Ciúmes: Causas e uma possível cura – Emma Goldman

Emma_Goldman_-_Union_Square,_New_York,_1916Por Emma Goldman

Fonte: Amor Y Anarquia

Ninguém em geral é capaz de uma intensa consciência interna, porque a vida sempre necessita de esperança para escapar da angústia mental e do sofrimento. O sofrimento, e muitas vezes o desespero, sobre a chamada característica eterna das coisas são a mais persistente companhia de nossas vidas. Mas eles não surgem em nós do exterior, através dos atos malignos de pessoas particularmente más. Eles são condicionados ao nosso próprio ser, de fato, eles estão interligados através de mil propostas e grossos fios com a nossa existência.

É absolutamente necessário que nós compreendamos esse fato, porque as pessoas que nunca se livram da noção de que sua desgraça é fruto da maldade dos outros nunca podem superar o ódio mesquinho e a malícia que constantemente acusa, condena e persegue os outros por algo que é inevitavelmente parte de si mesmos. Tais pessoas não irão subir para as alturas sublimes do verdadeiro humanista, para quem o bem e o mal, a moral e a imoral, são, portanto, termos limitados para o conflito interior das emoções humanas no mar da vida humana.

O filósofo “além do bem e do mal”, Nietzsche, é atualmente denunciado como criador de um ódio nacional e uma destruição metralhadora. Mas apenas maus leitores e maus alunxs o interpretam desta forma. “Além do bem e do mal” significa além do Ministério Público, além de fazer julgamentos, além de matar, etc. Além do Bem e do Mal se abre diante dos nossos olhos como uma visão do pano de fundo que é a afirmação individual, juntamente com a compreensão de todos aqueles que são o contrário de nós mesmos, que são diferentes.

Por isso eu não me refiro à tentativa desajeitada da democracia de regular as complexidades do caráter humano por meio da igualdade externa. A visão de “além do bem e do mal” aponta para a direita de si mesmo, à própria personalidade. Tais possibilidades não excluem a dor do caos da vida, mas excluem a justiça puritana que se insere no julgamento de todos os outros, exceto de si mesmo.

É auto-evidente que a profundidade radical – muitos são superficiais, você sabe – deve aplicar esta profundidade ao reconhecimento humano da relação de amor e sexo. Emoções de amor e sexo estão entre as mais íntimas, intensas e sensíveis, expressões do nosso ser. Elas são tão profundamente relacionadas às características físicas e psíquicas individuais como um carimbo em cada caso de amor como um caso independente, diferente de todos os outros casos de amor. Em outras palavras, cada amor é resultado das impressões e características que duas pessoas envolvidas dão a isso. Toda relação de amor deve, por sua própria natureza, permanecer como um caso absolutamente privado. Nem mesmo o Estado, a Igreja, a moralidade ou as pessoas devem mediar isso.

Infelizmente esse não é o caso. A mais íntima relação é submetida a proscrições, regulamentos e coerções; porém, esses fatores externos são absolutamente estranhos ao amor, e leva a eternas contradições e conflitos entre o amor e a lei.

O resultado disso é que nossa vida amorosa está imersa em corrupção e degradação. O “amor puro”, tão aclamado pelos poetas, é, no atual matrimônio, divórcio e disputas alienadas, um espécime raro. Com dinheiro, status social, e posição como critérios para o amor, a prostituição é quase inevitável, ainda que seja coberta pelo manto da legitimidade e da moralidade.

O mais permanente demônio da nossa mutilada vida amorosa é o ciúme, frequentemente descrito como “mostro de olhos verdes”, que mente, engana, trai e mata. O senso comum é de que o ciúme é inato e, portanto, nunca poderá ser erradicado do coração humano. Essa ideia é uma desculpa conveniente para aqueles que não têm capacidade ou vontade para mergulhar dentro das causas e efeitos.

A angústia sobre um amor perdido, sobre o fio quebrado da continuidade do amor é, de fato, inerente ao nosso ser. O sofrimento emocional tem inspirado muitas letras sublimes, com olhares muito profundos e exaltação poética de Byron, Shelley, Heine e outros. Mas será que é possível comparar esta tristeza com o que comumente acontece no ciúme? Eles são tão diferentes como a sabedoria e a estupidez. Como o refinamento e a rudeza. Dignidade e coerção brutal. O ciúme é o oposto da compreensão, da simpatia, e dos sentimentos generosos. O ciúme nunca adicionou algo ao caráter, nunca fez o indivíduo grande e bom. O que ele realmente faz é torná-lo cego com fúria, mesquinho com suspeita, e duro de inveja.

