Emma Goldman & Alexander Berkman – Sacco e Vanzetti

alastrosFonte: Literatura Anarquista

Os nomes do “bom sapateiro e do pobre peixeiro” já cessaram de representar meramente dois trabalhadores italianos. Por todo o mundo civilizado, Sacco e Vanzetti se tornaram símbolos, o shibboleth* da Justiça esmagada pela Força. Esse foi o grande significado histórico desta crucificação do século XX, e as palavras de Vanzetti foram verdadeiramente proféticas ao declarar “O último momento pertence a nós – essa agonia é o nosso triunfo”.

Sempre ouvimos as pessoas falarem a respeito de um grande progresso, querendo dizer com isso melhorias de vários tipos, na maior parte das vezes descobertas salva-vidas ou invenções poupa-trabalhos, quando não, reformas na vida política e social. Mas todas estas coisas podem ou não representar um avanço real, pois as reformas não significam necessariamente progresso.

É inteiramente falsa e viciosa a concepção de que a civilização consistiria de mudanças políticas ou mecânicas. Por si mesma, nenhuma melhoria indica progresso real: ela simplesmente simboliza o seu resultado. A verdadeira civilização, o progresso real consiste em humanizar a humanidade, em fazer do mundo um lugar decente para viver. Desse ponto de vista, apesar de todas as reformas e aperfeiçoamentos, ainda estamos muito distantes de sermos civilizados.

O verdadeiro progresso é uma luta contra a inumanidade de nossa existência social, contra a barbaridade das concepções dominantes. Em outras palavras, o progresso é uma luta espiritual, uma luta para libertar o homem de sua herança bestial, de sua condição primitiva de crueldade e medo. Romper os grilhões da superstição e da ignorância; libertar o homem do apego às idéias e práticas escravizantes; extinguir a escuridão de seu espírito e o terror de seu coração; levantando-o de sua postura abjeta à estatura plena do homem – essa é a missão do progresso. Só assim o homem, individual e coletivamente, se tornará verdadeiramente civilizado e nossa vida social mais proveitosa e humana.

Esta luta é a que traça a história real do progresso. Seus heróis não são Napoleões nem Bismarcks, nem generais nem políticos. Seu caminho foi trilhados pelas valas-comuns dos Saccos e Vanzettis da humanidade, por aqueles agraciados com o auto-da-fé, as câmaras de tortura, os cadafalsos e a cadeira elétrica. À estes mártires da liberdade e da justiça são a quem devemos o pouco de civilização e progresso real que temos hoje.

O aniversário da morte de nossos camaradas, portanto, de maneira alguma representa uma ocasião de luto. Pelo contrário, deveríamos nos regozijar, pois neste tempo de degradação e depreciação, de histeria por conquista e ganho a qualquer custo, ainda existem homens que ousam desafiar o espírito dominante e levantar a  sua voz contra a inumanidade e a reação: Que ainda há homens que mantém as chamas da razão e da liberdade acesas, e que possuem a coragem de morrer, e de morrer triunfalmente, pela sua ousadia. Pois Sacco e Vanzetti morreram, como todo mundo sabe hoje, porque eram anarquistas. Isto é, porque pregavam e acreditavam na fraternidade e na liberdade humana. E como tais, não podiam esperar receber nem justiça, nem humanidade. Por elas, os Mestres da Vida perdoariam qualquer crime ou ofensa, mas nunca um intento de minar sua segurança diante das massas. Portanto Sacco e Vanzetti tiveram que morrer, não obstante os protestos ao redor do mundo. Mas Vanzetti estava certo ao declarar que sua execução seria seu maior triunfo, pois por toda a história os mártires do progresso é que triunfaram ultimamente. Onde estão os Césares e Torquemadas de hoje em dia? Quem se lembrará do nome dos juízes que condenaram Giordano Bruno e John Brown? Os Parsons, os Ferrers, os Saccos e Vanzettis vivem eternamente e seus espíritos ainda marcham.

Que nenhum desespero entre em nossos corações diante dos túmulos de Sacco e Vanzetti. O que a eles devemos pelo crime de permitir que sua execução acontecesse é manter sua memória verde e o estandarte do seu ideal anarquista ao alto. E que nenhum míope pessimista confunda e desconcerte os verdadeiros fatos da história do homem, de sua ascensão à maior humanidade e liberdade. Na longa batalha das trevas à luz, na antiga luta por maior liberdade e bem-estar, foram os rebeldes, os mártires que venceram. A escravidão cedeu, o absolutismo foi suplantado, o feudalismo e a servidão passaram, os tronos foram suprimidos para as repúblicas se estabelecerem em seu lugar. Inevitavelmente, foram os mártires e suas idéias que triunfaram, apesar de todos os cadafalsos e cadeiras elétricas. Inevitavelmente, os povos, as massas é que venceram seus mestres, e agora mesmo as tantas fortalezas da Força, do Capital e do Estado, estão sob ameaça. A Rússia nos mostrou a direção do progresso com a sua tentativa de eliminar ambos os mestres, políticos e econômicos. Mas esse experimento inicial fracassou, pois como todas as grandes revalorações sociais demandam repetidos esforços para sua concretização. Mas esse magnificente fracasso histórico é similar ao martírio de Sacco e Vanzetti – é o símbolo e a garantia do triunfo final.

Contudo, para que seja claramente lembrado; nos primeiros intentos nas mudanças sociais fundamentais, o fracasso sempre se deve ao falso método de tentar estabelecer o Novo pelas práticas e meios do Velho. O Novo só pode conquistar por meio de seu próprio espírito novo. Tirania vive pela supressão; Liberdade medra em liberdade. O erro fatal da grande Revolução Russa foi tentar estabelecer novas formas de vida social e econômica sobre o velho fundamento de coerção e força. O pleno desenvolvimento da sociedade humana acontece longe da coerção e do governo, longe da autoridade, e em direção a maior liberdade e independência. Nessa luta, o espírito da liberdade foi vencido. Mas na mesma direção reside o êxito. A história mostra, e a Rússia é a demonstração recente mais convincente disso. Que, então, aprendamos a lição e que estes grandes esforços em prol de um novo mundo de humanidade e liberdade nos inspirem, e que o triunfal martírio de Sacco e Vanzetti possa nos dar grande força e coragem nesta luta estupenda.

França: Julho, 1929

Notas do Tradutor:

* Shibboleth é palavra hebraica, do vocabulário bíblico, significa divisa, racha, para demarcar e separar. N.T.

Disponível em: <http://theanarchistlibrary.org/sacco-and-vanzetti&gt;. Acesso em: 21 nov. 2009, 16:20:01.
Notes: Published in The Road to Freedom (New York), Vol. 5, Aug. 1929. Source: Retrieved on March 15th, 2009 from http://sunsite.berkeley.edu/Goldman/Writings/Essays/sacco.html

Revisado: 07/07/2011

Militarismo e fascismo na Argentina contemporânea

“Primeiro mataremos todos os subversivos, depois os seus colaboradores, depois os simpatizantes, depois os indiferentes e por último os tímidos”.

