimento, de sua própria existência e de seu desenvolvimento, a fim de que possa compreender sua própria natureza e sua missão sobre a Terra, sua pátria e seu teatro único; a fim de que neste mundo da cega fatalidade, possa inaugurar seu mundo humano, o mundo da liberdade.
Tal é a tarefa do Homem: é inesgotável, é infinita e suficiente para satisfazer os espíritos e os corações mais orgulhosos e mais ambiciosos. Ser fugaz e imperceptível, perdido no meio do oceano sem bordas da transformação universal, com uma eternidade ignorada atrás de si, e uma eternidade imensa ante ele, o Homem que pensa, o Homem ativo, o Homem consciente de seu destino humano, permanece calmo e orgulhoso no sentimento de sua liberdade, que conquista emancipando-se por si mesmo mediante o Trabalho, mediante a Ciência, e emancipando, rebelando ao seu redor, em caso de necessidade, todos os Homens, seus semelhantes, seus irmãos. Se lhe perguntais depois disso seu intimo pensamento, sua última palavra sobre a unidade real do universo, vos dirá que é a eterna transformação, um movimento infinitamente detalhado, diversificado, e por causa disso mesmo, ordenado em si mesmo, mas sem começo, nem limite nem fim. É, portanto, o caminho inverso da providência: a negação de Deus.
Compreende-se que no universo assim entendido, não pode-se falar sobre idéias anteriores, nem de leis preconcebidas e preordenadas. As idéias, inclusive a de deus, não existem na Terra apenas sendo produzidas pelo cérebro. Se vê, portanto, que surge muito mais tarde que os fatos naturais, muito mais tarde que as leis que governam esses fatos. São justas quando são conforme essas leis, falsas quando lhe são contrárias. As leis da natureza, não se manifestam sob essa forma ideal ou abstrata de lei, senão pela inteligência humana, quando reproduzidas pelo cérebro, com base em observações mais ou menos exatas das coisas, dos fenômenos e da sucessão dos fatos, tomam essa forma de idéias humanas quase espontâneas. Anteriormente ao nascimento do pensamento humano, não são reconhecidas como leis, por ninguém, e não existem senão no estado de processos reais da natureza, processos que, como acabou de dizer-lhe mais acima, estão sempre determinados por um concurso indefinido de condições particulares, de influencias e de causas que se repetem regularmente. Essa palavra natureza, exclui como conseqüência, toda idéia mística ou metafísica de substancia, de causa final ou de criação providencial combinada e dirigida.
Mas desde que existe uma ordem na natureza, deve ter havido necessariamente um organizador, se dirá. De modo nenhum. Um organizador, ainda que fosse um Deus, não poderia senão prejudicar com sua arbitrariedade pessoal a ordem natural e o desenvolvimento lógico das coisas; e sabemos bem que a propriedade principal dos deuses de todas as religiões, é ser precisamente superiores, ou seja, contrários a toda lógica natural, e reconhecer apenas uma só lógica: a o absurdo e da iniqüidade. Por que, o que é a lógica senão o desenvolvimento natural das coisas, ou melhor, o processo natural pelo qual muitas causas determinantes, inerentes a essas coisas, produzem fatos novos? [3] Por conseguinte, me será permitido enunciar este axioma tão simples e ao mesmo tempo tão decisivo:
Tudo o que é natural é lógico, e tudo o que é lógico ou se encontra já realizado, ou deverá realizar-se no mundo natural, inclusive o mundo social [4].
Mas se as leis do muno natural e do mundo social [5] não foram criadas nem organizadas por ninguém, por que e como existem? O que lhes confere esse caráter invariável? Eis uma pergunta que não está em meu poder resolve-la e da qual, que eu saiba, ninguém encontrou e todavia nem encontrara jamais uma resposta. Engano-me: os teólogos e os metafísicos trataram de respondê-la pela suposição de uma causa primeira e suprema, de uma divindade criadora dos mundos, ou ao menos, como dizem os metafísicos panteístas, por uma alma divida ou de um pensamento absoluto aprisionado no universo, que se manifesta pelo movimento e a vida de todos os seres que nascem e morrem em seu seio. Nenhuma destas suposições suporta a menor crítica. Tem sido fácil para mim provar que idéia de um deus criador das leis naturais e sociais continha em si a negação completa destas leis, fazia com que sua própria existência, quer dizer, sua realização e sua eficácia, impossível; que um deus organizador desse mundo devia produzir nele necessariamente a anarquia [6], o caos; e consequentemente, de duas coisas uma, ou deus não existe, ou as leis naturais não existem; e como sabemos de uma maneira segura, pela experiência de cada dia e pela ciência, que não é outra coisa senão a experiência sistematizada dos séculos, que essas leis existem, portanto, devemos concluir que deus não existe.
Aprofundando o sentido destas palavras: leis naturais, voltaremos, pois, a encontrar que excluem de uma maneira absoluta a idéia e a própria possibilidade de um criador, de um organizador e de um legislador, por que a idéia de um legislador exclui por sua vez, de uma maneira também absoluta, a inerência das leis nas coisas, e desde o momento que uma lei não é inerente as coisas que governa, é necessariamente, em relação a essas coisas, uma lei arbitrária, quer dizer, fundada não em sua própria natureza, senão no pensamento e na vontade do legislador. Como conseqüência, todas as leis que emanam de um legislador, seja humano, seja divino, seja individual, seja coletivo, e ainda que fosse nomeado pelo sufrágio universal, são leis despóticas, necessariamente estranhas e hostis aos homens e as coisas que devem dirigir: não são leis, senão decretos aos que as obedecem, não por necessidade interior e por tendência natural, senão por que está sendo obrigado a fazer-lo por uma força exterior, divina ou humana; decretos arbitrários que a hipocrisia social, mais inconsciente do que conscientemente, da arbitrariamente o nome de lei.
Uma lei não é realmente uma lei natural somente quando é absolutamente inerente às coisas que se manifestam a nosso espírito; somente é uma lei natural quando constitui sua propriedade, sua própria natureza mais ou menos determinada, e não a natureza universal e abstrata de não sei qual substancia divina ou de um pensamento absoluto; substancia e pensamento estes necessariamente extra-terrestres, sobrenaturais e ilógicos, por que se não fossem, se aniquilariam na realidade e na lógica natural das coisas. As leis naturais são os processos naturais e reais, mais ou menos particulares, pelos quais existem todas as coisas. Portanto, aquele que queira compreender-las deve renunciar de uma vez por todas ao deus pessoal dos teólogos e a divindade impessoal dos metafísicos.
Mas o fato de que podemos negar com precisão total, a existência de um legislador divino, não se segue que podemos perceber como foram estabelecidas as leis naturais e sociais no mundo. Existem, são inseparáveis do mundo real, desse conjunto de coisas e de fatos do qual nós mesmos somos produtos, os efeitos, exceto no caso de nós nos tornar-mos causas – relativas – de seres, de coisas e de fatos novos. Eis tudo o que sabemos e que, penso eu, tudo o que podemos saber. Por outro lado, como poderíamos encontrar a “causa primeira”, uma vez que ela não existe? Já que o que chamamos causalidade universal não é mais que uma resultante de todas as causas particulares que atuam no universo. Perguntar por que existem leis naturais, não equivaleria a perguntar por que existe o universo – fora do qual nada existe – , por que existe o ser? Isto é um absurdo.
Notas de O sistema do mundo.
(1) Como todo indivíduo humano, em cada instante dado de sua vida, não é mais que a resultante de todas as causas que tem atuado em seu nascimento e também antes de seu nascimento, combinadas com todas as condições de seu desenvolvimento posterior, tanto como com todas as circunstancias que atuam nele neste momento atual.

(2) Falo, naturalmente, do espírito, da vontade e dos sentimentos que conhecemos, dos únicos que podemos conhecer: dos animais e do Homem do qual é, de todos o animais da Terra, é – desde o ponto de vista geral, não de cada faculdade tomada separadamente – sem dúvida o mais perfeito. Quanto ao espírito, a vontade e os sentimento extra-humanos e extra-terrestres do ser de que nos falam os teólogos e os metafísicos, devo confessar minha ignorância, por que nunca os encontrei e ninguém, que eu saiba, já teve relações diretas com eles. Mas se julgamos de acordo ao que nos dizem esses senhores, esse espírito é de tal modo incoerente e estúpido, essa vontade e esses sentimentos são de tal modo perversos, que não vale a pena ocupar-se deles somente para constatar todo o mal que fizeram sobre a Terra. Para provar a ação absoluta e direta das leis mecânicas, físicas e químicas, sobre as faculdades ideais do Homem, me contentarei com levantar essa pergunta: O que seria das mais sublimes combinações da inteligência se, desde o momento que Homem as concebe, se apenas o ar que se respira se descompô-se, ou se o movimento da Terra se detivesse, ou se o Homem se visse envolto inesperadamente em uma temperatura de 60 graus acima ou abaixo de zero?

(3) Dizer que deus não é contrário a lógica, é afirmar que, em toda a extensão de seu ser, é completamente lógico; que não contem nada que esteja por cima, ou o que quer dizer o mesmo, fora da lógica: que, por conseqüência, ele mesmo não é nada mais que a lógica , nada mais que essa corrente ou esse desenvolvimento natural das coisas reais; ou seja, que deus não existe. A existência de deus não pode, pois, ter outro significado que o da negação das leis naturais; aonde resulta este dilema inevitável: Deus existe, por tanto não existem leis naturais, não existe ordem na natureza, o mundo é um caos, ou então: O mundo está ordenado por si mesmo, por tanto, deus não existe.

(4) Não significa de nenhum modo, que tudo o que é lógico ou natural seja desde o ponto de vista humano, necesariamente útil,bom ou justo. As grandes catástrofes naturais; os terremotos na terra, as erupções vulcânicas, as inundações, as tempestades, as doenças epidêmicas, que devastam e destroem cidades e populações inteiras, são certamente fatos naturais produzidos logicamente por uma gama de causas naturais, mas ninguém dirá que são benéficas para a humanidade. O mesmo acontece com os fatos que se produzem na história: as mais horríveis instituições chamadas divinas e humanas; todos os crimes passados e presentes dos chefes, desses supostos benfeitores e tutores de nossa pobre espécie humana, e a mais desesperante estupidez dos povos que aceitam o seu julgo; as infâmias atuais dos Napoleões III, dos Bismarcks, de Alexandre II e tantos outros soberanos ou políticos e militares da Europa e a covardia incrível dessa burguesia de todos os países que os incentiva, os sustenta, ainda que odiando-os desde o fundo do seu coração; tudo isso nos mostra uma série de fatos naturais produzidos por causas naturais, e por conseqüência muito lógicas, o que não as impede de ser excessivamente funestas para a humanidade.

(5) Sigo o uso estabelecido, separando de certo modo o mundo social do mundo natural. É evidente que a sociedade humana, considerada em toda a extensão e em toda a amplitude de seu desenvolvimento histórico, é tão natural e está tão completamente subordinada a todas as leis da história, como o mundo animal e vegetal, por exemplo, da qual é a última e a mais alta expressão sobre a Terra.

A Reação na Alemanha (1842)

M.-Bakunin_reference

Por Bakunin

Fonte: Arquivo Bakunin

BAKUNINE, Miguel. A reação na Alemanha.In: Cadernos Peninsulares, Nova Série, Ensaio 17.  Tradução: José Gabriel. Portugal: Editora Assírio & Alvin, 1976. Pags. 105-127


OS ADVERSÁRIOS DA LIBERDADE


Liberdade, realização da liberdade: quem pode negar que estas palavras estão agora à cabeça da ordem do dia da história? Amigos e inimigos reconhecem-no apesar de tudo, e ninguém ousa declarar-se abertamente e audaciosamente adversário da liberdade. Mas falar de alguma coisa e reconhecê-la não lhe dá uma existência real, e isto, o evangelho, sabe-o bem
[1]; na realidade, há infelizmente ainda uma multidão que, verdadeiramente, não acredita do mais profundo do seu coração, na liberdade. Vala a pena, no interesse desta causa, ocuparmo-nos deles. Pertencem a tipos muito diferentes: encontramos, em primeiro lugar, pessoas bem colocadas, carregadas de anos e de experiência que, na sua juventude, eram mesmo diletantes da liberdade política; um homem rico e distinto encontra, na realidade, um certo prazer requintado em falar de liberdade e de igualdade, o que o torna, além do mais, duplamente importante na sociedade. Mas como não mais podem agora gozar a vida como no tempo da sua juventude, procuram dissimular o seu enfraquecimento físico e intelectual sob o véu da “experiência” — uma palavra tanta vez enganadora —: é perder tempo falar com estas pessoas; nunca levaram a liberdade a sério, nunca a liberdade foi para eles a religião que só conduz aos maiores prazeres e à felicidade suprema pela via das mais terríveis contradições, ao preço dos mais cruéis sofrimentos e da abnegação total e sem reservas. Verdadeiramente não há algum interesse em discutir com eles, porque são velhos e, assim, apesar de tudo, morrerão brevemente.