Ciúme, as contorções que vemos nas tragédias e comédias matrimoniais, são invariáveis por um lado, intolerantemente acusadoras, convencidas da sua própria justiça e da maldade, crueldade e culpa da sua vítima. O ciúme nem mesmo tenta compreender. Seu único desejo é punir, e punir tão severamente quanto possível. Essa noção é incorporada ao código de honra, como representada em um duelo ou em uma lei não escrita.  Um código que vai considerar que a sedução de uma mulher deve ser punida com a morte dx sedutor(a). Mesmo onde a sedução não tomou lugar, onde ambos voluntariamente cederam ao desejo mais íntimo, a honra só é restaurada quando o sangue é derramado, seja do homem ou da mulher.

O Ciúme é obcecado pelo sentimento de possessão e vingança. Isto está de acordo com todas as outras leis de punição nos estatutos que ainda aderem à barbárie noção de que uma ofensa, muitas vezes meramente resulta de injustiças sociais, e devem ser adequadamente punidas ou vingadas.

Um argumento muito forte contra o ciúme pode ser encontrado nos dados de historiadores como Morgan, Reclus e outros, como sobre as relações sexuais dos povos primitivos. Qualquer um que esteja familiarizado com suas obras sabe que a monogamia é uma forma de sexo que surgiu muito mais tarde, como resultado da domesticação e da propriedade das mulheres, e que criou o monopólio do sexo e o inevitável sentimento de ciúme.

 No passado, quando homens e mulheres se misturaram livremente sem a interferência da lei e da moralidade, não poderia existir ciúme, porque este repousa sobre a suposição de que certo homem tem o monopólio exclusivo sobre o sexo de determinada mulher e vice-versa. No momento em que ninguém visa transgredir este preceito sagrado, o ciúme está em pé de guerra. Sob tais circunstâncias, é ridículo dizer que o ciúme é perfeitamente natural. Fatidicamente, se trata de um resultado artificial de uma causa artificial, nada mais.

Infelizmente não são apenas os casamentos conservadores que são afetados pelo ciúme com a noção de monopólio sexual; as chamadas uniões livres também são vítimas dele. O argumento provavelmente levantado é que isto é mais uma prova de que o ciúme é um traço inato. Mas é preciso ter em mente que o monopólio sexual tem sido transmitido de geração em geração como um direito sagrado e como a base da pureza da família e do lar. E assim como a Igreja e o Estado aceitam o monopólio sexual como a única segurança para o vinculo matrimonial, eles tem justificado o ciúmes como uma arma legítima de defesa para a proteção do direito de propriedade.

Agora, se é verdade que um grande número de pessoas superou a legalidade do monopólio do sexo, elxs não superaram as suas tradições e hábitos. Por isso, elxs se tornaram tão cegxs pelo “monstro de olhos verdes” quanto seus/suas vizinhxs conservadorxs no momento os seus bens estão em jogo.

   Um homem ou uma mulher livre e grande o suficiente para não interferir ou inquietar-se sobre as outras atrações da pessoa amada são com certeza desprezadxs por seus/suas amigxs conservadores, e ridicularizadxs por seus/suas amigxs radicais. Elx também será acusadx de ser umx degeneradx ou umx covarde; e frequentemente alguns motivos materiais mesquinhos serão imputados a elx. De qualquer forma, esses homens e mulheres serão alvo de fofocas ou piadas grosseiras ou imundas por nenhuma outra razão além do fato delxs admitirem ao marido, esposa ou amantes o direito de seus próprios corpos e sua expressão emocional, sem fazer cenas de ciúmes ou ameaças selvagens para matar x intrusx.

Há outros fatores no ciúme: o conceito do macho e da inveja do feminino. O macho em matéria sexual é um impostor, um fanfarrão, que sempre se orgulha de suas façanhas e do sucesso com as mulheres. Ele insiste em desempenhar o papel de um conquistador, já que ele foi informado de que as mulheres querem ser conquistados, e que elas gostam de ser seduzidas. Sentindo-se o único galo do curral, ou o touro que deve confrontar com seus chifres a fim de ganhar a vaca, ele se sente mortalmente ferido na sua vaidade e arrogância no momento em que umx rival entra em cena – a cena, mesmo entre os chamados homens refinados, continua a ser o amor sexual da mulher, que deve pertencer a apenas um mestre.