“Primeiro mataremos todos os subversivos, depois os seus colaboradores, depois os simpatizantes, depois os indiferentes e por último os tímidos”.

Por Ángel Cappelleti

Fonte:  Polêmica

Em 6 de agosto de 1936, em um momento luminoso da revolução espanhola, escrevia Solidaridad Obrera: “Os militares têm sido o pesadelo da nação”. A frase poderia servir de epígrafe para uma história do último meio século na Argentina.

O exército argentino, organizado como exército regular depois da batalha de Caseros, teve seu olhar sobre os exércitos europeus durante muitas décadas. Sarmiento fundou o colégio militar com a finalidade de “europeizar” técnica e ideologicamente a oficialidade nacional. A tecnificação foi bem sucedida, em maior ou menor grau; a ideologização também. Teve o país, assim, um exército “liberal”, com todas as consequências que isto implicava. Liberais foram a maioria dos oficiais argentinos, porque criam firmemente no livre câmbio e na livre empresa. Também o foram no político e no cultural. Pensavam que cada cidadão podia expressar suas ideias, quaisquer que fossem, sempre que com elas não atentasse contra a constituição, quer dizer, contra a propriedade privada, a família patriarcal, a hierarquia de classes, a autoridade do governo. Um argentino podia ser católico, metodista ou agnóstico: conservador, radical ou até socialista. Mas, desde já, não comunista ou anarquista. Podia-se, segundo eles e os governos que sustentavam, criticar os homens e as instituições e falar mal dos ministros e ainda do presidente durante todo o ano, mas no dia das eleições não se podia votar a não ser em quem asseguraria a continuidade da ordem e do progresso. O presidente Roca teve um conflito com o núncio papal; os generais liam Spencer e ainda a José Ingenieros; a educação era laica, gratuita e obrigatória. Mas, em caso de greve, as forças armadas tinham já preparados os seus Falcón e seus Varela, sempre prontos para servir à pátria massacrando trabalhadores (conf. O. Bayer. La Patagonia rebelde).

Este “liberalismo” dos militares argentinos, suficiente para assegurar a perduração do latifúndio e o domínio político da oligarquia, começou, no entanto, a ser questionado, por sua debilidade intrínseca, a partir do crescimento da classe média e do triunfo do radicalismo (1960). Nos anos 20, alguns oficiais começaram a ver com simpatia o triunfo do fascismo italiano e se sentiram deslumbrados pela retórica grandiloquente de Mussolini. Desde o fim dessa década, esses militares formavam já um grupo significativo que consolidava seu ideário com a leitura de Maurras e o magistério “filosófico” de alguns “hispanistas”. O nacionalismo consistia, até então, em renunciar toda história nacional (feita por maçons e jacobinos) para reivindicar a Felipe II e em sonhar com a reinstauração do Vice-reinado por cima desse engendro rousseauniano chamado República Argentina. Trata-se de reinventar a Santa Inquisição contra anarquistas, comunistas, socialistas e ainda liberais; de negar o internacionalismo “moscovita” em prol do internacionalismo vaticano; de impedir a toda custa, com a cruz e a espada, que alguém tomasse a sério a frase do evangelho: Insuerientes implevit bonis et divit dimisit inanis (“Aos famintos os encheu de bens e aos ricos os devolveu vazios”, quer dizer, os despojou de suas riquezas). Em 6 de setembro de 1930, o general Uriburu interrompeu meio século de relativo constitucionalismo civilista a fim de assegurar o essencial desses ideais de “nacionalismo” e derrubou o presidente Irigoyen. O acompanharam no golpe, além dos cadetes da Escola Militar, um seleto grupo de oficiais do exército, entre os quais estavam o capitão Perón, o capitão Franklin Lucero, o major Sosa Molina, etc. Era “a hora da espada”, como diria o ex anarquista Lugones. Um dos ideólogos daquele primeiro golpe fascista dos militares argentinos, Carlos Ibarguren (La historia que he vivido, Buenos Aires, 1969, p. 369), descreve assim o ideário dos que inspiraram, realizaram, usufruíram da “gloriosa” revolução de 1930:

Esses núcleos de juventude sentiam-se em desacordo com nosso regime individualista, que fomentava a anarquia em uma época em que o clima da sociedade sofria grandes comoções no mundo. Na França, cuja cultura e mentalidade exerciam poderosa influência entre nós, o modo de trabalhar e o discurso do grande político e nacionalista Maurras e da Action Française – descartando a tendência monárquica – provocava revolta nesses momentos, o que atraiu aqui profundo interesse em muitos jovens, determinando tendências políticas e socias definidas, quanto a combater o liberalismo e o parlamentarismo, a necessidade de organizar um Estado vigoroso e um governo representativo do país real e não dos comitês eleitorais; aos anseios de implantação de uma democracia funcional, baseada nas forças sociais e não em partidos manejados e usufruídos por demagogos e oligarquias de políticos profissionais. Exerciam também influência as ideias difundidas por Mussolini, e se bem se repudiava as ditaduras (?), sustentava-se a necessidade de governos fortes que mantivessem energicamente a ordem social, as hierarquias e a disciplina para evitar a ameaça do comunismo soviético.

De resto, o governo de Uriburu cumpriu, até onde se pôde, com este programa. A repressão contra políticos (radicais, socialistas) foi leve, caso se compare com a que exerceu contra os militantes obreiros. A prisão de Usuhaia, “o sepulcro dos vivos” do extremo sul argentino, se encheu de anarquistas e comunistas; se implantou sistematicamente a tortura; se fuzilou a Severino Di Giovanni e a outros revolucionários.

Na década de 30, a ideologia fascista logrou prestígio crescente entre os militares argentinos, assim como entre uma minoria de intelectuais “aristocratas”. O triunfo de Hitler na Alemanha e de Salazar em Portugal; o falangismo espanhol de José Antônio Primo de Rivera; Codreanu e a Guarda de Ferro, etc., para não falar do Estado Novo de Getulio Vargas, do integrismo de Plínio Salgado e de outros avanços das forças totalitárias, corroboraram as tendências iniciais de alguns e arrastaram a outros até então indecisos.

Enquanto Uriburu desmantelava o FORA e, aplicando com rigor a famosa “lei de residência”, devolvia à Itália ou à Espanha aos mais aguerridos lutadores obreiros, os intelectuais “nacionalistas” revisavam a história argentina, exaltavam a Rosas, denegriam a Sarmiento e Rivadavia, confeccionavam impecáveis sonetos ao Garcilaso e se esforçavam por substituir a Hegel por São Augustín e a Kant por Santo Tomás.