Mas também há infelizmente muitas pessoas jovens que partilham com as pessoas do primeira grupo as mesmas convicções, ou antes, a ausência de toda a convicção. Pertencem na maior parte, a essa aristocracia que pela sua natureza está marcada desde há muito tempo, na Alemanha, pela morte política, seja a classe burguesa e comerciante, seja a dos funcionários. Com eles não há nada a empreender, e menos ainda com as pessoas judiciosas e experimentadas da primeira categoria que têm já um pé no túmulo. Os últimos tinham ao menos uma aparência de vida, enquanto que os outros são de nascença seres inexistentes, homens mortos. Estão todos embaraçados nos seus interesses sórdidos de vaidade ou do dinheiro e unicamente preocupados com os seus quotidianos, ignoram mesmo tudo da vida e o que se passa á volta deles, a ponto que, se não tivessem ouvido falar um pouco na escola da história e da evolução das ideias, acreditariam provavelmente que o mundo nunca teria sido outro do que é agora. São naturezas mortas, sombras que não podem ser nem úteis, nem nocivas; não temos nada a temer delas, porque só o que é vivo é que pode agir e como já passou de moda ter comércio com sombras, não queremos perder o nosso tempo com eles.


Mas há ainda uma terceira categoria de adversários do princípio da Revolução: é o partido reaccionário surgido pouco depois da Restauração em toda Europa e que se chama conservadorismo em política, escola histórica na ciência do direito, e filosofia positiva nas ciências especulativas. Temos a intenção de discutir com este partido, e seria absurdo da nossa parte, ignorar a sua existência e considerá-lo como insignificante; reconhecemos ao contrário, sinceramente que é agora, em todo o lado, o partido dirigente, e, bem mais, estamos prestes a conceder-lhe que a sua força presente não é um jogo do acaso, mas que tem as suas raízes profundas na evolução do espírito moderno. Em geral, não reconheço, ao acaso, uma influência real sobre a história; a história é um desenvolvimento livre, mas também necessário, do pensamento livre, de maneira que se atribuísse, ao acaso, a preponderância actual do partido reaccionário, eu prestaria o pior serviço à profissão de fé democrática que se funda unicamente sobre a liberdade absoluta do pensamento. Isto seria tanto mais perigoso, para nós, de nos adormecer numa quietude nefasta e mentirosa, que infelizmente, até ao presente, estamos ainda muito longe de compreender a nossa situação. Perigo tanto maior que, no desconhecimento, o que não é muito frequente, da verdadeira origem da nossa força e da natureza do nosso inimigo, acabrunhados pelo triste espectáculo da vulgaridade, nós podemos perder toda a nossa coragem, ou — o que é talvez, pior — como o desespero não pode durar num ser cheio de vida, restar atormentado por um temor injustificado, infantil e estéril.


PARTIDO DEMOCRÁTICO

E PARTIDO REACCIONÁRIO


Nada pode ser mais útil ao partido democrático que conhecer a sua fraqueza momentânea e a força relativa dos seus adversários. Este conhecimento fá-lo sair, primeiramente da onda de imaginação e entrar nessa realidade onde deve viver, sofrer e finalmente vencer. Torna o seu entusiasmo reflectido e modesto. Quando, por este doloroso contacto com a realidade, tiver tomado consciência da sua missão sagrada e sacerdotal; quando for atormentado pelas inumeráveis dificuldades que se levantam em toda a parte sobre o seu caminho e que não têm o seu manancial — como frequentemente o partido democrático parece julgá-lo — no obscurantismo dos seus adversários, mas antes na riqueza e na complexidade da natureza humana que resiste às teorias abstractas; logo que estas dificuldades lhe façam conhecer, e em seguida, compreender as imperfeições de toda o sua existência presente e lhe tenham mostrado que o seu inimigo não está somente fora dele, mas também e, sobretudo, nele mesmo e que, depois, deve começar a vencer este inimigo imanente; logo que tenha adquirido a convicção de que a democracia não consiste somente numa oposição aos governantes, não é uma reforma particular constitucional, política ou económica, mas que anuncia uma transformação total da estrutura actual do mundo e uma vida essencialmente nova desconhecida até agora na história; logo que tudo isto o tenha convencido que a democracia é uma religião, logo que esta concepção o tenha tornado a ele mesmo, religioso, quer dizer, não somente convencido do seu principio em pensamento e em raciocínio, mas também fiel a este princípio na vida real, até nas mais pequenas manifestações — então, e só então, o partido democrático abancará sobre o mundo uma vitória efectiva.


Reconhecemos, portanto, sinceramente que a força actual do partido reaccionário não é fato do acaso, mas é uma necessidade histórica. Não tem a sua origem na imperfeição do princípio democrático: este é, na realidade, a igualdade entre os homens realizando-se em liberdade, mas é também esta identidade do espírito, a mais profunda, a mais geral, a mais universal, numa palavra esta identidade única que se manifesta na história. Esta força do partido reaccionário é o efeito da imperfeição do partido democrático que não é ainda bem sucedido na consciência afirmativa do seu princípio e, por consequência, não existe senão como negação da realidade presente. Mas não sendo senão negação, mantém-se, primeiro, necessariamente alheio a esta plenitude da vida, de que não pode ainda compreender o desenvolvimento a partir de um princípio concebido por ele sob uma forma quase unicamente negativa. É porque, até agora, ele é apenas um partido e não ainda essa realidade viva que é o futuro e não o presente. Como os democratas formam somente um partido (e ainda, a julgar pelas manifestações exteriores da sua existência, um fraco partido), como o facto de não ser senão um partido suposto, e oposto a eles, um outro partido potente, isto só devia esclarecer os democratas sobre as suas próprias imperfeições que residem essencialmente neles.


Segundo a sua natureza e o seu princípio, o partido democrático aspira ao geral e ao universal, mas segundo a sua existência, enquanto partido, é somente qualquer coisa de particular — o negativo— opondo-se a qualquer outra coisa de particular — o positivo. Toda a importância e toda a força irresistível do negativo consistindo no aniquilamento do positivo, mas, ao mesmo tempo que o positivo, o negativo breve na sua ruína, devido à sua natureza particular, imperfeito e inadaptado à sua essência. O partido democrático não existe como tal, na plenitude da sua afirmação, mas somente como a negação do positivo: é porque deve, nesta forma imperfeita, desaparecer ao mesmo tempo que o positivo, para renascer espontaneamente sob uma forma regenerada e na plenitude viva do seu ser. Assim, o partido democrático torna-se nele mesmo e esta transformação não é somente quantitativa, não é um simples alargamento da sua existência actual imperfeita: Deus nos guarde! Porque um tal alargamento conduziria e uma humilhação universal e o termo final da história seria um nada absoluto. Esta transformação é, ao contrário, qualitativa, é uma revelação que vive e que anuncia a vida, é um novo céu e uma nova terra, um mundo jovem e magnífico, no qual todas as dissonâncias actuais se transformarão numa unidade harmoniosa.


É impossível corrigir as imperfeições do partido democrático pondo um termo ao carácter exclusivo da sua existência como partido por uma aparente conciliação com o positivo: seriam esforços vãos porque o positivo e o negativo são, uma vez por todas, incompatíveis. O negativo, pelo que se isole da sua oposição ao positivo e que se considere em si, parece ser em substância e sem vida. Esta inconsistência aparente é mesmo a censura capital que os positivos fazem aos democratas; esta censura repousa sobre um mal-entendido, porque o negativo não pode ser tomado isoladamente — não seria absolutamente nada! — mas somente na sua oposição ao positivo; todo o seu ser, o seu conteúdo, a sua vitalidade tendem para a destruição do positivo. “A propaganda revolucionária”, diz o Pentarque
[2], “é pela sua natureza íntima a negação das instituições existentes do Estado, porque o seu carácter mais autêntico não lhe pode determinar outro programa que a destruição de tudo o que existe”. Mas, então, é possível que o negativo, que toda a vida não tem por missão senão destruir, possa aparentemente coexistir com o que a sua natureza íntima o obriga a destruir? Só podem pensá-lo as pessoas sem chama e sem energia que não fazem uma ideia séria do positivo e do negativo.

O PARTIDO DEMOCRÁTICO PERANTE

OS REACCIONÁRIOS PUROS


No seio do partido reaccionário podem-se distinguir actualmente dois grupos principais; num figuram os reaccionários puros e consequentes, no outro os inconsequentes e conciliadores. Os primeiros concebem a oposição em toda sua pureza; sabem bem que não se pode mais conciliar o positivo e o negativo, como a água com o fogo; não vendo no negativo o lado afirmativo da sua natureza, não podem acreditá-lo e deduzem correctamente que o positivo não se pode manter senão pelo esmagamento total do negativo. Ao mesmo tempo, não dão conta que o positivo não é o mesmo positivo defendido por eles senão na medida em que o negativo se opõe ainda a ele; não vêem que, por consequência, se o positivo obtivesse uma vitória total sobre o negativo, seria, daqui para o futuro, fora da oposição, não seria mais o positivo, mas antes o fim do negativo: é preciso perdoar-se-lhes esta incompreensão, porque a cegueira é o carácter essencial de todo o positivo, enquanto que o discernimento é próprio só do negativo. Na nossa triste época sem consciência, numerosos são aqueles que pela covardia tentam esconder a eles mesmos as estritas consequências dos seus próprios princípios e esperam, assim, escapar ao risco de serem alterados no edifício artificial e frágil das suas pretensas convicções. Também é necessário dizer um muito obrigado a estes senhores, aos mais reaccionários. São sinceros, honestos e querem ser homens inteiros. Não se pode falar muito com eles, porque nunca se querem prestar a uma conversa razoável e, agora que o negativo divulgou, por toda a parte, o seu fermento de decomposição, é-lhes bem difícil, senão impossível, manterem-se no puro positivo: a tal ponto que lhes é necessário separarem-se da sua própria razão; é de ter medo deles mesmo e temer o menor ensaio de demonstração das suas convicções, o que ocasionará, com certeza, a sua refutação. Têm perfeita consciência disto: também substituem a palavra pela injúria…  Não são homens menos honestos e inteiros, ou, mais exactamente, querem ser homens honestos e inteiros. Têm como nós o ódio a toda a meia-medida, porque sabem que só um homem inteiro pode ser bom e que as meias-medidas são fonte envenenada de todo o mal.


Estes reaccionários fanáticos acusam-nos de heresia, e, se fosse possível, fariam surgir do arsenal da história a força oculta da Inquisição para a utilizar contra nós; eles negam-nos todo o sentimento bom ou humano e vêem em nós anticristos endurecidos que é permitido combater por todos os meios. Pagamos-lhes na mesma moeda? Não, seria indigno para nós e a grande causa que defendemos. O grande princípio ao serviço do qual nos pusémos dá-nos, entre outras vantagens, o bom privilégio de ser justos e imparciais sem para isso causar dano à nossa causa. Tudo o que repouse sobre um ponto de vista irredutível não pode utilizar como arma a verdade, porque a verdade está em contradição com todo o ponto de vista irredutível. Tudo o que é irredutível é forçosamente nas suas declarações parcial e fanático, porque não pode afirmar-se senão pela supressão brutal de todos os outros pontos de vista irredutíveis que lhe são opostos e que são justificados tanto como ele. Um ponto de vista irredutível, pelo único facto de existir, supõe que existem outros que deva, em razão da sua natureza particular, eliminar para se manter. Esta contradição é a maldição que pesa sobre ele, uma maldição que trás em si e que muda em ódio a expressão de todos os bons sentimentos inatos em todo o homem considerado como tal.


