Militarismo e fascismo na Argentina contemporânea

“Primeiro mataremos todos os subversivos, depois os seus colaboradores, depois os simpatizantes, depois os indiferentes e por último os tímidos”.

“Primeiro mataremos todos os subversivos, depois os seus colaboradores, depois os simpatizantes, depois os indiferentes e por último os tímidos”.

Por Ángel Cappelleti

Fonte:  Polêmica

Em 6 de agosto de 1936, em um momento luminoso da revolução espanhola, escrevia Solidaridad Obrera: “Os militares têm sido o pesadelo da nação”. A frase poderia servir de epígrafe para uma história do último meio século na Argentina.

O exército argentino, organizado como exército regular depois da batalha de Caseros, teve seu olhar sobre os exércitos europeus durante muitas décadas. Sarmiento fundou o colégio militar com a finalidade de “europeizar” técnica e ideologicamente a oficialidade nacional. A tecnificação foi bem sucedida, em maior ou menor grau; a ideologização também. Teve o país, assim, um exército “liberal”, com todas as consequências que isto implicava. Liberais foram a maioria dos oficiais argentinos, porque criam firmemente no livre câmbio e na livre empresa. Também o foram no político e no cultural. Pensavam que cada cidadão podia expressar suas ideias, quaisquer que fossem, sempre que com elas não atentasse contra a constituição, quer dizer, contra a propriedade privada, a família patriarcal, a hierarquia de classes, a autoridade do governo. Um argentino podia ser católico, metodista ou agnóstico: conservador, radical ou até socialista. Mas, desde já, não comunista ou anarquista. Podia-se, segundo eles e os governos que sustentavam, criticar os homens e as instituições e falar mal dos ministros e ainda do presidente durante todo o ano, mas no dia das eleições não se podia votar a não ser em quem asseguraria a continuidade da ordem e do progresso. O presidente Roca teve um conflito com o núncio papal; os generais liam Spencer e ainda a José Ingenieros; a educação era laica, gratuita e obrigatória. Mas, em caso de greve, as forças armadas tinham já preparados os seus Falcón e seus Varela, sempre prontos para servir à pátria massacrando trabalhadores (conf. O. Bayer. La Patagonia rebelde).

Este “liberalismo” dos militares argentinos, suficiente para assegurar a perduração do latifúndio e o domínio político da oligarquia, começou, no entanto, a ser questionado, por sua debilidade intrínseca, a partir do crescimento da classe média e do triunfo do radicalismo (1960). Nos anos 20, alguns oficiais começaram a ver com simpatia o triunfo do fascismo italiano e se sentiram deslumbrados pela retórica grandiloquente de Mussolini. Desde o fim dessa década, esses militares formavam já um grupo significativo que consolidava seu ideário com a leitura de Maurras e o magistério “filosófico” de alguns “hispanistas”. O nacionalismo consistia, até então, em renunciar toda história nacional (feita por maçons e jacobinos) para reivindicar a Felipe II e em sonhar com a reinstauração do Vice-reinado por cima desse engendro rousseauniano chamado República Argentina. Trata-se de reinventar a Santa Inquisição contra anarquistas, comunistas, socialistas e ainda liberais; de negar o internacionalismo “moscovita” em prol do internacionalismo vaticano; de impedir a toda custa, com a cruz e a espada, que alguém tomasse a sério a frase do evangelho: Insuerientes implevit bonis et divit dimisit inanis (“Aos famintos os encheu de bens e aos ricos os devolveu vazios”, quer dizer, os despojou de suas riquezas). Em 6 de setembro de 1930, o general Uriburu interrompeu meio século de relativo constitucionalismo civilista a fim de assegurar o essencial desses ideais de “nacionalismo” e derrubou o presidente Irigoyen. O acompanharam no golpe, além dos cadetes da Escola Militar, um seleto grupo de oficiais do exército, entre os quais estavam o capitão Perón, o capitão Franklin Lucero, o major Sosa Molina, etc. Era “a hora da espada”, como diria o ex anarquista Lugones. Um dos ideólogos daquele primeiro golpe fascista dos militares argentinos, Carlos Ibarguren (La historia que he vivido, Buenos Aires, 1969, p. 369), descreve assim o ideário dos que inspiraram, realizaram, usufruíram da “gloriosa” revolução de 1930:

Esses núcleos de juventude sentiam-se em desacordo com nosso regime individualista, que fomentava a anarquia em uma época em que o clima da sociedade sofria grandes comoções no mundo. Na França, cuja cultura e mentalidade exerciam poderosa influência entre nós, o modo de trabalhar e o discurso do grande político e nacionalista Maurras e da Action Française – descartando a tendência monárquica – provocava revolta nesses momentos, o que atraiu aqui profundo interesse em muitos jovens, determinando tendências políticas e socias definidas, quanto a combater o liberalismo e o parlamentarismo, a necessidade de organizar um Estado vigoroso e um governo representativo do país real e não dos comitês eleitorais; aos anseios de implantação de uma democracia funcional, baseada nas forças sociais e não em partidos manejados e usufruídos por demagogos e oligarquias de políticos profissionais. Exerciam também influência as ideias difundidas por Mussolini, e se bem se repudiava as ditaduras (?), sustentava-se a necessidade de governos fortes que mantivessem energicamente a ordem social, as hierarquias e a disciplina para evitar a ameaça do comunismo soviético.

De resto, o governo de Uriburu cumpriu, até onde se pôde, com este programa. A repressão contra políticos (radicais, socialistas) foi leve, caso se compare com a que exerceu contra os militantes obreiros. A prisão de Usuhaia, “o sepulcro dos vivos” do extremo sul argentino, se encheu de anarquistas e comunistas; se implantou sistematicamente a tortura; se fuzilou a Severino Di Giovanni e a outros revolucionários.

Na década de 30, a ideologia fascista logrou prestígio crescente entre os militares argentinos, assim como entre uma minoria de intelectuais “aristocratas”. O triunfo de Hitler na Alemanha e de Salazar em Portugal; o falangismo espanhol de José Antônio Primo de Rivera; Codreanu e a Guarda de Ferro, etc., para não falar do Estado Novo de Getulio Vargas, do integrismo de Plínio Salgado e de outros avanços das forças totalitárias, corroboraram as tendências iniciais de alguns e arrastaram a outros até então indecisos.

Enquanto Uriburu desmantelava o FORA e, aplicando com rigor a famosa “lei de residência”, devolvia à Itália ou à Espanha aos mais aguerridos lutadores obreiros, os intelectuais “nacionalistas” revisavam a história argentina, exaltavam a Rosas, denegriam a Sarmiento e Rivadavia, confeccionavam impecáveis sonetos ao Garcilaso e se esforçavam por substituir a Hegel por São Augustín e a Kant por Santo Tomás.

Muitos oficiais, instruídos por “filósofos” como Giordano Bruno Genta, começaram a sentir-se “cruzados”, cuja missão sagrada era a luta contra o comunismo e seu lacaio, o demoliberalismo. Surgiram lojas1 evidentemente imbuídas de ideias fascistas ou falangistas. O GOU (Grupo de Oficiais Unidos), que levou ao poder, em 1943, a Ramírez, Farrell e Péron, foi uma delas. A vivacidade criola deste último (mais próxima, sem dúvida, da sabedoria do velho Vizcacha que da de Martín Fierro) supôs disfarçar habilmente a aspiração a um Estado corporativo com o percal floreado das dádivas e os “benefícios sociais”. Mas quando o fascismo manso e popular deixou de ser possível (porque já não sobrava nada para presentear) o fascismo em sua pura virulência ressurgiu. Lonardi e seus amigos da Unión Federal em 1955 eram parentes próximos do franquismo contemporâneo, mas os “liberais” de Aramburu, recorrendo à herança de Augustín P. Justo e de Roca, preferiram retornar a vias mais moderadas. Quando estas se mostraram insuficientes, surgiu, uma década mais tarde, Onganía, progênie do Opus Dei e da CIA, dos Cursos de Cristandade e da OAS, com menos inibições que Lonardi (e também com menos oposição dentro das forças armadas). Assumiu alegremente a postulação de um corporativismo tecnocrático. Para isso, começou por escolher da Universidade Nacional os melhores técnicos e homens de ciência. A petulante ineficiência de seu governo naufragou no Cordobazo. Foi a vez da outra cara do fascismo criolo. Retornou, então, com sua recapturada presença de general, Juan Domingo Perón, seguido por sua corte de bruxos e seu bando de guerrilheiros. Estes eram “socialistas nacionalistas”, aqueles “nacionais socialistas” (o qual, no fundo, vem a ser o mesmo). Perón os cobriu primeiro, a uns e outros, com sua boemia de duce ressuscitado. Ao final, repudiou aos montoneros2 cuja estridência pseudo-revolucionária turbava suas sestas de ancião aprazível; e se juntou a López Rega e aos sindicalistas, para liquidar desde o governo aos “apressurados”. Assentou assim as bases da repressão apocalíptica; e fundou direta ou indiretamente, querendo-o ou sem querê-lo, os esquadrões da morte e a Triple A, cuja titularidade ostentavam López Rega, e outros camelots du roi.

