Yasuní: A Luta Pela Defesa Da Vida

Originalmente publicado por Mª Cruz Tornay, em 18 de fevereiro de 2015, no site Revista Pueblos

As políticas do governo do Equador incorporam como ponto transversal a mudança da matriz produtiva e a transição energética para uma economia pós-petroleira que permita à nação alcançar os princípios do “bom viver” ou ‘sumak kawsay’. Entretanto, o estado pretende conseguir o bem-estar da população através dos recursos obtidos pela exploração petroleira da Amazônia, uma decisão que põe em risco a sobrevivência das populações indígenas e que levou as mulheres amazônicas a protagonizarem a luta pela defesa da vida e do território.

Emma Gascó.

O Parque Nacional do Yasuní se localiza na Amazônia ocidental equatoriana e é um dos ecossistemas com maior bio-diversidade do planeta. Encontra-se situado em um território ancestral do povo waorani e conta com a presença de povos em isolamento voluntário que habitam uma área declarada zona intangível.

Os efeitos que a atividade petroleira havia causado em outros territórios da zona levaram à mobilização a inícios dos anos 90 e, mais adiante, à criação de propostas que protegessem as zonas mais sensíveis da Amazônia, como o Parque Nacional do Yasuní. A denominada Iniciativa Yasuní ITT foi a alternativa idealizada pelas organizações ecologistas para manter sob terra o petróleo cru dos campos petroleiros de Ishpingo, Tambococha e Tiputini (ITT), e desta maneira apostar numa etapa de transição pós-petroleira.

Em sua chegada ao governo, em 2007, o presidente Rafael Correa assumiu de forma oficial a iniciativa ITT e a proposta foi apresentada publicamente à comunidade internacional. O estado equatoriano se comprometia a manter inexploradas de forma indefinida as reservas dos denominado Bloque 43 em troca de receber as doações equivalentes à metade dos lucros que teria recebido o estado pela exploração. Assim se manteriam intactos os mais de oitocentos milhões de barris de petróleo cru estimados da reserva e se evitaria a emissão de quatrocentos e dez milhões de toneladas de CO2.

A proposta defendida pelo governo equatoriano gerou uma grande expectativa a nível internacional, já que de forma inovadora implicava diferentes autores internacionais, públicos e privados, na busca de alternativas ao desenvolvimento extrativista dos combustíveis fósseis e na transição para um novo modelo energético que seja respeitoso com o meio ambiente. Entretanto, enquanto se realizavam campanhas de adesão à iniciativa ITT, o governo trabalhava em um “plano B” que contemplava a exploração do recurso petroleiro em caso de que a comunidade internacional não respondesse ao chamado.

Em agosto de 2013, o presidente da república deu por finalizado o prazo de espera para a captação das doações que confirmassem a viabilidade do “plano A” e anunciou a exploração feita pela empresa estatal Petroamazonas de um milésimo do Parque Nacional do Yasuní. Em seis anos só se tinha conseguido coletar 0,37 por cento dos 3.600 milhões de dólares que teriam evitado a exploração. Rafael Correa qualificou a decisão como a mais difícil de seu mandato, mas como a única via de lucros necessários para acabar com a pobreza do país.

Violência sobre o território e os corpos

Patrícia Gualinga luta há anos pela defesa dos territórios que constituem a Amazônia. Em 2002 era líder da Mulher e a Família do povo sarayaku. Junto a outros membros de sua comunidade, viajou para Costa Rica para processar ao estado equatoriano ante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por permitir e amparar a entrada de empresas petroleiras em seu território. Apesar de que a Corte foi favorável ao povo sarayaku e que o estado teve que pedir perdão, os territórios da Amazônia e a vida das comunidades que a habitam e seguem ameaçadas por projetos extrativos como o do Yasuní.

Depois de anos observando de perto a presença das empresas multinacionais, Patricia tem uma opinião muito clara sobre as consequências do “plano B” do governo: “A vida é incompatível com a extração de petróleo. Os povos em isolamento estão condenados à extinção”. A líder sarayaku se refere às comunidade dos tagaeiri, taromenane e oñamenane que habitam o sul do parque Yasuní que decidiram seu isolamento voluntário; uma situação que as faz vulneráveis em relação às decisões que se tomam no exterior: “Os povos que estão em isolamento não têm voz própria para falar. Sua voz é uma voz silenciosa que está pedindo que os deixem em paz e o governo deveria escutá-la ou se cometeria um etnocídio terrível”.

Patrícia é uma das muitas mulheres amazônicas que assumiram a luta pela defesa do território ao que estão unidas vital e espiritualmente. As mulheres dos povos afetados decidiram sair para apoiar os líderes que estavam sendo ignorado pelo governo e dizer que elas tampouco queriam a presença das multinacionais em seu território.

Se, como afirma patrícia, a vida é incompatível com a extração do petróleo, ainda o é mais para as mulheres que perdem sua autonomia pelo deslocamento das formas de vida tradicionais. Quarenta anos de exploração dos recursos da Amazônia é tempo suficiente para saber o que vem após a chegada das empresas: a militarização do território, a contaminação da água e do ar, o alcoolismo, a violência, a aparição de prostíbulos…

A presença de empresas extrativas implica a masculinização de um território no que se estabelecem relações assimétricas de poder, que começam pela presença das forças de repressão do estado com o fim de proteger o funcionamento da atividade petroleira. A entrada dos rapazes em postos da empresa provoca a perda dos ofícios tradicionais, o reforço das funções de gênero e o incremento das desigualdades entre os homens que recebem um salário e as mulheres que veem aumentada a dependência e as relações de subordinação em relação a seus maridos.

Embora cada projeto de exploração garantiu o uso da última tecnologia, não existem experiências nas que o território não tenha sido afetado de alguma maneira. Só neste ano, a empresa estatal petroamazonas é responsável de 19 vazamentos. A contaminação da água e do ar termina afetando a saúde dos membros da comunidade, que são atendidos pelas mulheres de acordo com as funções de gênero. E também são as mulheres as que devem buscar alimentos quando a chácara fica contaminada pelas águas tóxicas.

Mobilizações contra a extração

O presidente Correa chamou a Cadeia Nacional[1] para comunicar aos cidadãos a decisão tomada acerca do futuro de um dos ecossistemas mais diversos do mundo. As reações contra o “plano B” do governo e em defesa da Amazônia geraram um movimento cidadão que se lançou às ruas sob o nome de Yasunidos e que se transformou em alvo corriqueiro nas sabatinas do presidente.

Gabriela Ruales militava há muito tempo no ativismo ecologista e acabou participando dentro da organização do movimento cidadão Yasunidos. Gaby lembra como as marchas aconteciam cotidianamente, não só em quito, mas também em todas as províncias do país. Manter o nível de mobilização de pessoas que historicamente não tinham estado vinculadas no ativismo se transformou em um desafio que se soube canalizar com a campanha de coleta de assinaturas pela celebração de uma consulta popular que permitisse à população decidir sobre o futuro do Bloque 43.

Depois de seis meses de presença nas ruas, os yasunidos conseguiram recolher 750.000 assinaturas, cifra que superava amplamente as requeridas por lei para ser feita a consulta; mas o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) terminou reconhecendo só 350.000 rubricas em um processo que Gabriela não tem dúvidas de que foi fraudulento por causa do uso de um sistema de verificação não confiável e por causa dos contínuos episódios de abuso de poder para o coletivo cidadão.

O governo lançou duras críticas contra um movimento ecologista que a burocracia considerava alheio à realidade cotidiana que vivem os povos em uma das regiões mais deficientes em serviços básicos. Em todo este processo de desqualificações, as mulheres amazônicas também se organizaram em uma marcha de seus territórios até a capital do país para dar visibilidade a seu repúdio aos ataques aos Yasuní, embora o projeto se justifique pela obtenção de lucros econômicos para acabar com a “miséria” da zona, nas palavras do presidente.

O discurso da pobreza e o bem-estar

Uma vez que fica desestimado um plano que foi qualificado de “ingênuo” pelo presidente, o executivo apresenta o projeto de extração do bloco ITT como a única alternativa viável de lucros para reduzir a desigualdade social e aumentar a infraestrutura das cidades do oriente do país. Concretamente, se anuncia a obtenção de 18 milhões de dólares: os governos locais da Amazônia receberão 2,14 milhões, enquanto que 1,568 milhões se destinarão aos governos autônomos.

Com estes recursos fica garantida a construção, entre outras infraestruturas, das denominadas Escolas do Milênio, criadas para ampliar a cobertura e o acesso à educação e nas que estudam e residem os jovens que não tinham a possibilidade de continuar com seus estudos nas comunidades. Para o governo, projetos como este são parte da construção do sumak kawsay, o bom viver do cosmo-visão andina que está na constituição de 2008.

Mas não todas as comunidades estão de acordo com esta interpretação do pensamento indígena. Para Patricia Gualinga, é uma contradição que se utilize a exploração da natureza como meio para alcançar o sumak kawsay. “Se vê o bem viver no plano material, de forma desconectada do bem viver espiritual e de estar em harmonia com a Mãe Natureza”. Para esta líder sarayaku, a harmonia é impossível desde o momento no qual se fala de exploração petroleira e mineira porque “o sumak kawsay não existe se não se respeita a natureza”.

Patricia sustenta que o discurso sobre a pobreza das comunidades indígenas é uma “teoria racista” de quem chega a seus territórios para lhes dizer o que têm que fazer e decidir o que é o melhor para eles, sem se importar com seu contexto territorial e formas de vida. Como mulher líder de seu povo, sabe que existem carências e que são necessárias algumas infra-estrutura, mas isso não significa que sejam pobres: “o empobrecimento das comunidades chega quando temos que comprar água e comida porque as nossas estão contaminadas”.

Está justificado, então,”sacrificar” uma parte do território para que o resto da população consiga um maior bem-estar? Para as organizações ecologistas, a cifra de um milésimo dada pelo Governo sobre a afetação do parque é enganosa, já que só contempla o desmatamento necessário para levantar a infra-estrutura que exige a exploração do petróleo, mas não leva em consideração o impacto sobre o resto do ecossistema e nem o futuro das comunidades.

O movimento conservacionista se mantém na defesa da Iniciativa Yasuní ITT como meio de obtenção de recursos que permitam o desenvolvimento de fontes de energia renováveis, além do aumento de impostos aos lucros do capital e a economia de gastos governamentais que consideram prescindíveis.

Os povos indígenas contrários à exploração se opõem a um modelo de desenvolvimento extrativista que veem condenado ao fracasso. O povo sarayaku defende o conceito do kawsak sacha, selva viva, uma nova categoria que seja patrimônio da humanidade e que reconheça não só os direitos da natureza, como estabelece a constituição, senão a todos os seres protetores que nela moram, e na que fique excluída a perpetuidade da exploração do petróleo cru.

Para os povos dos territórios afetados, a defesa da vida na Amazônia deve transcender a luta dos povos indígenas e se converter em uma ação coletiva que ponha fim às relações de poder sobre o território e a vida.

NOTAS:

1. No Equador, comunicado oficial de retransmissão obrigatória e imediata para os meios de comunicação.

O anarquismo que aí vem

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

(O texto que hoje traduzimos foi publicado no órgão da FAI, Tierra y Libertad, de Fevereiro, colocado na internet, mas depois apagado. No entanto, já tinha sido publicado em diversos outros sites de língua castelhana. É um texto polémico cujo autor afirma que os anarquistas têm que deixar as análises do passado e olhar mais para a sociedade em que vivem, onde as próprias relações de poder se estão a alterar).