Em outras palavras, o monopólio do sexo em perigo, juntamente com a vaidade do homem ultrajado, em 99 em cada cem casos são os antecedentes do ciúme.

No caso de uma mulher, o medo econômico por si mesma e pelas crianças e sua inveja mesquinha de todas as outras mulheres que ganham graça aos olhos do seu defensor, invariavelmente, criam ciúme. Em justiça, foi dito para as mulheres durante os séculos passados, que a atração física era seu único estoque na negociação, portanto, ela deve se tornar necessariamente invejosa do charme e do valor de outras mulheres como uma ameaça ao seu poder sobre sua propriedade preciosa.

O aspecto grotesco de toda a questão é que os homens e as mulheres geralmente criam uma inveja violenta daquelxs que realmente não se importam muito sobre isso. Portanto, não é o seu amor ultrajado, mas a sua vaidade e inveja indignada que clamam contra esse “terrível erro”. É provável que a mulher nunca amou o homem de quem ela agora suspeita e espiona. Provavelmente ela nunca fez um esforço para manter o seu amor. Mas no momento em que umx concorrente chega, ela começa a valorizar sua propriedade sexual para defendê-la de forma que nenhum meio é muito desprezível ou cruel.

Obviamente, então, o ciúme não é o resultado do amor. Na verdade, se fosse possível investigar mais casos de ciúmes, provavelmente descobririam que quanto mais violento e desprezível é o seu ciúme, menos as pessoas estão imbuídas de um grande amor. Duas pessoas vinculadas por harmonia interior e unidade não têm medo de prejudicar a sua confiança mútua e segurança, se um ou outro tem atrações externas, nem iram terminar seu relacionamento em inimizade vil, como é muitas vezes o caso de muitas pessoas. Muitos delxs não são capazes, nem deve de se esperar, de incluir a escolha da pessoa amada na intimidade de suas vidas, mas isso não xs dá qualquer direito de negar a necessidade da atração.

Assim como eu discutirei variedade e monogamia duas semanas a partir de hoje a noite, não me deterei nisso, nem aqui, exceto para dizer que olhar as pessoas que podem amar mais de uma pessoa de forma tão perversa ou anormal é ser muito ignorante mesmo. Eu já discuti uma série de causas para o ciúme, a qual devo acrescentar a instituição do casamento que o Estado e a Igreja proclamam como “o vínculo até a morte”. Isso é aceito como o ético modo correto de vida e a ação correta.

  Com amor, em todas a sua variabilidade e mutabilidade, acorrentadxs e apertadxs, é uma pequena maravilha se o ciúme surge fora dele. Que outra coisa senão mesquinhez, avareza, suspeita e rancor pode surgir quando um homem e uma mulher são oficialmente mantidxs juntxs com a fórmula “a partir de agora vocês são um em corpo e espírito.” Basta manter qualquer casal amarrado de tal maneira, dependentes umx dxs outrxs para cada pensamento e sentimento, sem um interesse ou desejo externo, e se perguntar se tal relação não deve tornar-se odiosa e insuportável com o tempo.

De uma forma ou outra os grilhões são quebrados, e como as circunstâncias que permitem fazê-lo são geralmente baixas e degradantes, não é de surpreender que eles coloquem em jogo os mais deteriorados e malvados traços e motivos humanos.

Em outras palavras, a interferência legal, religiosa e moral são os pais do nosso atual amor e vida sexual não naturais, e fora disso o ciúme cresceu. Esse é o chicote que açoita e tortura os pobres mortais por causa de sua estupidez, ignorância e preconceito.

Mas ninguém precisa tentar justificar-se em terra por ser uma vítima destas condições. É bem verdade que todos nós inteligentes estamos sob os fardos dos arranjos sociais injustos, sob coerção e cegueira moral. Mas não somos indivíduos conscientes, cujo objetivo é trazer a verdade e a justiça aos assuntos humanos? A teoria de que o homem é um produto de condições levou apenas à indiferença e a um fraco consenso sobre essas condições. Ainda que todos saibam que a adaptação a um modo de vida não saudável e injusto só fortalece a ambos, enquanto o homem, o chamado “coroa de toda a criação”, equipado com uma capacidade de pensar e ver e acima de tudo para empregar os seus poderes de iniciativa, cresce cada vez mais fraco, mais passivo, mais fatalista.

