Anarco-Primitivismo

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Fonte: Epifenômenos

Por John Zerzan
 
 
 
 
Uma mudança é definitivamente essencial para o que a filosofia da anarquia significa. Em paises como Inglaterra, França e Turquia assim como nos Estados Unidos, existe um crescente interesse em o que é chamado anarco-primitivismo. Publicações americanas como por exemplo, Anarchy, Fifth State e Feral refletem esta mudança. Assim como Green Anarchist e Do or Die! na Inglaterra.
 
Aqui está um olhar, de uma perspectiva Americana, sobre o movimento.
 
1. Existe uma profunda crise em todos os níveis; individual, social, ambiental. O câncer do capitalismo tecnológico esta se expandindo com um impacto devastador.
 
2 . Liberalismo, esquerdismo, pacifismo são faces de uma falida pseudo-oposição a ordem dominante. A única oposição radical é a anarquia.
 
3. A anarquia é cada vez mais militante. Sabemos que aproximações por métodos manipuladores e submissão são falsos. Se nós e o planeta desejamos sobreviver e nos tornar livres, devemos quebrar as regras e revidar.
 
4. A anarquia é cada vez mais primitivista. Sabemos que a tecnologia não é “neutra”, e incorpora o sistema sugador de vidas que esta nos cercando. Civilização, que é baseada na divisão de trabalho e domesticação, também deve ser abolida. Sua lógica desdobradora tem nos levado para a atual condição de vazio, destruição e patologia.
 
5. Nosso objetivo é uma comunidade não-hierárquica e face a face. Todo obstáculo para tal deve ser removido. Um grande desmantelamento é necessário para que a natureza e cada individuo seja honrado. A descentralização completa é o objetivo.
 
6. Tecnologia e capital a uma monocultura massificada que escraviza toda vida. Produção em massa, fabrica, especialização, pensamento separatista é parte do problema, e não da solução.
 
7. Livre associação, autonomia, transparência, espontaneidade, comunhão com a natureza, diversão, criatividade são requisitos para uma existência saudável e livre. Produtividade, hierarquia, coerção, trabalho, consciência de tempo não.
 
8. Se nossa missão e nossa visão parece loucura, quão mais louco é não fazer nada efetivo para impedir a marcha mortal da compra e venda global? No futuro uma criança pode perguntar: “Como você deixou tudo isso chegar a esse ponto? O que você fez para parar?”
 
9. Com a infelicidade difundida está exposto muito das mentiras e condicionamentos que defende este sistema de não futuro, vemos que um diálogo aberto entre todos é essencial.
 
10. Voto, programas de reciclagem, reformismo, e protestos não têm conseguido realmente nada. Tem que haver um rompimento qualitativo com a Mega-maquina.
 
De que lado você está?
 
 
 
John Zerzan – Anarchist Action Collective, PO Box 11703, Eugene, Oregon 97440, USA

Zona Autônoma Permanente

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Por Hakim Bey

Fonte: Protopia

A teoria da Zona Autônoma Temporária (TAZ) busca tratar de situações existentes ou emergentes, mais que do utopismo puro. Por todo o mundo existem pessoas que estão deixando ou “desaparecendo” da Grade[1] da Alienação e buscando formas de restaurar o contato humano. Um exemplo interessante disto – no nível da “cultura popular urbana” – pode ser encontrado na proliferação de redes e conferências vinculadas a passatempos. Recentemente descobri zines destes grupos, Joias da Coroa das Altas Ondas[2] (dedicado ao colecionismo de isoladores elétricos de cristal) e uma revista sobre cucurbitologia (A Abóbora). Enormes quantidades de criatividade são dedicadas a estas obsessões. Os diversos encontros periódicos de companheiros-maníacos vêm a ser verdadeiros festivais cara-a-cara (não-mediados) de excentricidade. Não é só a “contra-cultura” quem busca suas zonas autônomas temporárias, seus acampamentos nômades e noites de liberação do consenso. Grupos auto-organizados e autônomos estão brotando entre todas as “classes” e “subculturas”. Vastas extensões do Império Babilônico estão agora vazias, povoadas somente pelos agentes secretos dos Meios de Massas e uns poucos policiais psicóticos.

A teoria da zona autônoma temporária dá conta disto que ESTÁ ACONTECENDO – não estamos falando sobre o que “deveria” ou será – estamos falando de um movimento já existente. Nosso uso de uma série de meios reflexivos e experienciáveis – poesia utópica e crítica paranóica (etc.) pretende ajudar a clarificar este movimento complexo ainda em grande medida não documentado, dar-lhe algum foco teórico e consciência de si mesmo, e sugerir táticas baseadas em estratégias integralmente coerentes – atuar como parteira ou panegírico, e não como “vanguarda”!

Então tivemos que considerar o fato de que nem todas as zonas autônomas existentes são “temporárias”. Algumas são (ao menos nas intenções) mais ou menos “permanentes”. Certas rachaduras no Monolito Babilônico parecem tão vazias que grupos inteiros podem se mudar para elas e lá se instalarem. Certas teorias, como a “permacultura”, têm sido desenvolvidas para lidar com esta situação aumentando as possibilidades. “Vilas”, “comunas”, “comunidades”, incluindo aí “arcologias” e “biosferas” (ou outros modelos de cidade-utopia) estão sendo experimentadas e implementadas. Mesmo nesse contexto a teoria da TAZ pode oferecer algumas ferramentas de pensamento, esclarecimentos e úteis reflexões.

E se tratarmos de uma poética (um “modo de fazer”) e de uma política (uma “forma de viver juntos”) para a TAZ “permanente” (ou ZAP)? O que existe na relação atual entre a temporalidade e a permanência? E como pode a ZAP periodicamente renovar-se com o aspecto festivo da TAZ?

A Questão da Publicidade

Os recentes eventos nos Estados Unidos e na Europa mostraram que os grupos auto-organizados/autônomos levam o temor ao coração do Estado. O MOVE[3] na Philadelphia, os Koreshitas de Waco,[4] os Dreadheads,[5] as Tribos do Arco-iris,[6] os piratas informáticos,[7] os okupas[8] (etc.) têm se tornado alvos do extermínio em vários níveis de intensidade . E ainda outros grupos autônomos seguem desapercebidos, ou pelo menos não são perseguidos. O que faz a diferença? Um fator pode ser o efeito maligno da publicidade ou mediação. A Mídia experimenta uma sede vampírica pela sombra-paixão do “Terrorismo”, o ritual público de expiação, o bode expiatório e sangue sacrificial da Babilônia. Uma vez que qualquer grupo autônomo permite que este “olhar” particular caia sobre ele, a merda bate no ventilador – a Mídia tentará organizar um mini-Armagedom para satisfazer sua viciosa ansiedade por espetáculo e morte.

Na atualidade, a ZAP dá um ótimo alvo, fácil para essa bomba inteligente midiática. Assediado dentro de seu “composto”, o grupo auto-organizado só pode sucumbir a algum tipo de martírio barato predeterminado. Seria presumível que este papel atraia somente aos masoquistas neuróticos??? Em todo caso, a maioria dos grupos desejam viver seu período natural ou suas trajetórias em paz e calma. Uma boa tática aqui pode ser evitar a publicidade da Mídia de Massas como se fosse uma praga. Um pouco de paranóia natural pode ser útil, contanto que não se converta em um fim em si mesma. A gente deve ser astuto para evitar ser apanhado. Um toque de camuflagem, uma aptidão para a invisibilidade, um sentido de tato como tática… poderiam ser tão úteis para uma ZAP como o são para uma TAZ. Humildes sugestões: use somente “mídias íntimas” (zines, rodas de telefones, BBSs[9], rádios livres e mini-FM, TV a cabo de acesso público, etc.); evite atitudes confrontacionistas de macho fanfarão – você não precisa de cinco segundos no telejornal diário (“Polícia derruba Seita”) para dar sentido a sua existência. Nosso slogan poderia ser: “Busque a vida, não um estilo de vida”.

Acesso

As pessoas provavelmente deveriam escolher as pessoas com quem querem viver. As comunas de “participação aberta” acabam invariavelmente atoladas com aproveitadores[10] e patéticos abobados sedentos por sexo. As ZAPs devem eleger mutuamente seus próprios membros – isto não tem nada que ver com “elitismo”. A ZAP pode exercer uma função temporalmente aberta – como abrigar festivais ou compartilhar comida gratuita –, mas não precisa estar permanentemente aberta a qualquer autoproclamado simpatizante que apareça.

A Emergência de uma Economia Alternativa Genuína

Uma vez mais, isto já está acontecendo, mas ainda precisa de uma imensa quantidade de trabalho antes de entrar em foco. As sub-economias do “lavoro nero”[11], as transações livres de taxas, o truque, etc., tendem a ser severamente limitadas e localizadas. As BBSs e outros sistemas de redes podem ser usados para colocar em relação estas economias regionais/marginais (”empresas caseiras”) em uma economia alternativa viável de certa magnitude. “P.M.”[12] delineou já há algum tempo alguma coisa semelhante a isto em “bolo’bolo”[13] – de fato já existe um número de possíveis sistemas, ao menos em teoria. O problema é: como construir uma verdadeira economia alternativa, isto é, uma economia completa sem atrair o Imposto de Renda e outros cães de caça capitalistas? Como posso trocar minhas habilidades como, digamos, escavador de poços ou destilador de álcool, pelos alimentos, livros, abrigo e plantas psicoativas que desejo – sem pagar impostos, bem como sem utilizar nenhum dinheiro forjado pelo Estado? Como posso viver uma vida confortável (inclusive luxuosa) livre de toda interação e transação com o Mundo da Mercadoria? Se tomássemos todas as energias que os esquerdistas colocam em suas manifestações inúteis e toda a energia que os ultra-liberais[14] despendem em seus fúteis joguinhos de terceiro partido, e se nós redirecionássemos toda esta potência para a construção de uma verdadeira economia subterrânea, já teríamos alcançado “a Revolução” há muito tempo atrás.

O “Mundo” Chegou ao Seu Fim em 1972

A efígie frívola do Estado absoluto finalmente veio abaixo em “1989”. A última ideologia, o Capitalismo, não é mais que uma doença de pele do Neolítico muito tardio. É uma máquina-de-desejos que segue funcionando vazia. Tenho a esperança de vê-lo desaparecer ainda durante a minha vida, como uma das paisagens mentais de Dali[15]. E quero ter algum lugar para onde “ir” quando a merda toda vier abaixo. É claro que a morte do capitalismo não implica necessariamente na destruição ao estilo Godzilla de toda cultura humana; este cenário é meramente uma imagem de terror propagandeada pelo próprio capitalismo. É claro que o cadáver sonolento terá contrações e espasmos violentos antes que o rigor mortis se estabeleça – e Nova Iorque ou Los Angeles podem não ser os locais mais inteligentes para se esperar pelo fim da tempestade. (E a tempestade pode já ter se iniciado). [Por outro lado Nova Iorque e Los Angeles podem não ser os piores lugares para se criar o Mundo Novo; alguém poderia imaginar bairros inteiros ocupados, gangues transformadas em Milícias Populares, etc.] Agora, o modo de vida cigano-realidade virtual pode ser uma forma de lidar com o atual processo de fundir-se do Capitalismo Muito Tardio – mas no que me consta, preferiria um belo monastério anarquista em algum lugar – um local típico para que os “eruditos” possam suportar a “Idade das Trevas”[16]. Quanto mais nos organizarmos AGORA neste sentido, menos problemas teremos para enfrentarmos no futuro. Não estou falando de “sobreviver” – não estou interessado na mera sobrevivência. Quero florescer. VOLTEMOS A UTOPIA.