Andrea Papi

Para muitos, o mundo actual é pouco atractivo e para muitos outros está-se a tornar inabitável. Uma condição difusa que, por si mesma, deveria ser suficiente para empurrar as massas humanas insatisfeitas para uma alternativa de libertação social. O fracasso histórico do bolchevismo, entre outras coisas, deveria ter, pelo menos em teoria, favorecido a adesão aos movimentos anarquistas que, neste momento, estariam cheios de adeptos e de simpatizantes atraídos de uma forma irresistível. Em vez disso assistimos a um empobrecimento da presença militante, enquanto se registam adesões, nalguns casos consistentes, para comportamentos práticos e experiências que podem reconduzir ao sentido e à qualidade das propostas anarquistas (decisões colectivas através de formas de democracia directa, recusa das hierarquias, tensões igualitárias, cooperação e solidariedade partilhadas de forma mútua, etc.), em geral sem se reconhecerem e definirem como tais e muito longe do que era a militância em sentido clássico.

Noutras palavras, o anarquismo está a mudar a forma e o modo de ser fora dos canais ligados à experiência “oficialmente” codificada enquanto tal. Por isso, suponho que se está a produzir uma renovação espontânea, feita de um impulso libertário sincero e genuíno que o velho anarquismo não está na disposição de absorver ou integrar (ou porque não quer, ou porque não o entende, ou porque não é capaz, à parte de algum esporádico e raro caso). Não seria afastarmo-nos da realidade afirmar que nesta fase está a tomar forma e a manifestar-se autonomamente um “anarquismo de novo sabor”, já que o seu nascimento está desligado daquele que existe e é historicamente reconhecido.

Não há nada de mau nisto. Inclusive, em certos aspectos pode ser visto como algo de bom. O considerado “velho”, sobretudo pelo peso intrínseco da sua poderosa história, desde há décadas que aparece facilmente esclerótico e frequentemente imóvel, quando, na realidade, considerado na sua natureza específica de “movimento” deveria estar permanentemente “animado”, genuinamente capaz de se renovar sem ficar pesadamente ancorado a esquemas que se tornaram velhos e obsoletos. Se o “novo” (acrescento eu), com toda a sua multiplicidade de manifestações, antes ou depois não se relaciona com o “velho”, inovando-o cultural e experimentalmente, com muita dificuldade poderá conservar essa integridade libertária que o distingue, para ser (maldito seja!) absorvido por lógicas e visões que o reconduzirão ao maléfico “bando autoritário”, sempre à espreita.

Saber renovar-se quer dizer, antes de mais nada, adquirir a capacidade de actualizar a leitura da realidade, para captar os movimentos, as mutações, as mudanças. Depois há que saber colocar hipóteses para os experimentar, meios e métodos aptos para contestar de forma eficaz e inteligente o contexto despótico que exerce a dominação, para tentar superá-la ou eliminá-la: em suma, para conseguir acabar com ela, com o objectivo de viver relações sociais livres através de tensões libertadoras e libertárias. Parece-me claro que um tal percurso, que não se pode definir senão quando se põe em prática, deverá necessariamente ser expurgado de esquematismos  e ideologismos que escondem o caminho, sabotando-o e, de facto, impedindo-o de ser percorrido.

Não temos que ter medo de abandonar os velhos esquemas que definem o percurso revolucionário, que propõem uma narração do conflito social que, de forma mais ou menos sabida, se apresenta como se fosse absoluta, quase sugerindo que não pode haver outra (a lógica dogmática da “única via possível”). E, nesta vertente, a adesão à “luta de emancipação” pode cair em atitudes cegas e religiosas.

Pensar e agir “em grande”

Na verdade, tudo mudou e continua a mudar, e o anarquismo, se for autêntico, não pode ser entendido como fixo ou parado. Como tudo o que está vivo e em movimento, não pode ser visto como se fosse imóvel: como um corpo que cresce tem continuamente constantes alterações de desenvolvimento. Mesmo em relação aos primeiros momentos em que foi concebido e pensado, realizado nos limites do possível, mudou também profundamente o contexto planetário circundante, como mudaram também os estímulos, o tipo de observações e o imaginário, tudo aquilo que em conjunto define uma visão do mundo. Como todas as visões do mundo pode transformar-se e dilatar-se mantendo intacta a sua substância. Tendo bem presente esta dinâmica, julgo que não deve ser entendido como uma ideologia, ainda que alguns o façam, por vezes, talvez na ilusão de fixarem uma globalidade que, de facto, não é sua.

A velha narrativa em que nos forjámos fala-nos, por exemplo, de insurreição revolucionária para tomar o poder e impor a ditadura do proletariado (como sustentava o marxismo-leninismo) ou para destruir o Estado (como sempre defenderam os anarquistas). Nos dois casos ter-se-ia que tomar os “Palácios do Poder”, num caso para se apossar deles, no outro para destrui-los e eliminar todas as formas de autoritarismo político. Hoje já não há nenhum “Palácio” a conquistar, enquanto que, pelas condições em que nos obrigam a viver, estamos permanentemente imersos num nível de confronto que pode inclusivamente desembocar em lógicas de guerra, sem inimigos nem lugares claramente identificados. Claro que algumas vezes vai-se conseguir vencer alguma escaramuça com as forças da polícia, mas como o verdadeiro poder já não está onde se encontrava dantes e gerou outras formas de poder enormemente sofisticadas, isso não resolve nada.

A velha narrativa dizia-nos que tudo gira em torno da luta irreconciliável entre a burguesia e o proletariado, um confronto permanente entre patrões e explorados intrínseco à estrutura sobre a qual se construiu a sociedade capitalista, vista quase como a ultima forma estrutural da história. Uma visão rígida, que não chega para perceber as dinâmicas da actual liquidez social (para dizê-lo como Bauman), nem a complexidade das redes globais que está a envolver o mundo no seu conjunto. A nova servidão e os novos escravos são massas humanas submissas que representam uma realidade muito mais complexa e articulada do que a working class da memória marxiana, enquanto que a rede global de especulação que alimenta e favorece a oligarquia financeira, capaz de sujeitar a economia produtiva à própria avidez, é algo muito mais complexo e estruturado do que a velha burguesia capitalista de antigamente. O mundo está a enredar-se em algo muito mais ilusório e multiforme do que o conflito dialéctico linear colocado como hipótese nessa altura.

Já não temos que nos confrontar simplesmente com generais, reis, chefes de governo, patrões e todas essas figuras que sempre personificaram o poder enquanto mando e vontade de imposição. Não me interpretem mal; todas essas figuras estão ainda presentes por todo o lado, mas já não representam o vértice da concentração de poder de que depende o destino do mundo. O despotismo, base fundamental da qualidade das relações, continua a crescer, mas tem sofrido mutações que alteram a qualidade das formas e dos métodos de imposição. Atravessamos um passo prepotente e significativo do “mando” para a “coerção objectiva”, como fundamento da capacidade de dominar.

Por tudo isto, não podemos continuar a desgastar-nos numa extenuante guerra de oposição, que se queria revolucionária, na ilusão perpétua de derrubar as estruturas caducas de poderes cada vez menos poderosos, nalguns casos, mesmo em extinção. Devemos, pelo contrário, começar a pensar e a agir “em grande” (entendendo grande em termos cósmicos), escolhendo e inaugurando de forma séria uma rota dedicada sobretudo a construir e a experimentar, de todas as formas criativas possíveis, o novo e diferente que acreditamos poderem concretizar a libertação e a liberdade desejadas, deixando de nos apresentarmos como se estivéssemos numa guerra permanente contra imagens fantoche, que só servem como espantalhos do poder para nos ter entretidos com “tarefas” destinadas ao nosso aniquilamento.

 

[CHILE] Por que, Como Anarquistas, Apoiamos A Luta Autônoma do Povo Mapuche

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O conflito entre o Estado chileno e o Povo Mapuche nasce com a própria formação e imposição do Estado. E se agudiza com o estabelecimento de assentamentos fortemente militarizados no território do Povo Mapuche: o Wallmapu. Estes assentamentos trouxeram consigo a imposição da cultura ocidental através de sangue e fogo, exterminando os habitantes autóctones da zona.

Desde os anos 90 à atualidade, a luta do Povo Mapuche têm buscado diversas formas de combater o Estado e o capitalismo. A miséria, a fome, a injustiça e a desigualdade econômica nas zonas ao sul do Chile têm demonstrado que o inimigo não é só o Estado/nação, senão que também é o sistema capitalista no qual habitamos. São justamente, estes pontos os que iremos desenvolvendo ao longo deste texto, com o fim de responder a nossa inquietude: Como anarquistas apoiamos a luta do Povo Mapuche?

Nós afirmamos que sim, apoiamos esta luta. Em primeiro lugar, devido a que nossos inimigos são os mesmos. Na atualidade, várias comunidades mapuches têm identificado como seu principal inimigo o capitalismo e suas instituições, esclarecendo como suas lógicas levam o mundo ao colapso. Embora nós não possuímos a mesma cultura nem cosmovisão e temos certas apreensões com suas formas organizativas, compartilhamos a mesma necessidade de soberania e autodeterminação. Por isso que, nos identificamos com a busca do controle tanto de nossas vidas como de nossos territórios.

Para sermos mais claros, o Povo Mapuche tem notado, da mesma forma que o pensamento ácrata, a relação direta que tem para a implantação do capitalismo, o surgimento do Estado moderno. Não há que esquecer que a consolidação dos Estado/nação latino-americanos esteve nas mãos de sangrentas guerras contra os territórios indígenas que conseguiram manter autonomia no período colonial, como por exemplo o Wallmapu.

A estratégia mapuche tem direta relação com a autodefesa – ou resistência -, uma luta por recuperar e defender suas terras, terras que pertenceram a seu povo ancestralmente. O ataque às empresas florestais na Araucanía tem que ver diretamente com o rechaço à exploração brutal da terra por parte do empresário. Esta exploração se consuma na introdução de espécies estranhas, como o Eucalipto e o Pinho¹ e o mono-cultivo após sua plantação, o qual traz consigo nefastas consequências para o ecossistema do Wallmapu. Por sua vez, o Estado chileno subvenciona as empresas florestais pela plantação destas árvores, confundindo a restauração de bosque nativo com a exploração da terra². Em efeito, a indústria florestal é uma das indústrias mais importantes dentro da zona, no entanto, é uma das mais daninhas no Wallmapu. Por trás disto se encontram as causas da marginalização e pobreza do povo mapuche, que por culpa destas empresas se viram deslocados de suas terras ancestrais e obrigados a situarem-se em outros setores menos produtivos.

Por outro lado, o lugar que toma o Estado dentro deste conflito, tem diretamente que ver com sua própria natureza. O Estado busca o controle e a administração de nossas vidas, para proporcionar-nos uma “liberdade” de submissão e obediência³, estabelecendo um marco jurídico-legal que delimita um território no qual reclama ter o monopólio da violência. Ou seja, qualquer indivíduo, coletivo e/ou comunidade que resista a sua ordem se transforma em um/a inimigx e o Estado buscará anulá-lo por meio de repressão e sua legalidade irracional. O Povo Mapuche se tem dado conta que o capitalismo – e seu Estado-nação – impõe um sistema que os marginaliza e impõe as lógicas mercantis, rompendo com suas tradições ancestrais – e o que é mais grave ainda, sua própria autonomia.

Enfim, nós como anarquistas, apoiamos a luta do Povo Mapuche, porque nossos inimigos são os mesmos. E aí estaremos, sempre que nos necessitem: com nossa presença, com a difusão de propagandas e comunicados e com tudo o que seja necessário para prejudicar a nossos inimigos e resistir a seus ataques. Por nossa liberdade e autonomia. Como companheirxs, não como guias nem especialistas. As receitas não as temos. Apostamos que a solidariedade é necessária para a luta contra a totalidade que é o capitalismo mundial. A diversidade de lutas em convergência é uma força inesgotável, que não poderão parar. Os processos já foram iniciados e é responsabilidade nossa fazer desta, nossa história.

Nossa convergência e união é: nossa resistência e nosso ataque.