Muitos oficiais, instruídos por “filósofos” como Giordano Bruno Genta, começaram a sentir-se “cruzados”, cuja missão sagrada era a luta contra o comunismo e seu lacaio, o demoliberalismo. Surgiram lojas1 evidentemente imbuídas de ideias fascistas ou falangistas. O GOU (Grupo de Oficiais Unidos), que levou ao poder, em 1943, a Ramírez, Farrell e Péron, foi uma delas. A vivacidade criola deste último (mais próxima, sem dúvida, da sabedoria do velho Vizcacha que da de Martín Fierro) supôs disfarçar habilmente a aspiração a um Estado corporativo com o percal floreado das dádivas e os “benefícios sociais”. Mas quando o fascismo manso e popular deixou de ser possível (porque já não sobrava nada para presentear) o fascismo em sua pura virulência ressurgiu. Lonardi e seus amigos da Unión Federal em 1955 eram parentes próximos do franquismo contemporâneo, mas os “liberais” de Aramburu, recorrendo à herança de Augustín P. Justo e de Roca, preferiram retornar a vias mais moderadas. Quando estas se mostraram insuficientes, surgiu, uma década mais tarde, Onganía, progênie do Opus Dei e da CIA, dos Cursos de Cristandade e da OAS, com menos inibições que Lonardi (e também com menos oposição dentro das forças armadas). Assumiu alegremente a postulação de um corporativismo tecnocrático. Para isso, começou por escolher da Universidade Nacional os melhores técnicos e homens de ciência. A petulante ineficiência de seu governo naufragou no Cordobazo. Foi a vez da outra cara do fascismo criolo. Retornou, então, com sua recapturada presença de general, Juan Domingo Perón, seguido por sua corte de bruxos e seu bando de guerrilheiros. Estes eram “socialistas nacionalistas”, aqueles “nacionais socialistas” (o qual, no fundo, vem a ser o mesmo). Perón os cobriu primeiro, a uns e outros, com sua boemia de duce ressuscitado. Ao final, repudiou aos montoneros2 cuja estridência pseudo-revolucionária turbava suas sestas de ancião aprazível; e se juntou a López Rega e aos sindicalistas, para liquidar desde o governo aos “apressurados”. Assentou assim as bases da repressão apocalíptica; e fundou direta ou indiretamente, querendo-o ou sem querê-lo, os esquadrões da morte e a Triple A, cuja titularidade ostentavam López Rega, e outros camelots du roi.

O golpe de 1976 deu lugar ao período indubitavelmente mais sangrento e amoral de toda a história argentina. Os militares reivindicaram o monopólio do crime e da corrupção. Declararam a guerra à subversão, que identificavam com “o marxismo apátrida”, embora fosse mais supernacionalismo fascista, na maioria dos casos. Deu-se o paradoxo – que só pôde se dar na Argentina – de uma versão do fascismo tratando de exterminar a outra. A luta “militares versus montoneros” foi o enfrentamento de dois fascismos: um fascismo que defende a civilização “ocidental e cristã”, quer dizer, os interesses do Estados Unidos, das transnacionais, da hierarquia católica, da oligarquia financeira e, sobre tudo, das forças armadas, e outro, terceiro-mundista, apoiado as vezes em Cuba, as vezes nos países árabes e no capital petroleiro, sempre nostálgico da figura do líder (o Duce), alimentado ideologicamente pelos dejetos do marxismo e pelas ambiguidades de certa teologia pós-conciliar, basicamente católica e não carente de afinidades com o falangismo “independente” em tudo o que se refere a concepção de Estado – os sindicatos, a igreja, a família, etc. (Linke Leute von Recht) –. É claro que a grande ação repressiva arrastou muitos homens que não eram montoneros nem socialistas nacionais. Caíram nela marxistas (mais ou menos autênticos), sociais democratas, radicais e até algum anarquista; personalidades independentes, cristãos sinceros, defensores dos direitos humanos, etc. Os liberais, por outro lado, se dobraram ou se redobraram. Videla teve, mais até mesmo que Mussolini, seus Salandra e seus Giollitti. O Estado fascista assumiu a vestimenta de Estado terrorista. Os militares, donos do poder absoluto, consideraram “que o princípio de sujeição à lei, à publicidade dos atos e o controle judicial dos mesmos incapacitam definitivamente o Estado para a defesa dos interesses da sociedade”, e de tais premissas surgiu “a necessidade de estruturação – quase com tanta força quanto o Estado público – do Estado clandestino e, como instrumento deste, o terror como método” (E.L. Duhalde, El Estado terrorista argentino, Buenos Aires, 1983, p. 28). Nesta nova modalidade do fascismo argentino, os militares não só assumem o poder absoluto, não só subordinam a sociedade ao Estado e o Estado às forças armadas, mas também fazem tábua rasa de toda normalidade jurídica e ética. Para poder defender melhor a lei e a moral, suprimem toda moral e toda lei. Seu poder, tanto mais obsceno quanto mais pretende exercesse em nome dos valores cristãos, tanto mais semelhante ao despotismo oriental quanto mais se esforça por se mostrar paladino da civilização ocidental, tende a ser assim não só infinito, mas também, como diria Spinoza, infinitamente infinito. Tal fascismo castrense ultraterrorista se baseia na doutrina da seguridade nacional. Esta doutrina “acabada elaboração do Estado-Maior Conjunto Militar dos Estados Unidos” é, como disse Duhaldem, o fundamento dos “Estados militares ou Estados contra insurgentes que precipitaram a formação dos Estados terroristas” (opt. cit. p.32). O mencionado historiador caracteriza assim esses Estados, dos quais são exemplos o Chile de Pinochet, o Uruguai de Gregorio Álvarez e a Argentina de Videla, Viola e Galtieri: “Neles, a ênfase de seu discurso ideológico está posto na defesa da seguridade da nação, supostamente ameaçada pela ‘agressão permanente a serviço de uma superpotência extracontinental e imperialista’, nas palavras de Augusto Pinochet, a qual está representada pela invasão no seio do país de elementos subversivos empenhados em destruí-lo em todos os níveis. Os ditos elementos – sustenta-se – lograram ou se empenharam em lograr a destruição do sistema democrático ocidental, influídos pelo marxismo mediante projetos políticos alheios à idiossincrasia e às tradições de seus respectivos povos. A preocupação prioritária e determinante que orienta a ação do Estado e, em consequência, a luta frontal contra as atividades de todas as organizações sociais, sindicais, políticas e, por suposição, armadas, cujos postulados ou atividades tragam, de alguma maneira, propostas alternativas ou diferentes do que se caracteriza como o modo de vida ocidental e cristão” (op. cit. p.32-33).