Não há nada mais terrível e fatal do que escavar dentro das vísceras de um de seus entes queridos e de si mesmo. Isso só pode ajudar a rasgar os fiapos de afeto que ainda são inerentes à relação e, finalmente, trazer-nos até a última trincheira, que tenta combater o ciúme, ou seja, a aniquilação do amor, amizade e respeito.

O ciúme é realmente um meio pobre para proteger o amor, mas é um meio seguro para destruir o auto-respeito. Para pessoas ciumentas, como “drogas-demônios”, rebaixa ao nível mais baixo e, no final, inspira apenas desgosto e repugnância.

A angústia pela perda de um amor ou por um amor não correspondido entre as pessoas que são capazes de pensamentos elevados e finos jamais fará uma pessoa se tornar rude. Aquelxs que são sensíveis e finxs apenas devem perguntar-se se podem tolerar qualquer tipo de relação obrigatória, e um enfático “não” seria a resposta. Mas a maioria das pessoas continua a viver próximas uma das outras, apesar de terem a muito tempo deixado de viverem umas com as outras – uma vida fértil o suficiente para a operação do ciúme, cujos métodos percorrem todo o caminho desde abrir a correspondência privada até o assassinato. Comparado com tais horrores, adultério aberto parece um ato de coragem e libertação.

Um escudo forte contra a vulgaridade do ciúme é que o homem e a mulher não são um só em corpo e espírito. Eles são dois seres humanos, com temperamentos diferentes, sentimentos e emoções. Cada um é um cosmos pequeno em si mesmo, absorto em seus próprios pensamentos e idéias. Isso é glorioso e poético se estes dois mundos se encontram em liberdade e igualdade. Mesmo que isso dure pouco tempo, já valerá à pena. Mas, no momento em que os dois mundos são forçados a ficar juntos, toda a beleza e o perfume cessam e nada mais que folhas mortas permanecem. Quem compreende esta obviedade irá considerar o ciúme como algo abaixo de si e não permitirá que isso seja pendurado como uma espada de Dâmocles sobre elx.

Todos os amantes fazem bem ao deixarem as portas do seu amor aberto. Quando o amor pode ir e vir sem medo de encontrar um cão de guarda, o ciúme raramente irá criar raízes porque ele vai aprender rapidamente que onde não há fechaduras e chaves, não há lugar para a suspeita e desconfiança, dois elementos sobre os quais o ciúme cresce e prospera.

Este artigo é uma cortesia dos documentos de Emma Goldman: Divisão de Arquivos e Manuscritos, The New York Public Library, Astor, Lenox e Fundações Tilden.

Traduzido de:

http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/goldman/jealousy.html

Casamento e Amor – Emma Goldman

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Anarquismo e Outros Ensaios
Por Emma Goldman
De Amor e Anarquia
(Original em Inglês)

Fonte: Protopia

A noção popular em torno do casamento e do amor é a de que eles são sinônimos, que eles afloram dos mesmos motivos e cobrem as mesmas necessidades humanas. Como tantas outras noções populares, também esta não repousa em fatos concretos, mas sob superstições.

Casamento e amor não possuem nada em comum; estão tão apartados como pólos; e são, de fato, antagônicos entre si. Sem dúvidas, certos casamentos são resultado do amor. Entretanto, não é porque o amor só se afirma em casamento; é antes porque poucas pessoas conseguem superar completamente uma convenção. Para um grande número de homens e mulheres hoje em dia, o casamento nada é senão uma farsa, mas a ele se submetem por amor à opinião pública. Em todo caso, enquanto é verdade que certos casamentos baseiam-se no amor e enquanto é igualmente verdade que certas vezes o amor continua durante a vida conjugal, eu sustento que isso se dá independentemente do casamento e não devido a ele.

Por outro lado, é completamente falso que do casamento resulte amor. Um caso milagroso se faz ouvir, em raras ocasiões, de cônjuges que caem em amor depois de casados, mas em exame amiúde aí se encontrará um mero ajuste ao inevitável. Certamente a habituação ao outro está distante da espontaneidade, da intensidade, e da beatitude do amor, sem o que a intimidade do casamento deve revelar-se degradante para ambos homem e mulher.