Colectivo La Peste

lapeste.org

Notas:

[1] Estas árvores requerem um grande consumo de água, secando rios. Por sua vez, que o monocultivo e o uso indiscriminado do solo (sem dar-lhe descanso) gera erosão e contaminação da água, tornando improdutiva a terra para tarefas agrícolas.

[2] “O Decreto de Lei 701 estabeleceu um subsídio de 75% do investido em plantações florestais, abriram-se créditos especiais e isenções tributárias (liberação de impostos), grande quantidade de solo passou a ser decretado de uso preferencialmente florestal, vendo-se seus donos obrigados a plantar e reflorestar, mais ainda se estabeleceu sanção a quem investir estes dinheiros em agricultura ou pecuária. A atividade florestal passou a ser considerada uma atividade social muito lucrativa.” Em: http://www.resumen.cl/index.php?option=com_content&view=article&id=5805:ley-de-fomento-forestal-ano-decisivo-para-la-agricultura-chilena&catid=16:ecologia&Itemid=60

[3] Weber indica que o Estado é uma relação de dominação de homens sobre homens por meio de uma violência legitimada socialmente. O político e o científico. Alianza Editorial, 2003. p. 84

Tradução > Sol de Abril

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Na noite sem lua
o mar todo negro
se oferece em espuma

Eugénia Tabosa

“Não volto a ir a um encontro feminista em um hotel de cinco estrelas”

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By A.N.A.

Fonte: Notícias Anarquistas

[Nasceu em La Paz (1964). É uma anarcofeminista, psicóloga, locutora de rádio e apresentadora de televisão boliviana. Fundou Mujeres Creando, uma associação de mulheres bolivianas que combate o machismo e a homofobia.]

Em suas próprias palavras, ela é María Galindo, fundadora, junto com outras, de Mujeres Creando, feminista, boliviana, louca, alguém que faz rádio, televisão e luta na rua com direção própria. Lésbica, gorda, teimosa, escritora, agitadora, terror da polícia e grafiteira, esteve faz pouco tempo em Madri, apresentando seu livro, ¡A despatriarcar! (Lavaca, Buenos Aires) em Vaciador 34, rodeada de dezenas de mulheres, sobretudo jovens e entre elas muitíssimas latino-americanas, compartilhando as bandeiras de seu ‘feminismo urgente’. Galindo propõe a despatriarcalização como motor da descolonização e a transformação social na Bolívia de Evo Morales. “Há que abandonar a ideia mitificadora de uma cultura indígena de núcleo horizontal e não patriarcal. Em um contexto em que o homem indígena aparece como o único interlocutor do Estado, reclamamos o direito das mulheres à desobediência cultural e o desacato de mandatos de costume”, diz. Junto com outras anarcofeministas militantes como ela, Galindo converteu Mujeres Creando “em uma fábrica de justiça” para as bolivianas.

Pergunta > Na Bolívia existe uma Unidade de Despatriarcalização que depende do Vice-ministério de Descolonização e que não serve para nada?

Resposta < Assim é. Não tem pressuposto, nem poder, nem conteúdo, nem funções. Fomos Mujeres Creando as que lançamos esta proposta da que eles se apropriaram para minorar nosso impacto. É parte de uma política governamental não deixar que nada se mova fora do governo, nem sequer o debate nem o pensamento, querem comê-lo todo. O grande ato organizado por esta instância foi um matrimônio indígena massivo à maneira judaico cristã, mas com detalhes folclóricos, comandados pelo próprio Evo Morales. Eu estive ali com minha rádio e fui violentamente reprimida pela polícia.

Pergunta > Por quê em teu livro falas de uma Bolívia travesti?

Resposta < Há uma disputa de identidades. Bolívia travestida de indígena, com chola transformer, com Mis Cholita e Mis Ñusta universitária. O máximo representante da Bolívia travesti é o Presidente que se traveste de poncho em poncho, buscando nesse exercício levantar à construção de uma identidade que, tragicamente, se fragmenta em muitas pequenas identidades, com todas suas contradições. A Bolívia bastarda é incapaz de olhar-se no espelho.

Pergunta > Hoje a melhor opção na Bolívia é declarar-se indígena?

Resposta < Estamos na Bolívia dos originários. Após haver escondido o retrato da mãe chola no desvão, hoje o desenterram. Neste momento declarar-se indígena é politicamente muito vantajoso. Eu creio que a autoidentificação e autodenominação é claramente um ato de liberdade e tem toda a liberdade de fazê-lo. Mas se antes a Bolívia racista e branca relegou a intelectualidade indígena, agora a intelectualidade indígena “oportunista”, cheia de privilégios, volta a relegar a quem têm décadas nesta luta.

Pergunta > Crês que fora da Bolívia se tem uma ideia equivocada de Evo Morales?

Resposta < Definitivamente sim. Fora do país se tem idealizado o governo de um indígena e não se quer conhecer a realidade mais em detalhes, por exemplo, de sua política econômica real. Nos dois governos de Evo os que mais ganharam foram os bancos.

Pergunta > Por quê Evo queria realizar o Miss Universo na Bolívia?

Resposta < Enquanto as mulheres indígenas são base de apoio social, sem nome, nem corpo, as mulheres brancas são objeto de desejo. Aceder a elas é um exercício de poder. A obsessão de Evo é seguir fazendo alianças com seus antigos inimigos, a oligarquia que está detrás das centenas de concursos de beleza que há no país, uma verdadeira indústria da coisificação das bolivianas. As misses estão presentes em todos os atos oficiais e inclusive tem dois assentos no parlamento. Ademais de dar giros na economia, o governo boliviano pensou em seduzir este setor organizando o Miss Universo, mas não o conseguiu. Agora Evo Morales vai organizar o Dakar, mais do mesmo.

Pergunta > Tens entrevistado a muita gente. Quê aconteceu com Rigoberta Menchú?

Resposta < Rigoberta se levantou de sua poltrona e me deixou com a palavra na boca. Disse que a havia ofendido e discriminado. Só porque falei da não fetichização de nossas identidades: não por ser mulher, ser lésbica ou ser indígena sou intocável ou perfeita. Eu creio que aí está um novo fundamentalismo que na Bolívia vivemos todos os dias. Não estamos falando da indígena subalternizada, senão dessa outra indígena que é Rigoberta, uma com poder.

Pergunta > Por quê já não vais a encontros feministas latino-americanos?

Resposta < Olha, o último que fui aconteceu em um hotel de 5 estrelas na República Dominicana, com praia privada e polícia que vigiava a praia. O custo de inscrição rondava os 200 dólares. Recordo que seis companheiras ficamos em um só apartamento, já havíamos gasto 800 dólares pela passagem. Não havia nem um só debate sobre prostituição, quando na rua ela era generalizada. Os encontros feministas latino-americanos deixam tacitamente fora os setores populares. Isto já afeta completamente os sentidos e conteúdos. Não se organizam em lugares acessíveis, porque não há uma vontade política de fazê-lo. Basicamente são encontros que reúnem funcionárias de ongs que tem um excedente econômico para ir ali e se divertir.

Pergunta > Qual foi vossa conclusão?

Resposta < Na volta, resolvemos que nunca mais iríamos a um encontro para o qual é preciso investir somas altíssimas de dinheiro. Decidimos organizar, em troca, dois encontros feministas anuais em nosso país. Fazemos um na zona andina de La Paz e um na zona tropical de Santa Cruz. Oferecemos mais de dez oficinas de discussão, o almoço e toda a participação por um montante de três dólares e o fazemos em recintos públicos para baixar os custos. O impacto destes encontros é incrível.

Fonte: larepublica.pe

Tradução > Sol de Abril

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Pontes entre O Anarquismo e O Confederalismo Democrático

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Fonte: Kurdish Question, em 19 de Fevereiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Texto original por Bruno Lima Rocha

Introdução: discutindo o modelo de partido e sua missão   

Desde o início do cerco a Kobane pelo Daesh (ISIS), a esquerda curda, e, especificamente, o modelo de organização social em Rojava tem sido estudado e seguido por várias organizações, ativistas, redes e estudiosos comprometidos. Decidi colaborar com KurdishQuestion.com para produzir uma série de artigos curtos para expor (e provar) as semelhanças entre a tradição ocidental (e não ocidental também) anarquista e o Confederalismo democrático. Enquanto uma das minhas áreas centrais de estudo é a teoria política (e teoria política radical), decidi ajudar na elaboração dos paralelos entre os dois caminhos e familiarizando-os um ao outro. Espero que isso ajude e todas as críticas são bem vindas. 

Apresentação

O modelo de partido anarquista apresentado nesta série não é uma inovação em si mesmo para a teoria política e teoria política radical, e nem mesmo para a tradição de esquerda. Se os estudos sobre o tema são bastante desconhecidos (ou parecem ser novos ou inexistente), se este formato de organização política não se tornou um objeto de estudo (ou reconhecido como o modelo de partido para a auto-gestão e de democracia direta), isto ocorre devido à correlação de forças dentro do mainstream acadêmico, às derrotas sofridas pelos anarquistas classistas desde 1939 e também por causa da ausência de debates no seio da comunidade de esquerda, o espectro acadêmico e da mídia mainstream. Este modelo aproxima os militantes dentro de uma organização política especifica que adere a um corpo ideológico-doutrinário (também conhecido como partido de quadros). Porque não é uma proposta de massa, que tem o formato de ter a associação composta por quadros políticos, sem filiação aberta e cujo grau de compromisso aumenta à medida que eles entram mais para os círculos concêntricos (ver Bakunin). Tal modalidade adquiriu definições na história, tais como: organicismo, plataformismo, especifismo; todos estes são sinônimo da definição do partido anarquista (federação específica).

Introdução ao Papel do Partido

O modelo da matriz de esquerda libertária e a perspectiva apresentada nesta série, representa uma possível aplicação de um campo de intenções, motivações normativas e interesses estratégicos na América Latina em geral, e no Brasil, em particular. Mas, presumimos, que, desde que nos conhecermos melhor, as possibilidades de desenvolvimento político será reforçada a partir da experiência real na região oeste do Curdistão e o debate interno sobre o pensamento no contexto do PKK. É muito interessante entender que a missão desse partido não é ser parte de um poder institucional do Estado-Nação, mas ajudar na construção de uma sociedade baseada em legítimos direitos (individuais e coletivos), a auto-gestão, e da democracia direta e radical, e o mais longe possível do industrialismo e de uma economia centrada no mercado. A hipótese formulada dentro da perspectiva de uma verdadeira democracia social é a ação da minoria política como uma unidade para acumulação de força e radicalização democrática a longo prazo. Se nós compararmos este simples pressuposto e definição, podemos observar muitas semelhanças entre essa perspectiva e um escrito do companheiro Abdullah Ocallan em 2011:

“Enquanto isso, os Estados-nação se tornaram sérios obstáculos para qualquer desenvolvimento social. Confederalismo Democrático é o paradigma contrastante das pessoas oprimidas. Confederalismo Democrática é um paradigma social não-estatal. Ele não é controlado por um Estado. ” (Do website PKK em Inglês)

É óbvio que ninguém deve criticar este modelo de partido para não competir por posições institucionais dentro de um modelo de Estado-nação, quando sua missão está longe disso. Parto do princípio que determinadas condições prévias estão sempre presentes. Todo “modelo de partido” inclui em sua formatação de condições e regras pelo qual este partido/organização política vai seguir e o caminho que esta instituição (legal ou ilegal) está disposta a tomar de acordo com seus objetivos de médio e longo prazo. A fim de ser teoricamente coerente, é necessário apresentar modelos que podem ser testados, mas, acima de tudo, modelos que possam ser aplicáveis de acordo com as hipóteses sugeridas.