O Estado terrorista argentino instaurado em 1976 não pode confundir-se com as clássicas ditaduras latino-americanas, nem se quer com as mais arbitrárias e sangrentas. Entre outras diferenças poderia assinalar-se a seguinte: Os clássicos ditadores latino-americanos (Juan Vicente Gómez, em Venezuela, por exemplo), ainda que na maioria dos casos sejam militares e chegam ao poder com o apoio das forças armadas, não só costumam perseguir, mas a quem se opõe diretamente a seu governo, a seus interesses ou aos de seu grupo e sua classe. Exercem um terror limitado pela economia de suas próprias forças e pela estreiteza de suas perspectivas. Entretanto, a repressão do Estado terrorista é absoluta e universal. E se em verdade o terror é, como disse Hannah Arendt, a essência da dominação totalitária, resulta evidentemente que esse Estado tem levedo o fascismo a sua perfeição ontológica. Um célebre governador argentino, o general Saint Jean, sintetizou assim o programa político do Proceso3: “Primeiro mataremos todos os subversivos, depois os seus colaboradores, depois os simpatizantes, depois os indiferentes e por último os tímidos”. No entanto, o terror não se limita ao assassinato: recorre a todos os âmbitos da existência humana, se implanta na fábrica, na oficina, no periódico, na escola, na arte, na família, etc. Afeta a indivíduos de todas as idades, profissão, condição social (ainda que obviamente prefira aos das classes inferiores). Morrem ou desaparecem indivíduos que tem entre oitenta anos e oitenta dias. Mas o mais significativo não é o aspecto quantitativo da repressão (no qual Videla talvez foi superado por Hitler, ainda que não por Mussolini, Stalin ou Franco), sim o qualitativo, do qual não seria aventurado afirmar que o regime militar fascista Argentino alcançou os cumes nunca escalados na história latino-americana e universal. Não creio que o refinamento sádico dos torturadores da Escola de Mecânica da Armada tenha sido superado em Auschwitz. Parece-me, pelo contrário, que a Gestapo poderia aprender bastante com os Grupos de Tarefa Argentino, e que Mengele, mais que dá lições a Astiz, deveria tê-las tomado dele.

Pode dizer-se, em todo caso, em favor dos nazis alemãs, que não uniam a hipocrisia à crueldade, que não se escondiam atrás da cruz de Cristo, sim que levavam com orgulho, à frente, a cruz gamada (para muitos, a cruz do Anticristo). O grande problema é que os fascistas argentinos não tiveram seu Nuremberg. Depois de oprimir, empobrecer e assassinar “valentemente” a seu próprio povo, os militares argentinos empreenderam uma guerra absurda (cortina de fumaça, autojustificação, mas também consequência forçosa da ideologia fascista, que tende necessariamente para o conflito bélico). Venceram os montoneros, mas não puderam vencer os ingleses. Demonstraram que não só eram absolutamente ineptos como governantes, mas também inteiramente incapazes como militares. O mínimo que se poderia pedir frente a esta demonstrada e flagrante inutilidade é a abolição de tais forças armadas ou por pelo menos sua redução a uma limitadíssima oficina técnica. Mas isto seguramente não acontecerá.

Publicado em Polêmica, n. 17, maio de 1985.

1 Como as lojas maçônicas; logia.

2 Organização política e militar argentina que lutou contra a ditadura militar.

3 Proceso de Reorganización Nacional, nome do período de governo ditatorial na Argentina de 24 de março de 1973 à 10 de dezembro de 1983.

Casamento e Amor – Emma Goldman

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Anarquismo e Outros Ensaios
Por Emma Goldman
De Amor e Anarquia
(Original em Inglês)

Fonte: Protopia

A noção popular em torno do casamento e do amor é a de que eles são sinônimos, que eles afloram dos mesmos motivos e cobrem as mesmas necessidades humanas. Como tantas outras noções populares, também esta não repousa em fatos concretos, mas sob superstições.

Casamento e amor não possuem nada em comum; estão tão apartados como pólos; e são, de fato, antagônicos entre si. Sem dúvidas, certos casamentos são resultado do amor. Entretanto, não é porque o amor só se afirma em casamento; é antes porque poucas pessoas conseguem superar completamente uma convenção. Para um grande número de homens e mulheres hoje em dia, o casamento nada é senão uma farsa, mas a ele se submetem por amor à opinião pública. Em todo caso, enquanto é verdade que certos casamentos baseiam-se no amor e enquanto é igualmente verdade que certas vezes o amor continua durante a vida conjugal, eu sustento que isso se dá independentemente do casamento e não devido a ele.

Por outro lado, é completamente falso que do casamento resulte amor. Um caso milagroso se faz ouvir, em raras ocasiões, de cônjuges que caem em amor depois de casados, mas em exame amiúde aí se encontrará um mero ajuste ao inevitável. Certamente a habituação ao outro está distante da espontaneidade, da intensidade, e da beatitude do amor, sem o que a intimidade do casamento deve revelar-se degradante para ambos homem e mulher.

O casamento, primeiramente, é um arranjo econômico, um pacto de seguro. Só difere do contrato comum de seguro de vida naquilo que tem de mais obrigatório, de mais exigente. Os retornos são insignificantemente pequenos quando comparados aos investimentos. Ao se contratar uma apólice de seguro se paga em dólares e centavos, mas nos resta sempre a liberdade de descontinuar os pagamentos. Entretanto, se o marido é o prêmio do seguro, ela paga por isso com seu nome, sua privacidade, sua auto-estima, com sua própria vida “até que a morte os separe”. Além do que, o contrato do casamento a condena a uma dependência vitalícia, ao parasitismo, a completa inutilidade individual bem como social. O homem paga a sua parte também, mas como sua esfera é maior, o casamento não o limita tanto como à mulher. Ele sente suas correntes pesarem mais num sentido econômico.

E assim o mote do Inferno de Dante se aplica ao casamento com a mesma força. “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”.

Somente um estúpido completo nega que o casamento é um fracasso. Basta relancear a vista sobre as estatísticas do divórcio para compreender como é verdadeiramente amargo um casamento fracassado. Tampouco o argumento filisteu estereotipado, o da lassidão das leis do divórcio e o da crescente frouxidão da mulher, dará conta do fato de que: em primeiro, cada décimo segundo casamento termina em divórcio; segundo, que desde 1870 divórcios cresceram de 28 para 73 a cada população de cem mil; terceiro, que o adultério, desde 1867, como causa de divórcio cresceu 280.7 por cento; quarto, que a deserção aumentou em 369.8 por cento.

Somado a estes números surpreendentes, há ainda um vasto material dramático e literário melhor elucidando o assunto. Robert Herrick, em Together; Pinero, em Mid-Channel; Eugene Walter, em Paid in Full, e dezenas de outros escritores estão discutindo a aridez, a monotonia, a sordidez, e a inadequação do casamento como fator pela harmonia e pelo entendimento.

O estudioso social sério não se contentará com a popular desculpa superficial para este fenômeno. Ele terá de escavar a vida mesma dos sexos profundamente adentro para conhecer o porque de o casamento revelar-se tão desastroso.