Festivais

A ZAP desempenha uma função vital, como um nodo na rede de TAZs, um ponto de encontro para um círculo amplo de amizades e alianças que podem realmente não viver realmente o tempo todo na “fazenda” ou na “aldeia”. As antigas aldeias celebravam feiras que traziam riqueza para a comunidade, proporcionavam mercados para os viajantes e criavam um tempo/espaço festivo para todos os seus participantes. Hoje em dia o festival está emergindo como uma das formas mais importantes para a própria TAZ, mas ele também pode proporcionar renovação e avivamento para a ZAP. Recordo ter lido em algum site que na Idade Média havia cento e onze dias festivos ao ano; deveríamos tomar isto como nosso “mínimo utópico”[17] e nos esforçarmos para conseguir algo ainda maior.

A Terra Vivente

Acredito que há uma abundância de boas razões egoístas para desejar o “orgânico” (é mais sexy), o “natural” (que é mais gostoso), o “verde” (é mais belo) e o Selvagem[18] (é mais excitante). A Communitas[19] (como denominada por Paul Goodman[20]) e a convivialidade (como chamada por Ivan Illich[21]) são mais prazerosas que seus opostos. A terra vivente não tem porque excluir a cidade orgânica – a pequena mas intensa conglomeração de humanidade dedicada às artes e aos prazeres ligeiramente decadentes de uma civilização expurgada de todo seu gigantismo e solidão forçada – no entanto mesmo aqueles de nós que gostamos das cidades podemos ver motivos imediatos e hedonistas para lutar pelo “meio ambiente”. Somos biófilos militantes. Ecologia profunda, ecologia social, permacultura, tecnologia apropriada… não somos exigentes demais com as ideologias. Que brotem mil flores.

Tipologia da ZAP

Uma “religião esquisita” ou um movimento de arte rebelde pode se tornar um tipo de ZAP não-local, algo como uma rede de hobbies muito intensa e abrangente. A Sociedade Secreta (como a Tong chinesa) também proporciona um modelo para uma ZAP sem limites geográficos. Mas o “cenário do tipo ideal” implica num espaço livre que se estende em um tempo igualmente livre. A essência da ZAP deve ser a intensificação prolongada dos prazeres – e riscos– da TAZ. E a intensificação da ZAP será… a Utopia Agora.

Hakim Bey Zona Autônoma Permanente de DreamTime, Agosto de 1993

Referências

  1. A ideia de grade aqui evocada por Bey relaciona-se à cartografia, faz referência às linhas e paralelos dos mapas, coordenadas polares e geodésicas, latitude e longitude. Todos os espaços e alterações mapeados, estão sob o julgo do poder (N. do T.).
  2. No original Crown Jewels Of The High Wire(N. do T.).
  3. MOVE é uma organização formada na Philadelphia, Pennsylvania em 1972 por John Africa (1931 – 1985) e Donald Glassey (1946). Se organiza na forma de uma rede descentralizada de negros (afro-americanos) cujos membros em sua grande maioria adotaram o sobrenome África, defendendo um estilo de vida de “retorno a natureza” sendo em muitos sentidos contrários à tecnologia. Em 1985 o grupo foi alvo de uma operação de ataque do Departamento de Polícia da Filadélfia. Nesta operação foram mortos 7 de seus membros incluindo seu fundador John Africa. Mumia Abu-Jamal é um dos apoiadores mais ativos do MOVE escrevendo em 1998 de dentro da prisão onde se encontra uma longa carta intitulada ‘Longa Vida a John Africa’! (N. do T.)
  4. Nome dado aos seguidores da seita de David Koresh (1959 – 1993), uma facção davidiana. Em 1993 a ATF e o FBI realizaram um cerco ao centro espiritual koreshita, estes por sua vez responderam ao cerco atirando com suas armas, ao final desta operação estavam mortos 82 membros da seita incluindo o próprio David Koresh. Na época do cerco, Koresh encorajava seus seguidores a pensar neles próprios como “estudiosos dos Sete Selos” mas do que “Davidianos”. Outras facções de Davidianos nunca aceitaram sua liderança.
  5. “Dreadheads” foi um dos termos utilizados pela mídia norteamericana para designar os homens e mulheres que se insurgiram contra a polícia e os símbolos do Capital durante as manifestações contra a OMC em Seattle em 1999, já que a maioria destes possuíam cortes de cabelo afro chamados dreads. Especula-se que muitos deles eram adeptos do anarco-primitivismo influenciados principalmente pelas ideias de John Zerzan (N. do T.).
  6. “Rainbow Tribes” é o nome de uma ampla rede anarco-xamânica que tem entre seus adeptos muitos defensores da ecologia profunda. Cada “tribo” no entanto, possui suas particularidades (N. do T.).
  7. Bey refere-se à pirataria politizada de centenas de grupos e indivíduos localizados principalmente nos países da Europa Oriental. Estes piratas têm como principal ação política o crackeamento e a livre disponibilização de uma infinidade de softwares, livros, filmes e álbuns musicais. No Brasil a pirataria politizada ganhou alguma notoriedade nas ações do Coletivo Sabotagem, um grupo de anarquistas que vem já há algum tempo, contrariando as leis de direitos autorais, disponibilizando livros digitalizados através de seu site na Internet (N. do T.).
  8. Okupas (“Squats”em inglês) é uma prática comum na Europa e Estados Unidos que consiste na ocupação e reforma de construções abandonadas por grupos libertários, transformando-as em locais para moradia, centros culturais e pontos de referência e descanso para viajantes anarquistas, além de abrigarem festivais de música e espaços de exposição. Okupa é também a denominação de pertencimento dos habitantes deste tipo de ocupação (N. do T.).
  9. BBS (acrônimo inglês de bulletin board system) é um sistema informático, um software, que permite a ligação (conexão) via telefone a um sistema através do seu computador e interagir com ele, tal como hoje se faz com a internet. Essas redes se tornaram populares nas décadas de 70 e 80 e podem ser consideradas o início da internet. (N. do T.)
  10. O termo utilizado aqui originalmente é “freeloader”, que significa alguém que, se aproveitando de uma relação igualitária comunal, consome excessivamente mais do que o justo compartilhamento dos recursos (N. do T.).
  11. Do italiano, significa “trabalho negro” e é empregado aqui para definir as muitas formas de trabalho sujo, pesado e mal remunerado que na Europa são geralmente efetuadas por imigrantes ilegais (N. do T.).
  12. P.M. é o pseudônimo utilizado por um autor libertário anônimo nascido na Suíça (N. do T.).
  13. Bolo’bolo é o famoso livro anti-capitalista e autonomista escrito por p.m. e publicado em 1983 em Zürich, pela editora Paranoid City (N. do T.).
  14. No original, “libertarian”. Nos EUA o termo significa ultra-liberal ou (polemicamente) anarco-capitalista. Em termos semânticos “libertarian” pouco tem a ver com a ideia por trás do termo “libertário” nos países de língua latina. Os ultra-liberais (libertarians) defendem o fim do Estado, ou pelo menos a minimização deste, por o considerarem demasiadamente intervencionista na “liberdade de Mercado”, que para eles é a única forma de liberdade realmente verdadeira. Durante os anos de 1980 o Partido Libertário alcançou certa relevância nos EUA, chegando a ser o terceiro em votos, ainda que muito abaixo dos democratas e dos republicanos (N. do T.).
  15. Salvador Dalí (1904 – 1989), pintor expoente do surrealismo, nascido na Espanha (N. do T.).
  16. O termo utilizado originalmente no inglês, ”Dark Ages”, é uma das formas como os expoentes da Idade Moderna chamavam pejorativamente a Idade Média. (N. do T.)
  17. Os “Mínimos Utópicos” propostos por Charles Fourier consistiam em mais comida e sexo que a quantidade desfrutada pelo aristocrata mediano do século XVIII; Buckminster Buller propôs o termo “mínimo nú” como um conceito similar (N. do A.).
  18. No original “Wild(er)ness” abrangendo tanto a ideia de “selvagem”, como a ideia de “Natureza Intocada” (N. do T.).
  19. O título de um dos livros escritos por Paul Goodman e seu irmão Percival Goodman, publicado em 1947 (N. do T.).
  20. Paul Goodman (1911 – 1972), anarquista sociólogo, poeta e escritor nascido nos Estados Unidos. Goodman é atualmente lembrado como o autor do livro Absurdo Crescente (Growing up Absurd) e por sua militância pacifista durante os anos de 1960 tornando-se uma fonte de inspiração para a contracultura daquela época (N. do T.).
  21. Ivan Illich (1926 – 2002), filosofo anarquista nascido na Áustria, autor de uma série de críticas muito bem fundamentadas às instituições centrais da cultura ocidental contemporânea tais como a educação, o trabalho e o desenvolvimento econômico. No início de sua vida, Illich foi padre, mas rompeu com a igreja se tornando um de seus maiores críticos (N. do T.).

Desobediência: A virtude original do homem

FreeHuey[1]

-Oscar Wilde em The Soul of Man Under Socialism, 1891.

Fonte: Aversão ao Estado

Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser lamentadas. Muitas vezes ouvimos que os pobres são gratos à caridade. Alguns o são, sem dúvida, mas os melhores entre eles jamais o serão. São ingratos, descontentes, desobedientes e rebeldes – e têm razão. Consideram que a caridade é uma forma inadequada e ridícula de restituição parcial, uma esmola sentimental, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir gratidão pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar sentados nela e agora começam a percebê-lo. Quando ao descontentamento, qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.

Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. O pregresso é uma conseqüência da desobediência e da rebelião. Muitas vezes elogiamos os pobres por serem econômicos. Mas recomendar aos pobres que poupem é algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que está morrendo de fome a comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar ou fazer greve – o que para muitos é uma forma de roubo.

Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar. Não! Um pobre que é ingrato, descontente, rebelde e que se recusa a poupar terá, provavelmente, uma verdadeira personalidade e uma grande riqueza interior. De qualquer forma, ele representará uma saudável forma de protesto. Quanto aos pobres virtuosos, devemos ter pena deles mas jamais admirá-los. Eles entraram num acordo particular com o inimigo e venderam os seus direitos por um preço muito baixo. Devem ser também extraordinariamente estúpidos. Posso entender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita que ela seja acumulada enquanto for capaz de realizar alguma forma ed atividade intelectual sob tais condições. Mas não consigo entender como alguém que tem uma vida medonha graças a essas leis possa ainda concorda dar com a sua continuidade.

Entretanto, a explicação não é difícil, pelo contrário. A miséria e a pobreza são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralisante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência de seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá-lo e mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas.

O que os patrões dizem sobre os agitadores é totalmente verdadeiro. Os agitadores são um bando de pessoais intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vive e semeiam o descontentamento nele.

É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria. A abolição da escravatura nos EUA não foi uma consequência da ação direta dos escravos nem uma expressão do seu desejo de liberdade. A escravidão foi abolida graças à conduta totalmente ilegal de certos agitadores vindos de Boston e de outros lugares,que não eram escravos, não tinham escravos nem qualquer relação direta com o problema.  Foram eles, sem dúvida que começaram tudo. É curioso observar que dos próprios escravos eles só receberam pouquíssima ajuda material e quase nenhuma solidariedade. E quando a guerra terminou e os escravos descobriram que estavam livres, tão livres que podiam até morrer de fome livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situação.

Para o pensador, o fato mais trágico na Revolução Francesa não foi que Maria Antonieta tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendée tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo.

 

(Nota do Editor: Wilde cometeu um erro comum à sua época ignorando a ação dos próprios escravos como protagonistas de sua libertação. Hoje se sabe na historiografia que houve um feroz protagonismo escravo na obtenção de sua liberdade, atuando desde em  movimentos abolicionistas organizados até promovendo rebeliões e revoltas que constituiam mecanismo de negociação e conflito. Um dos exemplos foram as Ferrovias Subterrâneas, que eram rotas de libertação de escravos que contavam com forte militância de escravos).

Excertos de O Anarquismo frente aos Novos Tempos

Anarquismo-Social-ou-Anarquismo-de-Estilo-De-VidaFonte: Protopia

Por Murray Bookchin

O capitalismo, inevitavelmente por sua própria natureza, utilizará cada progresso técnico com objetivos autoritários e destrutivos.