Eu discuto a organização política militante específica que adere a um corpo ideológico e doutrinário. Por outro lado, porque não é uma organização de massas que se estrutura dentro de quadros, sem filiação aberta e cujo nível de comprometimento ocorre dentro de círculos concêntricos, aumentando o nível de compromisso de acordo com o poder de votar e ser votado para os papéis principais atribuídos na estrutura interna. Essa concepção não pode ser mal compreendida ou interpretada equivocadamente. Ou, ninguém deve entender isso como uma espécie de “partido único de boas intenções”, mas como uma concepção estratégica que garanta que os quadros e estruturas partidárias serão colocados a serviço e dever de ajudar a construir novas instituições políticas com base em uma sociedade horizontal e igualitária. O fracasso do modelo de partido na URSS ou outras variações com base na liderança autoritária, centrada no Estado e no industrialismo provam que todo o pensamento de esquerda deve fazer uma grande autocrítica e reconhecer que as condições materiais devem amadurecer juntamente com as condições morais, ecológicas e fraternais. Apenas uma estrutura partidária dedicada a esta causa pode manter uma luta de longo prazo, alimentando projetos sociais, como o fez nas lutas de massa sindicais da América Latina no início do século 20, e como é hoje em dia com a União das Comunidades do Curdistão ( KCK) ou TeV-DEM especificamente em Rojava.

Denominações desta tradição dentro do anarquismo

Vou terminar este primeiro artigo curto lembrando a definição do modelo de partido anarquista. Apesar de não ser exclusivo, este tipo de organização é geralmente considerado como típico da ideologia anarquista: um modelo federal e não-massivo. Ao menos que ele não seja um modelo de partido de vanguarda como os partidos leninistas clássicos, os quadros do partido devem ser aqueles que reforçam a luta de massas e que serão tomadas por todas as comunidades, permitindo que elas tomem o seu próprio destino por e através de assembleias populares. Esta filiação partidária ocorre por meio de círculos concêntricos e com a preparação de militantes que possuem várias funções. Este tipo de modelo adquiriu definições ao longo de sua história, e todos eles também podem ser identificados com a definição do modelo de partido anarquista. Este modelo adquiriu definições específicas ao longo de sua história, como organicismo, plataformismo, especifismo.

Fui muito feliz em descobrir que estas duas tradições aparentemente distantes estão realmente tão próximas umas das outras. Essa proximidade pode ser facilmente detectada em uma simples leitura dos documentos, tanto do PKK quanto destas tradições anarquistas. A tradição e as experiências no Curdistão lideradas pelo PKK podem alimentar as tradições anarquistas de todo o mundo e vice-versa. Esta perspectiva é animadora e é a principal motivação por trás da razão para esta série de artigos curtos.

Bruno Lima Rocha é Doutor e Mestre em Ciência Política e professor de Estudos e Geopolítica Internacional em 3 universidades no Sul do Brasil.

site: www.estrategiaeanalise.com.br
e-mail: strategicanalysis@riseup.net
facebook: blimarocha@gmail.com

A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

ethos

Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.

[Curdistão] Surge uma Guerrilha Anarquista em Rojava

Postado em Jornal Bandeira Preta, Contrainformação Anarquista
Por JBP, em 06 de fevereiro de 2015
Fonte original: SOSYAL SAVAŞ

(Bandeira anarco-ecologista)

(Bandeira anarco-ecologista)

Recentemente um grupo de anarco-ecologistas da Turquia e outro da Espanha, assim como anarco-ecologistas de vários lugares do mundo, conjuntamente, somaram-se as Forças Unidas de Libertação (BOG), ”Birleşik Özgürlük Güçleri”, de Kobane (Rojava), formando uma frente internacionalista de combatentes anarquistas e comunistas.

Eles fizeram um chamado não só para anarquistas de varias tendências de todo o mundo, mas também a libertários, ecologistas e anti-capitalistas, a se somarem à luta e ao apoio desta revolução social. Cada um com sua língua e cor, através da auto-organização e solidariedade, mobilizando-se em rebeldia.

A guerrilha anarquista se comprometeu em continuar apoiando a defesa de Kobane e Rojava como um todo, assim como ajudar na reconstrução da vida comunal no local recém liberado.

O teórico que deu origem ao “Confederalismo Democrático”, a proposta revolucionária sendo atualmente implantada em Rojava, foi Murray Bookchin, um famoso ambientalista bem próximo dos ideais anarquistas, que escreveu sobre o “Municipalismo Libertário”.

(A cidade de Kobane, destruída após a batalha contra o “Estado Islâmico”)

(A cidade de Kobane, destruída após a batalha contra o “Estado Islâmico”)

(Anarquistas e comunistas somando forças para uma frente internacionalista em Rojava)

(Anarquistas e comunistas somando forças para uma frente internacionalista em Rojava)

‘Está em curso a mais grave ofensiva aos povos indígenas pós-democratização’, diz ex-presidente da Funai

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Indígenas Munduruku ocupam canteiro de obras da usina de Belo Monte em maio de 2013

Matéria de Ana Aranha | Agência Pública | São Paulo – 28/01/2015

Fonte: Opera Mundi

Maria Augusta Assirati, que deixou o cargo em outubro de 2014, comenta interferência política no órgão: ‘tivemos que descumprir compromisso com os Munduruku porque governo deu prioridade a usina de São Luiz do Tapajós’

Maria Augusta Assirati foi presidente interina da Fundação Nacional do Índio (Funai) por um 1 ano e 4 meses, tempo em que ela diz ter vivido com “grande descontentamento e constrangimento”. Na gestão que menos demarcou terras desde José Sarney, ela aponta a interferência política do governo Dilma Rousseff como a maior responsável pela paralisação do trabalho técnico do órgão indigenista. “A orientação é no sentido de que nenhum processo de demarcação em nenhum estágio, delimitação, declaração, ou homologação, tramite sem a avaliação do Ministério da Justiça e da Casa Civil”.

Na primeira entrevista desde que saiu, em outubro de 2014, ela fala sobre o estopim para o seu pedido de exoneração: uma manobra para licenciar a usina de São Luiz do Tapajós, que pode alagar terra Munduruku. Depois de analisar o caso e se comprometer com os indígenas a publicar o relatório que delimita a terra, Assirati diz que foi obrigada a voltar atrás. “Nós tivemos que descumprir esse compromisso em razão da prioridade que o governo deu ao empreendimento. Isso é grave”.

A ex-presidente da Funai fala sobre como tentou apresentar uma alternativa, propondo que se selecionasse outro local para a obra. Mas o governo não teria considerado a solução satisfatória, pois o setor elétrico indicava que o leilão precisava ser lançado ainda em 2014.

De fato, em setembro, o Ministério de Minas e Energia anunciou o leilão da usina de São Luiz do Tapajós. Mas dias depois teve que adiar para uma data não definida, pois o licenciamento da hidrelétrica ainda não estava concluído. A “culpa” do atraso não foi da Funai ou do Ibama. Faltava a conclusão do Estudo de Componente Indígena, avaliação de impactos que é feita pelo grupo de empresas interessadas em construir a hidrelétrica: Eletrobras, Eletronorte, GDF SUEZ, EDF, Neoenergia, Camargo Corrêa, Endesa Brasil, Cemig e Copel.

Hoje com 38 anos, Assirati é formada em direito e trabalhou em gestões municipais do PT em São Paulo. Foi para Brasília em 2007 para integrar a mesa de negociações com servidores públicos do Ministério do Planejamento. Desde então passou pelo Ministério da Saúde, Justiça e Secretaria-Geral da Presidência, sempre em áreas ligadas à interlocução com movimentos sociais.

Deixou a Funai em 1º de outubro de 2014, nove dias depois de uma tensa reunião com lideranças Munduruku sobre a terra indígena que pode ser alagada pela usina de São Luiz do Tapajós. Nesse encontro, ela disse aos indígenas que não poderia encaminhar a demarcação porque a hidrelétrica é prioridade de outros setores do governo. Hoje vive em Portugal, onde faz um curso de doutorado em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI.

Em setembro, o Ministério de Minas e Energia anunciou o leilão de São Luiz do Tapajós antes que a Funai pudesse dar seu parecer sobre a usina. Como interpretou esse ato?

Como uma completa desconsideração da presença dos indígenas na área de influência do empreendimento e dos seus respectivos direitos, além de uma desconsideração com o trabalho do órgão indigenista.

A Funai fez um parecer técnico apontando a usina como inconstitucional. Por que esse parecer ainda não entrou como documentação do processo de licenciamento?

A Funai não chegou a emitir o parecer sobre a licença previa de Tapajós, mas houve esse documento da equipe técnica. Assim que concluído o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), expusemos nossa posição institucional, que corrobora esse parecer da equipe técnica. O EIA aponta que um dos impactos é a supressão por alagamento de áreas dentro da terra indígena. Como o alagamento foi identificado, o empreendimento dependeria de remoção da comunidade indígena, o que é proibido pela Constituição Federal. No entanto, o Ministério do Planejamento e o Ministério de Minas e Energia alegam que não há terra indígena ali.

Por que o relatório de delimitação da Sawré Muybu, a terra que seria alagada pela usina, nunca foi publicado pela Funai?

O processo foi levado à consideração do Ministério da Justiça e Casa Civil, que, em virtude da usina, acreditam que a demarcação tem que ser discutida mais profundamente e com outros órgãos de governo.

21ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Política Indigenista

Cacique Marcos Xucurú, membro do Conselho Nacional de Política Indigenista, José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, e Assirati durante reunião em outubro de 2013

Em reunião com os munduruku, a senhora revelou que a usina impedia a demarcação e disse que só permanecia no cargo porque acreditava em uma solução para o caso. Mas, nove dias depois, deixou a presidência da Funai. O que esse caso significou para a senhora? Foi o estopim para a sua saída?

Essa reunião foi um momento muito duro para todos nós: para os indígenas, para nós da Funai, e para mim, pessoalmente. Nós, como Funai, havíamos assumido um compromisso com os Munduruku no sentido da publicação do relatório [de delimitação da Sawré Muybu]. E nós tivemos que descumprir esse compromisso em razão da prioridade que o governo deu ao empreendimento. Isso é grave. Uma situação como essa fragiliza a confiança que deve pautar as relações com os indígenas. Eles já foram muito enganados, por mais de 500 anos. Uma relação de confiança não se constrói só com palavras, exige compromisso e coerência. Por isso procurei explicar a eles o que estava acontecendo, dizer como estávamos buscando solucionar essas questões e quais seriam os próximos passos. Mas a solução que, do ponto de vista da Funai, garante o respeito à legislação brasileira e os direitos indígenas daquele povo foi descartada pelo governo naquele momento. Espero que ela possa ser reconsiderada nesse segundo governo Dilma.

Qual foi a solução apresentada pela Funai?

Solicitei que fossem apresentadas alternativas locacionais para a barragem, que o setor elétrico indicasse outros locais possíveis para a construção, onde a comunidade não fosse afetada dessa forma. A aldeia é uma área de habitação permanente daquela comunidade munduruku. Além do grave impacto que isso geraria aos indígenas, há também um entrave jurídico. Adverti sempre que a remoção daquele local é uma situação que o nosso ordenamento jurídico proíbe.

Como a proposta de mudar o lugar da barragem foi recebida?

Não foi considerada como uma solução satisfatória tendo em vista que, segundo o setor elétrico, havia necessidade de realizar o leilão em 2014.

Quem são os representantes do governo federal que defendem o projeto da usina mesmo com o alagamento de uma terra indígena?

É um projeto prioritário do PAC, essas prioridades são definidas junto ao Palácio. Além do setor elétrico, há uma dedicação especial do Ministério do Planejamento. Como é um projeto caro à própria presidenta, vira um projeto prioritário para todo o centro de governo.

Como o governo federal pretende driblar a Constituição?