Edward Carpenter diz que, por detrás de todo casamento, persiste uma ambiência vitalícia dos dois sexos; ambiências tão diferentes entre si que homem e mulher devem permanecer estranhos. Separados por uma muralha intransponível de superstição, costume, e hábito, o casamento não tem a potencialidade de desenvolver o conhecimento e o respeito mútuo, sem o que toda união está destinada ao fracasso.

Henrik Ibsen1, o inimigo de toda farsa social, foi provavelmente o primeiro a conceber esta grande verdade. Nora abandonou o marido, não porque – como queria a crítica estúpida – estaria cansada de suas responsabilidades ou sentia que precisava dos direitos da mulher, mas porque veio saber que, durante oito anos convivera com um estranho e agora pariu uma criança sua. Pode haver qualquer coisa de mais humilhante, de mais degradante do que a proximidade vitalícia entre dois estranhos? Não é preciso que a mulher conheça nada do homem, salvo sua renda. Com relação ao conhecimento da mulher – o que há para se conhecer sobre ela exceto se possui uma boa aparência? Não superamos ainda o mito teológico em que a mulher não tem alma, em que é meramente um apêndice do homem, feita da costela do cavalheiro só para sua conveniência, esse que de tão forte ficara com medo da própria sombra.

Porventura da má qualidade do material, donde a mulher tornou-se responsável por sua própria inferioridade. Em todo caso, mulher não tem alma – o que há para se conhecer sobre ela? Além do que, quanto menos alma tem uma mulher, maior seu tino para esposa, o mais prontamente irá absorver-se ao marido. É essa servil aquiescência à superioridade do homem que manteve a instituição do casamento aparentemente intacta por um tempo tão longo. Mas agora que a mulher está vindo a si, agora que ela está crescentemente consciente de si como um ser exterior à graça do mestre, a sagrada instituição do casamento está gradualmente sendo minada, e nenhum tanto de lamentação sentimental poderá evitar.

Quase desde a infância, é dito à garota comum que o casamento é seu objetivo final; portanto seu treino e educação têm de ser direcionados para esse fim. Feito a besta muda na engorda, ela é preparada para o abate. Mas para ela, estranho dizer, é permitido conhecer muito menos sobre sua função como esposa e mãe do que para o artesão comum sobre seu ofício. Para uma garota respeitável, é indecente e imundo conhecer qualquer coisa da relação marital. Oh, pela incoerência da respeitabilidade, requerer votos de casamento para tornar algo imundo no mais puro e sagrado arranjo que ninguém ousa questionar ou criticar. Mas esta é exatamente a atitude do entusiasta comum do casamento. A futura esposa e mãe é mantida na mais completa ignorância em torno de sua única inclinação no campo competitivo — o sexo. E assim ela adentra com um homem numa relação vitalícia só para encontrar-se chocada, repelida e ultrajada além da medida pelo mais natural e saudável instinto, o sexo. É seguro dizer que uma grande percentagem da infelicidade, miséria, aflição e sofrimento físico do matrimônio se devem à ignorância criminosa em matéria de sexo que é exortada como uma grande virtude. Tampouco é de todo um exagero quando digo que devido a este fato deplorável, mais de um lar foi desfeito.

Se, entretanto, a mulher for livre e grande o bastante para aprender o mistério do sexo sem a sanção do Estado ou da Igreja, permanecerá condenada como completamente imprópria para ser esposa de um “bom” homem, sua bondade consistindo de um cérebro vazio e um bolso cheio de dinheiro. Pode haver qualquer coisa mais ultrajante do que a idéia de uma mulher saudável, em plena idade, cheia de paixão e vida, ter de negar a demanda da natureza, ter de reprimir seu desejo mais intenso, minar a sua saúde e quebrantar seu espírito, ter de aturdir sua visão e abster-se da profundidade e da glória da experiência do sexo, até que um homem “bom” chegue para tomá-la como esposa? Isto é precisamente o que o casamento significa. Como poderia tal arranjo terminar exceto em fracasso? Esse é um fator, embora não menos importante, que diferencia o casamento do amor.

A nossa era é prática. O tempo em que Romeu e Julieta arriscaram-se à fúria dos pais por amor, em que Gretchen expõs-se ao falatório dos vizinhos por amor, já era. Se, em raras ocasiões, pessoas jovens se permitem à luxúria do romance, em seguida os mais velhos cuidam para que, após pregados e martelados, se tornem “sensatos”.

A lição moral instilada na garota não é a de se o homem arrebatou o seu amor, mas: o “Quanto?”. O único Deus importante da vida prática americana: o homem consegue ganhar a vida? Consegue sustentar uma esposa? Esta é a única coisa que justifica o casamento. Gradualmente isto de todo satura o pensamento da garota; seus sonhos já não são de luares e beijos, risos e lágrimas; agora sonha em ir às compras e às boas pechinchas. Tal sordidez e pobreza da alma são elementos inerentes à instituição do casamento. O Estado e a Igreja aprovam esse ideal e não outro, simplesmente porque esse é o ideal que necessita que o Estado e a Igreja controle homens e mulheres.

Indubitavelmente há as pessoas que continuam considerando o amor superior a dólares e centavos. E isto é particularmente verdade para a classe daqueles cuja necessidade econômica forçou a que se auto-sustentassem. A tremenda mudança na posição da mulher operada por este poderoso fator é, de fato, fenomenal quando refletimos que há só um curto período desde o ingresso da mulher na arena industrial. Seis milhões de mulheres trabalhadoras assalariadas; seis milhões de mulheres com direitos iguais aos homens de serem exploradas, roubadas, ir à greve; ai, mesmo até de passar fome. Algo mais, my lord? Sim, seis milhões de trabalhadoras em todas as ocupações, desde o mais elevado trabalho intelectual até as minas e ferrovias, mesmo até detetives e policiais. Com certeza a emancipação está completa.

Apesar disso tudo, só um número muito pequeno do vasto exército das mulheres trabalhadoras enxerga o seu trabalho como situação permanente, na mesma luz que um homem o faz. Não importa quão decrépito seja este último, ele foi ensinado a ser independente, a se auto-sustentar. Oh, eu sei que ninguém é verdadeiramente independente em nossa moenda econômica; e ainda o espécime mais miserável de homem odeia ser um parasita; ou, em todo caso, pelo menos ser conhecido como tal.

A mulher considera transitória sua posição como trabalhadora, a ser deixada de lado pelo primeiro pretendente. É este o porque de ser infinitamente mais difícil organizar mulheres do que homens. “Porque devo me filiar a um sindicato? Vou me casar, ter um lar”. Ela desde a infância não foi ensinada a enxergar isso como sua convocação última? Ela aprende cedo o bastante que, apesar de não tão grande como a prisão de uma fábrica, o lar tem portões e grades ainda mais sólidas. Possui um guardião tão fiel que nada lhe pode escapar. A parte mais trágica, entretanto, é que o lar não a liberta da escravidão assalariada; apenas aumenta seus afazeres.