O casamento, primeiramente, é um arranjo econômico, um pacto de seguro. Só difere do contrato comum de seguro de vida naquilo que tem de mais obrigatório, de mais exigente. Os retornos são insignificantemente pequenos quando comparados aos investimentos. Ao se contratar uma apólice de seguro se paga em dólares e centavos, mas nos resta sempre a liberdade de descontinuar os pagamentos. Entretanto, se o marido é o prêmio do seguro, ela paga por isso com seu nome, sua privacidade, sua auto-estima, com sua própria vida “até que a morte os separe”. Além do que, o contrato do casamento a condena a uma dependência vitalícia, ao parasitismo, a completa inutilidade individual bem como social. O homem paga a sua parte também, mas como sua esfera é maior, o casamento não o limita tanto como à mulher. Ele sente suas correntes pesarem mais num sentido econômico.

E assim o mote do Inferno de Dante se aplica ao casamento com a mesma força. “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”.

Somente um estúpido completo nega que o casamento é um fracasso. Basta relancear a vista sobre as estatísticas do divórcio para compreender como é verdadeiramente amargo um casamento fracassado. Tampouco o argumento filisteu estereotipado, o da lassidão das leis do divórcio e o da crescente frouxidão da mulher, dará conta do fato de que: em primeiro, cada décimo segundo casamento termina em divórcio; segundo, que desde 1870 divórcios cresceram de 28 para 73 a cada população de cem mil; terceiro, que o adultério, desde 1867, como causa de divórcio cresceu 280.7 por cento; quarto, que a deserção aumentou em 369.8 por cento.

Somado a estes números surpreendentes, há ainda um vasto material dramático e literário melhor elucidando o assunto. Robert Herrick, em Together; Pinero, em Mid-Channel; Eugene Walter, em Paid in Full, e dezenas de outros escritores estão discutindo a aridez, a monotonia, a sordidez, e a inadequação do casamento como fator pela harmonia e pelo entendimento.

O estudioso social sério não se contentará com a popular desculpa superficial para este fenômeno. Ele terá de escavar a vida mesma dos sexos profundamente adentro para conhecer o porque de o casamento revelar-se tão desastroso.

Edward Carpenter diz que, por detrás de todo casamento, persiste uma ambiência vitalícia dos dois sexos; ambiências tão diferentes entre si que homem e mulher devem permanecer estranhos. Separados por uma muralha intransponível de superstição, costume, e hábito, o casamento não tem a potencialidade de desenvolver o conhecimento e o respeito mútuo, sem o que toda união está destinada ao fracasso.

Henrik Ibsen1, o inimigo de toda farsa social, foi provavelmente o primeiro a conceber esta grande verdade. Nora abandonou o marido, não porque – como queria a crítica estúpida – estaria cansada de suas responsabilidades ou sentia que precisava dos direitos da mulher, mas porque veio saber que, durante oito anos convivera com um estranho e agora pariu uma criança sua. Pode haver qualquer coisa de mais humilhante, de mais degradante do que a proximidade vitalícia entre dois estranhos? Não é preciso que a mulher conheça nada do homem, salvo sua renda. Com relação ao conhecimento da mulher – o que há para se conhecer sobre ela exceto se possui uma boa aparência? Não superamos ainda o mito teológico em que a mulher não tem alma, em que é meramente um apêndice do homem, feita da costela do cavalheiro só para sua conveniência, esse que de tão forte ficara com medo da própria sombra.

Porventura da má qualidade do material, donde a mulher tornou-se responsável por sua própria inferioridade. Em todo caso, mulher não tem alma – o que há para se conhecer sobre ela? Além do que, quanto menos alma tem uma mulher, maior seu tino para esposa, o mais prontamente irá absorver-se ao marido. É essa servil aquiescência à superioridade do homem que manteve a instituição do casamento aparentemente intacta por um tempo tão longo. Mas agora que a mulher está vindo a si, agora que ela está crescentemente consciente de si como um ser exterior à graça do mestre, a sagrada instituição do casamento está gradualmente sendo minada, e nenhum tanto de lamentação sentimental poderá evitar.