Como presidenta da Funai quando no governo e como ex-presidenta e cidadã hoje, eu não acho que a Constituição tem que ser driblada. Acho que tem que ser respeitada, e o parágrafo 5º do artigo 231 diz: “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, garantido o retorno imediato logo que cesse o risco”. Essa proibição foi expressamente colocada na Constituição para evitar que qualquer interesse se sobreponha ao direito dos indígenas de viverem em suas terras e impedir que fossem removidos sob quaisquer pretextos, como era permitido antes de 88. Hoje uma remoção forçada é mais difícil, justamente porque há uma proteção normativa.

Como o governo planeja viabilizar a usina apesar desse impedimento constitucional?

O parágrafo 3º do artigo 231 diz que o aproveitamento dos recursos hídricos em terras indígenas só pode ser efetivado com “autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados”. Como não há lei regulamentando isso, há quem ache fundamental a proposição de um projeto de lei dizendo como se dará a exploração desses recursos dentro de terra indígena.

Eu acho que isso vai ser muito prejudicial nesse contexto político em que está em curso a mais grave ofensiva aos povos indígenas pós-democratização. Regulamentar nesse momento é afirmar que os recursos naturais são mais importantes que os próprios indígenas. E pergunto: os povos indígenas serão consultados sobre isso? Terão participação nesse debate? Depois, mesmo que regulamentado esse parágrafo, a vedação do parágrafo 5º continuará existindo e, portanto, proibindo que os Munduruku sejam removidos.

Essa tentativa de mudança é um caso isolado? Como ela se assemelha ao PLP 227 (projeto que regulamenta situações em que não-índios podem explorar terras indígenas)?

Tudo isso vem no bojo dessa ofensiva anti-indígena: PEC 215 [pretendia transferir ao Legislativo a decisão final sobre a demarcação], regulamentação de artigos da Constituição, mudanças no procedimento de demarcação. Quando estava na Funai apresentamos uma nota técnica manifestando nossa posição contrária a esse projeto e as razões. Esse PLP cria situações que reduzem as possibilidades de demarcação de terras. Só por isso já é impróprio.

Há ainda a portaria 303 da Advocacia Geral da União (estende para todas as demarcações as condicionantes criadas em Raposa Serra do Sol, como por exemplo proibir a extensão de terras já demarcadas). Qual o contexto político em que essa norma foi aprovada?

Um dia cheguei para trabalhar e essa portaria estava publicada no Diário Oficial. Não tive acesso a nenhuma informação prévia à aprovação, pois sequer sabia que a AGU tomaria uma medida como essa. Não sei se foi discutida com alguém ou com algum órgão de governo antes da publicação. Ela afeta muito negativamente os direitos territoriais indígenas. Inclusive diz que haveria revisão de processos de demarcação já concluídos. Isso é um absurdo político e jurídico.

O governo Dilma foi o que menos demarcou terras desde José Sarney. Como a senhora viveu isso na presidência da Funai?

Com grande descontentamento e constrangimento. Acho esse número lastimável para um governo que se diz democrático e que teve um importante apoio de setores populares.

Caiu também o número de delimitações de terras indígenas, processo que depende apenas da Funai. Há orientação para que o órgão segure esses processos?

A orientação é no sentido de que nenhum processo de demarcação em nenhum estágio, delimitação, declaração, ou homologação, tramite sem a avaliação do Ministério da Justiça e da Casa Civil. Isso é, nada mais, nesse momento, “depende apenas da Funai”.

O governo Dilma está operando um processo de desconstrução da Funai?

O que sei é que a Funai está sendo desvalorizada e sua autonomia totalmente desconsiderada. Ela precisa ser fortalecida, e ter o mínimo de condições para sua sobrevivência e bom funcionamento. Não tem recebido a atenção que merece do ponto de vista administrativo e político. Não foi realizado ou sequer aprovado um concurso público, o orçamento é insuficiente. Sob o aspecto político-institucional, esse apoio também não vem. A Fundação segue com um dirigente interino enquanto ruralistas afirmam publicamente que os processos da Funai são fraudulentos, o que é uma grande calúnia, e não há defesa por parte de setores importantes do governo.

Em 2013, a então ministra-chefe da Casa Civil Gleisi Hoffmann pediu a suspensão de demarcações com base em estudo da Embrapa. Logo depois o governo anunciou que demarcações seriam submetidas a outros órgãos. O que essa mudança significa?

A Funai já tem a prerrogativa de consultar outros órgãos e já faz isso sempre que necessário. Isso não sou eu que digo, basta olhar os processos: consulta-se o Incra, a Fundação Palmares, o ICMBio, o Ibama, o Iphan. Mas não vejo como a imposição da obrigatoriedade de consultar outros órgãos, como o Ministério da Agricultura, a Embrapa e o Planejamento pode contribuir para concluir um estudo de identificação de terra indígena. Que elementos técnicos imprescindíveis esses órgãos podem produzir acerca da identificação de um território tradicional ou de sua delimitação? Sua participação, em meu entender, seria de ordem política, com vistas à defesa de interesses que estão fora do âmbito dos direitos constitucionalmente garantidos aos povos indígenas.

Como a Constituição mudou os processos de demarcação?

Antes das atuais garantias constitucionais, a Funai fazia o estudo de identificação com base em elementos técnicos, apresentava uma delimitação e esse trabalho era submetido a uma apreciação de um colegiado, que ficou conhecido como “grupão”. Em Brasília, o “grupão” definia, segundo critérios políticos, qual seria o limite da terra indígena. Mas, com os parâmetros estabelecidos a partir de 88, isso é impensável.

Como é hoje?

A partir da Constituição de 88 e da atual legislação, os processos se aperfeiçoaram e se sofisticaram. As esquipes se especializam continuamente, há profissionais competentes nessa área. Claro que se pode colocar em análise algum aspecto jurídico, para isso há análise pela AGU e Ministério da Justiça. A legislação também prevê um prazo para que qualquer interessado conteste, apresente novos elementos e questione aspectos técnicos e jurídicos. Ao fim, quem decide sobre a declaração da área como terra indígena é o Ministro da Justiça. Caso precise de novos elementos, ele ainda pode solicitar a realização de diligências. E, depois disso tudo, ainda há uma análise da Casa Civil. Portanto, a legislação atual já traz instrumentos suficientes para a efetivação segura de um processo de demarcação.

Qual será o impacto dessa série de mudanças propostas pelo governo?

Uma efetiva política indigenista pública precisa de um órgão plenamente capaz de coordená-la e implementá-la. Hoje, a ação indigenista ainda não faz parte da preocupação e atuação de um grande número de órgãos públicos, federais, estaduais e municipais. Isso significa que, em certos casos, se a ação da Funai não chegar aos indígenas, nenhuma outra ação pública vai chegar a eles. Por isso, o desempenho da Funai é fundamental para a sobrevivência de muitos indígenas. Um funcionamento inadequado pode significar perdas irreparáveis. A desconsideração de comunidades indígenas por parte do Estado pode permitir ou acarretar a perda de vidas indígenas, ou até o desaparecimento de todo um povo indígena, o que equivale a um genocídio.

A Secretaria-Geral da Presidência coordena o processo de consulta aos Munduruku sobre as usinas no rio Tapajós. As demandas dos indígenas estão sendo ouvidas?

Não dá para fazer consulta como se ela fosse mera etapa burocrática ou obrigação processual apenas. O que está em questão são vidas que serão modificadas para sempre em função dessa intervenção [usinas]. Não dá para encarar como se os indígenas fossem um empecilho ou um fator de atraso no cronograma de um empreendimento. A intervenção é que interrompe, dificulta ou impede as práticas das comunidades indígenas. A demanda dos munduruku é, primeiro, entender o que se passa. Querem um diálogo respeitoso, esclarecedor e num tempo que permita verdadeiramente isso. Os momentos de diálogo que ocorreram durante o período em que eu estive na Funai não foram suficientes para esclarecer as questões que o povo munduruku tem sobre o assunto.

O governo trata a consulta como “mera etapa burocrática”?

A meu ver, parte do governo, em especial a parte que considera apenas a importância de empreendimentos de infraestrutura, trata assim. Mas há uma parte que não trata. A Ministra Tereza Campello fez questão que o Ministério de Desenvolvimento Social realizasse uma consulta prévia à realização de uma pesquisa em comunidades indígenas.

Em entrevista ao El País, a procuradora Thais Santi denunciou o não cumprimento das condicionantes em Belo Monte, o que provocou impactos profundos e irreversíveis entre os indígenas. Por que a Funai não exigiu que a Norte Energia cumprisse o plano?

A Funai cobrou inúmeras vezes o cumprimento das condicionantes. Eu mesma assinei muitos documentos nesse sentido. Mas exigir é uma medida que está bastante distante das possibilidades da Funai. Lembrando, inclusive, que o órgão licenciador é o Ibama, que também já recebeu muitos ofícios da Funai nesse sentido.

A procuradora descreve os impactos de Belo Monte como etnocídio e aponta a senhora, quando presidente da Funai, como uma das responsáveis. Como responde a essa acusação?

Reconheço e respeito a importância do trabalho do Ministério Publico. Mas estar na posição de presidente da Funai é bem diferente, bem mais difícil. Primeiro porque não compete à Funai conceder, negar ou suspender licenças de empreendimentos. Isso é competência do Ibama. Se o Ibama não considera o descumprimento de certas condicionantes apontadas pela Funai (e pelo MPF) como razão para rediscutir a licença de um empreendimento, não é a Funai quem vai reverter administrativamente essa situação. O que compete à Funai é cobrar do empreendedor e do Ibama. E isso nós fizemos sempre, inclusive em Belo Monte. Mas, se nem o próprio judiciário solucionou a questão nos mais de dez processos judiciais a que esse empreendimento foi submetido, parece que nada é tão simples como na compreensão da Dra. Thais. Não se resolve apenas a partir de aspectos administrativos e jurídicos.

A Funai ainda é capaz de desempenhar seu papel de defesa dos direitos indígenas no Brasil?

A Funai é, sem dúvida, a instituição pública comprometida com a defesa dos direitos indígenas no Brasil. Essa é a sua missão institucional, mas tem sido cada vez mais difícil desempenhar esse papel com a qualidade e especificidade que os povos indígenas demandam e merecem. A Funai precisa ser fortalecida. O movimento indígena e outros segmentos da sociedade civil têm tido um papel importante, é fundamental que continue a mobilização social em favor dos direitos indígenas. Mas não dá para desconsiderar que garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas no Brasil é uma obrigação inequívoca do Estado. Ou o governo olha com respeito para a Funai e para a importância de sua missão, ou deixará claro que não se importa nem se responsabiliza pelo futuro dos povos indígenas no Brasil.

Entrevista originalmente publicada no site da Agência Pública.

 

Os anarquistas e a geografia urbana (2): Reclus

Poster comemorativo para os jovens libertários (DD LL) da Catalunha, de 1937. "A anarquia é a mais alta expressão da ordem".

Poster comemorativo para os jovens libertários (DD LL) da Catalunha, de 1937.
“A anarquia é a mais alta expressão da ordem”.

Postado em Passa Palavra, em 30 de novembro de 2014

Com Élisée Reclus, aprende-se que a ação humana sobre o meio circundante, e a influência do meio sobre a ação humana, são fatores determinantes para o desenvolvimento das cidades. Que as cidades e suas relações recíprocas podem ser concebidas de outras formas que não aquelas pautadas pelas necessidades do Estado e das empresas. Por Manolo

Leia aqui a primeira parte do artigo.

2 Elisée Reclus, pioneiro da geografia urbana

Élisée Reclus (1830-1905) é um dos fundadores da geografia moderna, junto com Paul Vidal de la Blache, Carl Ritter, Jean Brunhes e Friedrich Ratzel. Tido como um dos principais geógrafos do seu tempo, chegou inclusive, graças à sua reputação, a contribuir para a solução de problemas diplomáticos internacionais [1]. Sua militância política e o forte acento social e histórico de sua geografia, entretanto, levaram os outros fundadores da geografia moderna – e seus discípulos – a dizer, textualmente, que sua obra “contém interessantes pontos de vista geográficos, mas que é sobretudo história e sociologia”.