E quando digo destrutivos, não me refiro só ao destino da humanidade, mas também ao desse mundo natural do qual dependem, para sua sobrevivência, todas as espécies em seu conjunto. Sentido fala-se tanto de bombas ou de antibióticos, de gás venenoso ou de substancias químicas para a agricultura, de radar ou de comunicações telefônicas. As vantagens que a Humanidade pode colher do progresso técnico são tão somente migalhas caídas de um banquete orgiástico de destruição que, só neste século, sacrificou mais vítimas que em qualquer outro período histórico.

Nos parâmetros temporais que definem a unidade de nossa época, o projeto libertador se encontra frente aos problemas típicos de um período de transição: a exigência de trabalhar com estratos sociais em declínio que constituem, todavia, elementos decisivos de mutação social; a exigência de trabalhar com estratos sociais em declínio que constituem, todavia, elementos decisivos de mutação social; a exigência de trabalhar com estratos sociais emergentes que estão convertendo-se em fatores decisivos das mudanças sociais como, por exemplo, os técnicos e profissionais altamente qualificados; a exigência de trabalhar com os oprimidos de sempre, que sempre serão elementos potenciais decisivos de mudança social, como as mulheres e as minorias étnicas; a exigência de trabalhar com os denominados “grupos marginais”, categorias socialmente não bem definidas que podem tornar-se elementos cruciais para a mudança social, como a inteligência radical, que jogou um papel estratégico em todas as situações revolucionárias, e os indivíduos que escolhem estilos e normas de vida cultural e sexual não ortodoxas.

Presumivelmente a tecnologia cibernética, que se encontra apenas em sua infância, converterá em economicamente supérflua a maioria dos norte- americanos que hoje trabalham. Não estou fazendo retórica. Cada década leva em si profundas mudanças técnicas que vão tornando “inúteis” quase todo tipo de trabalho tradicional.

Ainda que alguns milhões de pessoas fiquem de alguma maneira implicadas nestas operações, elas constituirão as “margens” da economia, não o seu núcleo. Devemos enfrentar o fato de que é possível uma tão imponente substituição do trabalho humano, assim como de que é inevitável, se o capitalismo seguir seu curso.

O que significa existencialmente essa ilimitada revolução tecnológica? Significa que o capitalismo deverá enfrentar o problema dos incontáveis milhões de pessoas que, a partir do ponto de vista burguês, não contarão com nenhum posto na sociedade.

Hoje, e nos anos que estão por vir, esse mesmo capitalismo que produziu Hitler é seguramente capaz de produzir instituições que acabem com a população supérflua sem se importar quão numerosa e recalcitrante ela possa ser. Sofreremos qualquer outra estratégia genocida similar a de Hitler? Não excluamos tão facilmente uma “solução” que já tenha sido dada no passado. Os métodos podem ser mais indiretos, como os atuais sistemas chineses de “controle demográfico” ou o escandaloso sistema de esterilização forçada imposto por Indira Gandhi.

A reestruturação do Estado “democrático burguês” esta na ordem do dia em quase todos os paises industrializados do mundo. A única coisa que detém o capitalismo rumo á totalização completa desses países é o enorme peso das tradições que, em todas as partes do ocidente, frustra o poder executivo, e, em particular, a tradição libertária dos Estados Unidos, com sua ênfase sobre os direitos individuais, sobre a autonomia, sobre o controle local, sobre o federalismo.

Na década de 30, era um mundo da extensa família em que várias gerações viviam juntas ou em íntimo contato umas com as outras, preservando a cultura e as tradições de um não-burguês. Era o mundo da “pequena pátria”: a vila, a cidade, o bairro, onde a amizade era íntima e onde existia um espaço público que nutria uma esfera pública e um corpo político que nutria uma esfera pública e um corpo político ativo.

Existiam, no entanto, centros comunitários que contavam com um lugar para a instrução, a conferência, o apoio mútuo, os livros, os períodos, a exposição de “idéias avançadas” e ainda para a ajuda material quando os tempos eram difíceis. Os famosos meetings em uma esquina da rua, onde uma surpreendente variedade de oradores radicais falava a um público cativo,ou no mínimo expectante. Esse fantástico mundo das “caixas de sabão”, era uma fonte de ativo intercambio político, um mundo que habilitava tanto oradores como público na arte da atividade pública. O Estado e sociedade industrial destruíram esse mundo social e político descentralizado. As grandes famílias, ricas em diversidades geracionais e culturais, murcharam para a família nuclear, constituída por dois genitores intercambiáveis e por seus dois ou três filhos intercambiáveis também. Os anciãos foram oportunamente despachados para bairros residenciais, para “cidadãos da terceira idade”, assim como a história e a cultura pré-industrial foram enterradas nos museus, nas academias e nos bancos de dados dos computadores. A venda de alimentos, de artigos domésticos e de vestuário, bem como de diversos instrumentos, que, em um tempo, foi uma atividade muito personalizada, própria de comerciantes locais (muito freqüentemente negócios de gestão familiar) em conexão estreita com os bairros ou com a cidade, é hoje um grande negócio de enormes empresas.

As ruas estão congestionadas de veículos e não de seres humanos e as praças se converteram em estacionamentos e não em lugares aonde as pessoas se reúnam e dialoguem.

As ruas e avenidas dilaceram os centros da cidade e irradiam os bairros com efeitos espantosamente destrutivos para a integridade cultural da comunidade.

O discurso é preferencialmente eletrônico. Debater nas horas mais importantes é reservado a pretensos experts e à estrelas dos meios de comunicação de massa que o fazem com uma passiva insanidade, o que está produzindo uma geração de mudos e de idiotas.

Está surgindo uma geração que não aprecia o pensamento enquanto tal e que tem sido adestrada a não generalizar. A atividade cerebral captura a forma de imagens vulgares idênticas àquelas apresentadas pela televisão e de uma mentalidade (se assim pode-se chamar) reduzida, que “trabalha com freios” antes quantitativos de informação que com conceitos qualitativos. Considero tal desenvolvimento simplesmente aterrador, na medida em que subverte a mente, impedindo a capacidade de imaginar espontaneamente pela alternativa de trabalhar de maneira que contradiga as imagens pré-fabricadas que a indústria publicitária (política e comercial) tende a imprimir no cérebro humano.

As imagens, na realidade, começam a substituir a imaginação, e a figura imposta pelo externo começa a substituir a idéia formada internamente.

Em 1983, quando escrevi Ecologia e Pensamento Revolucionário, recordo que falava do “efeito invernal”, que poderia elevar a temperatura do globo o suficiente para derreter parte das calotas polares em alguns séculos.

Defrontamo-nos não só com uma sociedade moribunda, mas também com um planeta moribundo e ambos sofrem da mesma doença e da mesma causa: nossa mentalidade histórica de domínio, cuja pretensão de “progresso” é hoje em dia uma dramática troça da realidade.

Como podemos, enquanto anarquistas, fazer frente às mudanças radicais no campo técnico, econômico, social e ecológico, das quais falamos até aqui? Quais são as “prioridades programáticas”, qual é a “ordem do dia” do nosso movimento para os anos subseqüentes a que possa compreender nossos esforços a nível internacional, ao lado de nossa oposição ao Estado e ao autoritarismo de todas as formas?

Dos nossos ideais de autogestão, descentralização, federalismo e apoio mútuo têm-se apropriado despudoradamente e sem uma palavra de agradecimento, escritores marxistas.

Nós os anarquistas, tempos sido há muito tempo os progenitores de uma sensibilidade orgânica, naturalista e mutualista da qual se tem apropriado o movimento ecológico, com escassíssimas referências às fontes: o naturalismo de Kropotkin e a ética de Guyau.

Aquilo que unifica o anarquismo do mundo clássico e também do mundo tribal até nossos dias, esta todo nessa idéia: nenhum domínio do homem sobre o homem. Esta postura anti-autoritária é o coração e a alma do anarquismo e sua autodefinição, corpo da idéia e da prática.

Devemos estar prontos para definir as novas questões emergentes, como a ecologia, o feminismo, o racismo, o municipalismo e aqueles movimentos culturais que se ocupam da qualidade de vida no mais amplo sentido do termo, para não falar das tentativas de opor-se à alienação de uma sociedade espiritualmente vazia.

Devemos estar dispostos a sair das velhas trincheiras ideológicas para olhar com honestidade, clareza e inteligência o mundo autoritário que se vai modelando a nossa volta e a tomar nota das tensões que existem entre as tradições utópicas das revoluções democráticas burguesas e a maré ascendente do militarismo e centralismo que ameaça cancelar essas tradições. Podem-se ignorar a política localista, os movimentos democráticos contra as tentativas de incrementar a autoridade do poder executivo? Humanismo anárquico universal.

Palavras como “contracultura”, ou seja, uma reivindicação programática que pode ser orquestrada pela base contra a cúpula, contra o poder estatal centralizado. Não posso chegar aos operários em suas fabricas e sindicatos , porque ambos são escolas de hierarquia e de domínio, mas assim posso chegar a eles – e a muita gente- no meu bairro e ás localidades próximas à minha comunidade. Em Burlington, Vermont, os anarquistas têm sido os primeiros a instituir assembléias de bairro –versão urbana dos meetings citadinos da Nova Inglaterra – que, em essência podem ser instituídas em qualquer parte: Milão, Turim, Veneza, Marselha, Paris, Genebra, Frankfurt, Amsterdã, Londres… O que obstrui seu nascimento não são dificuldades logísticas ou problemas de dimensão demográfica, senão o nível de consciência e não é justamente o problema da consciência – consciência de classe ou consciência libertária – o problema central de todo o projeto libertador?

Dirijo-me a sua fé nos direitos individuais, na descentralização, em uma concepção ativa da cidadania, no apoio mútuo e em sua aversão pela cidadania governamental. Eu não critico em demasia a conjugação liberdade-propriedade.

Lembro-lhe das instituições libertarias típicas de sua tradição revolucionária norte-americana: assembléias de cidadãos, formas associativas confederadas, autonomia municipal, procedimentos democráticos… Meu objetivo é claro: criar, a partir das tradições libertárias norte-americanas, aquelas formas de liberdade que possam opor-se ao crescente poder do Estado e à concentração da autoridade política e econômica. O núcleo central do meu planejamento é tanto municipalista quanto ecológico e contracultural.

Meu programa consiste em criar um poder popular dual, antagônico ao poder estatal que ameaça os resíduos de liberdade do povo um poder popular que reconstitua em forma anárquica, aqueles valores libertários e aqueles elementos utópicos que são o patrimônio mais vital da Revolução Americana.

  • Os excertos acima foram retirados da obra ‘O Anarquismo frente aos Novos Tempos’.

Somos Todos Grupelhos

JL

Felix Guattari

Fonte: Protopia

Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos. É fácil falar, sobretudo em países onde as forças materiais estão cada vez mais na dependência das máquinas técnicas e do desenvolvimento das ciências.


Derrubar o czarismo implicava na ação em massa de dezenas de milhares de explorados e sua mobilização contra a atroz máquina repressiva da sociedade e do Estado russo, era fazer as massas tomarem consciência da sua força irresistível face à fragilidade do inimigo de classe; fragilidade a ser revelada, a ser demonstrada pela prova de forças.