Somos, de certo modo, infinitamente mais felizes; certamente, como partido, opomo-nos aos positivistas, combatemo-los, e esta luta acorda em todos nós as más paixões; o facto de pertencermos, nós mesmos, a um partido torna-nos também frequentemente parciais e injustos. Mas não somos somente este partido negativo oposto ao positivo; a nossa fonte de vida, é o principio universal da liberdade absoluta, um principio que oculta nele tudo o que tem de bom no positivo e que está por cima do positivo, como também por cima de nós, considerados como partido. Enquanto partido fazemos somente política, mas não encontramos a nossa justificação senão no nosso princípio, senão a nossa causa não seria melhor que aquela do positivo, e é-nos necessário, para a nossa própria conservação, ficar fiel ao nosso princípio como inimigos da religião cristã — é só conosco que está dizer, elevarmo-nos continuamente desta existência estreita e somente política até à religião do nosso princípio universal e aberto sobre a vida. Devemos agir não só politicamente, mas também na nossa política religiosamente, o que significa ter a religião da liberdade de que a única expressão autêntica é a justiça e o amor. Sim, é conosco — tratam-nos como inimigos da religião cristã — é só conosco que está reservada esta tarefa de que fazemos dever supremo: praticar efectivamente o amor mesmo nos combates mais obstinados, este amor que é o mais alto poder do Cristo e o princípio único do verdadeiro cristianismo.


Procuramos ser justos mesmo perante os nossos inimigos, e reconhecemos voluntariamente que eles se esforçam de querer realmente o bem, e mais, que a sua natureza os tinha destinado para o bem e para uma vida animada e que só um inconcebível golpe do destino os desviou da sua verdadeira vocação. Não falamos daqueles que só se juntaram ao seu partido para deixar o campo livre às suas más paixões: os tartufos, há infelizmente muitos em todos os partidos! Não falamos senão dos defensores sinceros do positivismo consequente, que se esforça por chegar ao bem sem ter a vontade de o realizar, e aí reside o seu grande infortúnio e a sua consciência é por isso dilacerada. Não vêem no principio da liberdade mais que uma fria e vulgar abstracção, na qual a vulgaridade e a secura de vários defensores deste princípio colaboraram activamente, uma abstracção vazia de toda a vida, de toda a beleza e de toda a santidade. Não compreendem que não se deve confundir este princípio com a sua forma actual, medíocre e totalmente negativa, e que não pode vencer e realizar-se se não for a viva afirmação de si mesmo suprimindo o negativo como também o positivo. A sua opinião, dividida ainda infelizmente por muitos dos aderentes do partido negativo, é que o negativo ensaia de se propapagar enquanto tal, e pensam, exactamente como nós que a difusão do negativo faria soçobrar na vulgaridade toda a sociedade intelectual. Ao mesmo tempo, os seus sentimentos espontâneos fazem-nos aspirar de pleno direito à plenitude de uma vida apaixonada e, não encontrando no negativo mais que a humilhação desta vida, retornam ao passado, ao passado tal como existia antes que surgisse a oposição entre o negativo e o positivo. Têm razão, na medida, em que esse passado era um todo animado de vida própria apresentando-se, como tal, bem mais vivo e mais rico que o presente dilacerado pelas suas contradições. Mas cometem um grande erro quando pensam poder ressuscitar esse passado tão vivo; esquecem que a plenitude do passado só lhes pode surgir sob a forma de uma imagem desunida e quebrada no espelho das contradições actuais que fatalmente engendraram, e que este passado, pertencendo ao positivo, não é mais que um cadáver sem alma abandonado as leis mecânicas e químicas da reflexão. Adeptos do um positivismo cego, não compreendem isto, se bem que os seres vivos, em razão da sua própria natureza, ressintam perfeitamente esta falta de vida; e como eles não sabem que, pelo só facto de serem positivos suportavam deles o negativo, rejeitam para o negativo toda  responsabilidade desta falta de vida; o seu impulso para a vida e a verdade, incapaz de se satisfazer, mudou em ódio e fazem pesei o peso deste fracasso sobre o negativo. Tal é necessariamente, em todo o positivista consequente, o desenrolar interno dos seus sentimentos: isto porque a meu ver são verdadeiramente de lastimar, tendo os seus esforços uma origem quase sempre honesta.

O PARTIDO DEMOCRÁTICO PERANTE OS REACCIONÁRIOS CONCILIADORES


Os positivistas conciliadores têm uma outra posição: distinguem-se dos positivistas consequentes de duas maneiras: mais corrompidos que estes últimos pela falsa visão que têm da nossa época, não somente rejeitam pura e simplesmente o negativo como um mal absoluto, mas acordam-lhe mesmo uma justificação relativa e momentânea; e por outra parte, não possuem a mesma pureza cheia de energia, esta pureza à qual aspiram, ao menos, os positivistas consequentes e intransigentes e que assinalamos como o indício de uma natureza inteira, rica e honesta. Podemos definir o ponto de vista dos conciliadores como o da desonestidade no domínio da teoria; digo bem: da teoria, porque prefiro evitar toda a acusação contra os actos ou pessoas e porque não acredito que, na evolução dos espíritos, uma má vontade pessoal possa intervir para o entravar; contudo, é necessário reconhecer que a desonestidade teórica, em razão da sua própria natureza, leva necessariamente quase sempre à desonestidade prática.


Os positivistas conciliadores têm mais inteligência e penetração que os consequentes; são os inteligentes e os teóricos por excelência e, nesta medida, os principais representantes da época actual. Poderíamos aplicar-lhes o que, no começo da revolução de Julho, dizia um jornal francês o “Juste Milieu”. “O lado esquerdo diz: dois vezes dois, fazem quatro; o lado direito: dois vezes dois, fazem seis… e o justo centro diz: dois vezes dois, fazem cinco.” Mas achariam isto ruim! Vamos também tentar estudar muito seriamente a sua natureza confusa e difícil e com o mais profundo respeito pela sua sabedoria. É muito mais penoso dar razão aos conciliadores que aos consequentes. Estes últimos manifestam nos seus actos a força das suas convicções, sabem o que querem e falam claramente, e odeiam, tal como nós, toda a indecisão, toda a obscuridade porque as suas naturezas enérgicas na acção não podem respirar livremente senão no ar puro e luminoso. Mas com os conciliadores, é outro negócio! São indivíduos maliciosos, oh! são inteligentes e prudentes! Nunca permitem na prática à paixão da verdade destruir o edifício artificial das suas teorias; são muito experimentados, muito inteligentes para dar ouvidos à voz imperativa da simples consciência prática. Seguros dos seus pontos de vista, lançam sobre ela olhares cheios de distinção, e quando dizemos que só o que é simples é verdadeiro e real, porque só ele pode jogar um papel criador, eles pretendem, ao contrário, que só o complexo é verdadeiro: tiveram, na realidade as maiores dificuldades em o remendar e é o único sinal que permite distingui-los, a eles, os indivíduos inteligentes, da plebe imbecil e inculta (e é bem difícil vencer estes indivíduos porque, precisamente, sabem tudo!). Outras razões da sua atitude: sendo hábeis políticos, resistem a uma imperdoável fraqueza de serem tomados de imprevisto por qualquer acontecimento; enfim, ajudados pela reflexão, deslizaram em todos os recantos do mundo da natureza e do espírito e, depois desta longa e penosa viagem intelectual, adquiriram a convicção de que não vale a pena manter contactos ardentes com o mundo real. Com estes indivíduos é difícil tirar alguma coisa a claro, porque, assim como as constituições alemãs, tomam com a mão direita o que dão com a esquerda; nunca respondem com um sim, ou um não, dizem: “Numa certa medida vocês têm razão, mas contudo …”, e quando não têm argumentos dizem então: “Sim, é uma questão delicada.”


E, contudo, desejamos experimentar entrar em relações com o partido dos conciliadores que, apesar da inconsciência da sua doutrina e incapacidade de jogar um papel de direcção, é actualmente um partido forte, mesmo o mais forte, se tivermos em conta, bem entendido, o número e não as ideias. A sua existência é um sinal do tempo, e um dos mais importantes: também não é permitido ignorar este partido ou passá-lo sob silêncio.


DISCUSSÃO DA NATUREZA LÓGICA

DA CONTRADIÇÃO


Toda a sabedoria dos conciliadores consiste em pretender que duas tendências opostas, pelo facto mesmo da sua posição, são exclusivas e, por consequência, falsas, e se os dois termos da contradição, tomados no abstracto, são falsos, é necessário, portanto, que a verdade esteja entre os dois, á necessário conciliar os contrários para chegar à verdade. À primeira vista, este raciocínio parece irrefutável; nós mesmos admitimos o carácter exclusivo do negativo enquanto ele se opuser ao positivo e que nesta oposição relacione tudo consigo. Não resultará daqui que se realize e se complete essencialmente no positivo? E os conciliadores não têm razão de querer conciliar o positivo e o negativo? De acordo, se esta conciliação for possível: mas será verdadeiramente possível? A única razão de ser do negativo não é a destruição do positivo? Logo que os conciliadores fundam o seu ponto de vista sobre a natureza da contradição, quer dizer, sobre o facto que duas exclusividades opostas se supõem, enquanto tais, adversários, é-lhes necessário então permitir e aceitar que esta natureza toma toda a sua extensão; é-lhes necessário também, em razão das consequências que isto arrasta para eles, ficar fiéis ao seu ponto de vista, visto que a face da contradição que lhes é favorável é inseparável daquela que lhes é desfavorável. Ora, o que é desfavorável para eles é que a existência de um termo da contradição supõe a existência do outro: e isto não é qualquer coisa de positivo, mas bem de negativo e de destruição, É necessário chamar a atenção destes senhores sobre a lógica de Hegel onde ele faz um estudo tão notável sobre a categoria da contradição.


A contradição e o seu desenvolvimento imamente formam um dos nós principais de todo o sistema hegeliano, e como esta categoria é a categoria principal, a característica principal da nossa época, Hegel é sem réplica o maior filósofo do nosso tempo, o mais alto cume da nossa cultura moderna considerada unicamente do ponto de vista teórico. E precisamente, porque ele é este cume, porque compreendeu esta categoria e, por consequência a analisou, precisamente ele está na origem de uma necessária auto-decomposição da cultura moderna. Certamente, no princípio, era ainda prisioneiro da teoria, mas porque ele é este cume, evadiu-se, está por cima dela e postula um novo mundo prático; um mundo que não se realizará, em caso algum, pela aplicação formal e a extensão de teorias feitas, mas somente por uma acção espontânea do espírito prático autónomo. A contradição é a essência a mais íntima, não somente de toda a teoria determinada ou particular, mas ainda da teoria em geral; e assim, o momento em que a teoria é compreendida é também, ao mesmo tempo, quando o seu papel acabou. Devido a este contributo a teoria transforma-se num mundo novo prático e espontâneo, na presença real da liberdade. Mas não é aqui o lugar para desenvolver longamente esta questão, e queremos ainda, mais uma vez, debruçarmo-nos sobre a discussão da natureza lógica da contradição.


A própria contradição, enquanto tal, inclui os dois termos exclusivos num e no outro, é total, absoluta, verdadeira; não se lhe pode censurar esta natureza exclusiva à qual está necessariamente ligado um carácter superficial e estreito, porque ela não é somente o negativo, mas é também o positivo e, englobando-o inteiramente, é a plenitude total, absoluta, não deixando nada fora dela. E isto autoriza os conciliadores a exigir que não se retenha abstractamente só um dos dois termos em exclusivo, mas que, respeitando o laço necessário e indissolúvel que os une, se apreendam na sua totalidade: “Só a contradição á verdadeira”, dizem eles: “cada um dos termos opostos, tomados em si, é exclusivo e, portanto, falso; resulta que devemos compreender a contradição na sua totalidade para conhecermos a verdade”. Mas é precisamente aqui que começa a dificuldade: a contradição é bem a verdade, mas não existe como tal, ela não é como a totalidade, é somente uma totalidade em si e escondida, e a sua existência nasce precisamente da oposição e da divisão dos seus dois termos: o positivo e o negativo. A contradição, enquanto que verdade total, é a união indissolúvel da sua simplicidade e da sua própria divisão num princípio único. É essa a sua natureza em si, a sua natureza escondida que, por consequência, o espírito não pode imediatamente apreender, e precisamente porque esta união está escondida, a contradição só existe unicamente sob a forma da divisão dos seus termos e não é mais que a adição do positivo e do negativo; ora, estes termos excluem-se um ao outro tão categoricamente que esta exclusão recíproca constitui toda a sua natureza. Mas então como compreender a contradição na sua totalidade? Restam-nos, parece, duas saídas: ou bem que arbitrariamente é preciso fazer a abstracção da divisão refugiar-se nesta totalidade da contradição, totalidade simples e precedente da divisão — mas isto á impossível, porque o que escapa à compreensão nunca pode ser compreendido pelo espírito e porque a contradição, como tal, não tem existência imediata senão como divisão dos seus termos, e sem estar não existe; ou bem que é preciso procurar conciliar os termos opostos com um cuidado maternal, e é nisto que se esforça a escola conciliadora: vamos ver se tem êxito.