O golpe de 1976 deu lugar ao período indubitavelmente mais sangrento e amoral de toda a história argentina. Os militares reivindicaram o monopólio do crime e da corrupção. Declararam a guerra à subversão, que identificavam com “o marxismo apátrida”, embora fosse mais supernacionalismo fascista, na maioria dos casos. Deu-se o paradoxo – que só pôde se dar na Argentina – de uma versão do fascismo tratando de exterminar a outra. A luta “militares versus montoneros” foi o enfrentamento de dois fascismos: um fascismo que defende a civilização “ocidental e cristã”, quer dizer, os interesses do Estados Unidos, das transnacionais, da hierarquia católica, da oligarquia financeira e, sobre tudo, das forças armadas, e outro, terceiro-mundista, apoiado as vezes em Cuba, as vezes nos países árabes e no capital petroleiro, sempre nostálgico da figura do líder (o Duce), alimentado ideologicamente pelos dejetos do marxismo e pelas ambiguidades de certa teologia pós-conciliar, basicamente católica e não carente de afinidades com o falangismo “independente” em tudo o que se refere a concepção de Estado – os sindicatos, a igreja, a família, etc. (Linke Leute von Recht) –. É claro que a grande ação repressiva arrastou muitos homens que não eram montoneros nem socialistas nacionais. Caíram nela marxistas (mais ou menos autênticos), sociais democratas, radicais e até algum anarquista; personalidades independentes, cristãos sinceros, defensores dos direitos humanos, etc. Os liberais, por outro lado, se dobraram ou se redobraram. Videla teve, mais até mesmo que Mussolini, seus Salandra e seus Giollitti. O Estado fascista assumiu a vestimenta de Estado terrorista. Os militares, donos do poder absoluto, consideraram “que o princípio de sujeição à lei, à publicidade dos atos e o controle judicial dos mesmos incapacitam definitivamente o Estado para a defesa dos interesses da sociedade”, e de tais premissas surgiu “a necessidade de estruturação – quase com tanta força quanto o Estado público – do Estado clandestino e, como instrumento deste, o terror como método” (E.L. Duhalde, El Estado terrorista argentino, Buenos Aires, 1983, p. 28). Nesta nova modalidade do fascismo argentino, os militares não só assumem o poder absoluto, não só subordinam a sociedade ao Estado e o Estado às forças armadas, mas também fazem tábua rasa de toda normalidade jurídica e ética. Para poder defender melhor a lei e a moral, suprimem toda moral e toda lei. Seu poder, tanto mais obsceno quanto mais pretende exercesse em nome dos valores cristãos, tanto mais semelhante ao despotismo oriental quanto mais se esforça por se mostrar paladino da civilização ocidental, tende a ser assim não só infinito, mas também, como diria Spinoza, infinitamente infinito. Tal fascismo castrense ultraterrorista se baseia na doutrina da seguridade nacional. Esta doutrina “acabada elaboração do Estado-Maior Conjunto Militar dos Estados Unidos” é, como disse Duhaldem, o fundamento dos “Estados militares ou Estados contra insurgentes que precipitaram a formação dos Estados terroristas” (opt. cit. p.32). O mencionado historiador caracteriza assim esses Estados, dos quais são exemplos o Chile de Pinochet, o Uruguai de Gregorio Álvarez e a Argentina de Videla, Viola e Galtieri: “Neles, a ênfase de seu discurso ideológico está posto na defesa da seguridade da nação, supostamente ameaçada pela ‘agressão permanente a serviço de uma superpotência extracontinental e imperialista’, nas palavras de Augusto Pinochet, a qual está representada pela invasão no seio do país de elementos subversivos empenhados em destruí-lo em todos os níveis. Os ditos elementos – sustenta-se – lograram ou se empenharam em lograr a destruição do sistema democrático ocidental, influídos pelo marxismo mediante projetos políticos alheios à idiossincrasia e às tradições de seus respectivos povos. A preocupação prioritária e determinante que orienta a ação do Estado e, em consequência, a luta frontal contra as atividades de todas as organizações sociais, sindicais, políticas e, por suposição, armadas, cujos postulados ou atividades tragam, de alguma maneira, propostas alternativas ou diferentes do que se caracteriza como o modo de vida ocidental e cristão” (op. cit. p.32-33).