Para nós, nos países “ricos”, as coisas se passam de outro jeito; não é tão óbvio que tenhamos que enfrentar apenas um tigre de papel. O inimigo se infiltrou por toda parte, ele secretou uma imensa interzona pequeno-burguesa para atenuar o quanto for possível os contornos de classe. A própria classe operária está profundamente infiltrada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas… Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático. Primeiro, participação material em escala planetária: as classes operárias dos países economicamente desenvolvidos estão implicadas objetivamente, mesmo que seja só pela diferença crescente de níveis de vida relativos, na exploração internacional dos antigos países coloniais. Depois, participação inconsciente e de tudo quanto é jeito: os trabalhadores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da burguesia – maldição do roubo, da preguiça, da doença, etc. Eles reproduzem, por conta própria, objetos institucionais alienantes, tais como a família conjugal e o que ela implica de repressão intrafamiliar entre os sexos e as faixas etárias, ou então se ligando à pátria com seu gostinho inevitável de racismo (sem falar do regionalismo ou dos particularismos de toda espécie: profissionais, sindicais, esportivos, etc., e de todas as outras barreiras imaginárias que são erguidas artificialmente entre os trabalhadores. Isto fica bastante claro, por exemplo, na organização, em grande escala, do mercado da competição esportiva).


Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do “socialismo” burocrático são corroídas por uma angústia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de auto-sujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. A obtenção deste resultado repousa sobre o desenvolvimento de um antagonismo reforçado entre um ideal imaginário, que inculcamos nos indivíduos por sugestão coletiva, e uma realidade totalmente outra que os espera na esquina. A sugestão audiovisual, os meios de comunicação de massa, fazem milagres! Obtém-se assim uma valorização fervorosa de um mundo imaginário maternal e familiar, entrecortado por valores pretensamente viris, que tendem à negação e ao rebaixamento do sexo feminino, e ainda por cima à promoção de um ideal de amor mítico, uma mágica do conforto e da saúde que mascara urna negação da finitude e da morte. No final das contas, todo um sistema de demanda que perpetua a dependência inconsciente em relação ao sistema de produção; é a técnica do intéressement (2).


O resultado deste trabalho é a produção em série de um indivíduo que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas importantes de sua vida. É completamente desarmado que ele enfrentara a realidade, sozinho, sem recursos, emperrado por toda esta moral e este ideal babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz de se desfazer. Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar no resto… Agora, toda a sua vida ficará envenenada em maior ou menor grau pela incerteza de sua condição em relação aos processos de produção, de distribuição e de consumo, pela preocupação com seu lugar na sociedade, e o de seus próximos. Tudo passa a ser motivo de grilo: um novo nascimento, ou então “a criança não vai muito bem na escola”, ou ainda “os mais grandinhos se enchem e aprontam mil loucuras”; as doenças, os casamentos, a casa, as férias, tudo é motivo de aborrecimento…


Assim, tornou-se inevitável um mínimo de ascensão nos escalões da pirâmide das relações de produção. Não precisa nem fazer um desenho ou uma lição. Diferentemente dos jovens trabalhadores, os militantes de origem estudantil que vão trabalhar na fábrica estão seguros de se virar caso sejam despedidos; queiram ou não, eles não podem escapar à potencialidade que os marca de uma inserção hierárquica “que poderia ser bem melhor”. A verdade dos trabalhadores é uma dependência de fato e quase absoluta em relação à máquina de produção; é o esmagamento do desejo, com exceção de suas formas residuais e “normalizadas”, o desejo bem pensante ou bem militante; ou, então, o refúgio numa droga ou em outra, se não for a piração ou o suicídio! Quem estabelecerá a porcentagem de “acidentes de trabalho” que, em realidade, não eram senão suicídios inconscientes?


O capitalismo pode sempre dar um jeito nas coisas, retoca-las aqui e ali, mas no conjunto e no essencial tudo vai cada vez pior. Daqui a 20 anos alguns dentre nós terão 20 anos a mais, mas a humanidade terá quase duplicado. Se os cálculos dos especialistas no assunto se revelam exatos, a Terra atingirá pelo menos 5 bilhões de habitantes em 1990. Isto deveria colocar no decorrer do processo alguns problemas suplementares! E como nada nem ninguém está em condições de prever ou organizar alguma coisa para acolher estes recém-chegados – à parte alguns porra-loucas nos organismos internacionais, que aliás não resolveram um só problema político importante durante os 25 anos em que estiveram aí instalados -, podemos imaginar que seguramente acontecerá muita coisa nos próximos anos. E de tudo quanto é tipo, revoluções, mas também, sem sombra de dúvida. Umas merdas do tipo fascismo e companhia. E dai o que é que se deve fazer? Esperar e deixar andar? Passar à ação? Tudo bem, mas onde, o quê, como? Mergulhar com tudo, no que der e vier. Mas não é tão simples assim, a resposta a muitos golpes está prevista, organizada, calculada pelas máquinas dos poderes de Estado. Estou convencido de que todas as variações possíveis de um outro Maio de 1968 já foram programadas em IBM. Talvez não na França, porque eles estão fodidos, e ao mesmo tempo bem pagos para saber que este tipo de baboseira não constitui garantia alguma e que não se encontrou ainda nada de sério para substituir os exércitos de tiras e de burocratas. Seja o que for, já está mais do que na hora de os revolucionários reexaminarem seus programas, pois há alguns que começam a caducar. Já está mais do que na hora de abandonar todo e qualquer triunfalismo – note-se o falismo – para se dar conta de que não só estamos na merda até o pescoço, mas que a merda penetra em cada um de nós mesmos, em cada uma de nossas “organizações”.


A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorado: autoridade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá-la a partir do vocabulário de uns e de outros, seu jeito de falar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim! A luta de classe contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou o interior de cada um de nós com seu eu, com o ideal de status que acreditamos ter de adotar para nós mesmos. Já está mais do que na hora de se organizar em todos os níveis para encarar esta luta de classe generalizada. Já é hora de elaborar uma estratégia para cada um destes níveis, pois eles se condicionam mutuamente. De que serviria, por exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização antiautoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos superativos, se eles se comportam com os militantes dos outros grupos, no interior de seu próprio grupo, com seus próximos ou cada um consigo mesmo, como perfeitos canalhas, perfeitos carolas? De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? Os fins políticos são pessoas desencarnadas. Eles acham que se pode e se deve poupar as preocupações neste domínio para mobilizar toda a sua energia em objetivos políticos gerais. Estão muito enganados! Pois na ausência de desejo a energia se auto-consome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia. E pelo tempo que já estão nessa, já podiam ter se dado conta destas coisas por si mesmos!


A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica – a libido – em objetivos de luta social. É fácil reduzir tudo às famosas contradições principais. É demasiadamente abstrato. É até mesmo um meio de defesa, um troço que ajuda a desenvolver phantasias (3) de grupo, estruturas de desconhecimento, um troço de burocratas; se entrincheirar sempre atrás de alguma coisa que está sempre atrás, sempre em outro lugar, sempre mais importante e nunca ao alcance da intervenção imediata dos interessados; é o princípio da “causa justa”, que serve para te obrigar a engolir todas as mesquinharias, as míseras perversões burocráticas, o prazerzinho que se tem em te impor – “pela boa causa” – caras que te enchem o saco, em forçar tua barra para ações puramente sacrificiais e simbólicas, para as quais ninguém está nem aí, a começar pelas próprias massas. Trata-se de uma forma de satisfação sexual desviada de seus objetivos habituais. Este gênero de perversão não teria a menor importância se incidisse em outros objetos que não revolução – e olha que não faltam objetos! O que é chato é que estes monomaníacos da direção revolucionária conseguem, com a cumplicidade inconsciente da “base”, enterrar o investimento militante em impasses particularistas. É meu grupo, é minha tendência, é meu jornal, a gente é quem tem razão, a gente tem a linha da gente, a gente se faz existir se contrapondo às outras linhas, a gente constitui para si uma pequena identidade coletiva encarnada em seu líder local… A gente não se enchia tanto em Maio de 68! Enfim, tudo ocorreu mais ou menos bem até o momento em que os “porta-vozes” disto ou daquilo conseguiram voltar à tona. Como se a voz precisasse de portador. Ela se porta bem sozinha e numa velocidade louca no seio das massas, quando ela é verdadeira. O trabalho dos revolucionários não é ser portador de voz, mandar dizer as coisas, transportar, transferir modelos e imagens; seu trabalho é dizer a verdade lá onde eles estão, nem mais nem menos, sem tirar nem por, sem trapacear. Como reconhecer este trabalho da verdade? É simples, tem um troço infalível: está havendo verdade revolucionária, quando as coisas não te enchem o saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer, correndo até o risco de morte. A verdade, a vimos atuando em Maio de 68; todo mundo a entendia de cara. A verdade não é a teoria nem a organização. É depois dela ter surgido que a teoria e a organização têm de se virar com ela. Elas sempre acabam se situando e recuperando as coisas, mesmo que para isso tenham de deformá-la e mentir. A autocrítica cabe à teoria e à organização e nunca ao desejo.


O que está em questão agora, é o trabalho da verdade e do desejo por toda parte onde pinte encanação, inibição e sufoco. Os grupelhos de fato e de direito, as comunas, os bandos, tudo que pinta no esquerdismo tem de levar um trabalho analítico sobre si mesmo tanto quanto um trabalho político fora. Senão eles correm sempre o risco de sucumbir naquela espécie de mania de hegemonia, mania de grandeza que faz com que alguns sonhem alto e bom som em reconstituir o “partido de Maurice Thorez” ou o de Lenin, de Stalin ou de Trotsky, tão chatos e por fora quanto seus Cristos ou de Gaulles, ou qualquer um desses caras que nunca acabam de morrer.


Cada qual com seu congressinho anual, seu mini-Comitê Central, seu super-birô político, seu secretariado e seu secretário-ge(ne)ral e seus militantes de carreira com seu abono por tempo de serviço, e, na versão trotskista, tudo isso duplicado na escala internacional (congressos mundiais, comitê executivo internacional, seção internacional, etc.).


Por que os grupelhos, ao invés de se comerem entre si, não se multiplicam ao infinito? Cada um com seu grupelho! Em cada fábrica, cada rua, cada escola. Enfim, o reino das comissões de base! Mas grupelhos que aceitassem ser o que são, lá onde são. E, se possível, uma multiplicidade de grupelhos que substituiriam as instituições da burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo, etc. Grupelhos que não temessem, além de seus objetivos de luta revolucionária, se organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam.


Ah, então trata-se de anarquia! Nada de coordenação, nada de centralização, nada de estado-maior… Ao contrário! Tomem o movimento Weathermen nos Estados Unidos: eles estão organizados em tribos, em gangues, etc., mas isto não os impede de se coordenar e muitíssimo bem.


O que é que muda se a questão da coordenação, ao invés de se colocar para indivíduo, se coloca para grupos de base, famílias artificiais, comunas?… O indivíduo tal como foi moldado pela máquina social dominante é demasiado frágil, demasiado exposto às sugestões de toda espécie: droga, medo, família, etc. Num grupo de base, pode-se esperar recuperar um mínimo de identidade coletiva, mas sem megalomania, com um sistema de controle ao alcance da mão; assim, o desejo em questão poderá talvez fazer valer sua palavra, ou estará talvez mais em condições de respeitar seus compromissos militantes. É preciso antes de mais nada acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico, uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contingência, sua finitude e para seus objetivos de luta. O movimento revolucionário deve portanto construir para si uma nova forma de subjetividade que não mais repouse sobre o indivíduo e a família conjugal. A subversão dos modelos abstratos secretados pelo capitalismo, e que continuam caucionados até agora, pela maioria dos teóricos, é um pré-requisito absoluto para o reinvestimento pelas massas de luta revolucionária.


Por enquanto, é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não, quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados.

[editar]NOTAS

1. No original, groupuscule. Corresponde ao “grupelho” no Brasil, nome dado aos grupos de dissidência do partido comunista, da década de 60 – anarquistas, trotskistas, guevaristas, maoístas -, época da desestalinização que o PCF parece ter ignorado. O termo grupelho traz em si um sentido pejorativo, pois desde a perspectiva do PC, perspectiva adotada na época pelos próprios esquerdistas uns contra os outros, ser minoritário era ser facção insignificante, marginal, acometida pela “doença infantil do comunismo”, justificativa suficiente para sua exclusão, como medida sanitária, visão aliás compartilhada pela direita: em junho de 68, de Gaulle, já no controle da situação, através de seu ministro do Interior, proibiu a existência desses grupelhos, baseando-se numa lei da Frente Popular contra as milícias fascistas armadas e paramilitares.

