Texto de Juliana Fausto, retirado do site CONTRACAMPO, Revista de Cinema, fonte aqui.
Fantôme, Fantasma. Do grego phântasma, aparição, visão, sonho. Essa é a primeira palavra do título do penúltimo filme de Luis Buñuel, O Fantasma da Liberdade. Já se disse que esse fantasma estaria fazendo referência lá à primeira sentença do “Manifesto Comunista”: “Um fantasma ronda a Europa – o fantasma do comunismo”. Mas parece que ainda podemos ir mais fundo no sentido se nos detivermos um pouco sobre a palavra ‘fantasma’. Aparição. Visão. Sonho. Todos esses sentidos sendo atrelados à liberdade. Porque o que vivemos hoje em sociedade está longe de ser uma experiência de liberdade, mas como o diretor apontou, estamos de tal modo presos às nossas “jaulas psíquicas a ponto de as preferirmos à liberdade, uma experiência e aspiração que tampouco entendemos ou desejamos”. E o que Buñuel pretende é justamente mostrar a arbitrariedade voluntariosa que preenche a vida cotidiana; a maneira como, clamando não possuirmos nenhum mestre a nos mandar, nos tornamos escravos de nossos desejos, escravos cegos de nós mesmos.
A liberdade só pode ser experimentada por nós pois, como aparição, visão ou sonho. E é sobre isso o Fantasma…. Assim como o espectro do comunismo assombrava a Europa lá pelos idos de 1850, o intento de Buñuel aqui foi o de soltar o fantasma da liberdade, levá-lo para as ruas, para o meio da sociedade do desejo burguesa que sempre foi seu alvo preferido.
O Fantasma da Liberdade é composto por esquetes que não tem muita ligação uns com os outros a não ser o fato de que todos denunciam as prisões a que estamos atados, prisões estas que se manifestam como convenções sociais. Um dos episódios mostra uma família sentada à mesa conversando; muito normal, se não fossem assentos sanitários ao invés de cadeiras o que se percebe ao redor dela. Quando sentem fome, vão até um quarto fechado, o que seria um banheiro, e lá fazem suas refeições. Antes do surrealismo, em O Fantasma da Liberdade, há uma “doce subversão”, palavras do próprio Buñuel. Basta lembrarmos que na Idade Média, por exemplo, existia realmente uma cadeira com um orifício no meio do assento, embaixo da qual se posicionava estrategicamente um penico, de modo que aqueles que participassem de um banquete pudessem, digamos, se aliviar sem que precisassem deixar a mesa.
Em seu Meu Último Suspiro Buñuel conta que com o surrealismo “…eu entrei em contato com um sistema moral coerente que, até onde eu posso ver, não possui falhas. Era uma moralidade agressiva baseada na rejeição completa de todos os valores existentes.” Tal qual um filósofo cínico, um Diógenes, vemos Luís Buñuel transitar pelo espaço social pondo em xeque tudo o que se toma comumente por dado. Se, segundo conta a tradição, aquele teria falsificado moedas – talvez o primeiro caso de falsificação de dinheiro da história – para mostrar que seu valor, longe de ser absoluto, é mera convenção, este com seu O Fantasma da Liberdade falsifica a realidade para mostrar que a maior parte dos valores sociais, se não todos, também são mera convenção – convenção esta que acaba por nos manter cada vez mais presos.
Para conclusão deixamos aqui o mesmo olhar confuso da avestruz no fim do filme, ao fitar – fito estrangeiro, que percebe a sociedade humana como outro de si – o espetáculo um tanto bizarro que se passa.
Juliana Fausto