2.1 Meio-espaço, meio-tempo, ação recíproca e as “leis” da geografia social

Élisée Reclus

A metodologia de Élisée Reclus é, num primeiro contato, estranha:

No estudo das características diversas do planeta, em suas reações mútuas de justaposição e influência, nas mudanças provocadas pela série das eras, o elemento de comparação que sempre teremos diante dos olhos será a sociedade humana. A história da Terra e aquela da humanidade em suas ações e reações continuadas, desde as origens conhecidas até os tempos que se preparam, serão o objeto de nosso estudo. Para resumir nosso pensamento, buscaremos seguir a evolução da humanidade em relação às formas terrestres e a evolução das formas terrestres em relação à humanidade (RECLUS, 2010a, p. 78-79)

Haveria em Reclus mais que relações, mas praticamente uma unidade entre sociedade e natureza, quase rompendo a distinção physis/nomos herdada há milênios da ontologia aristotélica? A dificuldade da empreitada ontológica era reconhecida pelo próprio Reclus:

É verdade, eu sabia de antemão que nenhuma pesquisa far-me-ia descobrir essa lei de um progresso humano cuja miragem sedutora agita-se incessantemente em nosso horizonte, e que foge de nós e dissipa-se para recriar-se uma vez mais […] Não, mas podemos ao menos, nessa avenida dos séculos que os achados dos arqueólogos prolongam constantemente naquilo que foi a noite do passado, reconhecer a íntima ligação que une a sucessão dos fatos humanos à ação das forças telúricas: é-nos permitido perseguir no tempo cada período da vida dos povos correspondendo à mudança dos meios, observar a ação combinada da Natureza e do próprio Homem, reagindo sobre a Terra que o formou. (RECLUS, 2010a, pp. 45-46)

Mais modestamente, o que Reclus propôs foi uma análise simultaneamente sincrônica e diacrônica do espaço: “Ao meio-espaço, caracterizado por milhares de fenômenos exteriores, deve-se ajuntar o meio-tempo, com suas transformações incessantes, suas repercussões sem fim” (RECLUS, 1905a, p. 110). Para Reclus, ao contrário de muitos deterministas seus contemporâneos, não havia qualquer primazia do meio natural sobre o homem:

…todas estas forças [naturais] variam de lugar em lugar e de época em época; é portanto em vão que os geógrafos têm ensaiado classificar numa ordem definitiva, a série de elementos do meio que influem sobre o desenvolvimento de um povo; os fenômenos múltiplos, entrecruzados da vida não se permitem enumerar numa ordem metódica. […] A história da humanidade, em seu conjunto e suas partes, não se pode assim explicar pela soma dos meios com “juros compostos” pela sucessão dos séculos; mas para entender a evolução que se realiza, também temos de apreciar em que medida os próprios meios evoluem pelo fato da transformação geral [da sociedade] e modificam sua ação em consequência. […] Há também os aspectos da natureza que, sem haver mudado em nada, não deixam de exercer uma ação completamente diferente por efeito da história geral [da sociedade] que modifica o valor relativo de todas as coisas. (RECLUS, 1905a, p. 112-114)

Meio-tempo, meio-espaço e ação combinada e recíproca da Natureza e do Homem – desfazendo, assim, qualquer fetiche naturalista ou de certo ecologismo vulgar hoje em moda – são conceitos-chave da geografia social, cujas três “leis” Reclus sintetizou:

A primeira categoria de eventos que o historiador constata mostra-nos como, por efeito de um desenvolvimento desigual entre os indivíduos e sociedades, todas as coletividades humanas, à exceção das tribos permanecidas no naturismo primitivo, se desdobram, por assim dizer, em classes ou castas, não somente diferentes, mas opostas em interesses e tendências, mesmo francamente inimigas em todos os períodos de crise. […] O segundo fato coletivo, consequência necessária do desdobramento dos corpos sociais, é que o equilíbrio rompido de indivíduo a indivíduo, de classe a classe, se equilibra constantemente em torno de seu eixo de repouso: a violação da justiça clama sempre por vingança. Daí as incessantes oscilações. […] Um terceiro grupo de fatos, ligando-se ao estudo do homem em todas as épocas e todos os países, atesta-nos que nenhuma evolução na existência dos povos pôde ser criada senão pelo esforço individual. É na pessoa humana, elemento primário da sociedade, que se deve buscar o choque impulsivo do meio, destinado a se traduzir em ações voluntárias para disseminar as ideias e participar das obras que edificarão o comportamento das nações. O equilíbrio das sociedades só é instável pela perturbação imposta aos indivíduos em sua franca expansão. A sociedade livre estabelece-se pela liberdade fornecida em seu completo desenvolvimento a cada pessoa humana, primeira célula fundamental, que, em seguida, agrega-se e associa-se como lhe apraz às outras células da mutável humanidade. […] A “luta de classes”, a busca do equilíbrio e a decisão soberana do indivíduo, tais são as três ordens de fatos que nos revela o estudo da geografia social e que, no caos das coisas, mostram-se assaz constantes para que se possa dar-lhes o nome de “leis”. (RECLUS, 1905a, pp. II-IV; 2010a, pp. 47-50)

2.2 A geografia urbana de Reclus

Aldeias normalmente espaçadas (de L'homme et la terre)

Muito à frente de seu tempo, e graças à influência de Piotr Kropotkin, Élisée Reclus foi um dos primeiros geógrafos a dedicar atenção especial às cidades – e entre os pioneiros da disciplina, foi o que mais analisou a questão.

Entre as obras de Élisée Reclus, a Nouvelle Géographie Universelle (19 volumes) fez muito sucesso na época de sua publicação (1876-1894). É uma descrição extremamente minuciosa e rigorosa do “estado do mundo” na época, riquíssima em dados demográficos, corográficos, econômicos, topográficos, cartográficos, geológicos etc. Nesta obra, Reclus divide internamente os países em zonas de influência (com bastante riqueza e detalhe), zonas de vegetação (com menor impacto na obra), a pertença étnica de sua população (onde isto se aplicava) e… a “rede urbana”, entre muitas aspas. Nesta obra Reclus não conceituou a rede, não estruturou abstratamente a hierarquia entre cidades; apenas identificou empiricamente fatos concretos que se repetiam e os descreveu o mais detalhadamente possível, sem extrair deles qualquer teoria geral.

Já em L’homme et la terre (1905-1908, 6 vols.) as intuições reclusianas sobre “rede urbana” chegam ao nível de uma primeira teoria sobre o assunto, especialmente no capítulo II do livro IV, intitulado ”Répartition des hommes” (Repartição dos homens). Este pequeno ensaio – 41 páginas no original francês (RÉCLUS, 1905b, pp. 335-376) – é repleto de ideias sobre questões como causas do êxodo rural na Europa; vantagens da convivência urbana; fatores de atração locacional na fundação de cidades; relação entre agricultura, clima e relevo na formação de cidades; método para estudo da “personalidade” e do “caráter” de uma cidade tal como se apresenta através da acumulação de obras, construções, aglomerações, bairros etc.; morfologia urbana; especulação imobiliária; usos militares da malha urbana; indústria e poluição; estética e monumentos urbanos; saneamento urbano; relação entre meios de transporte e suburbanização; cidades-jardim (Port Sunlight, Bourneville, Letchworth); superpopulação urbana, concentração urbana e sua perspectiva futura.

O ponto central deste ensaio é a teoria da localização urbana e hierarquização entre cidades. Se considerarmos o “panteão” da teoria da localização econômica como composto por Johann Heinrich von Thünen (1783-1850), Alfred Marshall (1842-1924), Alfred Weber (1868-1958), Walter Christaller (1893-1969) eAugust Lösch (1906-1945) e verificarmos certo grau de formalização matemática de suas teorias como elemento comum, faltou apenas isto para que Élisée Reclus fosse incluído neste rol. Toma-se aqui a liberdade de expor os pontos centrais da teoria da localização urbana e hierarquização entre cidades de Élisée Reclus numa só e longa citação:

Aldeias anormalmente espaçadas (de L'homme et la terre)

Se a Terra fosse completamente uniforme em seu relevo, na qualidade do solo e nas condições do clima, as cidades ocupariam uma posição geométrica, por assim dizer: a atração mútua, o instinto de sociedade, a facilidade das permutas as teriam feito nascer a distâncias iguais umas das outras. Tendo em vista uma região plana, sem obstáculos naturais, sem rio, sem porto, situada de uma maneira particularmente favorável, e não dividida em Estados políticos distintos, a maior cidade teria sido construída diretamente no centro do país; as cidades secundárias ter-se-iam distribuído a intervalos iguais sobre o território, espaçadas ritmicamente, e cada uma delas teria seu sistema planetário de cidades inferiores, tendo seu cortejo de vilarejos. A distância normal de uma jornada de marcha, tal deveria ser, sobre uma planície uniforme, o intervalo entre as diversas aglomerações urbanas; o número de léguas percorridas por um caminhante comum entre a aurora e o crepúsculo, sejam doze ou quinze correspondendo às horas do dia, constitui a etapa regular de uma cidade à outra. A domesticação dos animais, depois a invenção da roda, e, em seguida, das máquinas, modificaram, gradual ou bruscamente, as medidas primitivas: o passo da montaria, depois o giro do eixo da roda determinaram a distância normal entre as grandes reuniões de homens. Quanto aos vilarejos, sua distância média tem por medida o percurso que pode fazer o agricultor empurrando seu carrinho de mão carregado de feno ou de espigas. A água para o gado, o transporte fácil dos frutos do solo, eis o que regula a localização do estábulo, do celeiro e da cabana. Entre as regiões povoadas há muito tempo e ainda apresentando na distribuição urbana de seus habitantes as distâncias primitivas, encontramos, na aparente desordem das cidades, uma ordem de repartição que foi, evidentemente, outrora regulada pelo passo dos caminhantes. […] [P]odemos constatar a surpreendente regularidade com a qual se distribuíram as aglomerações urbanas antes que as explorações mineiras e industriais viessem perturbar o equilíbrio natural das populações. […] Entre a capital [Paris] e os centros administrativos de segunda ordem, fundaram-se, em intervalos sensivelmente iguais, cidades menores, mas ainda consideráveis, separadas por uma dupla etapa, de vinte e cinco a trinta “léguas”: Orléans, Tours, Poitiers, Angoulême. Enfim, a meio caminho de cada um desses centros de terceira ordem, formaram-se cidades modestas, indicando a etapa média: Etampes, Amboise, Châtellerault, Ruffec, Libourne. Assim, o viajante, atravessando a França, encontrava alternativamente uma cidade de simples repouso e uma cidade de completo reconforto: a primeira bastava ao pedestre, a segunda convinha ao cavaleiro. Em quase todas as estradas o ritmo das cidades produz-se do mesmo modo, cadência natural regulada pela marcha dos homens, dos cavalos e das carruagens.