Ora, o autor retoma aqui a própria idéia de grupelho como afirmação de uma posição política. “Somos todos grupelhos”: a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define um grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. É neste devir que a luta se generaliza. “Saúde infantil” do político, que se contrapõe à tendência a generalizar a luta em torno de uma representação totalizadora, sua “doença senil”. Desta perspectiva, tamanho não é documento, e um pequeno grupo também pode ser acometido de “doença senil”.

A noção de grupelho pode ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de “grupo sujeito”, contraposto a “grupo sujeitado” (cf. nota 7 de “A Transversalidade”), à idéia de “agenciamento coletivo de enunciação” e, na década de 70, ao conceito de “molecular”, contraposto a “molar”. (N. do Trad.).

2. O intéressement, pedra de toque da doutrina social do gaullismo, designa uma modalidade de participação dos operários nos lucros da empresa, através de uma remuneração que se acrescenta ao salário fazendo com que o trabalhador se “interesse” pela produtividade da empresa. Esta doutrina, considerada mistificadora pela esquerda francesa, foi por ela amplamente denunciada. (N. do T.).

3. No original alemão Phantasie, traduzido em francês por fantasme. Na tradução de Freud para o português (edição da Standard), optou-se por “fantasia”, de acordo com as traduções inglesa (fantasy ou phantasy, o primeiro consciente e o segundo inconsciente, segundo proposta de Susan Isaacs) e espanhola (fantasia). Preferimos adotar o termo “phantasia”, sugerido na tradução para o português dos Escritos de Lacan (Perspectiva, SP, 1978), que preserva o arcaísmo do termo francês fantasme (cf. nota 14 dos Escritos). (N. do T.).

Tradução de Suely Rolnik

Fontes: GUATTARI, Félix. Revolução Molecular. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 13-19.

Predefinição:Origem-sabotagem

As redes da vida frente à hierarquização social

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Fonte: El Vírus de La Subversion

De Humanizer

Os diferentes conflitos socioambientais locais que enfrentam diversas comunidades frente à expansão de vários projetos capitalistas, como os monocultivos florestais e a indústria mineira, entre muitos outros, são um reflexo de uma constante a nível global (1), que está implicando que nas próximas décadas os limites do capitalismo global chocassem com os limites da biosfera, provocando um longo declive e colapso da civilização tal como a conhecemos hoje, como aponta a documentadíssima obra de Ramón Fernández (2). Neste contexto, historiadores como Murray Bookchin (3) afirmaram que o projeto de hierarquização social, que tem aproximadamente uns cinco mil anos, desde a formação das primeiras cidades-estado e que persiste nas sociedades democráticas contemporâneas implica também na hierarquização da natureza.

Casos bastante ilustrativos são os das comunidades Mapuche ou zonas como Petorca e Caimanes, em que a destruição ecossistêmica contemplou literalmente o sacrifício de comunidades inteiras com seus habitantes diante da grave ruptura nas condições de vida e do esgotamento de recursos hídricos, acompanhada de uma forte repressão policial e diversas estratégias políticas de manipulação. Não se torna talvez exagerado comparar esta situação com a do império Azteca, que sacrificava seres humanos sob a crença de que isso assegurava a continuação dos ciclos naturais, só que neste caso se sacrificam comunidades e ecossistemas para assegurar a continuidade da expansão dos interesses de grupos econômicos, que na prática são o poder ditatorial atrás do teatro de títeres que representa, nesse momento, a democracia.

Diante deste cenário que alguns cientistas propõem serem os primeiros dias de uma sexta extinção (4), é necessário desmontar uma série de mitos referentes à viabilidade da organização social atual frente ao que denominarei em termos genéricos como ciências da vida, que incorpora recentes descobertas da biologia evolucionista, antropologia e neurociências principalmente:

Atualmente, as evidências em termos da evolução substituíram a ideia de competência e sobrevivência do mais apto, da que se desprende como suposta lógica natural da hierarquização, por modelos de integração de sistemas complexos como o de Máximo Sandín (5), a endossimbiose e simbiogênese de Lynn Margulis (6) ou a deriva natural de Francisco Varela (7), que de um modo geral propõe a existência de uma coimplicação e coevolução interdependente entre organismos e o meio; organismos que, além disso, seriam formados pela adesão sucessiva de microorganismos como bactérias e vírus, como fonte de novidade evolutiva em resposta a grandes distúrbios ecossistêmicos, que, por exemplo, deram lugar à súbita aparição da fauna do período câmbrico. Em síntese, neste nível de compreensão da natureza se troca a competência como mecanismo central do fenômeno da vida, pelos fenômenos baseados na cooperação e interdependência.

Estas investigações permitiram determinar que como as espécies não são desassociáveis do ecossistema que as contém, seriam estas as que, mediante sua atividade metabólica, mantêm o conjunto de parâmetros a nível atmosférico, marinho e terrestre que possibilitam a vida, isto é, o planeta constituiria um sistema auto-organizado e autorregulado (8) especialmente por uma rede de microorganismos como bactérias e vírus que habitam o planeta e cuja importância em diversos ecossistemas foi documentada por Margulis e Sandín. Este conjunto é o que se conhece como sistema Gaia e implica na interdependência dos seres vivos e arredor, os que se recriariam mutuamente. Estas descobertas minimizadas em geral em busca de aplicações biotecnológicas de duvidosa efetividade, como o desastre da denominada “revolução verde” na agricultura, necessariamente determinam a reescritura de todos os manuais de economia, como propõe o destacado paleontólogo Niles Eldredge (9), já que embora a terra pode suportar a atividade humana, isto só é possível se se acopla estruturalmente a seus ciclos, diluindo por completo o debate de “progresso” vs algum tipo de primitivismo e propondo a necessidade de uma harmonização, que implica entender o crescimento em termos qualitativos como um índice de um bem-estar básico da população e um decrescimento em termos quantitativo da atividade humana.

Neste ponto vemos como uma sociedade hierarquizada se converte em um obstáculo, tendo em vista a maximização de interesses em grupos econômicos que é salvaguardado através do estado, que age como o guardião desses interesses. Sempre se argumentou que as sociedades sem autoridade desembocariam em um caos, entretanto, os últimos cinco mil anos provam uma extensão das guerras e um colapso ecossistêmico, não só pelo desdobrar da economia de crescimento infinito, mas também dos mecanismos bélicos e de controle social que, obviamente, requerem muita energia também. A pergunta então que precisamos responder é por que tamanha crise não é perceptível e ao mesmo tempo por que esta forma de organização social parece a única possível na imaginação coletiva.

Para tentar resolver este ponto abordaremos como conhecemos o mundo, a partir da obra de Francisco Varela (10), quem descobriu que o processo de conhecer é um fazer e que nossa experiência do mundo surge de pautas recorrentes a nível sensorial e motriz, o que tem um correlato em termos de configurações altamente complexas de redes neuronais que aparecem e desaparecem. O que isso implica: todo sistema hierarquizado condiciona hábitos e maneiras de viver através da administração dos desejos das pessoas ou mediante a coerção, pelo que finalmente programa uma experiência de mundo fragmentária. Simplesmente não sabemos o que acontece porque fica excluído de nosso foco de atenção, que se torna bastante restrito e que gera uma espécie de inércia e um senso comum de conformidade.

Até onde sabemos, a hierarquização social começou após abruptos períodos de crises climática, pelo que diante da incerteza foi mais fácil manipular os fatores antes mencionados, situação na que alguém poderia reconhecer continuidade nas denominadas doutrinas do “shock” que fabricam inimigos internos e externos e permitem desdobrar o controle social, com o que se torna fácil gravar a ideia de apego à autoridade, sobrevivência dos mais aptos e competência; entretanto, o absurdamente hierarquizado destas sociedades, a partir de seus colégios e tiranias familiares patriarcais em diante até o estado e os grupos que monopolizam os recursos para viver, implicam uma homogeneização que conduz a um condicionamento que limita e empobrece a experiência humana, que só pode desembocar em níveis estratosféricos de estupidez, visto que simplesmente não vemos todo o conjunto de fatores que se interrelacionam para formar a vida, se manifestando como uma negação constante da interdependência que descrevemos primeiro a nível ecossistêmico e evolutivo e que agora examinaremos a partir do fator decisivo que nos faz humanos: a empatia.

Em parágrafos anteriores, nos baseando nos trabalhos de Varela, se propôs que a experiência humana é uma espécie de fluxo que emerge de nosso viver, isto é, há uma circularidade entre viver e conhecer e, como isso sempre acontece em relação a outro, a mente e nossos estados afetivos se constituem em um fenômeno coletivo. Esta capacidade emerge na história evolutiva com os mamíferos, especialmente primatas e cetáceos, e, além disso, desembocou na declaração de Cambridge, que reconhece a existência de consciência em animais não-humanos. A empatia permite reconhecer estados afetivos nos outros e no caso dos humanos, dada a complexidade de sua linguagem, permite uma refinação maior, como propuseram primatólogos como Frans De Waal (11), que nos qualifica como símios bipolares capazes de uma grande crueldade e ao mesmo tempo de uma grande compaixão.

Esta capacidade que faz possível a cooperação se encontra inscrita no nível neurobiológico, já que se identificaram grupos neuronais denominados “espelhos” em tais processos e a nível experiencial é a base do que foi definido por anarquistas como Kropotkin como apoio mútuo, ou como solidariedade, por Malatesta. Com isso, a ideia de sociedades horizontais sai da utopia para uma possibilidade concreta da condição humana que outros como o famoso físico David Bohm (12) ou Humberto Maturana (13) propuseram como uma transformação de como dialogar e conversar a partir de outra experiência afetiva, pelo que a transformação da sociedade implicaria uma profunda transformação da experiência de viver em si, dissolvendo os condicionamentos que programa o sistema social hierarquizado, mediante sua observação atenta, o que é proposto na obra de Varela através do enfoque de observação da mente chamado madhyamika e que também se encontra presente na obra do filósofo Jiddu Krishnamurti com sua recusa de qualquer forma de autoridade.

Estas experiências de sociedades horizontais baseadas no apoio mútuo são encontradas durante toda a história da humanidade até hoje, como mostram os trabalhos de Peter Gelderloos (14) e o antropólogo David Graeber (15). As ciências da vida a todo momento estão provando a incompatibilidade de um sistema social hierarquizado baseado na competência e no crescimentos infinito com uma experiência do mundo que seja sã finalmente; os desequilíbrios afetivos se materializam em desequilíbrios sociais e estes em ecossistêmicos como um processo circular de que emerge uma espiral de destrutividade, como se pode ver nos conflitos socioambientais e na desigualdade social, implicando um transtorno em todos os níveis. Creio que existe uma ideia similar na cosmovisão mapuche ao respeito. Geralmente reclamamos das autoridades, mas neste ponto talvez seja bom começar a questionar seriamente se realmente precisamos delas, só a partir daí se pode construir a suficiente autonomia a nível individual e coletivo para ter uma experiência do mundo que realmente valha a pena viver, pois a única transformação radical da humanidade é compreender em sua totalidade a rede da vida em que acontece nossa experiência vivida.

A exposição destas ideias foi deliberadamente sintética, dado seus propósitos divulgativos e pode ser aprofundada amplamente nos documentos que se encontram a seguir.