De acordo com as mais recentes estatísticas submetidas diante de um Comitê “em torno do trabalho, salários e congestão da população”, apenas em Nova York, dez por cento das trabalhadoras assalariadas são casadas, ainda que continuem no trabalho mais mal pago do mundo. Some a esta visão horrível o peso do serviço doméstico e o que resta da proteção e glória do lar? Como matéria de fato, até a garota classe-média não pode falar sobre um lar seu no casamento, desde que é o homem que cria sua esfera. Não é importante se o marido é um bruto ou um doce. O que desejo provar é que o casamento só garante um lar à mulher pela graça do marido. Ela gira em torno do lar dele, ano após ano, até que sua visão de vida e de relações humanas se torne tão rasa, estreita, e tediosa, como seu entorno. Pouco admira se ela vir a ser resmungona, trivial, arengueira, faladeira, insuportável, e expulsando assim o homem da casa. Se ela quisesse, não poderia ir; não há lugar para onde ir. Além do que, um curto período de vida conjugal, de completa rendição de todas as faculdades, incapacita absolutamente a mulher comum para o mundo exterior. Ela se torna indiferente à aparência, desajeitada em seus movimentos, dependente em suas decisões, covarde em seu julgamento, um fardo e um aborrecimento, cuja maioria dos homens cresce para odiar e desprezar. Atmosfera maravilhosamente inspiradora para o desenrolar da vida, não?

Mas e a criança, como será protegida, senão pelo casamento? Depois de tudo, não é esta a consideração mais importante a se fazer? A farsa, a hipocrisia! Casamento protegendo a criança, mas centenas de crianças abandonadas e sem lar. Casamento protegendo a criança, mas orfanatos e reformatórios lotados, a Sociedade pela Prevenção de Crueldade a Criança se mantendo ocupada resgatando as pequenas vítimas daqueles pais “amorosos”, para colocá-las sob cuidados mais amorosos ainda, da Gerry Society2. Oh, mas que pilhéria!

O casamento poderá levar o cavalo até a água, mas já pôde obrigá-lo a beber? A lei colocará o pai na detenção, irá vesti-lo em uniforme de presidiário; mas alguma vez já matou a fome das crianças? Se o pai não tem emprego, ou se esconde sua identidade, que faz então o casamento? Invoca a lei para levar o homem à “justiça”, colocá-lo em segurança atrás de portões fechados; seu trabalho, entretanto, não vai para criança, mas para o Estado. A criança só recebe uma memória enferrujada das listras do pai.

Com relação à proteção da mulher — aí reside a maldição do casamento. Ele não as protege verdadeiramente, e a idéia mesma é tão revoltante como um ultraje e um insulto à vida, tão degradante à dignidade humana, que condena para sempre esta instituição parasitária.

Feito aquele outro arranjo paternal — o capitalismo. Rouba do homem seus direitos, aturde o seu crescimento, envenena o seu corpo, o mantém na ignorância, na pobreza, na dependência, daí institui caridades que medram sobre os últimos vestígios do auto-respeito humano.

A instituição do casamento faz da mulher uma parasita, uma dependente absoluta. Incapacita-a para a luta da vida, aniquila sua consciência social, paralisa sua imaginação, daí impõe sua graciosa proteção que na realidade é um ardil, travestido a caráter humano.

Se a maternidade é a mais elevada realização da natureza da mulher, que outra proteção poderia requerer, salvo amor e liberdade? Casamento só contamina, ultraja, e corrompe essa realização. Não diz à mulher: darás à luz vida somente se me seguires? Não a degrada e a envergonha quando ela se recusa a vender seu direito à maternidade vendendo a si mesma? O casamento não é somente uma sanção para a maternidade, mesmo quando concebida no ódio, na compulsão? Mas quando a maternidade é de livre escolha, do amor, do êxtase, da paixão desafiante, ele não coloca uma coroa de espinhos numa cabeça inocente e crava em letras de sangue o hediondo epíteto de Bastardo? Contivesse o casamento todas as virtudes alegadas, seus crimes contra a maternidade bastariam para excluí-lo para sempre do reino do amor.

Amor, o mais forte e mais profundo elemento de toda a vida, o anunciador da esperança, da alegria, do êxtase; amor, o desafiador de todas as leis, de todas as convenções; amor, o libérrimo, poderosíssimo modelador do destino humano; como pode uma força que a tudo compele ser sinônimo daquela pobre erva daninha gerada pelo Estado e a Igreja, o casamento?

Amor livre? Como se o amor fosse outra coisa que não livre! O homem comprou cérebros, mas todos os milhões no mundo falharam em comprar o amor. O homem subjugou os corpos, mas todo o poder na terra foi incapaz de subjugar o amor. O homem conquistou nações inteiras, mas todos os seus exércitos não puderam conquistar o amor. O homem acorrentou e agrilhoou o espírito, mas tem sido absolutamente indefeso diante do amor. Do alto de um trono, com todo esplendor e pompa que o ouro pode comandar, os homens são ainda pobres e desolados se o amor os perpassa. Mas quando fica, o casebre mais pobre irradia calor, cor e vida. E assim, o amor possui o poder mágico para fazer de um mendigo um rei. Sim, o amor é livre; não pode habitar outra atmosfera. Em liberdade se dá sem reservas, abundantemente, completamente. Todas as leis nos estatutos, todos os tribunais do universo, não podem arrancá-lo do solo, uma vez que o amor tenha fincado raízes. Entretanto, se o solo é estéril, como o casamento poderia fazê-lo fruir? É feito a última luta desesperada da vida breve contra a morte.

O amor não precisa de proteção; já é sua própria proteção. Tão logo vidas sejam geradas pelo amor, nenhuma criança é desertada, passa fome ou vontade de afeição. Que isto é verdade, eu o sei. Conheço mulheres que se tornaram mães em liberdade dos homens que amaram. Poucas crianças na relação aproveitam o cuidado, a proteção, a devoção que a maternidade livre é capaz de conferir.