CARACTERES DO POSITIVO E DO NEGATIVO:
PREPONDERÂNCIA DO NEGATIVO


O positivo parece ser, primeiramente, o elemento calmo e imóvel; e mesmo é positivo unicamente porque nele não repousa nenhuma causa de perturbação e não há nada nele que possa ser uma negação, porque, enfim, no interior do positivo não há nenhum movimento, visto que todo o movimento é uma negação. Mas precisamente o positivo é tal que nele a ausência de movimento está estabelecida como tal, e assim, tomado em si, tem por imagem a ausência total do movimento; ora, a imagem que evoca em nós a imobilidade está indissoluvelmente ligada à do movimento, ou antes, elas não são mais que uma só e mesma imagem, e assim o positivo, repouso absoluto, só é positivo em oposição ao negativo, agitação absoluta. A situação do positivo relativamente ao negativo apresenta-se assim sob dois aspectos: de uma parte, traz consigo o repouso, e esta calma apática que o caracteriza não tem qualquer traço do negativo, em si; de outra parte, para conservar este repouso, afasta energicamente dele o negativo, como se tivesse qualquer coisa de oposto ao negativo. Mas a actividade que desenvolve para excluir o negativo é um movimento, e assim o positivo, tomado em si mesmo e precisamente por causa da sua positividade, já não é mais o positivo, mas o negativo; eliminando dele o negativo, elimina-se a ele próprio e corre para a sua própria perda.


O positivo e o negativo não são, em consequência, iguais em direitos como o pensam os conciliadores; a contradição não é um equilíbrio, mas uma preponderância do negativo. O negativo é, portanto, o factor dominante da contradição, determina a existência do positivo e encerra só em si a totalidade da contradição: é também ele o único que está autorizado, por direito, de uma maneira absoluta. Talvez me objectem não termos admitido que o negativo considerado abstractamente é tão exclusivo como o positivo e que o alargamento da sua existência actual imperfeita conduzirá a um achatamento universal? Sim! mas falei somente da existência actual do negativo, falei do negativo que, afastado do positivo, dobra-se pacificamente sobre si mesmo e, assim toma os caracteres do positivo. E como tal, é negado pelo positivo, e os positivistas consequentes, negando a existência do negativo e o seu pacífico comportamento executam ao mesmo tempo uma função lógica e sagrada… sem, aliás, saber o que fazem. Julgam negar o negativo, e ao contrário, negam o negativo unicamente na medida em que se identifica com o positivo; acordam o negativo deste repouso de bom burguês para que não está destinado e reconduzem-no à sua grande vocação: sem descanso e sem reservas, destruir tudo o que tiver uma existência positiva.


Reconheçamos que o positivo e o negativo têm direitos iguais, mas este último dobra-se sobre si próprio pacifica e egoisticamente e, assim, é infiel à sua missão. Mas o negativo não deve ser egoísta, deve-se dar com amor ao positivo para o absorver e, neste acto de destruição religioso, cheio de fé e de vida, revelar a sua natureza íntima inesgotável e cheia de futuro. O positivo é negado pelo negativo e, inversamente, o negativo pelo positivo; portanto, o que é comum a ambos e quem os domina? O facto de negar, de destruir, de absorver apaixonadamente o positivo, mesmo quando este procura com astúcia esconder-se sob os traços do negativo. O negativo encontra a sua justificação nesta negação radical —  e como tal está absolutamente justificado: é, na realidade, por ele que age o espírito prático bem presente como invisível na contradição, o espírito que, por esta tempestade de destruição, exorta ardentemente à penitência das almas pecadoras dos conciliadores e anuncia a sua vinda próxima, a sua Revolução próxima numa Igreja da Liberdade verdadeiramente democrata e aberta à humanidade universal.

Esta auto-decomposição do positivo é a única conciliação possível entre o positivo e o negativo, porque este último é ele mesmo, de maneira imanente e total, o movimento e a energia da contradição. Assim, qualquer outro modo de conciliação é arbitrário, e todos aqueles que tendem para uma conciliação demonstram somente pela mesma que não estão penetrados pelo espírito do tempo e que são estúpidos, ou sem carácter: não se é, na realidade, verdadeiramente inteligente e moral se se abandona por completo este espírito e se se é penetrado por ele. A contradição é total e verdadeira: mesmo os conciliadores o reconhecem. Sendo total é animada por uma vida intensa, e desta vida que abraça extrai precisamente a sua energia, do positivo ardente na chama pura do negativo.


ARGUMENTOS DOS CONCILIADORES E CRÍTICA

DESTES ARGUMENTOS


Que fazem então os conciliadores? Concedem-nos tudo isto, reconhecem, como nós, o carácter total da contradição, com a diferença de que a despojam — ou antes, querem despojá-la — do seu movimento, da sua vitalidade e da sua alma inteiramente: esta vitalidade, na realidade, é uma força prática, incompatível com as suas alminhas impotentes, e por isso mesmo acima de tudo o que possam tentar para a sufocar. Já dissémos e demonstrámos que o positivo, tomado em si mesmo, está privado de todos os direitos: não se justifica senão na medida em que opõe a sua recusa à quietude do negativo e a toda a relação como ele, em que afasta de si o negativo categoricamente e sem reservas e mantém assim a sua actividade, na medida, enfim, em que se transforma num negativo activo. Esta actividade que consigo carrega a negação, à qual os positivistas se elevam graças à potência invencível da contradição e à sua presença invisível em todas as naturezas vivas, esta actividade que constitui a única justificação dos positivistas e o único sinal da sua vitalidade, é ela precisamente que os conciliadores querem proibir. Por uma desgraça singular e incompreensível, ou antes, em razão desta desgraça perfeitamente compreensível que nasce da sua falta de carácter e da sua importância na vida prática, não conhecem nos elementos positivos senão
o que neles há de morto, de apodrecido, e dedicados à destruição recusam o que cria toda a sua vitalidade: a luta viva com o negativo, a presença da contradição.

E vejamos o que dizem aos positivistas: “Senhores, vocês têm razão em conservar os restos apodrecidos e ressecados pela tradição. Como a vida é bela e agradável nas ruínas, neste mundo absurdo da rococó cujo ar, para os nossos espíritos anémicos, é tão saudável como o ar de um estábulo para os corpos anêmicos. No que nos diz respeito, nós ter-nos-íamos estabelecido com a maior alegria no vosso mundo, num mundo onde o Verdadeiro e o Sagrado não se avaliem à escala da razão e das decisões razoáveis da vontade humana, mas àquela da longa duração e da imobilidade, um mundo como, em consequência, é certamente a China com os seus mandarins e os seus bestonados para a Verdade absoluta. Mas, o que é preciso fazer agora, senhores? Vivemos dos tristes tempos, nossos inimigos comuns, os negativos, ganharam muito terreno. Á nossa raiva para com eles é também forte, senão mais forte que a vossa, porque eles se permitem nos seus excessos desprezar-nos. Mas tornaram-se fortes e é-nos necessário — quer queiramos, quer não — levá-los em consideração, sob pena de sermos inteiramente destruídos por eles. Não sejam, portanto, tão fanáticos, senhores, concedam-lhes um lugarzito na vossa sociedade. Que vos importa se, no vosso museu histórico, eles tomam o lugar frequentemente de ruínas, aliás muito veneráveis mas completamente arruinados? Acreditem-nos: contentíssimos da honra que assim lhes testemunhais, conduzir-se-ão na vossa respeitável sociedade com muita calma e discrição. Não são, afinal de contas, senão indivíduos jovens tornados amargos pela necessidade e a falta de uma situação isenta de cuidados: é a única razão dos seus gritos a de todo o barulho que fazem, esperançados por adquirirem uma certa importância e obterem um lugar agradável na sociedade.”


Depois voltam-se para os negativistas e dizem-lhes: “Senhores as vossas aspirações são nobres! Compreendendo o vosso entusiasmo juvenil pelos puros princípios temos por vós a maior simpatia; mas, acreditem-nos, os puros princípios são na sua pureza inaplicáveis á vida; é necessário para viver ter uma certa dose de eclectismo, o mundo não se deixa guiar segundo os vossos desejos e é preciso ceder-lhe sobre certos pontos para poder exercer sobre ele uma acção eficaz: senão a vossa situação no mundo estará completamente perdida”. Os conciliadores parecem-se com os judeus polacos que, diz-se, aquando da última guerra da Polónia, queriam prestar serviços aos dois partidos em luta, aos polacos e aos russos, e foram pendurados por um e por outro; da mesma maneira, estes infelizes atormentem-se com o seu empreendimento impossível de conciliação exterior e, em agradecimento, são desprezados pelos dois partidos. É somente deplorável que na época actual falte tanta força e energia para fazer sua a lei de Sólon!
[3]


”Não passam de frases!” dirão; “os conciliadores são indivíduos, na maior parte, honrosos e tendo uma formação científica há entre eles um grande número de pessoas universalmente consideradas e altamente colocadas, e vocês apresentam-os como indivíduos sem discernimento e sem carácter!” Que posso contra isso, se isso é verdade? Não me quero entregar a qualquer ataque pessoal; os sentimentos íntimos de um indivíduo são para mim uma coisa santa e inviolável, qualquer coisa de incomensurável sobre a qual nunca me permitiria fazer um julgamento; eles podem ter para o indivíduo um valor imenso, mas, na realidade, para o mundo eles existem, na medida em que se manifestam, e o mundo vê-os tal como eles se manifestam. Todo o homem é realmente o que é no mundo real, é-me impossível chamar branco ao que é preto.


Sim, responderão, as aspirações dos conciliadores parecem-nos negras, ou mais exactamente acinzentadas; na realidade, querem somente o progresso, tendem para ele e favorizam-no mais que vós mesmos, metendo-se ao trabalho com prudência e não com a presunção dos democratas que procuram fazer saltar o mundo inteiro. Mas já vimos o que é este pretendido progresso visado pelos conciliadores, já vimos que eles não querem, no fundo nada que não seja abafar o único princípio vivo da nossa época, aliás, tão miserável, o princípio criador e rico de futuro do movimento que desintegra todas as coisas. Vêem tão bem como nós que o nosso tempo é o da contradição; admitem que é uma situação difícil e cheia de tumultos, mas no lugar de a deixarem evoluir, sob o efeito da contradição levada ao seu termo, para uma realidade nova, afirmativa e orgânica, querem manter eternamente esta situação, tão miserável e tão débil na sua existência presente, através duma infinidade de reformas graduais. É isto progresso? Eles dizem aos positivos: “Conservais o que é velho, mas permiti ao mesmo tempo aos negativos desagregá-lo pouco a pouco”. E aos negativos; “Destrui o que é velho, mas não de um só golpe nem totalmente, afim que possais ter sempre qualquer obra a fazer; quer dizer, ficai cada um na vossa exclusividade, enquanto que nós os Eleitos, guardaremos para nós o usufruto da totalidade!” Miserável totalidade que somente pode satisfazer os espíritos miseráveis! Eles despojam a contradição da sua alma prática e sempre em movimento e regozijam-se de poder, em seguida, tratá-la segundo a sua fantasia. A grande contradição actual não é para eles uma força prática do tempo presente, à qual todo o ser vivo deve abandonar-se para conservar a sua vitalidade, mas um simples brinquedo teórico. Não estão penetrados pelo espírito prático do tempo e são, por esta razão, indivíduos sem moralidade; sim, sem moralidade! eles que se vangloriam da tal forma da sua moralidade! Porque fora desta igreja da humanidade livre não haveria possibilidade de haver moralidade, sem a qual não há salvação! É preciso repetir-lhes o que o autor do Apocalipse diz aos conciliadores do seu tempo
[4];

 “Conheço a tua conduta; não és nem trio, nem quente – não és nem uma coisa, nem outra!