(1)    Mapa mundial de conflictos socioambientales  http://www.bbc.co.uk/mundo/noticias/2014/03/140319_ciencia_atlas_global_conflictos_ecologicos_np

Mapa local de los conflictos socioambientales http://www.indh.cl/mapa-de-conflictos-socioambientales-en-chile

(2)    Libro “En la espiral de la energía volumen 1 y 2″ de Ramón Fernandezhttp://www.ecologistasenaccion.org/article29055.html

(3)    Resumen del pensamiento de Murray Bookchin http://ceppas.org.gt/article/la-ecologia-social-como-matriz-de-interpretacion/

(4)    http://www.tendencias21.net/Cientificos-alertan-Vivimos-los-primeros-dias-de-la-sexta-extincion-masiva-de-la-Tierra_a35873.html 
http://www.tendencias21.net/Eduardo-Costas-La-especie-humana-sera-de-las-mas-afectadas-por-la-Sexta-Gran-Extincion_a39774.html

(5)    Lamentablemente no dispongo de una edición digital del libro “Pensando la evolución, pensando la vida” pero en la sección artículos del sitio oficial de Máximo Sandín se puede encontrar gran cantidad de información http://somosbacteriasyvirus.com/libros.htmlhttp://somosbacteriasyvirus.com/articulos.html

(6)    Libro “Microcosmos” de Lynn Margulis y Dorion Saganhttp://isfdmacia.zonalibre.org/microcosmos%20Margulis-%20Sagan.pdf

(7)    Libro “De cuerpo presente las ciencias cognitivas y la experiencia humana” de Francisco Varela http://estesis.bligoo.cl/media/users/19/993761/files/231732/88471217-De-Cuerpo-Presente-Varela.pdf

(8)    Análisis de procesos evolutivos de Nereida Melguizohttp://www.somosbacteriasyvirus.com/analisis.pdf

(9)    http://www.lanacion.com.ar/220299-contra-la-extincion-en-curso

(10) De cuerpo presente http://estesis.bligoo.cl/media/users/19/993761/files/231732/88471217-De-Cuerpo-Presente-Varela.pdf  y el fenómeno de la vida de Francisco Varelahttp://cuva.uta.cl/index.php?option=com_k2&view=item&id=1659:francisco-varela-el-fen%C3%B3meno-de-la-vida

(11) Libro “primates y filósofos” de Frans De Waal http://es.scribd.com/doc/235243210/Frans-de-Waal-Primates-y-Filosofos-La-Evolucion-de-La-Moral-Del-Simio-Al-Hombre#scribd

(12) Libro “Sobre el dialogo” de David Bohm http://es.scribd.com/doc/34637104/Bohm-David-on-Dialog

(13) Libro “El árbol del conocimiento” de Humberto Maturana y Francisco Varela http://es.scribd.com/doc/64537164/MATURANA-Y-VARELA-El-Arbol-Del-Conocimiento#scribd

(14) Libro “La anarquía funciona “ Peter Gelderloos http://es.theanarchistlibrary.org/library/peter-gelderloos-la-anarquia-funciona.pdf

(15) Libro “Fragmentos de una antropología anarquista” de David Graeberhttp://www.viruseditorial.net/pdf/Fragmentos_de_antropologia_anarquista.pdf

[Chile] Órgãos de resistência Mapuche realizam três ações incendiárias contra florestais

O povo mapuche nativo da região centro-sul chilena e do sudoeste argentino, teve o reconhecimento de sua autonomia pela Coroa Espanhola em 1641, após muita resistência. No processo de independência e de formação dos estados nacionais do Chile e da Argentina houve a busca de integração cultural e de aproveitamento econômico de seu território (a mesma lógica que se estende até os dias atuais), sem o devido respeito à autonomia mapuche. Desde então, a resistência cultural e a luta pelo controle de suas próprias terras é combatida com forte repressão política. Na década de 90 foi criada a Coordinadora Arauco-Malleco (CAM), responsável pela coordenação da resistência. A organização é classificada como ‘terrorista’ pelo estado chileno e, nos últimos anos, vários de seus integrantes vem sofrendo perseguições políticas, muitos deles presos.
(Introdução do Coletivo Anarquia ou Barbárie).

Fonte da matéria: Unio Mystika, 19 de março de 2015

Mediante um comunicado público enviado ao www.werken.cl, os Órgãos de Resistência Williches da Coordenação Mapuche Arauco Malleco (CAM) assumiram a autoria de três atos de resistência, que afetaram diretamente as florestais que se encontram localizadas em território Mapuche, e além do mais advertem, seguirão com os atos de sabotagem contra as empresas multinacionais que dia a dia destroem o território da nação indígena.
A CAM assume as seguintes ações: o ataque a um acampamento florestal ocupado como base militar no dia 14 de março de 2015 no fundo Lo Suarez da propriedade Florestal Arauco próximo a Lanco, também a queima de maquinários no dia 14 de outubro de 2014 em um prédio da Florestal Arauco próximo a San Juan de la Costa e por último a queima de máquinas florestais em 11 de janeiro de 2015 e a queima de um caminhão em 8 de março de 2014 em um prédio da Florestal Valdivia próximo a Malalhue.
REPRODUZIMOS O COMUNICADO PÚBLICO
Nós, dos Órgãos de Resistência Territorial Williche, declaramos a nosso Povo-Nação Mapuche e a opinião pública internacional o seguinte:
1 – O estado chileno segue considerando nosso território como uma soma de recursos sub-explorados a disposição do capital transnacional. Se multiplicam as florestais, as hidrelétricas, as mineradoras e projetos turísticos levando assim a cabo seu plano de invasão do território Mapuche. Vemos todas estas inversões como um perigo de morte para o ixtrofil mongen, para nosso rakiduam e então para nossa existência como povo.
2 – Devido a isso, os Weichafe decidiram acionar no Willimapu e dentro deste contexto, reivindicamos como O.R.T. Williche as seguintes ações contra as florestais e pela recuperação de nosso território:
– o ataque a um acampamento florestal ocupado como base militar em 14 de março de 2015 no fundo Lo Suarez da propriedade Florestal Arauco, próximo a Lanco.
 
– a queima de maquinários em 13 de outubro de 2014 em um prédio da Florestal Arauco perto de San Juan de la Costa.
– a queima de máquinas florestais em 11 de janeiro de 2015 e a queima de um caminhão em 8 de março de 2014 em um prédio da Florestal Valdivia, próximo a Malalhue.
3 – Não somos nem queremos ser os indígenas do Chile para sermos integramos a um projeto econômico e político que nos considere como uma riqueza étnica do Estado. Chamamos a nossos peñi e lamgen a não baixar os braços depois de séculos de resistência e seguir lutando com dignidade contra a invasão wingka expressando-se hoje através das transnacionais e do Estado chileno: nossa mapu, nosso sangue não estão a venda e não se negociam. Sem sabotagem as empresas que destroem nosso Wallmapu, não haverá autonomia para nosso Povo-Nação.
Fora inversões capitalistas de Wallmapu!
 
Exercitando controle territorial, avançamos em direção a libertação nacional!
 
Liberdade aos presos políticos Mapuche!
 
Marichiweu!
 
O.R.T. Williche.

Yasuní: A Luta Pela Defesa Da Vida

Originalmente publicado por Mª Cruz Tornay, em 18 de fevereiro de 2015, no site Revista Pueblos

As políticas do governo do Equador incorporam como ponto transversal a mudança da matriz produtiva e a transição energética para uma economia pós-petroleira que permita à nação alcançar os princípios do “bom viver” ou ‘sumak kawsay’. Entretanto, o estado pretende conseguir o bem-estar da população através dos recursos obtidos pela exploração petroleira da Amazônia, uma decisão que põe em risco a sobrevivência das populações indígenas e que levou as mulheres amazônicas a protagonizarem a luta pela defesa da vida e do território.

Emma Gascó.

O Parque Nacional do Yasuní se localiza na Amazônia ocidental equatoriana e é um dos ecossistemas com maior bio-diversidade do planeta. Encontra-se situado em um território ancestral do povo waorani e conta com a presença de povos em isolamento voluntário que habitam uma área declarada zona intangível.

Os efeitos que a atividade petroleira havia causado em outros territórios da zona levaram à mobilização a inícios dos anos 90 e, mais adiante, à criação de propostas que protegessem as zonas mais sensíveis da Amazônia, como o Parque Nacional do Yasuní. A denominada Iniciativa Yasuní ITT foi a alternativa idealizada pelas organizações ecologistas para manter sob terra o petróleo cru dos campos petroleiros de Ishpingo, Tambococha e Tiputini (ITT), e desta maneira apostar numa etapa de transição pós-petroleira.

Em sua chegada ao governo, em 2007, o presidente Rafael Correa assumiu de forma oficial a iniciativa ITT e a proposta foi apresentada publicamente à comunidade internacional. O estado equatoriano se comprometia a manter inexploradas de forma indefinida as reservas dos denominado Bloque 43 em troca de receber as doações equivalentes à metade dos lucros que teria recebido o estado pela exploração. Assim se manteriam intactos os mais de oitocentos milhões de barris de petróleo cru estimados da reserva e se evitaria a emissão de quatrocentos e dez milhões de toneladas de CO2.

A proposta defendida pelo governo equatoriano gerou uma grande expectativa a nível internacional, já que de forma inovadora implicava diferentes autores internacionais, públicos e privados, na busca de alternativas ao desenvolvimento extrativista dos combustíveis fósseis e na transição para um novo modelo energético que seja respeitoso com o meio ambiente. Entretanto, enquanto se realizavam campanhas de adesão à iniciativa ITT, o governo trabalhava em um “plano B” que contemplava a exploração do recurso petroleiro em caso de que a comunidade internacional não respondesse ao chamado.

Em agosto de 2013, o presidente da república deu por finalizado o prazo de espera para a captação das doações que confirmassem a viabilidade do “plano A” e anunciou a exploração feita pela empresa estatal Petroamazonas de um milésimo do Parque Nacional do Yasuní. Em seis anos só se tinha conseguido coletar 0,37 por cento dos 3.600 milhões de dólares que teriam evitado a exploração. Rafael Correa qualificou a decisão como a mais difícil de seu mandato, mas como a única via de lucros necessários para acabar com a pobreza do país.

Violência sobre o território e os corpos

Patrícia Gualinga luta há anos pela defesa dos territórios que constituem a Amazônia. Em 2002 era líder da Mulher e a Família do povo sarayaku. Junto a outros membros de sua comunidade, viajou para Costa Rica para processar ao estado equatoriano ante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por permitir e amparar a entrada de empresas petroleiras em seu território. Apesar de que a Corte foi favorável ao povo sarayaku e que o estado teve que pedir perdão, os territórios da Amazônia e a vida das comunidades que a habitam e seguem ameaçadas por projetos extrativos como o do Yasuní.

Depois de anos observando de perto a presença das empresas multinacionais, Patricia tem uma opinião muito clara sobre as consequências do “plano B” do governo: “A vida é incompatível com a extração de petróleo. Os povos em isolamento estão condenados à extinção”. A líder sarayaku se refere às comunidade dos tagaeiri, taromenane e oñamenane que habitam o sul do parque Yasuní que decidiram seu isolamento voluntário; uma situação que as faz vulneráveis em relação às decisões que se tomam no exterior: “Os povos que estão em isolamento não têm voz própria para falar. Sua voz é uma voz silenciosa que está pedindo que os deixem em paz e o governo deveria escutá-la ou se cometeria um etnocídio terrível”.

Patrícia é uma das muitas mulheres amazônicas que assumiram a luta pela defesa do território ao que estão unidas vital e espiritualmente. As mulheres dos povos afetados decidiram sair para apoiar os líderes que estavam sendo ignorado pelo governo e dizer que elas tampouco queriam a presença das multinacionais em seu território.

Se, como afirma patrícia, a vida é incompatível com a extração do petróleo, ainda o é mais para as mulheres que perdem sua autonomia pelo deslocamento das formas de vida tradicionais. Quarenta anos de exploração dos recursos da Amazônia é tempo suficiente para saber o que vem após a chegada das empresas: a militarização do território, a contaminação da água e do ar, o alcoolismo, a violência, a aparição de prostíbulos…

A presença de empresas extrativas implica a masculinização de um território no que se estabelecem relações assimétricas de poder, que começam pela presença das forças de repressão do estado com o fim de proteger o funcionamento da atividade petroleira. A entrada dos rapazes em postos da empresa provoca a perda dos ofícios tradicionais, o reforço das funções de gênero e o incremento das desigualdades entre os homens que recebem um salário e as mulheres que veem aumentada a dependência e as relações de subordinação em relação a seus maridos.