Quase desde a infância, é dito à garota comum que o casamento é seu objetivo final; portanto seu treino e educação têm de ser direcionados para esse fim. Feito a besta muda na engorda, ela é preparada para o abate. Mas para ela, estranho dizer, é permitido conhecer muito menos sobre sua função como esposa e mãe do que para o artesão comum sobre seu ofício. Para uma garota respeitável, é indecente e imundo conhecer qualquer coisa da relação marital. Oh, pela incoerência da respeitabilidade, requerer votos de casamento para tornar algo imundo no mais puro e sagrado arranjo que ninguém ousa questionar ou criticar. Mas esta é exatamente a atitude do entusiasta comum do casamento. A futura esposa e mãe é mantida na mais completa ignorância em torno de sua única inclinação no campo competitivo — o sexo. E assim ela adentra com um homem numa relação vitalícia só para encontrar-se chocada, repelida e ultrajada além da medida pelo mais natural e saudável instinto, o sexo. É seguro dizer que uma grande percentagem da infelicidade, miséria, aflição e sofrimento físico do matrimônio se devem à ignorância criminosa em matéria de sexo que é exortada como uma grande virtude. Tampouco é de todo um exagero quando digo que devido a este fato deplorável, mais de um lar foi desfeito.

Se, entretanto, a mulher for livre e grande o bastante para aprender o mistério do sexo sem a sanção do Estado ou da Igreja, permanecerá condenada como completamente imprópria para ser esposa de um “bom” homem, sua bondade consistindo de um cérebro vazio e um bolso cheio de dinheiro. Pode haver qualquer coisa mais ultrajante do que a idéia de uma mulher saudável, em plena idade, cheia de paixão e vida, ter de negar a demanda da natureza, ter de reprimir seu desejo mais intenso, minar a sua saúde e quebrantar seu espírito, ter de aturdir sua visão e abster-se da profundidade e da glória da experiência do sexo, até que um homem “bom” chegue para tomá-la como esposa? Isto é precisamente o que o casamento significa. Como poderia tal arranjo terminar exceto em fracasso? Esse é um fator, embora não menos importante, que diferencia o casamento do amor.

A nossa era é prática. O tempo em que Romeu e Julieta arriscaram-se à fúria dos pais por amor, em que Gretchen expõs-se ao falatório dos vizinhos por amor, já era. Se, em raras ocasiões, pessoas jovens se permitem à luxúria do romance, em seguida os mais velhos cuidam para que, após pregados e martelados, se tornem “sensatos”.

A lição moral instilada na garota não é a de se o homem arrebatou o seu amor, mas: o “Quanto?”. O único Deus importante da vida prática americana: o homem consegue ganhar a vida? Consegue sustentar uma esposa? Esta é a única coisa que justifica o casamento. Gradualmente isto de todo satura o pensamento da garota; seus sonhos já não são de luares e beijos, risos e lágrimas; agora sonha em ir às compras e às boas pechinchas. Tal sordidez e pobreza da alma são elementos inerentes à instituição do casamento. O Estado e a Igreja aprovam esse ideal e não outro, simplesmente porque esse é o ideal que necessita que o Estado e a Igreja controle homens e mulheres.

Indubitavelmente há as pessoas que continuam considerando o amor superior a dólares e centavos. E isto é particularmente verdade para a classe daqueles cuja necessidade econômica forçou a que se auto-sustentassem. A tremenda mudança na posição da mulher operada por este poderoso fator é, de fato, fenomenal quando refletimos que há só um curto período desde o ingresso da mulher na arena industrial. Seis milhões de mulheres trabalhadoras assalariadas; seis milhões de mulheres com direitos iguais aos homens de serem exploradas, roubadas, ir à greve; ai, mesmo até de passar fome. Algo mais, my lord? Sim, seis milhões de trabalhadoras em todas as ocupações, desde o mais elevado trabalho intelectual até as minas e ferrovias, mesmo até detetives e policiais. Com certeza a emancipação está completa.

Apesar disso tudo, só um número muito pequeno do vasto exército das mulheres trabalhadoras enxerga o seu trabalho como situação permanente, na mesma luz que um homem o faz. Não importa quão decrépito seja este último, ele foi ensinado a ser independente, a se auto-sustentar. Oh, eu sei que ninguém é verdadeiramente independente em nossa moenda econômica; e ainda o espécime mais miserável de homem odeia ser um parasita; ou, em todo caso, pelo menos ser conhecido como tal.