 Assim, já que estás tépido, nem quente nem trio, vou vomitar-te da minha boca.

 Tu imaginas-te: eis-me rico, enriqueci-me e nada me falta; mas tu não o vês; és tu que és infeliz, piedoso, pobre, cego e nu.”

Mas” dir-me-ão, “não irão cair, com a vossa separação absoluta dos extremos, neste ponto de vista abstracto desde há muito tempo superado por Shelling e Hegel? E este mesmo Hegel que tendes em tão alta consideração, não remarcou justamente que na luz pura se vê tão pouco como na obscuridade pura, e que só a união concreta dos dois torna a visão geralmente possível? E o grande mérito de Hegel não é de ter demonstrado que todo o ser vivo não vive se não possuir a sua negação não exteriormente a ele, mas nele como uma condição vital imanente, e que se fosse somente positivo e tivesse a sua negação exteriormente a ele, seria privado de movimento e de vida?”. Sei-o muito bem, senhores! Admito que, por exemplo, um organismo vivo não vive se não traz o germe da sua morte. Mas se querem citar Hegel, é necessário fazê-lo integralmente. Vereis então que o negativo não é condição vital dum determinado organismo senão durante o tempo em que aparece nesse organismo como factor mantido na sua totalidade. Vereis que chega um momento onde a acção gradual do negativo é bruscamente quebrada, transformando-se em principio independente, que este instante significa a morte deste organismo e que a filosofia de Hegel caracteriza este momento como a passagem da natureza a um mundo qualitativamente novo, ao mundo livro do espírito.

CONTRADIÇÃO SEMPRE MAIS AGUDA ENTRE

NÃO-LIBERDADE E LIBERDADE
DECOMPOSIÇÃO DAS IGREJAS E DOS ESTADOS

 Os mesmos factos reproduzem-se na história; por exemplo, o princípio da liberdade teórica despertou no mundo católico do passado desde os primeiros anos da sua existência. Este princípio foi a fonte de todas as heresias tão numerosas no catolicismo. Sem este princípio, o catolicismo teria permanecido congelado; foi, portanto, ao mesmo tempo o princípio da sua vitalidade, mas somente, enquanto foi mantido na sua totalidade como um factor simples. E assim o protestantismo fez, pouco a pouco, a sua aparição; a sua origem remonta mesmo à origem do catolicismo, mas um dia a sua progressão cessou bruscamente de ser gradual e o princípio da liberdade teórica elevou-se até se tornar um princípio autónomo e independente. É somente então que a contradição aparece na sua pureza, e vós bem o sabeis, senhores, vós que vos dizeis protestantes, o que Lutero respondeu aos conciliadores do seu tempo quando lhe vieram propor os seus serviços.


Como vemos, a ideia que faço sobre a natureza da contradição presta-se a uma confirmação não somente lógica, mas também histórica. Sei que nenhuma demonstração tem efeito sobre vós, porque, sendo sem vida, vós tendes como ocupação preferida o domínio da história, e não é sem razão que vos consideraram arrumadores insensibilizados! “Não estamos ainda vencidos” talvez me respondam os conciliadores; “tudo o que dizeis sobre a contradição é verdadeiro; mas há uma coisa com que não podemos estar de acordo, é que a situação actual esteja tão má como a pretendeis. Há contradições na nossa época, mas não são tão perigosas como vós o assegurais. Vejamos, em toda a parte reina a calma, em toda a parte a agitação está sossegada, ninguém pensa na guerra e a maioria da nações e dos homens vivos actualmente empregam todas as suas forças para manter a paz; é que eles sabem que, sem a paz, não podem ser favorecidos os seus interesses materiais, que parece terem-se tornado o principal negócio da política e do mundo civilizado. Que excelentes ocasiões apareceram para fazer a guerra e para destruir o regime existente, desde a revolução de Julho até aos nossos dias! Durante estes doze anos produziram-se tais complicações que nunca se acreditou ser possível a sua solução pacífica, houve tantos momentos em que um conflito geral parecia inevitável e que as mais terríveis tempestades nos ameaçavam: e, entretanto, as dificuldades, pouco a pouco, desapareceram, tudo ficou tranquilo e a paz parece ter-se estabelecido para sempre sobre a terra”!


A paz, dizeis vós: como se se pudesse chamar paz a isto! Sustento, ao contrário, que nunca as contradições estiveram tão acentuadas como no presente; afirmo que a eterna contradição que existe desde sempre, mas que, durante a história, não fez mais que crescer e desenvolver-se esta contradição entre a liberdade e a não-liberdade, tomou o seu impulso no nosso tempo tão análogo aos períodos da decomposição do mundo pagão e atingiu o apogeu! Não leram sobre o frontão do templo da Liberdade erigido pela Revolução estas palavras misteriosas e terríveis: Liberdade, Igualdade, Fraternidade? Não sabeis e não sentis que estas palavras significam a destruição total da presente ordem política e social? Nunca ouviram dizer que Napoleão, esse pretenso vencedor dos princípios democráticos, tem, como filho digno da Revolução, propagado por toda a Europa, pela sua mão vitoriosa, os princípios igualitários? Talvez ignorais tudo sobre Kant, Fichte, Schelling e Hegel, e não sabeis verdadeiramente nada de uma filosofia que, no mundo intelectual, estabeleceu o princípio da autonomia do espírito, idêntico ao princípio igualitário da Revolução? Não compreendeis que este princípio está em contradição absoluta com todas as religiões positivas actuais, com todas as Igrejas existentes?


”Sim”, respondeis, “mas estas contradições são justamente da história antiga; em França, a revolução foi vencida pelo sábio governo de Louis-Philippe, e foi Schelling, ele próprio, que recentemente derrubou a filosofia moderna, quando tinha sido ele um dos seus maiores fundadores. Em toda a parte, e agora em todas as esferas da vida, a contradição será superada!” Acreditais verdadeiramente nesta resolução, nesta vitória sobre o espírito revolucionário? Sois, portanto, cegos ou surdos? Não tendes olhos nem orelhas para perceber o que progride à vossa volta? Não, senhores, o espírito revolucionário não foi vencido; a sua primeira aparição abalou o mundo inteiro até aos seus fundamentos, em seguida apenas se dobrou sobre si próprio, ocultou-se somente em si para pouco depois, de novo, se anunciar como o princípio afirmativo e criador, e escava agora sob a terra como uma toupeira, segundo a expressão de Hegei! Que não trabalha inutilmente, é o que mostram todas estas ruínas que juncam o solo do edifício religioso, político e social. E falais de superação da contradição e de reconciliação! Olhai à vossa volta e dizei-me o que ficou vivo do velho mundo católico e protestante? Falais de vitória sobre o princípio negativo! Não leram nada de Strauss, de Feuerbach e de Bruno Bauer, não sabeis que as suas obras estão em todas as mãos? Não vêem que toda a literatura alemã, todos os livros, jornais e brochuras estão penetrados por este espírito negativo e que mesmo as obras dos positivistas, inconsciente e involuntariamente, o estão também. E é a isto que chamais paz e reconciliação!


Sabemos que a humanidade, em razão da sua nobre missão, não pode encontrar a sua satisfação e o seu apaziguamento senão no princípio prático universal, num princípio que com força abraça a si as mil diversas manifestações da vida espiritual. Mas onde está este princípio, senhores? Entretanto, chegamos por vezes, durante a vossa existência ordinária tão triste, a viver instantes cheios de vida e de humanidade, desses instantes em que rejeitais para longe de vós os móveis mesquinhos que animam a vossa vida quotidiana e aspirais à verdade, a tudo o que é grande e santo; respondam-me então sinceramente, a mão sobre o coração: já encontrásteis em alguma parte qualquer coisa de vivo? Já alguma vez, entre as ruínas que nos rodeiam, descobriram este mundo tão desejado onde poderíeis renascer para uma nova vida num abandono total e numa comunhão perfeita com toda a humanidade? Seria isto, por acaso, o mundo do protestantismo? Mas esse está atormentado pelas mais horríveis desordens, e em quantas seitas diferentes não está ele dividido? “Sem um grande entusiasmo geral”, diz Schelling, “só há seitas, mas não há opinião pública”. E o mundo protestante actual está em mil lugares a ser penetrado por um tal entusiasmo, porque é o mundo mais prosaico que se possa imaginar. Seria isto, por acaso, o catolicismo? Mas onde está o seu antigo esplendor? Ele, que foi o mestre do mundo, não se tornou o instrumento submisso de uma política imoral, estranha aos seus princípios? Ou talvez encontreis a vossa satisfação no Estado tal como é presentemente? Pois bem! isto seria uma bonita satisfação! O Estado consagrou-se, agora, às contradições interiores mais extremas, porque o Estado sem religião e sem princípios sólidos comuns não pode viver. Se vos quereis convencer, olhai somente para a França e Inglaterra: prefiro não falar da Alemanha!

Olhai para vós mesmos, senhores, e digam-me sinceramente se estais contentes convosco e se vos é possível ser? Não vos pareceis todos, sem excepção, com os tristes e miseráveis fantasmas da nossa triste e miserável época? Não estais cheios de contradições? Sois homens inteiros? Acreditais verdadeiramente em alguma coisa? Sabeis o que quereis e, sobretudo, sois capazes de querer alguma coisa? O pensamento moderno, esta epidemia da nossa época, terá deixado viva uma só parte de vós, não vos penetrou até ao recôndito, paralisados e quebrados? Em verdade, senhores, é necessário que reconheçam que a nossa época é uma época miserável e que nós somos as crianças ainda mais miseráveis!

DA DESTRUIÇÃO DO VELHO MUNDO SURGIRÁ

UMA ORDEM NOVA


Mas por outro lado manifestam-se à nossa volto fenómenos precursores: são o sinal de que o Espírito, esta velha toupeira
[5], acabou o seu trabalho subterrâneo e irá
brevemente reaparecer para fazer a sua justiça. Formam-se, por todo o lado, e sobretudo em França e na Inglaterra, associações de tipo, ao mesmo tempo, socialista e religioso, que, inteiramente à parte do mundo político actual, irão buscar a sua vitalidade em fontes novas e desconhecidas, desenvolvendo-se e propagando-se secretamente. O povo, a classe das pessoas pobres que constituem sem dúvida alguma a imensa maioria da humanidade
[6], essa classe de que já se reconheceu os direitos em teoria, mas que o seu aparecimento e a sua situação de condenados, até ao presente, à miséria e à ignorância e, do mesmo modo, a uma escravidão de facto, esta classe que constitui o povo propriamente dito, toma por toda a parte uma atitude ofensiva; começa a enumerar os seus inimigos, cujas forças são inferiores às suas, e a reclamar a efectivação dos seus direitos que todos já lhe reconheceram. Todos os povos e todos os indivíduos estão plenos de um vago pressentimento, e todo o ser normalmente constituído espera ansiosamente este futuro próximo, onde serão pronunciadas as palavras libertadoras. Mesmo na Rússia, esse império imenso de estepes cobertas de neve que conhecemos tão pouco e a quem se abre talvez um grande futuro, mesmo nesta Rússia se amontoam nuvens escuras, precursoras da tempestade. Oh! a atmosfera sufoca o está cheia de tempestades!


[1] Bakunine referia-se, sem dúvida, à passagem do Evangelho segundo S. Mateus “Não é dizendo-me: Senhor! Senhor! que se entra ao reino dos céus, mas é fazendo a vontade de meu Pai que está nos céus” (A Bíblia, editada pela Escola Bíblica do Jerusalém — pág. 1298).

[2] Segundo uma nota de Rainer Beer (Bakounine — “Phllosophie der Tat”, Edições Hegner, em Colónia) este sobrenome, designaria um teórico do Direito, Fréderic Julius Stahl (1820-1861), um dos criadores desta concepção cristã-conservadora que concebe ao Estado e ao Direito uma origem divina

[3] Por volta da 594 a. o. Solon promulgou em Atenas ame isi surpreendente: perda parcial ou total dos direitos políticos (atimie) dos cidadãos culpados de abstenção política em caso de agitação ou da perigo necional Por volta de 454 a. o., depois de Marathon e antes da grande Invasão de Xerxes, esta lei tinha cado em desuso e para combater os sd,,ersár]os do rearmamento de Atenas, Thérmisrode lisa o ostracismo.