Cidades europeias com pelo menos 100 mil habitantes (de L'homme et la terre)

As irregularidades da rede das etapas explicam-se todas pelas características do relevo, pelo curso dos rios, pelos mil contrastes da geografia. […] Todas as condições da natureza, agrícolas, geográficas, climáticas, influem para bem ou para mal no desenvolvimento das cidades. Cada vantagem aumenta sua força de atração, cada desvantagem a diminui. A grandeza dos grupos urbanos mede-se exatamente pela soma dos privilégios naturais, admitindo, evidentemente, que a ambiência histórica seja identicamente a mesma. Duas cidades, uma da África, a outra da Europa, encontrando-se em condições similares, serão contudo muito diferentes, porquanto a evolução da história circundante difere para cada uma delas: no entanto, haverá paralelismo em seus destinos. […] [D]ois centros urbanos próximos influenciam-se mutuamente, seja para desenvolver-se juntos quando seus interesses completam-se […], seja para prejudicar-se quando os privilégios são da mesma ordem […]. Depois das vantagens do clima e do solo, aquelas do sub-solo exercem, às vezes, uma influência decisiva. […] Cada conquista do homem cria pontos vitais em locais imprevistos […] Que mudança rápida na repartição das cidades quando o homem tornar-se senhor da aviação, da aeronáutica! (RECLUS, 2010, pp. 38-41, 46-48)

Modelos deste tipo são uma das três teorias fundamentais da geografia atual juntamente com a renda fundiária e a difusão – o que leva a considerar Reclus não apenas como um precursor em matéria de análise urbana, mas igual e claramente como um dos fundadores da geografia contemporânea (BOINO, 1999).

Mais especificamente, a rede urbana e a hierarquização entre cidades são dois conceitos fundamentais comumente associados a Walter Christaller e sua teoria das localidades centrais,criada em 1933 a partir da observação empírica da rede urbana da Alemanha meridional, ou a George Kinglsey Zipf e sua criação daregra da ordem-tamanho em 1935. Roberto Lobato Corrêa (CORRÊA, 1989, p. 20) aponta que muitas das ideias sobre a rede urbana e a hierarquização de cidades já estava presentes nas obras do economista franco-irlandês Richard Cantillon (1755), do filósofo saint-simoniano francês Jean Reynaud (1841) e do engenheiro francês Léon Lalanne (1863); como se vê, Élisée Reclus já ultrapassa o status de precursor e apresenta uma teoria muito refinada da rede urbana e da hierarquização entre cidades.

Aldeias agrícolas e industriais (de L'homme et la terre)

Além disso, quando comparada, por exemplo, com a teoria dos lugares centrais de Walter Christaller, a teoria da localização e hierarquização urbanas de Reclus mostra-se mais dinâmica, flexível e pragmática. Enquanto o modelo reclusiano de hierarquização urbana funda-se nodesenvolvimento tecnológico, no deslocamento humano (e no alargamento tecnológico do alcance deste deslocamento) e nas necessidades do trabalho, o modelo christalleriano está totalmente enraizado no consumo de bens centrais [2]; o modelo reclusiano, deste modo, é muito mais útil a um planejamento do espaço urbano feito por trabalhadores em função de suas próprias necessidades que o modelo christalleriano, perfeito para planejar o espaço na perspectiva do Estado e das empresas.

2.3 O resgate da obra de Reclus

Lançada ao esquecimento por décadas, a obra de Élisée Reclus foi resgatada entre os anos 1960 e 1970 por Yves Lacoste e David Harvey. Atualmente, Federico Ferretti e Phillipe Pelletier esforçam-se mais detidamente para fazer pontes entre a obra de Reclus e temas como colonialismo e estudos pós-coloniais, educação popular e geopolítica.

No Brasil, país objeto de monografia específica de Reclus (Reclus, 1900), até onde foi possível pesquisar nenhuma obra de Reclus havia sido publicada desde o início do século XX até 1985, quando sai publicada na coleção “Grandes Cientistas Sociais”, da editora Ática, uma coletânea de trechos da obra reclusiana.

Graças ao esforço pioneiro de Plínio Augusto Coelho, que traduz e publica escritos anarquistas desde 1989 através da editora Imaginário, capítulos da obra L’homme et la terre estão sendo traduzidos para o português e publicados na forma pequenos livros.

E o interesse por Reclus já chegou à academia brasileira: entre 6 e 10 de dezembro de 2011 realizou-se, na USP, o colóquio internacional “Élisée Reclus e a geografia do novo mundo”, cujas memórias estão disponíveis na internet (https://reclusmundusnovus.wordpress.com/memorias/). Tudo isto é plenamente justificado:

Apesar da utilização de metáforas biológicas, o texto de Reclus interessa pela visão dos processos, pela explicação teórica dada para a fundação das cidades, entre outras, como, por exemplo, a indicação de especuladores como agentes do desenvolvimento urbano. (VASCONCELOS, 2012, p. 65)

Élisée Reclus, 1903

Em tempos de efervescência das lutas sociais urbanas, a obra de Élisée Reclus – descontado, evidentemente, o evolucionismo quase pueril que a atravessa em dados momentos (RECLUS, 2002) – é extremamente útil para quem projeta o desenvolvimento territorial urbano por fora dos esquemas estatais e empresariais, em conjunto ou a partir dos movimentos sociais.

3 Conclusão: atualidade do pensamento anarquista sobre cidades

Em tempos de “crise do pensamento crítico” – que não é outra coisa além da crise do pensamento marxista (SOUZA, 2010, pp. 2-4), posto pelos fatos diante de seus próprios limites e pouco capaz de superar a si próprio como orienta seu próprio fundador – o que trazem os anarquistas de relevante para entender a questão urbana hoje?

Com Kropotkin, aprende-se que é impossível conceber qualquer luta social desgarrada do espaço que é seu palco e da história de lutas pregressas pelo uso e produção deste mesmo espaço. Que as cidades foram, desde tempos muito recuados, palco de lutas libertárias que deixaram traços e rastros no tempo e no espaço, capazes de elucidar o conteúdo e o sentido das lutas do presente. Que somente a ação direta dos explorados e oprimidos pode apresentar soluções viáveis e duradouras para a questão urbana.

Com Élisée Reclus, aprende-se que a ação humana sobre o meio circundante, e a influência do meio sobre a ação humana, são fatores determinantes para o desenvolvimento das cidades. Que as cidades e suas relações recíprocas podem ser concebidas de outras formas que não aquelas pautadas pelas necessidades do Estado e das empresas.

E que lições se tira disto?

Em primeiro lugar, a indissociabilidade entre espaço e política. A dimensão espacial, para os anarquistas, é tão importante quanto as dimensões social, política, histórica ou econômica, pois é seu substrato. Pensar a história, a política, a economia ou a sociedade sem o espaço, para os anarquistas, é pensar em abstrações dissociadas da realidade – o que, tendo em vista o horizonte político de uma sociedade sem Estado e sem patrões, construída a partir da iniciativa dos trabalhadores auto-organizados, é um perigo.

Barricada na Comuna de Paris. Por lutar nas barricadas da Comuna, Reclus passou o resto da vida no exílio.

Em segundo lugar, a centralidade da cidade e do espaço urbano para as lutas políticas. A cidade é tida pelos anarquistas como espaço fundamental da democracia, das relações face-a-face, da experiência vivida; não por acaso, propugnam novas formas de política e de produção econômica que emerjam do simples ao complexo, do indivíduo à sociedade, do local ao global. Em tempos de globalização corporativa, de sociedade de controle e de império, é um legado importantíssimo.

Em terceiro lugar, a compreensão da produção do espaço urbano pelas lutas sociais. Não há um só entre os anarquistas analisados neste artigo que reflita sobre o desenvolvimento das cidades e a produção do espaço urbano fora de um contexto de lutas sociais; pode-se dizer, assim, que para os anarquistas o espaço é produto das lutas pelo seu uso e produção.

Em quarto lugar, a ação direta como método para a solução da questão urbana. Vivemos um tempo de burocratização de movimentos sociais (PASSA PALAVRA, 22 ago. 2010) e de progressivo atrelamento de movimentos sociais a políticas governamentais (PASSA PALAVRA, 05 fev. 2012).

Um tempo de enredamento dos movimentos de luta por moradia em programas governamentais como o Minha Casa, Minha Vida (MANOLO, 01 abr. 2012; PASSA PALAVRA, 01 jun. 2014; 08 jun. 2014; 15 jun. 2014).

Um tempo de escolhas difíceis para os movimentos urbanos: manter a autonomia frente ao Estado e às empresas do setor imobiliário e construir as lutas num modelo autogestionário de ação direta, sem resultados fáceis e na contramão do consenso generalizado, ou avançar em conquistas pontuais, mas submetendo-se aos dispositivos políticos, sociais e econômicos de dominação do Estado e das empresas?

O paradigma anarquista de compreensão da questão urbana, se não apresenta soluções diretas e imediatas para estes reptos, problematiza e chacoalha respostas teóricas consolidadas a estes problemas práticos; o desvelar desta crítica ausente, aqui, faz-se mais necessária do que nunca.

NOTAS

[1] “Pesquisando no acervo do Conselho Municipal da cidade de Genebra, encontramos um documento contendo afirmações que chamaram logo a nossa atenção. O fundo cartográfico Reclus-Perron conservado em Genebra possui particularmente um mapa manuscrito que o explorador Henri Coudreau (1859-1899) fez para Elisée Reclus (1830-1905). Ele foi decisivo para a arbitragem do Conselho federal suíço que julgou, em primeiro de dezembro de 1900, o contestado franco-brasileiro sobre as fronteiras entre o Brasil e a Guiana, anexando ao Brasil um território de 260.000 quilômetros quadrados.” (FERRETTI, 2013, p. 2)

[2] “Há uma conexão definitiva entre o consumo de bens centrais e o desenvolvimento de lugares centrais. O desenvolvimento daqueles lugares centrais cujos habitantes vivem da venda de bens centrais torna-se mais pronunciado se muitos bens centrais forem consumidos que se poucos bens centrais forem consumidos. […] O consumo dos bens centrais depende da distribuição da população, e especialmente do grau de aglomeração do próprio lugar central. Ademais, o consumo de bens centrais depende primariamente da demanda por mercadorias, que é determinada pela estrutura profissional e social, assim como pela infraestrutura de renda ou riqueza da população. O consumo de diferentes tipos de bens centrais é determinado pela quantidade disponível, pela lei da oferta e da procura e, sobretudo, pelo preço das mercadorias no lugar central. Este preço é determinado por fatores tais como renda, juro, salários e taxas. Além disso, a demanda depende do tamanho e da formação geográfica da região complementar. Estes fatores determinam o alcance da mercadoria; as condições particulares de transporte também desempenham papel importante. Quando determinamos o montante de consumo e a alocação da oferta de bens centrais, de acordo com os fatores mencionados, a questão sobre os tamanhos, locações e número dos lugares centrais pode, ao menos genericamente, ser respondida”. (CHRISTALLER, 1966, pp. 27-28)

REFERÊNCIAS

BOINO, Paul. “Plaidoyer por une géographie reclusienne”. Réfractions, nº 4, mar. 1999. Disponível na internet: http://refractions.plusloin.org/spip.php?article349. Acesso em 10 mai. 2014.

CHRISTALLER, Walter. Central places in Southern Germany. Nova Jérsei: Prentice-Hall, 1966.

CORRÊA, Roberto Lobato. A rede urbana. São Paulo: Ática, 1989.

FERRETTI, Federico. “O fundo Reclus-Perron e a controvérsia franco-brasileira de 1900: um mapa inédito que decidiu as fronteiras do Brasil”. Terra Brasilis (nova série), nº 2, 2013. Disponível na internet:http://terrabrasilis.revues.org/744 . Acesso em 10 jun. 2014.

MANOLO. ”’Há muito espaço para crescer’ (3ª parte)”. Publicado em 01 abr. 2012. Disponível na internet:/2012/04/54173. Acesso em 18 mai. 2014.

PASSA PALAVRA. “Entre o fogo e a panela”. Publicado em 22 ago. 2010. Disponível na internet:/2010/08/27717. Acesso em 18 mai. 2014.

_____________. “Estado e movimentos sociais”. Publicado em 05 fev. 2012. Disponível na internet:/2012/02/52448. Acesso em 18 mai. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte I)”. Publicado em 01 jun. 2014 Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte II)”. Publicado em 08 jun. 2014. Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte III)”. Publicado em 15 jun. 2014. Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

RECLUS, Élisée. Estados Unidos do Brazil: geographia, etnographia, estatística. Rio de Janeiro: Garnier, 1900.