O Estado terrorista argentino instaurado em 1976 não pode confundir-se com as clássicas ditaduras latino-americanas, nem se quer com as mais arbitrárias e sangrentas. Entre outras diferenças poderia assinalar-se a seguinte: Os clássicos ditadores latino-americanos (Juan Vicente Gómez, em Venezuela, por exemplo), ainda que na maioria dos casos sejam militares e chegam ao poder com o apoio das forças armadas, não só costumam perseguir, mas a quem se opõe diretamente a seu governo, a seus interesses ou aos de seu grupo e sua classe. Exercem um terror limitado pela economia de suas próprias forças e pela estreiteza de suas perspectivas. Entretanto, a repressão do Estado terrorista é absoluta e universal. E se em verdade o terror é, como disse Hannah Arendt, a essência da dominação totalitária, resulta evidentemente que esse Estado tem levedo o fascismo a sua perfeição ontológica. Um célebre governador argentino, o general Saint Jean, sintetizou assim o programa político do Proceso3: “Primeiro mataremos todos os subversivos, depois os seus colaboradores, depois os simpatizantes, depois os indiferentes e por último os tímidos”. No entanto, o terror não se limita ao assassinato: recorre a todos os âmbitos da existência humana, se implanta na fábrica, na oficina, no periódico, na escola, na arte, na família, etc. Afeta a indivíduos de todas as idades, profissão, condição social (ainda que obviamente prefira aos das classes inferiores). Morrem ou desaparecem indivíduos que tem entre oitenta anos e oitenta dias. Mas o mais significativo não é o aspecto quantitativo da repressão (no qual Videla talvez foi superado por Hitler, ainda que não por Mussolini, Stalin ou Franco), sim o qualitativo, do qual não seria aventurado afirmar que o regime militar fascista Argentino alcançou os cumes nunca escalados na história latino-americana e universal. Não creio que o refinamento sádico dos torturadores da Escola de Mecânica da Armada tenha sido superado em Auschwitz. Parece-me, pelo contrário, que a Gestapo poderia aprender bastante com os Grupos de Tarefa Argentino, e que Mengele, mais que dá lições a Astiz, deveria tê-las tomado dele.

Pode dizer-se, em todo caso, em favor dos nazis alemãs, que não uniam a hipocrisia à crueldade, que não se escondiam atrás da cruz de Cristo, sim que levavam com orgulho, à frente, a cruz gamada (para muitos, a cruz do Anticristo). O grande problema é que os fascistas argentinos não tiveram seu Nuremberg. Depois de oprimir, empobrecer e assassinar “valentemente” a seu próprio povo, os militares argentinos empreenderam uma guerra absurda (cortina de fumaça, autojustificação, mas também consequência forçosa da ideologia fascista, que tende necessariamente para o conflito bélico). Venceram os montoneros, mas não puderam vencer os ingleses. Demonstraram que não só eram absolutamente ineptos como governantes, mas também inteiramente incapazes como militares. O mínimo que se poderia pedir frente a esta demonstrada e flagrante inutilidade é a abolição de tais forças armadas ou por pelo menos sua redução a uma limitadíssima oficina técnica. Mas isto seguramente não acontecerá.

Publicado em Polêmica, n. 17, maio de 1985.