Os defensores da autoridade temem o advento de uma maternidade livre, receando que ela irá roubar-lhe as vítimas. Quem combateria nas guerras? Quem geraria riqueza? Quem faria o policial, o carcereiro, se a mulher se recusasse à reprodução indiscriminada de crianças? A raça, a raça! – grita o rei, o presidente, o capitalista, o padre. A raça deve ser preservada, embora a mulher degradada à mera máquina — a instituição do casamento é nossa única válvula de segurança contra o pernicioso despertar sexual da mulher. Mas em vão, estes frenéticos esforços para manter um estado de sujeição. Em vão, também os éditos da Igreja, o louco ataque dos governantes, em vão, até mesmo o braço da lei. A mulher já não quer mais tomar parte na produção de uma raça de seres humanos doentios, débeis, decrépitos, miseráveis, que não possuem nem a força nem a coragem moral para se libertar do jugo da pobreza e da escravidão. Ao invés, deseja poucas crianças, mas superiores, geradas e criadas em amor e através da livre escolha; não por compulsão, como impõe o casamento. Nossos falso-moralistas têm ainda de aprender o profundo senso de responsabilidade pela criança que o amor em liberdade despertou no seio da mulher. Melhor seria renunciar para sempre a glória da maternidade do que dar à luz uma vida numa atmosfera onde só se respira destruição e morte. E se ela vem a ser mãe, é para dar à criança o mais profundo e melhor que seu ser pode oferecer. Crescer com a criança é seu mote; e ela sabe que somente dessa maneira é que pode ajudar a construir a verdadeira masculinidade e feminilidade.

Ibsen deve ter vislumbrado uma mãe livre, quando, num golpe de mestre, retratou Ms. Alving3. Ela foi uma mãe ideal por superar o casamento e todos os seus horrores, por quebrar suas correntes, e libertar o espírito para voar, até que uma personalidade, regenerada e forte, lhe retornasse. Ai! Foi demasiado tarde para recuperar sua alegria de viver, seu Oswald; mas não demasiado tarde para compreender que o amor em liberdade é a única condição para uma vida bela. Aquelas que, feito Ms. Alving, que pagaram com sangue e lágrimas por seu despertar espiritual, repudiam o casamento como uma imposição, uma pilhéria baixa e sem graça. Elas sabem que só o amor é, quer dure um breve espaço de tempo ou pela eternidade, a única base criativa, inspiradora e elevada para uma nova raça e para um novo mundo.

Em nosso presente estado pigmeu, para a maioria das pessoas, o amor é, de fato, um estranho. Incompreendido e evitado, raramente finca raízes, e se o faz, tão logo seca e morre. Suas fibras delicadas não aturam o stress e a tensão do cotidiano maçante. Sua alma é complexa demais para ajustar-se à trama viscosa de nosso tecido social. Ele chora e geme e sofre com aqueles que precisam dele, mas faltam da capacidade de elevar-se ao cume do amor.

Algum dia, algum dia homens e mulheres se elevarão, alcançarão o pico da montanha, se encontrarão grandes e fortes e livres, prontos para receber, partilhar, e refestelar-se nos raios dourados do amor. Que fantasia, que imaginação, que gênio poético pode, mesmo que aproximadamente antever as potencialidades de tal força na vida de homens e mulheres. Se o mundo alguma vez dará à luz ao verdadeiro companheirismo e união, não será o casamento, mas o amor a concebê-lo.

Notas do Tradutor:

1. Henrik Ibsen (1828-1906), literato escandinavo conhecido por sua tendência anarquista-individualista. A autora faz uma análise mais demorada da obra de Ibsen em seu livro “The Social Significance of the Modern Drama”. N. do T.

2. Referência a New York Society for the Prevention of Cruelty to Children, reconhecida como a primeira instituição devotada à “proteção do menor” nos E.U.A., em atividade desde 1874. Gerry Society é um outro modo de referir-se à mesma instituição. N. do T.

3. Ms. Alving é personagem de Ibsen na obra “Ghost”, uma análise desta obra e desta personagem encontra-se em livro já mencionado. N. do T.

Texto original: GOLDMAN, Emma. “Marriage and love” in: Anarchism and Other Essays. New York: Dover Publications, 1969. p. 227.

Tradução: José Paulo Maldonado de Souza

jxpxster@gmail.com

“Morte AOS RADICAIS!” A ARTE DA CRIMINALIZAÇÃO

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Por El Fauno

(De “Hermenêutica das Prisões”, 2015)

Fonte: Bloque Libertário

Apontamentos Micro-Históricos: A Teoria do Nexo Político e a Violência “Patológica” do Anarquista

Se é bom de antemão apontar primeiramente que nem todo anarquista veste capuz em protestos, e nem todo encapuzado se harmoniza com a ideologia anarquista, para esclarecermos que a raiva de uma manifestação não pode caracterizar a um grupo social específico. Às vezes a rebeldia e o “já me cansei” são indícios de atuar até as últimas consequências contra a podridão do México atual.

Os anarquistas não exercem sua ideologia política através de partidos de qualquer índole. Nem o Partido Liberal Mexicano fundado em 1906 pelos irmãos Flores Magón foi uma amostra da busca da democracia representativa e sim, da organização autônoma ao Estado para criar alternativas em razão de uma Revolução violenta que seria a única via para exercer a Liberdade humana e econômica. Os anarquistas buscam não buscam a representatividade de massas, mas destruir estas representatividades para evocar o indivíduo que representa a si mesmo.

schwarze block (black block), aparece a partir da década de 1970 na Alemanha Ocidental, pois a onda repressiva intensa contra grupos pacifistas, células estudantis e Okupas provocou a autodefesa como forma de reinvindicação rebelde. Em 1999 o termo se popularizou diante dos protestos em Seattle contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) que deu início ao movimento antiglobalização do novo século. Em 2001, se realizaram protestos de oposição semelhantes na Cúpula das Américas em Quebec, aonde tempos depois a polícia da cidade afirmaria que “seus agentes se infiltraram como manifestantes”. No México aparecem na Cúpula de Cancún (OMC) 2003em Guadalajara em 2004, durante la resistência da APPO – Oaxaca em 2006 – em 2011 durante vários atentados contra bancos empresariais e o fenômeno pelo qual quiseram se aprofundar para explicar o temor aos encapuzados: o #1DMX.

Até este dia, explodiria na maioria da população um repúdio/mal-entendido diante do protesto do encapuzado, sob o nome de anarquismo; com o quebrador de vidraças, o lançador de coquetéis molotov, a identidade visual preta. Daí que certos setores estudantis e anarquistas nos colocamos diante da tarefa de acercar tanto na História do anarquismo do século XIX, como com as práticas cotidianas que se veem em grande parte do mundo como uma ideologia obsoleta, mas como um caminho para a libertação da sociedade de consumo.