[4] As linhas que se seguem são extraídas do Apocalipse; cartas às Igreja da Ásia (Laodicée). O texto referido é reproduzido da Bíblia (Escola Bíblica de Jerusalém), pág. 623. O texto alemão de Bakunine está inteiramente conforme a tradução apresentada.

[5] Alusão e essa passagem de Haqel: -Frequentemente parece que o espirito esquece-se, perde-se; mas no interior está sempre em opoolçâo cora ele mesmo. é progresso interior, como Hemlat diz do eepprilo de seu pai- ‘Bom trabalho, velha toupeiral». até ao momento em que encontre nele mesmo tanta força para levantar a crosta terrestre que o separado sol”. Marx utilizou e mesma imagem: “Logo que a revolução tenha acabado o seu trabalho subterrâneo, a Europa saltará do seu lugar e rejubilará: “Bem escavado, velha toupeira!”

[6] Comparar Proudhon (“Filosofia do Progresso”, 1853): A classe assalariada, a mais numerosa e a mais pobre, tanto mais pobre do que numerosa.”

Anarquismo, parlamentarismo e democracia, por Miguel Amorós

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Miguel Amorós

Fonte: La Haine

Quando durante a Revolução Francesa se tratou de instituir a democracia como poder do “povo” ou da nação – entendido como o poder do “terceiro estado” -, surgiram imediatamente graves problemas entre a maioria do tal “povo” e o Governo, nomeados como seus “representantes” eleitos.

A democracia popular baseada em clubes, seções e assembleias entrava em contradição com a democracia parlamentar jacobina. O Governo, a Convenção, as instituições nacionais, as leis e o sufrágio não garantiam a liberdade e a igualdade mais do que as classes possuidoras. Um setor radical dos “descamisados” de Paris (o povo parisino), os “Enragés”, no manifesto que apresentou na câmara de deputados no dia seguinte após ter sido votada a Constituição, no dia 25 de junho de 1793, afirmaria que: “A liberdade não é mais que um fantasma vão, quando um tipo de gente pode matar de fome a outra, impunemente. A igualdade não é mais que um fantasma vão, quando o rico, graças ao monopólio, dispõe do direito à vida e à morte sobre seus semelhantes”.

O experimento constitucional e parlamentar fracassaria devido à forte oposição entre os interesses das classes detentoras e os das classes populares. O “povo” não era mais que algo irreal. No parlamento não se manifestava nenhuma “vontade popular” senão os interesses da classe dominante. Não podia ter liberdade real sem igualdade econômica e a fonte de tal desigualdade radicava na propriedade. “O que é a propriedade? A propriedade é um roubo”, responderia Proudhon. E seguia: “a liberdade é igualdade, porque a liberdade não existe senão no estado social”. A questão da propriedade dividiu os democratas revolucionários e alcançou sua maior amplitude quando entrou em cena o proletariado e os “democratas sociais” – Marx, Proudhon e Bakunin se chamaram assim – identificaram seus interesses com os de todos os oprimidos. A tão desgastada vontade popular não seria outra coisa que não o interesse “da imensa maioria”, a saber, os operários. A “democracia social” equivaleria a um regime cujo protagonista principal seria a classe operária. Para uns, esse regime seria comunista. O jovem Marx acreditava que “o comunismo era a solução ao enigma da história”. Proudhon, em contrapartida, rechaçava as formulações autoritárias dos primeiros comunistas e se inclinava pela “organização das forças econômicas sob a lei suprema do contrato”, ou seja, pela propriedade cooperativa ou coletiva dos meios de produção, das “associações operárias organizadas democraticamente” e livremente federadas. Frequentemente, levaram-lhe pouco em consideração e o colocaram ao lado dos “utópicos”, isso quando não lhe tacharam de representante do “socialismo burguês”, tal como lhe qualificara injustamente Marx no Manifesto. Entretanto, Proudhon foi o primeiro que formulou uma crítica social especificamente proletária e a ele corresponde a crítica política do sistema parlamentar burguês mais incisiva, a que deu impulso ao ideário operário anarquista.

Para Proudhon, a autoridade chamada de Governo ou Estado, existente por cima da “vontade popular”, representava o mesmo despotismo dos reis, pois “o que compõe a realeza não é o rei, não é a herança; é o acúmulo dos poderes; é a concentração hierárquica de todas as faculdades políticas e sociais em uma só e indivisível função, que é o governo, este representado por um príncipe hereditário, ou também por um ou vários mandatários imóveis e eleitos”. A falha do sistema representativo estava na delegação de poderes, causa da separação entre governantes e governados: “Hoje mesmo, temos exemplos vivos de que a democracia mais perfeita não garante a liberdade. E isso não é tudo: o povo rei não pode exercer a soberania por si mesmo; está obrigado a delegá-la aos encarregados do poder. Se estes funcionários são cinco, dez, cem, mil, que importa o número ou o nome? Sempre será o governo do homem, o império da vontade e do favoritismo”. Se nenhum indivíduo reconhecesse mais autoridade que ele mesmo, se o povo inteiro quisesse realmente governar, não haveria governados. A impossibilidade de refletir-se a vontade do povo em uma autoridade delegada, exterior a ele, é o que forçava Proudhon a se declarar anarquista, partidário da abolição de qualquer forma de autoridade e chamar de “anarquia” o regime dos homens livres e iguais: “anarquia, ausência de amo, de soberano, tal é a forma de governo à que cada dia nos aproximamos”. A vontade popular somente podia se manifestar sem mediações, de modo direto. O governo do povo era uma falácia; se havia governo, não havia povo e vice-versa; se realmente um povo conseguisse se constituir, exercendo o poder diretamente, sem mediações, o governo não existiria. A anarquia era o governo de todos, e, portanto, o de ninguém: “a fórmula revolucionária não pode ser nem a legislação direta, nem governo direto, nem governo simplificado; a fórmula é nada de governo”. Bakunin contribuiu bem pouco para a análise proudhoniano. Partindo da premissa de que o governo tinha opção de ser verdadeiramente popular e representativo só se estava controlado pelo povo, como tal controle era fictício não existiu em nenhum país, concluía que a liberdade sob tal regime era irreal: “Todo o sistema do governo representativo é uma imensa fraude que se apoia nesta ficção: que os corpos legislativo e executivo, eleitos em sufrágio universal pelo povo, devem ou até podem representar a vontade do povo”. Esses poderes promoviam unicamente os poderes da burguesia. O sufrágio universal, dadas a desigualdade e a opressão em que se encontrava o povo trabalhador, era uma zombaria; votando, cada um elegia seu patrão. Devido a sua miséria, a sua falta de formação, à pouca disponibilidade de tempo, à ausência de informação, à inexistência de espaços de discussão etc., o povo não podia formular uma opinião geral e, por conseguinte, não podia utilizar o sufrágio universal “para a conquista da igualdade econômica. Sempre será de forma necessária um instrumento hostil ao povo, que de fato apoia a ditadura de fato da burguesia”. Malatesta chegou a dizer que “o direito eleitoral é o direito de renúncia aos próprios direitos”. O mesmo raciocínio circular há em Bakunin e Malatesta como em Proudhon: o governo não podia ser representativo porque a vontade popular não podia se formular através dele; si o fizesse, seria representativo, mas já não seria governo. A identidade entre governantes e governados, essência verdadeira da democracia, não podia se realizar mediante um governo parlamentar senão mediante sua abolição. As ideias proudhonianas de autonomia operária inspiraram os internacionalistas durante a Comuna de Paris (1871). Tanto Bakunin como o próprio Marx viram na Comuna a democracia proletária e a negação do Estado.

Na Espanha, país pouco afetado pela revolução industrial, e portanto, com um proletariado pouco desenvolvido, as ideias igualitárias e “socialistas” (contrárias à propriedade privada) foram filtradas pelos movimentos radicais da burguesia. A palavra “democrata”, em seus inícios, designava na política algo parecido com anarquista. No “Dicionário dos Políticos” (1855), do monarquista Juan Rico e Amat, dizia-se que “o democrata puro é inimigo acérrimo de tudo o que se relacione ao governo”; o democrata confiava na insurreição como método para alcançar seu objetivo, a igualdade política: “Se pertence à classe mediana, nunca usa “senhor”; sempre se chama fulano de tal apenas: gosta de tratar por “você” e de dar a mão aos de classe baixa, e nos pronunciamentos, chama de cidadãos os homens e de cidadãs as mulheres”. Uma fração dos democratas, os republicanos federais, trataram de conciliar o problema da mediação entre o povo e o Estado recorrendo à descentralização administrativa.

Nas palavras de Pi e Margall, tradutor de Proudhon: “Na atual organização, o Estado administra tudo; na federação, o Estado, a Província e o Município são três entidades igualmente autônomas, ligadas por pactos sinalagmáticos e concretos. Tem cada uma determinada sua esfera de ação pela mesma índole que os interesses que representa e podem todos moverem-se livremente sem que se entrechoquem”. A República Federal, governo do povo soberano, não seria mais do que a soma federada desses pactos. Mas para se constituir o povo primeiro teria que se romper o Estado monárquico, de forma que seus fragmentos autônomos decidissem livremente se confederarem. O partido federal, ao propugnar o desmembramento do Estado, se situava contra todos os demais partidos, mas mantinha distância do proletariado. Acreditava na harmonia das classes, respeitava a propriedade e era inimigo das greves e demais manifestações da luta social, e por isso bastou apenas que surgisse a Associação Internacional de Trabalhadores na Espanha para que perdesse o apoio dos militantes operários. Sua oportunidade histórica sumiu com o fracasso da Primeira República, a de 1873; não obstante, a ideia do município como célula da sociedade livre penetrou tão fundo como o pensamento de Bakunin, transmitido aos trabalhadores espanhóis pelos internacionalistas.

A distância entre As Cortes espanholas e a realidade social foi tão grande durante o século XIX que as massas populares, normalmente alheias à política, receberam as ideias anarquistas com agrado. O sistema político da Restauração baseado na alternância de dois partidos monarquistas artificiais não fez senão contribuir à identificação entre política, corrupção e coronelismo [em espanhol, caciquismo, que significa, segundo a RAE “Intromissão abusiva de uma pessoa ou uma autoridade em determinados assuntos, valendo-se de seu poder ou influência”; nota do tradutor]. Não obstante, um setor do movimento operário, o partido socialista, aceitou as regras do jogo e exerceu oposição junto com as minorias republicanas, enquanto à margem se desenvolvia um potente sindicalismo revolucionário. Entre 1916 e 1923 a CNT foi capaz de desenvolver uma democracia operária alheia completamente à política e consolidada pela solidariedade de classe, a base de assembleias sindicais, plenárias, palestras e congressos, o que alarmou tanto as classes detentoras que estas substituíram sua democracia coronelista [em espanhol, caciquista; cf. nota n°1] pela ditadura militar do general Primo de Rivera. A clandestinidade arruinou as possibilidades do sindicalismo revolucionário e arrastou seus dirigentes ao terreno das conspirações políticas e do possibilismo. A CNT entrou nela dividida entre moderados e revolucionários, para não pretender mais do que ser bucha de canhão em uma coalizão de partidos e personalidades opostas à ditadura e à monarquia, que abandonadas por seus aliados, caíram. A Segunda República não tratou bem os trabalhadores. A posição a respeito da República e a seu sistema parlamentar dividiu os anarcossindicalistas entre partidários de uma linha insurrecional e partidários da permanência dentro da legalidade republicana. Para os segundos, o abstencionismo, as alianças políticas ou inclusive a participação institucional eram questões táticas, não princípios. Enquanto isso, o avanço do proletariado tinha dividido a burguesia em duas metades opostas: uma, reformista, representada por partidos republicanos, e outra, militarista e clerical, representada pelo partido radical e pela direita. Quando a aliança direitista subiu ao poder – graças a umas eleições nas que as mulheres votavam pela primeira vez – teve de se enfrentar duas tentativas de insurreição, que terminaram enchendo as prisões de operários. Os anarquistas tiveram que atar novamente relações com seus inimigos de ontem, a burguesia republicana, parar separar do poder a outros muito piores, a burguesia fascista. Então renunciaram ao seu tradicional abstencionismo, e, embora não hajam convocado o voto em fevereiro de 1936, tampouco convocaram a abstenção. Entre os anarquistas se impunha uma tendência revolucionária que considerava a participação eleitoral como uma tática destinada a resistir ao fascismo. Durruti o expressou claramente com a seguinte instrução: “estamos diante da revolução ou da guerra civil. O operário que não votar e ficar também em sua casa, será outro contrarrevolucionário”.