1 Como as lojas maçônicas; logia.

2 Organização política e militar argentina que lutou contra a ditadura militar.

3 Proceso de Reorganización Nacional, nome do período de governo ditatorial na Argentina de 24 de março de 1973 à 10 de dezembro de 1983.

Contra a Assembleia Constituinte como contra a ditadura

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Por Errico Malatesta

Traducción al castellano: @rebeldealegre

Tradução: Coletivo Anarquia ou Barbárie

Fonte: Rebelde Alegre

(Adunata, 4 de Octubre de 1930)


Todos tem direito a assinalar e defender suas ideias, mas ninguém tem direito a distorcer as ideias de outro para fortalecer as próprias, Depois de anos sem ver o Martello, o número do 21 de junho caiu em minhas mãos. Encontrei em um artigo firmado por X., que fala, de um modo mais ou menos imaginário, sobre um projeto insurrecional, que supostamente era promovido por mim, Giulietti e … D’Annunzio. O artigo parecia que alguém mais que escreveu abaixo do nome de Ursus havía escrito antes sobre tais eventos, mas não se pode encontrar seu texto.

Não importa, Não posso contar agora como ocorreram realmente os eventos referidos por X. e Ursus, porque este não é o momento correto para fazê-lo ao público, e por assim à polícia, o que um poderia ter feito ou tentado fazer. Além do mais, não poderia trair a confiança de pessoas que não quiseram ser nomeadas aqui. Não obstante, posso me surpreender, de que estes X. e Ursus, movidos pelo desejo de encontrar apoio às suas teses táticas, não se deram conta de quanto carente de tática é se envolver com alguém que usualmente não recebe periódicos, e sendo assim não sabe o que se diz sobre ele e não pode responder – somado a não sentir dever nenhum, como assunto pessoal, de ao menos assumir a responsabilidade pelo que dizem afirmar com nomes reais.

O que importa – e o que me faz tomar o cuidado de anotar esses itens – é protestar contra a declaração completamente falsa de que, em momento algum sequer de minha atividade política, havia sido eu defensor da Assembleia Constituinte. O assunto tem tal importância teórica e prática, que poderia tornar-se de atualidade em qualquer momento, e não pode deixar indiferente a nada que se chame anarquista e queira atuar como anarquista em toda situação dada. Para ser preciso, no momento em que ocorreram os eventos mal recordados por X. e Ursus, eu estava me esforçando, com minhas palavras e escritos, por lutar conta a fé e a esperança posta por muitos subversivos (obviamento não anarquistas) na possibilidade de uma Assembleia Constituinte.


Nesse momento afirmei, como sempre o faço antes e depois, que uma Assembleia Constituinte é o meio utilizado pelas classes privilegiadas, quando uma ditadura não é possível, seja para prevenir uma revolução ou, quando uma revolução já está instalada, para deter seu progresso com a desculpa de legalizá-la, e retirar muitos dos seus possíveis ganhos que o povo obteve durante o período insurrecional.

A Assembleia Constituinte, com seu adormecimento e sufocamento, e a ditadura, com o seu esmagar e assassinar, são os dois perigos que ameaçam toda a revolução. Os anarquistas devem apontar seus esforços contra eles.

Naturalmente, já que somos uma minoria relativamente pequena, é muito possível, e provável, que a próxima revolta termine em uma Assembleia Constituinte. Sem embargo, isso não ocorreria com nossa participação e cooperação. Ocorreria somente contra nossa vontade , apesar de nossos esforços, simplesmente porque não teríamos sido suficientemente fortes para preveni-lo. Neste caso, teríamos que ser tão desconfiados e inflexivelmente contrários a uma Assembleia Constituinte como temos sido sempre aos parlamentos ordinários e a todo outro corpo legislativo.


***

Que isto fique claro. Não sou defensor do “tudo ou nada”. Creio que nada na realidade se comporta de maneira correspondente ao que indica e implica a teoria: seria impossível.


Esse é só um lema usado por muitos para advertir sobre a ilusão das reformas insignificantes e de supostas concessões do governo e dos patrões, e para sempre lembrar a necessidade e a urgência do ato revolucionário: é uma frase que pode servir, se se interpreta folgadamente, como um incentivo à uma luta sem quartel contra todo tipo de opressores e exploradores. Sem embargo, se se toma literalmente, é claramente um absurdo.