A mulher considera transitória sua posição como trabalhadora, a ser deixada de lado pelo primeiro pretendente. É este o porque de ser infinitamente mais difícil organizar mulheres do que homens. “Porque devo me filiar a um sindicato? Vou me casar, ter um lar”. Ela desde a infância não foi ensinada a enxergar isso como sua convocação última? Ela aprende cedo o bastante que, apesar de não tão grande como a prisão de uma fábrica, o lar tem portões e grades ainda mais sólidas. Possui um guardião tão fiel que nada lhe pode escapar. A parte mais trágica, entretanto, é que o lar não a liberta da escravidão assalariada; apenas aumenta seus afazeres.

De acordo com as mais recentes estatísticas submetidas diante de um Comitê “em torno do trabalho, salários e congestão da população”, apenas em Nova York, dez por cento das trabalhadoras assalariadas são casadas, ainda que continuem no trabalho mais mal pago do mundo. Some a esta visão horrível o peso do serviço doméstico e o que resta da proteção e glória do lar? Como matéria de fato, até a garota classe-média não pode falar sobre um lar seu no casamento, desde que é o homem que cria sua esfera. Não é importante se o marido é um bruto ou um doce. O que desejo provar é que o casamento só garante um lar à mulher pela graça do marido. Ela gira em torno do lar dele, ano após ano, até que sua visão de vida e de relações humanas se torne tão rasa, estreita, e tediosa, como seu entorno. Pouco admira se ela vir a ser resmungona, trivial, arengueira, faladeira, insuportável, e expulsando assim o homem da casa. Se ela quisesse, não poderia ir; não há lugar para onde ir. Além do que, um curto período de vida conjugal, de completa rendição de todas as faculdades, incapacita absolutamente a mulher comum para o mundo exterior. Ela se torna indiferente à aparência, desajeitada em seus movimentos, dependente em suas decisões, covarde em seu julgamento, um fardo e um aborrecimento, cuja maioria dos homens cresce para odiar e desprezar. Atmosfera maravilhosamente inspiradora para o desenrolar da vida, não?

Mas e a criança, como será protegida, senão pelo casamento? Depois de tudo, não é esta a consideração mais importante a se fazer? A farsa, a hipocrisia! Casamento protegendo a criança, mas centenas de crianças abandonadas e sem lar. Casamento protegendo a criança, mas orfanatos e reformatórios lotados, a Sociedade pela Prevenção de Crueldade a Criança se mantendo ocupada resgatando as pequenas vítimas daqueles pais “amorosos”, para colocá-las sob cuidados mais amorosos ainda, da Gerry Society2. Oh, mas que pilhéria!

O casamento poderá levar o cavalo até a água, mas já pôde obrigá-lo a beber? A lei colocará o pai na detenção, irá vesti-lo em uniforme de presidiário; mas alguma vez já matou a fome das crianças? Se o pai não tem emprego, ou se esconde sua identidade, que faz então o casamento? Invoca a lei para levar o homem à “justiça”, colocá-lo em segurança atrás de portões fechados; seu trabalho, entretanto, não vai para criança, mas para o Estado. A criança só recebe uma memória enferrujada das listras do pai.

Com relação à proteção da mulher — aí reside a maldição do casamento. Ele não as protege verdadeiramente, e a idéia mesma é tão revoltante como um ultraje e um insulto à vida, tão degradante à dignidade humana, que condena para sempre esta instituição parasitária.

Feito aquele outro arranjo paternal — o capitalismo. Rouba do homem seus direitos, aturde o seu crescimento, envenena o seu corpo, o mantém na ignorância, na pobreza, na dependência, daí institui caridades que medram sobre os últimos vestígios do auto-respeito humano.

A instituição do casamento faz da mulher uma parasita, uma dependente absoluta. Incapacita-a para a luta da vida, aniquila sua consciência social, paralisa sua imaginação, daí impõe sua graciosa proteção que na realidade é um ardil, travestido a caráter humano.

Se a maternidade é a mais elevada realização da natureza da mulher, que outra proteção poderia requerer, salvo amor e liberdade? Casamento só contamina, ultraja, e corrompe essa realização. Não diz à mulher: darás à luz vida somente se me seguires? Não a degrada e a envergonha quando ela se recusa a vender seu direito à maternidade vendendo a si mesma? O casamento não é somente uma sanção para a maternidade, mesmo quando concebida no ódio, na compulsão? Mas quando a maternidade é de livre escolha, do amor, do êxtase, da paixão desafiante, ele não coloca uma coroa de espinhos numa cabeça inocente e crava em letras de sangue o hediondo epíteto de Bastardo? Contivesse o casamento todas as virtudes alegadas, seus crimes contra a maternidade bastariam para excluí-lo para sempre do reino do amor.