A questão principal não era o temido triunfo da direita, mas sim o fracasso eleitoral que impulsionaria o golpe de estado. Para Durruti, o triunfo eleitoral dos socialistas e republicanos permitia ganhar tempo, mas somente um movimento revolucionário poderia detê-las de fato: “O fascismo, ou Revolução Social”, tal era sua conclusão. Como tanto a sublevação militar como a revolução social triunfaram meio a meio e se desencadeou uma guerra civil ficando o proletariado isolado internacionalmente, o “antifascismo” deixou de ser uma tática antiburguesa para acontecer colaboracionismo de classes. O Estado, o Governo, a Nação, as instituições democráticas, as leis, os partidos, a própria burguesia, foram valorados de modo diferente como habitualmente o haviam sido. O anarquismo saiu profundamente alterado da guerra civil e nunca se recompôs desde então.

O sistema parlamentar voltou à Espanha em 1977 como prolongamento da ditadura franquista. A vontade popular só podia se formular em torno da democracia proletária das assembleias. Unicamente o proletariado constituído politicamente como classe em coordenações ou conselhos operários podia encarnar o interesse da imensa maioria. Mas quem realmente se constituiu como nação, como “povoado”, foi a burguesia franquista. Longe de dissolver as instituições fascistas, pactuou a desativação do movimento operário em troca de um espaço político para a oposição. O exílio pôde regressar sem compensações, sequer morais: a oposição tinha assinado também um pacto de silêncio: o esquecimento do genocídio do pós-guerra civil e dos anos de perseguições e sofrimentos. O franquismo anistiado legalizou os partidos e sindicatos e convocou eleições, livrando-se de cadáveres como As Cortes, a CNS ou o Movimento Nacional, mas guardou íntegro seu aparato, que se transformou no aparato da nova “democracia”. A polícia, a Justiça, a Monarquia, a guarda civil, o Exército, os deputados, os governos civis e militares, as capitanias, a diplomacia, a administração, os serviços secretos…; tudo, absolutamente tudo, permaneceu intocável. Nem as eleições, nem o processo constituinte nascido delas afetaram à burocracia estatal ou à burguesia. Um partido nascido do franquismo, a UCD, comandou o processo de “transição” – ou acordou a “reforma” – em suma, o sobrevir democrático da ditadura, auxiliado pela oposição: esse foi o “contrato social” da democracia espanhola. O advento da “democracia” – as eleições municipais, as duas câmaras, o sindicalismo reformista, os Pactos da Moncloa, a constituição, os estatutos de autonomia – foi uma sinistra comédia que teve como preço a liquidação da democracia socialista esboçada pelos trabalhadores. Representou-se quando o sistema parlamentar no mundo subsistia como caricatura. O Parlamentarismo espanhol teve todas as misérias dos demais e nenhuma de suas glórias. Todos os partidos eram partidos de ordem burguesa. Votar significou em seu primeiro momento adoecer voluntariamente de amnésia e colaborar com a farsa, legitimá-la, sujar-se com o sangue dos mortos que até o fim acompanharam o franquismo. O anarquismo precisava de uma revisão a fundo de sua experiência que queria passar a borracha naquelas datas cruciais. Ao não o fazer, não pôde renovar sua crítica, nem tornar concreta uma tática, e não influenciou nos acontecimentos. Acabou sem se inteirar de nada, convertido numa ideologia autista e contemplativa, apoiada em um relato sem contradições de um passado histórico mutilado. Os efeitos foram paralizadores.

A transformação da classe operária em massa sem classe acabou com a possibilidade de que ela mesma pudesse alçar-se como representante do interesse geral e encarnar a vontade popular nas formas da democracia direta que tinha conseguido pôr de pé nas fábricas e nos bairros. O reino indiscutível do capital transformou em pouco tempo a sociedade graças a um desenvolvimento acelerado da tecnologia. As características próprias das massas, como a atomização, a movimentação frenética, o consumismo e o confinamento na vida privada, se acentuaram na sociedade tecnológica, eliminando os restos de sociabilidade e potenciando o controle social totalitário. Ao ganhar preponderância o mercado mundial sobre os Estados, os parlamentos perderam o escasso poder que conservavam. Nem sequer serviam para formular o interesse específico da classe dominante; este se formava diretamente nas instituições mundiais do mercado capitalista. A maioria parlamentar de tal ou qual partido podia introduzir mudanças no espetáculo político, mas na verdade essas mudanças afetavam o poder real. Os aspectos técnicos do parlamentarismo – a campanha, a recontagem de votos, os debates televisivos, as votações nas câmaras, as moções, as comissões etc. – foram conservados, mas o que progredia era o monólogo da dominação, a tecnovigilância, a erosão do direito, a criminalização da dissidência e a população carcerária. Nesse momento se concluía um ciclo: os partidos deixavam de representar opções distintas da mesma ordem para não representar mais do que interesses particulares e de particulares, o que bastaria para explicar a extensão do fenômeno da corrupção política. Por sua parte, o sistema parlamentar deixava de se diferenciar da ditadura fascista. Fascismo tão suave como se queira dizer, fascismo tecnológico, mas fascismo. Na etapa globalizadora as liberdades aparentes pouco a pouco se afogam num estado de exceção e o estado tecno-democrático se dirige para o Estado penal. A política do ano 200 é a do “panóptico” de Bentham ou a do “Big brother”, o Grande Irmão do qual falava Orwell. Nestas circunstâncias a abstenção é mero reflexo da dignidade dos oprimidos. As razões táticas do tipo “para que não ganhe a direita” não atrasam a marcha do totalitarismo, ou como sempre se disse, do “fascismo”, mas sim contribuem com ela. Tal como estamos agora, quando dizem “cidadão”, é preciso entender “fascista”, pois quem acredita nas instituições, confia no novo totalitarismo. A cidadania satisfeita é a base do fascismo moderno. Não há direita nem esquerda porque não há política. Os assuntos do poder se resolvem em outra parte, são extraparlamentares. A luta social também o será.

Aqueles núcleos de discussão que sobrevivem ou se organizam têm sobre suas costas a missão de reconstruir retalhos de vida pública e de democracia direta dentro de uma sociedade massificada que não sejam efêmeros experimentos. E a partir deles forjar opiniões, discutir, informar, instruir, enfim, ligar à memória esquecida e às tradições perdidas de luta. É o conhecimento com que se terá de enfrentar à classe dominante e seu totalitarismo tecnófilo. Saberão interpretar as questões tecnológicas como problemas políticos e sociais da maior magnitude, pois lutam contra um regime totalitário fascista com roupagem liberal e nos sistemas desse tipo as verdadeiras questões aparecem como se fossem problemas técnicos. “A tecnologia é o futuro”, dizem os servos. O anarquismo, se souber escapar das armadilhas da ideologia, será o instrumento teórico mais adequado para forjar uma crítica radical da sociedade, porque é o único ideário que insistiu na democracia direta como fórmula emancipadora. Enquanto que as teorias comunistas puseram em destaque a igualdade como condição necessária da liberdade humana, sem que a travessia por fases autoritárias as afetasse, em troca, o anarquismo proclamou que sem liberdade não pode ter igualdade, e, por conseguinte, o caminho da emancipação estará fecundado por ela.

A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

ethos

Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.

O que é amar, por Bakunin

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POSTADO EM: Diário da LiberdadePimenta Negra (26 de agosto de 2010)

Carta de Bakunin ao irmão Paulo ( 29 de Março de 1845)


Continuo a ser eu próprio, como antes, inimigo declarado da realidade existente, só que com uma diferença: eu parei de ser um teórico, eu venci, enfim, em mim, a metafísica e a filosofia, e entreguei-me inteiramente, com toda a minha alma, ao mundo prático, ao mundo dos factos reais.

Acredite em mim, amigo, a vida é bela; agora tenho pleno direito de dizer isto porque parei há muito tempo de olhá-la através das construções teóricas e de conhecê-la somente em fantasia, pois experimentei efectivamente muitas das suas amarguras, sofri muito e entreguei-me frequentemente ao desespero.

Eu amo, Paulo, amo apaixonadamente: não sei se posso ser amado como gostaria que fosse, porém não me desespero; sei, pelo menos, que tem muito simpatia por mim; devo e quero merecer o amor daquela a quem amo, amando-a religiosamente, ou seja, activamente; ela está submetida à mais terrível e à mais infame escravidão e devo libertá-la combatendo os seus opressores e incendiando no seu coração o sentimento da sua própria dignidade, suscitando nela o amor e a necessidade da liberdade, os instintos da rebeldia e da independência, fazendo-lhe recordar a sensação da sua força e dos seus direitos.

Amar é querer a liberdade, a completa independência do outro; o primeiro acto do verdadeiro amor é a emancipação completa do objeto que se ama; não se pode amar verdadeiramente a não ser alguém perfeitamente livre, independente, não só de todos os demais, mas também e, sobretudo, daquele de quem é amado e a quem ama. 

Esta é a profissão da minha fé política, social e religiosa, aqui está o sentido íntimo, não só dos meus actos e das minhas tendências políticas, mas também, tanto quanto me é possível, da minha existência particular e individual; porque o tempo em que poderiam ser separados estes dois géneros de acção está muito longe da gente; agora o homem quer a liberdade em todas as acepções e em todas as aplicações desta palavra, ou então não a quer de modo algum; querer a dependência daquele a quem se ama é amar uma coisa e não um ser humano, porque o que distingue o ser humano das coisas é a liberdade; e se o amor implicar também a dependência, é o mais perigoso e infame do mundo porque é então uma fonte inesgotável de escravidão e de embrutecimento para toda a humanidade. 

Tudo que emancipa os homens, tudo que, ao fazê-los voltar a si mesmos, suscita neles o princípio da sua vida própria, da sua actividade original e realmente independente, tudo o que lhes dá força para serem eles mesmos, é verdade; tudo o resto é falso, liberticida, absurdo. Emancipar o homem, esta é a única influência legítima e bem-feitora. 

Abaixo todos os dogmas religiosos e filosóficos – que não são mais que mentiras; a verdade não é uma teoria, mas sim um facto; a vida é a comunidade de homens livres e independentes, é a santa unidade do amor que brota das profundidades misteriosas e infinitas da liberdade individual.

Nota biográfica:

Mikhail Bakunin (1814-1876), de origem aristocrática, que percorreu toda a Europa como activista revolucionário e exilado político, foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Trabalhadores, também conhecida por I Internacional, sendo uma das figuras mais importantes do movimento e do pensamento anarquista. Da sua bibliogarfia destaca-se o livro Deus e o Estado.

A carta reproduzida acima tem data de 29 de Março de 1845 e foi enviada de Paris por Bakunin ao seu irmão Paulo.

 

Programa e Objetivo da Organização Secreta Revolucionária Irmandade Internacional

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Mikhail Bakunin

Fonte: Protopia.


*Programa elaborado clandestinamente por Mickail Bakunin em outono de 1868. Tradução de Zilá Bernd.


A Associação Irmandade Internacional quer a revolução universal, social, filosófica, econômica e política ao mesmo tempo, para que da ordem atual das coisas, fundada sobre a propriedade, a dominação e o princípio de autoridade quer religiosa, quer metafísica e burguesamente doutrinária, quer até mesmo jacobinamente revolucionária, não sobre em toda Europa num primeiro momento, e depois no resto do mundo, pedra sobre pedra. Ao grito de paz aos trabalhadores, liberdade a todos os oprimidos e morte aos dominadores, exploradores e tutores de qualquer espécie, queremos destruir todos os Estados e todas as igrejas, com todas as suas instituições e suas leis religiosas, políticas, jurídicas, financeira, policiais, universitárias, econômicas e sociais para que todos estes milhões de pobres seres humanos escravizados, atormentados, explorados, libertos de todos os diretores e benfeitores oficiais e oficiosos, associações e indivíduos, respirem enfim em completa liberdade.