El ‘todo’ es el ideal que se torna más lejano y más amplio a medida que se realizan progresos, y por ende nunca puede alcanzarse. El ‘nada’ sería cierto estado abismalmente incivilizado, o al menos una sumisión supina a la opresión presente.

O “todo” é o ideal que se torna mais longínquo e mais amplo à medida que se realizam os progressos, e que nunca podeser alcançado. O “nada” seria certo estado abismalmente incivilizado,a barbárie, ou ao menos uma apresentação indolente à opressão presente.


Creio que devemos tentar tudo que possa, seja muito ou pouco: fazer o que seja possível hoje, mas sempre lutar por fazer possível o que hoje parece impossível.


Por exemplo, se hoje não podemos desfazermos de todo o tipo de governo, esta não é uma boa razão para não tomar interesse em defender as poucas liberdades adquiridas e lutar por obter mais delas.

Se agora não podemos abolir completamente o sistema capitalista e a exploração resultante dos trabalhadores, esta não é uma boa razão para abandonar a luta por obter maiores salários e melhores condições de trabalho. Se não podemos abolir o comércio e substituir pelo direto intercambio entre produtores, esta não é uma boa razão para não buscar os meios para escapar da exploração de negociantes e especuladores tanto quanto seja possível.

Se não temos como abolir o poder dos opressores e do estado da opinião pública previne agora a abolição das prisões e da provisão a todos de defesa contra os malfeitores com meios mais humanos, não por isto perderíamos interesse em uma ação para abolir a pena de morte, a prisão perpétua, o confinamento fechado e, em geral, os mais ferozes meios de repressão com que a assim chamada justiça social, que mais equivale a uma vingança selvagem, é exercida. Se não podemos abolir a polícia, não é por isso que permitiremos, sem protestar e resistir, que os policiais golpeiem aos prisioneiros e se permitam todo o tipo de excessos, sobrepassando o limite prescrito pelas leis vigentes…

Termino aqui, pois há milhões de casos, tanto na vida individual, como na sociedade, em que, sendo incapazes de obter “tudo”, deve-se tentar obter tanto quanto seja possível.

Neste momento, surge a pergunta de importância fundamental sobre o melhor modo de defender o que se obteve e lutar por obter mais; Pois há um modo que debilita e mata o espírito de independência e a consciência do direito próprio, comprometendo assim o futuro e o presente, mas há outro modo que utiliza toda pequena vitória para fazer melhores demandas, preparando assim as mentes e o ambiente para a ansiada emancipação total.

O que constitui a “razão de ser” característica do anarquismo é a convicção de que os governos – ditaduras, parlamentos, etc. – são sempre instrumentos de conservação, reação, opressão; de que a liberdade, a justiça, o bem estar para todos deve vir da luta contra a autoridade, desde a livre iniciativa ao livre acordo entre indivíduos e grupos.

***

É um problema preocupa a muitos anarquistas hoje em dia, e justamente, posto que encontram motivação insuficiente no trabalhar na propaganda abstrata e na preparação técnica revolucionária, que não sempre é possível e se faz sem saber quando será frutífera, buscam algo prático que se faça aqui e agora, para cumprir o quanto seja possível com nossas ideias, apesar das condições adversas; algo que moralmente e materialmente ajude aos anarquistas e que ao mesmo tempo serve de exemplo, de escola, de campo experimental.


As propostas práticas vêm de vários lados. São todas boas para mim, se apelam à livre iniciativa e a um espírito de solidariedade e justiça, e tendem a remover os indivíduos da dominação do governo e do patrão. E para evitar perder tempo em discussões continuamente recorrentes que nunca trazem novos feitos ou argumentos, incentivaria a quem tem um projeto e que tende a cumpri-lo imediatamente, tão pronto como encontrem o apoio do mínimo número necessário de participantes, sem esperar, usualmente em vão, pelo apoio de todos ou de muitos: a experiência mostrará se esses projetos eram possíveis, e deixará que os vitais sobrevivam e prosperem.