Consideremos; o período de bonança para os “radicais” foi dado a partir da situação contra a imposição de Enrique Peña Nieto, isto como resultado do período 2006-2011 entre as revoltas de Oaxaca e o Primeiro Congresso Anarquista celebrado no Auditório Che Guevara, ambos os fenômenos difundindo o anarquismo principalmente dentro das Universidades. Entre 2012 e 2014 se deu as criminalizações mais fortes contra os encapuzados, catalogando-os como grupos de choque pagos, de organizações da esquerda “radical” ou de maníacos antissociais. Estas acusações não são em nada novidade, acontecem desde o czarismo ultra-conservador de 1878 no qual começou a popularização da propaganda pelo fato com organizações como a Zemlya i Voyla (Terra e Vontade) fundada en 1862; alguns de seus integrantes como Alexander Milhailov ou Sofía Perovskaya foram fortemente difamados em todos os periódicos do mundo, já que a imprensa foi meio de manipulação ideológica, a partir de 1864 contra as sociedades secretas da AIT, e em maior medida contra os setores anarquistas. A mesma sorte tiveram Johann Most, Emma Goldman, Sacco e Vanzetti, e um sem fim de pensadores anarquistas que foram relacionados mais fortemente com grupos afins de indivíduos radicalizados, ainda quando eles exerciam o pensamento individual, tinham função de “profetas” e poucas vezes se dedicaram a exercer manifestações públicas. O “nós estamos cheios desta merda!” tornou-se um slogan que diz respeito globalmente a diferentes tipos de ações políticas, desde pôr em perigo a vida de um explorador, a destruir os produtos do sistema capitalista. Como mencionamos em Todo tipo de protesto é legítimo, os ataques à propriedade privada não são comparáveis como um crime em relação à função histórica de privar o excedente de produção coletiva durante séculos.

Durante o movimento #YoSoy132, muitas assembleias estudantis questionaram os princípios deste (da mesma burguesia do ITAM e a IBERO), em especial o da não-violência e de protestos dentro do quadro legal. Vários grupos com influência da corrente anarquista e anarco-punk da CGH na UNAM, da ENAH, da UAM e outros lugares, se encarregaram de formar estes núcleos de protesto, acrescentando a estes, estudantes formados e trabalhadores que seguiam o trabalho de informação de organismos como a FAM e a FAT. Veja!, isto não é dizer que seus membros foram partícipes somente atividades ligadas ao anarquismo, mas a sua atividade atraiu os jovens a autores como Bakunin, Malatesta e Alfredo M. Bonanno que inspiram protestos na Grécia em 2008 e dos sindicatos estudantis chilenos desde 2011. Os “radicais” se deram conta de que a rebelião era internacional.

Ante o triunfo do EPN nas eleições presidenciais, a opinião pública se baseou mais na noção da grande imprensa dos anarquistas como “vândalos”, “pseudo-estudantes” e “bêbados”, resultando em substantivos quase-linchamentos para o contigente encapuzado. A estratégia entre a opinião pública tinha se levantado como uma horda de manifestantes pagos pelo Estado, com a finalidade de gerar caos e romper os marcos legais dos protestos. O 2 de Outubro de 2012, o Bloque Negro teria uma breve aparição na dita conjuntura, um grupo de 15 encapuzados evitaria a passagem de uma caminhonete de soldados em frente à Catedral no Centro Histórico. A imprensa gravou depoimentos e se encarregaram de tomar testemunhos de pessoas que não se incomodaram com os atos de violência; durante sua transmissão na televisão aberta, foi curioso escutar da voz de Javier à Torre, Francisco Zea e Joaquín López Dóriga dizer a palavra “infiltrado”, tudo começaria a tomar um novo rumo. Desde as primeiras mega-marchas com a slogan de “No + PRI”, as massas começaram a chama-las de “perredistas” ou “AMLOvers” aos estudantes que saíam às ruas, porque foi no ano de 2012 a segunda ocasião na qual Andrés Manuel López Obrador se candidatou à presidência. Também, relacionaram os manifestantes com o ex-deputado Gerardo Fernández Noroña; é compreensível, os protestos violentos foram vinculados com os atos de desobediência civil que haviam realizado estes dois políticos passivos.

Outro fator que foi de grande importância para a criminalização foi o dos círculos anarquistas dentro da UNAM, em especial no movimento dos CCH’s contra a Reforma dos “12 Pontos” e outras medidas de austeridade, tudo isto em Fevereiro de 2013. A expulsão de 5 estudantes da CCH Naucalpan e a negação das autoridades a dialogar sobre os danos da reforma educativa ao setor estudantil, fez com que diversas células convocassem a tomada da Torre da Reitoria na Cidade Universitária no mês de abril do mesmo ano, e nessa ocasião, a grande imprensa nunca entrevistou aos estudantes anarquistas, e se dedicaram a gerar notas de ódio por alunos de outras faculdades (sobretudo Direito) e de pessoas alheias à UNAM, nas quais o motivo buscado era difamar e criminalizar, nunca informar sobre a reforma dos CCH’s e o assunto das expulsões arbitrárias.

Em abril de 2014, Carlos Loret de Mola escreveria: “para as áreas de inteligência do governo do Distrito Federal os grupos anarquistas que operam frequentemente nos protestos se articulam politicamente através de uma poderosa mulher: a deputada federal Aleida Alavez Ruiz, braço direito de René Bejarano (…), segundo suas informações, a deputada injeta de 7 a 10 milpesos diários não-rastreáveis que servem para a compra do material explosivo dos anarquistas e paga 200 pesos por cabeça para eles (…), também ligados com líderes como o ex-deputado Gerardo Fernández Noroña e o Movimento de Regeneração Nacional”[1]Vão idiotas!, a violência sempre ira gerar confusão entre as massas, e o recurso mais fácil para os pseudo-jornalistas de Estado será vinculá-los como um fetiche dos partidos “de esquerda”, que são uma suposta “frente alternativa” face às políticas priistas.

De mão deste artigo, constantemente se publicaram no La Razón, La Jornada e Milenio “investigações” do CISEN sobre as formas de operar dos grupos anarquistas que fizeram parte dos enfrentamentos do 13 de Setembro, 2 de Outubro, 10 de Junho e 1 de Dezembro de 2013, assim como essas datas comemorativas e o 20 de Novembro de 2014, afirmando um perfil de anarquista semelhante ao do terrorista, acrescentando que “os violentos são pessoas desonestas e mentirosas e (sic) em geral utilizam umos pessoais ou prazer[2].

La tarefa do anarquista em plena manipulacão da massa cinzenta, é formar grupos de afinidade, encarregados inicialmente de difundir a teoria de sua disciplina, a solidariedade alheia ao oportunismo, estratégias de não-consumo e ações políticas das minorias para a classe trabalhadora.

 ¡Muorte às criminalizações!


[1] “Quem é a “Lady Anarco?”, no El Universal, 09 de Abril de 2014.

A partir deste artigo, acusando ativistas que respeitamos e, em medida elemental, criminalizando o movimento anarquista, se realizaram vários comunicados por parte de Acción Directa – Prensa Libre, Cuartel Anarquista, MTS e diversas organizações com o fim de mostrar a participação dos “jornalistas” da Televisa e seu periódico, sempre orientada a caracterizar e espalhar confusão sobre os lutadores sociais.

[2] “Perfil de ‘anarquistas’ é semelhante ao de terroristas” no La Razón, 24 de Novembro de 2014, por Carlos Jímenez e Susana Guzmán.

Causou estragos nas redes sociais, tanto, que diversas células convocaram a um protesto simbólico nas instalações do edifício do La Razón. Foi cancelada esta ação.