Embora cada projeto de exploração garantiu o uso da última tecnologia, não existem experiências nas que o território não tenha sido afetado de alguma maneira. Só neste ano, a empresa estatal petroamazonas é responsável de 19 vazamentos. A contaminação da água e do ar termina afetando a saúde dos membros da comunidade, que são atendidos pelas mulheres de acordo com as funções de gênero. E também são as mulheres as que devem buscar alimentos quando a chácara fica contaminada pelas águas tóxicas.

Mobilizações contra a extração

O presidente Correa chamou a Cadeia Nacional[1] para comunicar aos cidadãos a decisão tomada acerca do futuro de um dos ecossistemas mais diversos do mundo. As reações contra o “plano B” do governo e em defesa da Amazônia geraram um movimento cidadão que se lançou às ruas sob o nome de Yasunidos e que se transformou em alvo corriqueiro nas sabatinas do presidente.

Gabriela Ruales militava há muito tempo no ativismo ecologista e acabou participando dentro da organização do movimento cidadão Yasunidos. Gaby lembra como as marchas aconteciam cotidianamente, não só em quito, mas também em todas as províncias do país. Manter o nível de mobilização de pessoas que historicamente não tinham estado vinculadas no ativismo se transformou em um desafio que se soube canalizar com a campanha de coleta de assinaturas pela celebração de uma consulta popular que permitisse à população decidir sobre o futuro do Bloque 43.

Depois de seis meses de presença nas ruas, os yasunidos conseguiram recolher 750.000 assinaturas, cifra que superava amplamente as requeridas por lei para ser feita a consulta; mas o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) terminou reconhecendo só 350.000 rubricas em um processo que Gabriela não tem dúvidas de que foi fraudulento por causa do uso de um sistema de verificação não confiável e por causa dos contínuos episódios de abuso de poder para o coletivo cidadão.

O governo lançou duras críticas contra um movimento ecologista que a burocracia considerava alheio à realidade cotidiana que vivem os povos em uma das regiões mais deficientes em serviços básicos. Em todo este processo de desqualificações, as mulheres amazônicas também se organizaram em uma marcha de seus territórios até a capital do país para dar visibilidade a seu repúdio aos ataques aos Yasuní, embora o projeto se justifique pela obtenção de lucros econômicos para acabar com a “miséria” da zona, nas palavras do presidente.

O discurso da pobreza e o bem-estar

Uma vez que fica desestimado um plano que foi qualificado de “ingênuo” pelo presidente, o executivo apresenta o projeto de extração do bloco ITT como a única alternativa viável de lucros para reduzir a desigualdade social e aumentar a infraestrutura das cidades do oriente do país. Concretamente, se anuncia a obtenção de 18 milhões de dólares: os governos locais da Amazônia receberão 2,14 milhões, enquanto que 1,568 milhões se destinarão aos governos autônomos.

Com estes recursos fica garantida a construção, entre outras infraestruturas, das denominadas Escolas do Milênio, criadas para ampliar a cobertura e o acesso à educação e nas que estudam e residem os jovens que não tinham a possibilidade de continuar com seus estudos nas comunidades. Para o governo, projetos como este são parte da construção do sumak kawsay, o bom viver do cosmo-visão andina que está na constituição de 2008.

Mas não todas as comunidades estão de acordo com esta interpretação do pensamento indígena. Para Patricia Gualinga, é uma contradição que se utilize a exploração da natureza como meio para alcançar o sumak kawsay. “Se vê o bem viver no plano material, de forma desconectada do bem viver espiritual e de estar em harmonia com a Mãe Natureza”. Para esta líder sarayaku, a harmonia é impossível desde o momento no qual se fala de exploração petroleira e mineira porque “o sumak kawsay não existe se não se respeita a natureza”.

Patricia sustenta que o discurso sobre a pobreza das comunidades indígenas é uma “teoria racista” de quem chega a seus territórios para lhes dizer o que têm que fazer e decidir o que é o melhor para eles, sem se importar com seu contexto territorial e formas de vida. Como mulher líder de seu povo, sabe que existem carências e que são necessárias algumas infra-estrutura, mas isso não significa que sejam pobres: “o empobrecimento das comunidades chega quando temos que comprar água e comida porque as nossas estão contaminadas”.

Está justificado, então,”sacrificar” uma parte do território para que o resto da população consiga um maior bem-estar? Para as organizações ecologistas, a cifra de um milésimo dada pelo Governo sobre a afetação do parque é enganosa, já que só contempla o desmatamento necessário para levantar a infra-estrutura que exige a exploração do petróleo, mas não leva em consideração o impacto sobre o resto do ecossistema e nem o futuro das comunidades.

O movimento conservacionista se mantém na defesa da Iniciativa Yasuní ITT como meio de obtenção de recursos que permitam o desenvolvimento de fontes de energia renováveis, além do aumento de impostos aos lucros do capital e a economia de gastos governamentais que consideram prescindíveis.

Os povos indígenas contrários à exploração se opõem a um modelo de desenvolvimento extrativista que veem condenado ao fracasso. O povo sarayaku defende o conceito do kawsak sacha, selva viva, uma nova categoria que seja patrimônio da humanidade e que reconheça não só os direitos da natureza, como estabelece a constituição, senão a todos os seres protetores que nela moram, e na que fique excluída a perpetuidade da exploração do petróleo cru.

Para os povos dos territórios afetados, a defesa da vida na Amazônia deve transcender a luta dos povos indígenas e se converter em uma ação coletiva que ponha fim às relações de poder sobre o território e a vida.

NOTAS:

1. No Equador, comunicado oficial de retransmissão obrigatória e imediata para os meios de comunicação.

A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

ethos

Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.

‘Está em curso a mais grave ofensiva aos povos indígenas pós-democratização’, diz ex-presidente da Funai

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Indígenas Munduruku ocupam canteiro de obras da usina de Belo Monte em maio de 2013

Matéria de Ana Aranha | Agência Pública | São Paulo – 28/01/2015

Fonte: Opera Mundi

Maria Augusta Assirati, que deixou o cargo em outubro de 2014, comenta interferência política no órgão: ‘tivemos que descumprir compromisso com os Munduruku porque governo deu prioridade a usina de São Luiz do Tapajós’

Maria Augusta Assirati foi presidente interina da Fundação Nacional do Índio (Funai) por um 1 ano e 4 meses, tempo em que ela diz ter vivido com “grande descontentamento e constrangimento”. Na gestão que menos demarcou terras desde José Sarney, ela aponta a interferência política do governo Dilma Rousseff como a maior responsável pela paralisação do trabalho técnico do órgão indigenista. “A orientação é no sentido de que nenhum processo de demarcação em nenhum estágio, delimitação, declaração, ou homologação, tramite sem a avaliação do Ministério da Justiça e da Casa Civil”.

Na primeira entrevista desde que saiu, em outubro de 2014, ela fala sobre o estopim para o seu pedido de exoneração: uma manobra para licenciar a usina de São Luiz do Tapajós, que pode alagar terra Munduruku. Depois de analisar o caso e se comprometer com os indígenas a publicar o relatório que delimita a terra, Assirati diz que foi obrigada a voltar atrás. “Nós tivemos que descumprir esse compromisso em razão da prioridade que o governo deu ao empreendimento. Isso é grave”.

A ex-presidente da Funai fala sobre como tentou apresentar uma alternativa, propondo que se selecionasse outro local para a obra. Mas o governo não teria considerado a solução satisfatória, pois o setor elétrico indicava que o leilão precisava ser lançado ainda em 2014.

De fato, em setembro, o Ministério de Minas e Energia anunciou o leilão da usina de São Luiz do Tapajós. Mas dias depois teve que adiar para uma data não definida, pois o licenciamento da hidrelétrica ainda não estava concluído. A “culpa” do atraso não foi da Funai ou do Ibama. Faltava a conclusão do Estudo de Componente Indígena, avaliação de impactos que é feita pelo grupo de empresas interessadas em construir a hidrelétrica: Eletrobras, Eletronorte, GDF SUEZ, EDF, Neoenergia, Camargo Corrêa, Endesa Brasil, Cemig e Copel.

Hoje com 38 anos, Assirati é formada em direito e trabalhou em gestões municipais do PT em São Paulo. Foi para Brasília em 2007 para integrar a mesa de negociações com servidores públicos do Ministério do Planejamento. Desde então passou pelo Ministério da Saúde, Justiça e Secretaria-Geral da Presidência, sempre em áreas ligadas à interlocução com movimentos sociais.

Deixou a Funai em 1º de outubro de 2014, nove dias depois de uma tensa reunião com lideranças Munduruku sobre a terra indígena que pode ser alagada pela usina de São Luiz do Tapajós. Nesse encontro, ela disse aos indígenas que não poderia encaminhar a demarcação porque a hidrelétrica é prioridade de outros setores do governo. Hoje vive em Portugal, onde faz um curso de doutorado em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI.

Em setembro, o Ministério de Minas e Energia anunciou o leilão de São Luiz do Tapajós antes que a Funai pudesse dar seu parecer sobre a usina. Como interpretou esse ato?

Como uma completa desconsideração da presença dos indígenas na área de influência do empreendimento e dos seus respectivos direitos, além de uma desconsideração com o trabalho do órgão indigenista.

A Funai fez um parecer técnico apontando a usina como inconstitucional. Por que esse parecer ainda não entrou como documentação do processo de licenciamento?

A Funai não chegou a emitir o parecer sobre a licença previa de Tapajós, mas houve esse documento da equipe técnica. Assim que concluído o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), expusemos nossa posição institucional, que corrobora esse parecer da equipe técnica. O EIA aponta que um dos impactos é a supressão por alagamento de áreas dentro da terra indígena. Como o alagamento foi identificado, o empreendimento dependeria de remoção da comunidade indígena, o que é proibido pela Constituição Federal. No entanto, o Ministério do Planejamento e o Ministério de Minas e Energia alegam que não há terra indígena ali.

Por que o relatório de delimitação da Sawré Muybu, a terra que seria alagada pela usina, nunca foi publicado pela Funai?

O processo foi levado à consideração do Ministério da Justiça e Casa Civil, que, em virtude da usina, acreditam que a demarcação tem que ser discutida mais profundamente e com outros órgãos de governo.

21ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Política Indigenista

Cacique Marcos Xucurú, membro do Conselho Nacional de Política Indigenista, José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, e Assirati durante reunião em outubro de 2013

Em reunião com os munduruku, a senhora revelou que a usina impedia a demarcação e disse que só permanecia no cargo porque acreditava em uma solução para o caso. Mas, nove dias depois, deixou a presidência da Funai. O que esse caso significou para a senhora? Foi o estopim para a sua saída?

Essa reunião foi um momento muito duro para todos nós: para os indígenas, para nós da Funai, e para mim, pessoalmente. Nós, como Funai, havíamos assumido um compromisso com os Munduruku no sentido da publicação do relatório [de delimitação da Sawré Muybu]. E nós tivemos que descumprir esse compromisso em razão da prioridade que o governo deu ao empreendimento. Isso é grave. Uma situação como essa fragiliza a confiança que deve pautar as relações com os indígenas. Eles já foram muito enganados, por mais de 500 anos. Uma relação de confiança não se constrói só com palavras, exige compromisso e coerência. Por isso procurei explicar a eles o que estava acontecendo, dizer como estávamos buscando solucionar essas questões e quais seriam os próximos passos. Mas a solução que, do ponto de vista da Funai, garante o respeito à legislação brasileira e os direitos indígenas daquele povo foi descartada pelo governo naquele momento. Espero que ela possa ser reconsiderada nesse segundo governo Dilma.