_____________. L’homme et la terre. Vol. 1. Paris: Librairie Universelle, 1905a.

_____________. L’homme et la terre. Vol. 5. Paris: Librairie Universelle, 1905b.

_____________. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2002.

_____________. Da ação humana na geografia física/Geografia comparada no espaço e no tempo. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2010a.

_____________. Renovação de uma cidade/repartição dos homens. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2010b.

SOUZA, Marcelo Lopes de. “Uma geografia marginal e sua atualidade: a linhagem libertária”. Texto apresentado durante o Primeiro Colóquio Território Autônomo (UFRJ, 26 e 27 de outubro de 2010). Disponível na internet: http://territorioautonomo.files.wordpress.com/2010/10/uma-geografia-marginal-e-sua-atualidade2.pdf . Acesso em 15 mai. 2014.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Dois séculos de pensamento sobre a cidade. 2ª ed. rev. atual. Salvador: EdUFBA/Editus, 2012.

Um sindicalista rural eborense: José Sebastião Cebola (memória libertária)

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

Há uns anos atrás, como forma de homenagear a memória deste anarquista que ainda perdurava na freguesia, foi dado o nome de José Sebastião Cebola a uma rua dos Canaviais (Évora). Mas a “discrição” ou a má-fé dos autarcas de então foi tal que nem uma pequena inscrição, com a data do nascimento e morte (1877-1920) ou em que qualidade José Sebastião se distinguiu, a placa mereceu. Bastava terem posto anarcosindicalista, sindicalista revolucionário, anarquista, sindicalista rural, militante da CGT ou o que se lembrassem para que quem mora naquela rua ou quem por ali passa tivesse a mínima ideia de quem se trata. Numa cidade onde qualquer militante  comunista, por mais modesto que seja, tem essa qualidade inscrita na placa de rua, José Sebastião Cebola ali continua anónimo, como se por esse facto se conseguisse apagar a memória das causas pelas quais lutou. (Portal Anarquista)
*
Jofre Alves (*)

capturar8O alentejano José Sebastião Cebola nasceu a 27 de Outubro de 1877, filho de José Maria Cebola, natural da freguesia de Nossa Senhora de Machede, e de Joana Augusta da Silva, natural da Sé, freguesia da cidade de Évora, sendo o primogénito dos quinze filhos deste casal pobríssimo. Depois da instrução primária, com os rudimentos de ler, escrever e contar, entrou de imediato na dura labuta pela existência, como assalariado rural, aos 14 anos de idade, assentando, contudo, praça de soldado do Regimento de Cavalaria 5 a 10 de Dezembro de 1897, passa à reserva e à condição civil dois anos volvidos.
Neste período da sua vida, em contacto próximo com outras vivências e experiências, José Cebola aderiu ao ideal confesso dos republicanos, ideologia que perfilhou durante algum tempo, para abraçar definitivamente a fé na causa anarquista, a medrar desde 1900, onde se manteve como fervoroso e diligente sindicalista revolucionário até à morte, sem dar mostras de desvanecimento.
Passou a lutar em Évora pela causa sindical, constituindo os primeiros embriões da organização operária local, e, mais tarde, empenhado nas ideias associativas da classe dos trabalhadores rurais, das quais foi pioneiro e propagandista inexcedível. Era dotado de viva inteligência e duma vontade de ferro, que fizeram dele o mais tenaz defensor do sindicalismo rural, mesmo quando os ventos sopravam contrários. Em finais de 1910, com outros camaradas sindicalistas e anarquistas, fundaria a Associação dos Trabalhadores Rurais de Évora, uma das primeiras associações de classe do proletariado rural do País, demonstrando grande capacidade de militância e de trabalho político em prole dos demais.
Fez, por isso mesmo, parte de diversas direcções e das comissões de propaganda encarregadas de levar os ideais associativos à restante região do Alentejo, cuja província percorre de lés-a-lés em penosas condições, um dia, outra semana em redobrada energia, vigiado pelos esbirros de biqueiras mosqueadas, a espreitar das luras.
Elemento destacadíssimo das lutas laborais do proletariado rural desencadeadas durante a fase inicial da I República, organiza as greves de 1 de Junho de 1911, 24 de Janeiro de 1912, 30 de Janeiro de 1916 e 18 de Novembro de 1918. Conheceu, desde cedo, as garras aduncas e cavernosas da repressão ao ser detido em inúmeras ocasiões, ao rufo de tambores, logo em 1911 e a 26 de Janeiro de 1912, altura em que foi deportado para Lisboa sob escolta militar, antes do sol-nado, encarcerado no Limoeiro e depois nos porões de um navio surto no Tejo, no seguimento da greve dos assalariados rurais de Évora. Não sossega nem esmorece, insubmisso e afoito no sonho de melhorar o governo da vidinha dos pobres e míseros, sem dar ouvidos às almas penadas. Seria, igualmente, fundador da Federação Nacional dos Trabalhadores Rurais de Portugal, participando activamente no congresso instituidor de 25 e 26 Agosto de 1912, onde foi eleito membro da Comissão de Propaganda da novel organização, com a missão de percorrer o Alentejo e Ribatejo a fim de lançar a semente da associação de classe.
Devido a essa hercúlea tarefa organizativa foi detido, sovado e processado por diversas vezes, forçado a andar a monte, em finais de 1912 e princípio de 1913, para fugir da bala que lhe ameaça rasgar o fígado. Neste ano foi eleito secretário-geral da Federação Nacional dos Trabalhadores Rurais de Portugal, reconhecimento cabal da sua imensa aptidão organizativa e combativa.
Fundou em 1912 o mensário O TRABALHADOR RURAL, publicado em Évora como órgão da Federação Nacional dos Trabalhadores Rurais de Portugal e que era claramente anarco-sindicalista. Participa activamente no 3.º Congresso Nacional Operário, realizado em Tomar a 14 de Março de 1914, cujo ponto alto foi a fundação da União Operária Nacional como órgão unitário do sindicalismo e dos trabalhadores. Forma em 1915, conjuntamente com Álvaro Dinis, o Grupo Rebelião Anarquista de Évora. Destaca-se como divulgador da imprensa social, sindical e operária, com especial realce para difusão de A AURORA (anarquista, 1910), A TERRA LIVRE (anarquista, 1913), O PROLETÁRIO (sindicalista, 1918), O HOMEM LIVRE (anarco-sindicalista, 1918), A BATALHA (anarco-sindicalista, 1919), AVANTE (anarquista, 1919), O REBELDE (sindicalista, 1920).
Com imenso custo pessoal, criou e impulsionou o Grupo de Propaganda Livre de Évora, fundado a 3 de Janeiro de 1912, o qual manteve uma escola particular de instrução primária nos arredores da cidade (Canaviais, nota do portal anarquista) , inspirado na dedicação à ciência infusa da alfabetização e ensino dos filhos dos operários e dos assalariados rurais, quite com o escrúpulo da sua elevada consciência. Foi um dos organizadores do comício operário em Évora, a 3 de Março de 1919, contra a fome, a carestia de vida e o desemprego, e do comício e manifestação de 18 de Maio de 1919 dos trabalhadores rurais, reunidos em Évora, para exigir a aplicação do decreto das oitos horas de trabalho, causa próxima de nova prisão. Organiza e preside ao 4.º Congresso Nacional do Trabalhadores Rurais, realizado em Beja a 15 de Março de 1920, que lhe causará o cativeiro. Em 14 de Junho de 1919 foi detido a ferros, comprimido nos calabouços e barbaramente espancado pelos agentes da ordem policial, duras sevícias aplicadas, acusado com labéu e ofensa de pertencer a uma «associação de malfeitores», pérfidas ferroadas. Dessa penosa tortura, que o deixou em mísero estado, nunca mais recuperaria.
Para tornar mais precária a débil situação de saúde, seria novamente preso a 21 de Maio de 1920 por um forte aparato da GNR, como verdadeiros dragões, levado de rojo ao tribunal de 1.ª instância de Évora, conjuntamente com 20 trabalhadores. Ei-lo condenado a dois anos de prisão maior, ácida sentença do vitríolo político proferida a 31 de Maio, cuspinhada por juiz afivelado de ar severo, raciocínio reticente e escorregadio. Tudo em pé, aos vivas e morras! Faleceu a 20 de Dezembro de 1920, tinha 43 anos de idade, vitimado pelos estragos duma perniciosa repressão, mas também devido às colossais canseiras do seu combate revolucionário, durante o qual pôs em risco a sua vida, a sua liberdade e a subsistência da sua família, sempre movido pela chama de melhorar as condições de vida e económicas dos «escravizados dos campos», como dizia. O sol percorria largo naquela faina.
Vítima, porém, duma república de mentalidade fossilizada que não hesita um instante nem tinha pejo em chegar a palha para chamuscar e oprimir os suspeitos de reclamar o direito à dignidade, ao trabalho e ao pão como se fosse crime de traição à Pátria, numa altura em que a fome crescia e agravava-se todos os dias como o cume dos Himalaias. José Cebola sabia que as pessoas não têm boquinha de cera, nem todos têm cataratas nos olhos e rapavam as côdeas como as pitas rapam o quinteiro! Pagou com a vida, por isso!
(*) in http://abril-de-novo.blogspot.com/
também em: “registo” nº 123, Évora, 7/19/2010

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Os operários empregados na reconstrução dos Paços de Concelho de Évora, numa foto tirada por ocasião do 1º de Maio de 1911, primeira vez que o Dia do Trabalho foi celebrado em regime republicano. Imagem de Ricardo Santos, um precursor da fotografia em Évora, com atelier na Rua de Aviz. Arquivo Fotográfico CME (aqui: jornal “registo” nº 123, Évora, 7/19/2010)

Anexo:

A greve dos trabalhadores rurais de 1912

Foi breve o “namoro” entre os operários e a República

O movimento operário em Évora já tinha alguma força na altura da implantação da República. Os tipógrafos eram uma classe profissional reivindicativa.

Em Évora, alguns operários seduzidos pela música, na sua maioria de inspiração anarquista ou ligados à carbonária, já tinham criado, entre outras associações, em 1900, o Grupo Operário Joaquim António de Aguiar (ex-primeiro- ministro da monarquia constitucional e chefe do partido regenerador, anticlerical assumido e responsável, enquanto ministro, pelo decreto-lei que extinguiu todos os conventos, mosteiros,
colégios, hospícios, e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares, sendo os seus bens secularizados e incorporados na Fazenda Nacional. Essa lei, pelo seu espírito anti-eclesiástico, valeu- lhe a alcunha de o Mata- Frades).

O primeiro de Maio de 1911 foi logo comemorado em Évora, mas o primeiro grande momento revolucionário – que significou também logo um “corte” profundo entre o movimento operário e a República –, deu-se em Janeiro de 1912, quando os trabalhadores rurais da zona de Évora entram em greve, devido ao desrespeito de um acordo salarial por parte dos proprietários. O Governador Civil resolve encerrar a Associação dos Trabalhadores Rurais e prender os sindicalistas mais activos. Esta atitude provoca uma paralisação de todas as classes dos trabalhadores eborenses. O poder responde com o encerramento de todas as associações operárias e cargas da Guarda, já Republicana, contra as manifestações sindicalistas, levando à morte de um trabalhador. Face a esta situação, é proclamada, em Lisboa, a greve geral de solidariedade com os trabalhadores de Évora, a 29 de Janeiro. A greve teve muita adesão em Lisboa, com vários incidentes na baixa e na margem sul do Tejo. Na Moita, o Administrador do Concelho foi morto pela multidão em revolta.

C.J

(jornal “registo” nº 123, Évora, 7/19/2010)