Que todos tentem os caminhos que consideram melhores e mais adequados ao seu temperamento, tanto hoje com respeito às coisas pequenas que podem fazer-se em ambiente presente, como amanhã no vasto terreno que oferecerá a revolução à nossa atividade. Em qualquer caso, o que é logicamente obrigatório para todos nós, se não queremos deixar se ser realmente anarquistas, é nunca entregar nossa liberdade em mãos da ditadura de um indivíduo ou classe, um déspota ou uma Assembleia Constituinte; pois é do que nós dependemos, nossa liberdade deve encontrar seu reconhecimento na igual liberdade de todos.

1º de abril de 1964, a data que não podemos esquecer e a ideologia que seguimos combatendo

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Federação Anarquista Gaúcha – Integrante da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Fonte: Federação Anarquista Gaúcha – Integrante da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)


Fazer memória ao golpe militar levado a efeito em 1º de abril de 1964 com o amplo apoio das elites e do empresariado nacional e internacional é dever de todo campo da esquerda que se reivindica combativa e, especialmente, do Anarquismo organizado que desde os primórdios tem estampado no alto da sua bandeira a luta contra todas as formas de opressão representadas pelo Estado, pelo capital e pelos lacaios de farda que lhes dão sustentação. Para além de fazer a denúncia e trazer a tona à memória da barbárie sem escrúpulos materializada nos sequestros, desaparecimentos forçados, torturas e assassinatos que se tornaram lugar comum durante os longos 21 anos de chumbo é fundamental que se aponte as heranças desse período. Heranças essas evidenciadas objetivamente no judiciário e nas ações militares das polícias que seguem fazendo da história fato presente através da criminalização da pobreza, do protesto, das perseguições às e aos que lutam, das torturas, dos assassinatos, dos indiciamentos sem provas, das condenações políticas, entre tantos outros fatos que fazem da memória histórica subsídio para pensar e atuar no presente.

Para nós é fundamental fazer memória as e aos que tombaram lutando contra o arbítrio e a opressão do Estado ditatorial, não apenas pela necessária lembrança e reconhecimento, mas também pela força que o elemento de luta e de resistência carrega em si. Se ontem foram eles que através da organização resistiam e lutavam contra a ditadura escancarada, hoje segue posto para nós seguir combatendo o Estado e suas heranças ditatoriais que mantém a gênese autoritária e opressora muito viva, mesmo escondida sob mal camuflada democracia. O Estado continua servindo como aparelho de classe para manutenção dos interesses dos “de cima”, da mesma elite podre que apoiou a ditadura. Longe de querer comparar o período ditatorial e a exceção permanente tornada regra com o cenário que vivemos hoje, é fundamental que a memória daqueles tempos tome lugar nos nossos debates e nas nossas lutas cotidianas. Essa atitude tem potencial efetivo para garantir acúmulo de forças para a luta dos “de baixo” e para que opressão – em todas as suas formas – tenha fim.

É muito difundido entre amplos setores sociais o entendimento sobre o que representa e o que representou a ditadura empresarial-militar para a história do Brasil, bem como para a história dos países do cone sul. Contudo, muito devido à timidez de parte da esquerda em fazer essa denúncia, da dificuldade de criar espaços de difusão das memórias do período ditatorial e, principalmente, pela ausência de punição aos agentes da ditadura e aos seus cúmplices, que ainda pairam muitas dúvidas e desconhecimentos entre o grosso da população. As disputas que atravessam o tema da ditadura bem como as heranças daquele período que seguem presentes nos dias de hoje estão intimamente ligadas às práticas de esquecimento e à ausência do elemento de justiça na tríade composta por memória e verdade.

Se torna ineficiente tocar nesse tema apenas em datas pontuais. Os exemplos dos demais países que passaram por ditaduras nos ensinam desde há muito tempo que é a organização desde as ruas, sindicatos, escolas, locais de trabalho que impulsiona o debate social e que pode garantir a punição aos crimes cometidos pelos agentes e apoiadores da ditadura. Que em nossos atos e em nossas lutas se façam sempre presentes àquelas e àqueles que lutaram e em muitos casos entregaram suas vidas para que hoje pudéssemos falar, distribuir, ler e opinar sobre a covardia que é uma ditadura.

Ontem e hoje, seguir organizando, resistindo e lutando com os “de baixo”!

Arriba todas e todos os que lutaram e todas e todos que seguem lutando!

Pelo socialismo e pela liberdade!