Qual foi a solução apresentada pela Funai?

Solicitei que fossem apresentadas alternativas locacionais para a barragem, que o setor elétrico indicasse outros locais possíveis para a construção, onde a comunidade não fosse afetada dessa forma. A aldeia é uma área de habitação permanente daquela comunidade munduruku. Além do grave impacto que isso geraria aos indígenas, há também um entrave jurídico. Adverti sempre que a remoção daquele local é uma situação que o nosso ordenamento jurídico proíbe.

Como a proposta de mudar o lugar da barragem foi recebida?

Não foi considerada como uma solução satisfatória tendo em vista que, segundo o setor elétrico, havia necessidade de realizar o leilão em 2014.

Quem são os representantes do governo federal que defendem o projeto da usina mesmo com o alagamento de uma terra indígena?

É um projeto prioritário do PAC, essas prioridades são definidas junto ao Palácio. Além do setor elétrico, há uma dedicação especial do Ministério do Planejamento. Como é um projeto caro à própria presidenta, vira um projeto prioritário para todo o centro de governo.

Como o governo federal pretende driblar a Constituição?

Como presidenta da Funai quando no governo e como ex-presidenta e cidadã hoje, eu não acho que a Constituição tem que ser driblada. Acho que tem que ser respeitada, e o parágrafo 5º do artigo 231 diz: “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, garantido o retorno imediato logo que cesse o risco”. Essa proibição foi expressamente colocada na Constituição para evitar que qualquer interesse se sobreponha ao direito dos indígenas de viverem em suas terras e impedir que fossem removidos sob quaisquer pretextos, como era permitido antes de 88. Hoje uma remoção forçada é mais difícil, justamente porque há uma proteção normativa.

Como o governo planeja viabilizar a usina apesar desse impedimento constitucional?

O parágrafo 3º do artigo 231 diz que o aproveitamento dos recursos hídricos em terras indígenas só pode ser efetivado com “autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados”. Como não há lei regulamentando isso, há quem ache fundamental a proposição de um projeto de lei dizendo como se dará a exploração desses recursos dentro de terra indígena.

Eu acho que isso vai ser muito prejudicial nesse contexto político em que está em curso a mais grave ofensiva aos povos indígenas pós-democratização. Regulamentar nesse momento é afirmar que os recursos naturais são mais importantes que os próprios indígenas. E pergunto: os povos indígenas serão consultados sobre isso? Terão participação nesse debate? Depois, mesmo que regulamentado esse parágrafo, a vedação do parágrafo 5º continuará existindo e, portanto, proibindo que os Munduruku sejam removidos.

Essa tentativa de mudança é um caso isolado? Como ela se assemelha ao PLP 227 (projeto que regulamenta situações em que não-índios podem explorar terras indígenas)?

Tudo isso vem no bojo dessa ofensiva anti-indígena: PEC 215 [pretendia transferir ao Legislativo a decisão final sobre a demarcação], regulamentação de artigos da Constituição, mudanças no procedimento de demarcação. Quando estava na Funai apresentamos uma nota técnica manifestando nossa posição contrária a esse projeto e as razões. Esse PLP cria situações que reduzem as possibilidades de demarcação de terras. Só por isso já é impróprio.

Há ainda a portaria 303 da Advocacia Geral da União (estende para todas as demarcações as condicionantes criadas em Raposa Serra do Sol, como por exemplo proibir a extensão de terras já demarcadas). Qual o contexto político em que essa norma foi aprovada?

Um dia cheguei para trabalhar e essa portaria estava publicada no Diário Oficial. Não tive acesso a nenhuma informação prévia à aprovação, pois sequer sabia que a AGU tomaria uma medida como essa. Não sei se foi discutida com alguém ou com algum órgão de governo antes da publicação. Ela afeta muito negativamente os direitos territoriais indígenas. Inclusive diz que haveria revisão de processos de demarcação já concluídos. Isso é um absurdo político e jurídico.

O governo Dilma foi o que menos demarcou terras desde José Sarney. Como a senhora viveu isso na presidência da Funai?

Com grande descontentamento e constrangimento. Acho esse número lastimável para um governo que se diz democrático e que teve um importante apoio de setores populares.

Caiu também o número de delimitações de terras indígenas, processo que depende apenas da Funai. Há orientação para que o órgão segure esses processos?

A orientação é no sentido de que nenhum processo de demarcação em nenhum estágio, delimitação, declaração, ou homologação, tramite sem a avaliação do Ministério da Justiça e da Casa Civil. Isso é, nada mais, nesse momento, “depende apenas da Funai”.

O governo Dilma está operando um processo de desconstrução da Funai?

O que sei é que a Funai está sendo desvalorizada e sua autonomia totalmente desconsiderada. Ela precisa ser fortalecida, e ter o mínimo de condições para sua sobrevivência e bom funcionamento. Não tem recebido a atenção que merece do ponto de vista administrativo e político. Não foi realizado ou sequer aprovado um concurso público, o orçamento é insuficiente. Sob o aspecto político-institucional, esse apoio também não vem. A Fundação segue com um dirigente interino enquanto ruralistas afirmam publicamente que os processos da Funai são fraudulentos, o que é uma grande calúnia, e não há defesa por parte de setores importantes do governo.

Em 2013, a então ministra-chefe da Casa Civil Gleisi Hoffmann pediu a suspensão de demarcações com base em estudo da Embrapa. Logo depois o governo anunciou que demarcações seriam submetidas a outros órgãos. O que essa mudança significa?

A Funai já tem a prerrogativa de consultar outros órgãos e já faz isso sempre que necessário. Isso não sou eu que digo, basta olhar os processos: consulta-se o Incra, a Fundação Palmares, o ICMBio, o Ibama, o Iphan. Mas não vejo como a imposição da obrigatoriedade de consultar outros órgãos, como o Ministério da Agricultura, a Embrapa e o Planejamento pode contribuir para concluir um estudo de identificação de terra indígena. Que elementos técnicos imprescindíveis esses órgãos podem produzir acerca da identificação de um território tradicional ou de sua delimitação? Sua participação, em meu entender, seria de ordem política, com vistas à defesa de interesses que estão fora do âmbito dos direitos constitucionalmente garantidos aos povos indígenas.

Como a Constituição mudou os processos de demarcação?

Antes das atuais garantias constitucionais, a Funai fazia o estudo de identificação com base em elementos técnicos, apresentava uma delimitação e esse trabalho era submetido a uma apreciação de um colegiado, que ficou conhecido como “grupão”. Em Brasília, o “grupão” definia, segundo critérios políticos, qual seria o limite da terra indígena. Mas, com os parâmetros estabelecidos a partir de 88, isso é impensável.

Como é hoje?

A partir da Constituição de 88 e da atual legislação, os processos se aperfeiçoaram e se sofisticaram. As esquipes se especializam continuamente, há profissionais competentes nessa área. Claro que se pode colocar em análise algum aspecto jurídico, para isso há análise pela AGU e Ministério da Justiça. A legislação também prevê um prazo para que qualquer interessado conteste, apresente novos elementos e questione aspectos técnicos e jurídicos. Ao fim, quem decide sobre a declaração da área como terra indígena é o Ministro da Justiça. Caso precise de novos elementos, ele ainda pode solicitar a realização de diligências. E, depois disso tudo, ainda há uma análise da Casa Civil. Portanto, a legislação atual já traz instrumentos suficientes para a efetivação segura de um processo de demarcação.

Qual será o impacto dessa série de mudanças propostas pelo governo?

Uma efetiva política indigenista pública precisa de um órgão plenamente capaz de coordená-la e implementá-la. Hoje, a ação indigenista ainda não faz parte da preocupação e atuação de um grande número de órgãos públicos, federais, estaduais e municipais. Isso significa que, em certos casos, se a ação da Funai não chegar aos indígenas, nenhuma outra ação pública vai chegar a eles. Por isso, o desempenho da Funai é fundamental para a sobrevivência de muitos indígenas. Um funcionamento inadequado pode significar perdas irreparáveis. A desconsideração de comunidades indígenas por parte do Estado pode permitir ou acarretar a perda de vidas indígenas, ou até o desaparecimento de todo um povo indígena, o que equivale a um genocídio.

A Secretaria-Geral da Presidência coordena o processo de consulta aos Munduruku sobre as usinas no rio Tapajós. As demandas dos indígenas estão sendo ouvidas?

Não dá para fazer consulta como se ela fosse mera etapa burocrática ou obrigação processual apenas. O que está em questão são vidas que serão modificadas para sempre em função dessa intervenção [usinas]. Não dá para encarar como se os indígenas fossem um empecilho ou um fator de atraso no cronograma de um empreendimento. A intervenção é que interrompe, dificulta ou impede as práticas das comunidades indígenas. A demanda dos munduruku é, primeiro, entender o que se passa. Querem um diálogo respeitoso, esclarecedor e num tempo que permita verdadeiramente isso. Os momentos de diálogo que ocorreram durante o período em que eu estive na Funai não foram suficientes para esclarecer as questões que o povo munduruku tem sobre o assunto.

O governo trata a consulta como “mera etapa burocrática”?

A meu ver, parte do governo, em especial a parte que considera apenas a importância de empreendimentos de infraestrutura, trata assim. Mas há uma parte que não trata. A Ministra Tereza Campello fez questão que o Ministério de Desenvolvimento Social realizasse uma consulta prévia à realização de uma pesquisa em comunidades indígenas.

Em entrevista ao El País, a procuradora Thais Santi denunciou o não cumprimento das condicionantes em Belo Monte, o que provocou impactos profundos e irreversíveis entre os indígenas. Por que a Funai não exigiu que a Norte Energia cumprisse o plano?

A Funai cobrou inúmeras vezes o cumprimento das condicionantes. Eu mesma assinei muitos documentos nesse sentido. Mas exigir é uma medida que está bastante distante das possibilidades da Funai. Lembrando, inclusive, que o órgão licenciador é o Ibama, que também já recebeu muitos ofícios da Funai nesse sentido.

A procuradora descreve os impactos de Belo Monte como etnocídio e aponta a senhora, quando presidente da Funai, como uma das responsáveis. Como responde a essa acusação?

Reconheço e respeito a importância do trabalho do Ministério Publico. Mas estar na posição de presidente da Funai é bem diferente, bem mais difícil. Primeiro porque não compete à Funai conceder, negar ou suspender licenças de empreendimentos. Isso é competência do Ibama. Se o Ibama não considera o descumprimento de certas condicionantes apontadas pela Funai (e pelo MPF) como razão para rediscutir a licença de um empreendimento, não é a Funai quem vai reverter administrativamente essa situação. O que compete à Funai é cobrar do empreendedor e do Ibama. E isso nós fizemos sempre, inclusive em Belo Monte. Mas, se nem o próprio judiciário solucionou a questão nos mais de dez processos judiciais a que esse empreendimento foi submetido, parece que nada é tão simples como na compreensão da Dra. Thais. Não se resolve apenas a partir de aspectos administrativos e jurídicos.

A Funai ainda é capaz de desempenhar seu papel de defesa dos direitos indígenas no Brasil?

A Funai é, sem dúvida, a instituição pública comprometida com a defesa dos direitos indígenas no Brasil. Essa é a sua missão institucional, mas tem sido cada vez mais difícil desempenhar esse papel com a qualidade e especificidade que os povos indígenas demandam e merecem. A Funai precisa ser fortalecida. O movimento indígena e outros segmentos da sociedade civil têm tido um papel importante, é fundamental que continue a mobilização social em favor dos direitos indígenas. Mas não dá para desconsiderar que garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas no Brasil é uma obrigação inequívoca do Estado. Ou o governo olha com respeito para a Funai e para a importância de sua missão, ou deixará claro que não se importa nem se responsabiliza pelo futuro dos povos indígenas no Brasil.

Entrevista originalmente publicada no site da Agência Pública.