Convencidos de que o mal individual e social reside muito menos nos indivíduos do que na organização das coisas e nas posições sociais, nós seremos humanos tanto por sentimento de justiça quanto por cálculo de utilidade, e destruiremos sem piedade as posições e as coisas a fim de poder, sem nenhum perigo para a revolução, poupar os homens. Negamos o livre-arbítrio e o pretenso direito da sociedade de punir. A própria justiça tomada no seu sentido mais humano e mais amplo, é apenas uma idéia, por assim dizer, negativa e de transição; ela coloca o problemas social mas não o resolve, indicando apenas o único caminho possível para a emancipação, isto é, de humanização da sociedade pela liberdade na igualdade; a posição positiva só poderá ser dada pela organização cada vez mais racional da sociedade. Esta solução tão desejada, ideal de todos nós, é a liberdade, a moralidade, a inteligência e o bem-estar de cada um pela solidariedade de todos, a fraternidade humana.


Todo o indivíduo humano é o produto involuntário de um meio natural e social no seio do qual nasceu, desenvolveu-se e do qual continua a sofrer influência. As três causas de toda a imoralidade humana são: a desigualdade tanto política quanto econômica e social; a ignorância que é seu resultado natural e sua conseqüência necessária: a escravidão.


A organização da sociedade sendo sempre e em todos os lugares a única causa dos crimes cometidos pelos homens, há hipocrisia ou absurdo evidente da parte da sociedade em punir os criminosos, um vez que toda a punição supõe a culpa e os criminosos não são nunca culpados. A teoria da culpa e da punição surge da teologia, isto é, do casamento de absurdo com a hipocrisia religiosa. O único objetivo que se pode reconhecer à sociedade, em seu estado atual de transição, é o direito natural de assassinar os criminosos produzidos por ela mesma no interesse de sua própria defesa e não a de julgá-los e condená-los. Este não será propriamente um direito, na acepção estrita do termo, será antes um fato natural, aflitivo mas inevitável, signo e produto da impotência e da estupidez da sociedade atual: e quanto mais a sociedade souber evitar de utilizá-lo, mais ela estará próxima de sua real emancipação. Todos os revolucionários, os oprimidos, os sofredores, vítimas da atual organização da sociedade e cujos corações estão naturalmente cheios de vingança e de ódio, devem lembrar-se de que os reis, os opressores, os exploradores de toda espécie são tão culpados quanto os criminosos saídos da massa popular: eles são malfeitores mas não culpados, pois são, como os criminosos comuns, produtos involuntários da atual organização da sociedade. Não devemos nos espantar se no primeiro momento, o povo rebelado mate muito. Será talvez um infelicidade inevitável, tão fútil quanto os estragos causados por uma tempestade.


Mas este fato natural não será nem moral, nem mesmo útil. A este respeito, a história está cheia de ensinamentos: a terrível guilhotina de 1793 que não pode ser acusada nem de preguiça, nem de lentidão, não chegou a destruir a classe nobre da França. A aristocracia foi se não completamente destruída ao menos profundamente abalada, não pela guilhotina, mas pelo confisco e venda de seus bens. E em geral, pode-se dizer que a carnificina política nunca matou os partidos; mostram-se sobretudo impotentes contra as classes privilegiadas, porque a força reside menos nos homens da que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas, isto é, a instituição do Estado e sua conseqüência assim como sua base natural, a propriedade individual.


Para fazer um revolução radical é preciso, pois, atacar as posições e as coisas, destruir a propriedade e o Estado, assim não se terá a necessidade de destruir os homens, e de condenar-se à reação infalível e inevitável que o massacre dos homens nunca deixou e não deixará nunca de produzir em cada sociedade.


Mas para ter o direito de ser humano para com os homens, sem perigo para a revolução, será preciso ser impiedoso para com as posições e as coisas: será preciso destruir tudo e, principalmente e antes de tudo, a propriedade e seu corolário inevitável: o Estado. Este é o segredo da revolução.


Não é preciso espantar-se se os jacobinos e os blanquistas que se tornaram socialistas antes por necessidade que por convicção, e para quem o socialismo é um meio, não o objetivo da Revolução. Pois eles querem a ditadura, quer dizer, a centralização do Estado e que o Estado os leve por necessidade lógica e inevitável à reconstituição da propriedade, é natural, dizemos nós, que não querendo fazer uma revolução radical contra as coisas, sonhem com uma revolução sanguinária contra os homens. Mas esta revolução sanguinária baseada na construção de um Estado revolucionário, fortemente centralizado, teria como resultado inevitável, como provaremos mais tarde, a ditadura militar com um novo senhor. Logo, o triunfo dos jacobinos e dos blanquistas seria a morte da Revolução.


Somos inimigos naturais destes revolucionários, futuros ditadores, regulamentadores e tutores da revolução, que, antes mesmo que os estados monárquicos, aristocráticos e burgueses atuais sejam destruídos, sonham com a criação de novos Estados revolucionários, tão centralizados e mais despóticos do que os Estados que existem hoje, que possuem uma vocação tão grande para ordem criada por uma autoridade qualquer e um horror tão grande pelo que lhes parece desordem e que nada mais é do que a franca e natural expressão da vida popular, que, antes mesmo que uma boa e saudável desordem se produza pela revolução, sonham já com o fim e o cerceamento pela ação de um autoridade qualquer que só terá o nome da revolução, mas que efetivamente nada mais será do que uma nova reação pois será uma outra condenação das massas populares, governadas por decretos, à obediência, à imobilidade, à morte, isto é, à escravidão e à exploração por uma nova aristocracia pouco revolucionária.


Compreendemos a revolução no sentido do desencadeamento do que se chama hoje de más paixões e da destruição do que da mesma língua se chama “ordem pública”.


Não tememos, invocamos a anarquia, convencido de que esta anarquia, ou melhor, da manifestação completa da vida popular desencadeada, deve sair a liberdade, a igualdade, a justiça, a ordem nova, e a própria força da revolução contra a reação. Esta vida nova, a revolução popular, não tardará sem duvida a organizar-se, mas criará sua organização revolucionária de baixo para cima e da circunferência para o centro, conforme o princípio de liberdade, e não de cima para baixo nem do centro para a circunferência conforme a moda da autoridade, pois pouco importa se esta autoridade se chama Igreja, Monarquia, Estado Constitucional, República burguesa ou até mesmo Ditadura revolucionária. Detestamos e rejeitamos todos da mesma forma como fontes infalíveis de exploração e de despotismo.


A revolução tal como a entendemos deverá, desde o primeiro dia destruir radical e completamente o Estado. As conseqüências naturais desta destruição serão:

  • A bancarrota do Estado;

  • A cessação do pagamento das dívidas privadas pela intervenção do Estado, deixando a cada devedor o direito de pagar as suas, se quiser;

  • A cessação dos pagamentos de qualquer imposto e do adiantamento de todas as contribuições, sejam diretas ou indiretas;

  • A dissolução do exército, da magistratura, da burocracia, da polícia e do clero;

  • A abolição da justiça oficial, a suspensão de tudo o que juridicamente se chamava direito, e o exercício desses direitos;

  • Por conseqüência, a abolição do auto-de-fé de todos os títulos de propriedade, formais de herança, de venda, de doação, de todos os processos, de toda a papelada jurídica e civil, em uma palavra. Em todo o lugar e em todas as coisas o fato revolucionário, em vez do direito criado e garantido pelo Estado;

  • O confisco de todos os capitais produtivos e instrumentos de trabalho em proveito da associação de trabalhadores que deverão produzi-los coletivamente;

  • O confisco de todas as propriedades da Igreja e do Estado assim como dos metais preciosos dos indivíduos em benefício da Aliança Federativa de todas as associações operárias, Aliança que constituirá a comuna. Em troca dos bens confiscados, a Comuna dará o estritamente necessário à todos os indivíduos que foram despojados, que poderão mais tarde, com seu próprio trabalho ganhar mais se puderem e se quiserem.


Para a organização da Comuna: a federação das barricadas permanentes e a função de um conselho revolucionário da Comuna pela delegação de uma ou duas pessoas de cada barricada, uma por rua ou por bairro, delegados investidos de mandatos imperativos, sempre responsáveis e sempre revogáveis. O Conselho comunal assim organizado poderá escolher, entre os seus, comitês executivos separados por cada ramo da administração revolucionária da Comuna.


Declaração da capital insurgida e organizada em Comuna que, depois de ter destruído o Estado autoritário e tutelar, o que ela tinha o direito de fazer porque era escrava como todas as outras localidades, renuncia a seu direito, ou melhor, a qualquer pretensão de governar, de impor-se às províncias.


Chamado a todas as províncias, comunas e associações, convidando a todos a seguirem o exemplo dado pela capital, de organizar-se primeiro revolucionariamente e, após, delegar, em um local convencionado de reunião, seus delegados, todos investidos de mandatos imperativos, responsáveis e revogáveis, para constituir a federação das associações, comunas e províncias insurgidas em nome dos mesmos princípios, e para organizar uma força revolucionária capaz de triunfar sobre a reação. Envio não de comissários revolucionários oficiais com faixas distintivas, mas de propagadores revolucionários em todas as províncias e comunas, sobretudo entre os camponeses que não poderão revoltar-se nem por princípios, nem pelos decretos de uma ditadura qualquer, mas somente pelo próprio fato revolucionário, quer dizer, pelas conseqüências que produzirá infalivelmente em todas as comunas a cessação completa da vida jurídica, oficial do Estado.


Abolição do Estado nacional ainda no sentido de todo o país estrangeiro, província, comuna, associação ou até indivíduos isolados, que se revoltaram em nome do mesmo princípio, sejam recebidos na federação revolucionária independente das fronteiras atuais dos Estados, embora pertencendo a sistemas políticos ou nacionais diferentes, e que as próprias províncias, comunas, associações, indivíduos que tomarem partido da reação estarão excluídos. É, pois pelo próprio fato da eclosão e da organização da revolução com vistas à defesa mútua dos países insurgidos que a universalidade da revolução, baseada na abolição das fronteiras e na ruína dos Estados, triunfará.


Não pode haver revolução política triunfante, a menos que a revolução política se transforme em revolução social, que a revolução nacional precisamente por seu caráter radicalmente socialista e destrutivo do Estado se transforme em revolução universal.


A revolução devendo fazer-se, em toda a parte, pelo povo, e a suprema direção devendo estar sempre no povo organizado em federação livre de associações agrícolas e industriais, organizando-se de baixo para cima por meio da delegação revolucionária abrangendo todos os países insurrectos em nome dos mesmos princípios independentemente das velhas fronteiras e das diferenças de nacionalidade, terá por objetivo a administração dos serviços públicos e não o governo dos povos. A aliança da revolução universal contra a aliança de todas as reações será a nova pátria.


Esta organização exclui qualquer idéia de ditadura e de poder dirigente tutelar. Mas, para o próprio estabelecimento desta aliança revolucionária, e para o triunfo da revolução contra a reação, é necessário que em meio à anarquia popular que constituirá a própria vida e toda a energia da revolução, a unidade de pensamento e de ação revolucionária encontre um órgão. Este órgão deve ser a Associação Secreta e Universal Irmandade Internacional.


Esta associação parte da convicção de que as revoluções nunca são feitas nem pelos indivíduos nem mesmo pelas sociedades secretas. Elas se fazem por si próprias, produzidas pela força das coisas, pelo movimento dos acontecimentos e dos fatos. Elas se preparam durante muito tempo na profundeza da consciência instintiva das massas populares, depois explodem, suscitadas aparentemente por causas fúteis. Tudo o que um sociedade organizada pode fazer é, primeiramente, ajudar o nascimento de uma revolução difundindo entre as massas idéias correspondentes aos instintos das massas de organizar, não o exército da revolução – o exército deve ser sempre o povo – mas uma espécie estado-maior revolucionário composto de indivíduos dedicados, enérgicos, inteligentes e, sobretudo, amigos sinceros, e não ambiciosos nem vaidosos, do povo, capaz de servir de intermediário entre a idéia revolucionária e os instintos populares.


O números destes indivíduos não deve, portanto, ser enorme. Para a organização internacional em toda a Europa, cem revolucionários forte e seriamente aliados, bastam. Duas ou três centenas de revolucionários bastarão para a organização do maior país.


Mickail Bakunin, outono de 1868

Este texto foi originalmente publicado por Biblioteca Virtual Revolucionária.