Amor, o mais forte e mais profundo elemento de toda a vida, o anunciador da esperança, da alegria, do êxtase; amor, o desafiador de todas as leis, de todas as convenções; amor, o libérrimo, poderosíssimo modelador do destino humano; como pode uma força que a tudo compele ser sinônimo daquela pobre erva daninha gerada pelo Estado e a Igreja, o casamento?

Amor livre? Como se o amor fosse outra coisa que não livre! O homem comprou cérebros, mas todos os milhões no mundo falharam em comprar o amor. O homem subjugou os corpos, mas todo o poder na terra foi incapaz de subjugar o amor. O homem conquistou nações inteiras, mas todos os seus exércitos não puderam conquistar o amor. O homem acorrentou e agrilhoou o espírito, mas tem sido absolutamente indefeso diante do amor. Do alto de um trono, com todo esplendor e pompa que o ouro pode comandar, os homens são ainda pobres e desolados se o amor os perpassa. Mas quando fica, o casebre mais pobre irradia calor, cor e vida. E assim, o amor possui o poder mágico para fazer de um mendigo um rei. Sim, o amor é livre; não pode habitar outra atmosfera. Em liberdade se dá sem reservas, abundantemente, completamente. Todas as leis nos estatutos, todos os tribunais do universo, não podem arrancá-lo do solo, uma vez que o amor tenha fincado raízes. Entretanto, se o solo é estéril, como o casamento poderia fazê-lo fruir? É feito a última luta desesperada da vida breve contra a morte.

O amor não precisa de proteção; já é sua própria proteção. Tão logo vidas sejam geradas pelo amor, nenhuma criança é desertada, passa fome ou vontade de afeição. Que isto é verdade, eu o sei. Conheço mulheres que se tornaram mães em liberdade dos homens que amaram. Poucas crianças na relação aproveitam o cuidado, a proteção, a devoção que a maternidade livre é capaz de conferir.

Os defensores da autoridade temem o advento de uma maternidade livre, receando que ela irá roubar-lhe as vítimas. Quem combateria nas guerras? Quem geraria riqueza? Quem faria o policial, o carcereiro, se a mulher se recusasse à reprodução indiscriminada de crianças? A raça, a raça! – grita o rei, o presidente, o capitalista, o padre. A raça deve ser preservada, embora a mulher degradada à mera máquina — a instituição do casamento é nossa única válvula de segurança contra o pernicioso despertar sexual da mulher. Mas em vão, estes frenéticos esforços para manter um estado de sujeição. Em vão, também os éditos da Igreja, o louco ataque dos governantes, em vão, até mesmo o braço da lei. A mulher já não quer mais tomar parte na produção de uma raça de seres humanos doentios, débeis, decrépitos, miseráveis, que não possuem nem a força nem a coragem moral para se libertar do jugo da pobreza e da escravidão. Ao invés, deseja poucas crianças, mas superiores, geradas e criadas em amor e através da livre escolha; não por compulsão, como impõe o casamento. Nossos falso-moralistas têm ainda de aprender o profundo senso de responsabilidade pela criança que o amor em liberdade despertou no seio da mulher. Melhor seria renunciar para sempre a glória da maternidade do que dar à luz uma vida numa atmosfera onde só se respira destruição e morte. E se ela vem a ser mãe, é para dar à criança o mais profundo e melhor que seu ser pode oferecer. Crescer com a criança é seu mote; e ela sabe que somente dessa maneira é que pode ajudar a construir a verdadeira masculinidade e feminilidade.

Ibsen deve ter vislumbrado uma mãe livre, quando, num golpe de mestre, retratou Ms. Alving3. Ela foi uma mãe ideal por superar o casamento e todos os seus horrores, por quebrar suas correntes, e libertar o espírito para voar, até que uma personalidade, regenerada e forte, lhe retornasse. Ai! Foi demasiado tarde para recuperar sua alegria de viver, seu Oswald; mas não demasiado tarde para compreender que o amor em liberdade é a única condição para uma vida bela. Aquelas que, feito Ms. Alving, que pagaram com sangue e lágrimas por seu despertar espiritual, repudiam o casamento como uma imposição, uma pilhéria baixa e sem graça. Elas sabem que só o amor é, quer dure um breve espaço de tempo ou pela eternidade, a única base criativa, inspiradora e elevada para uma nova raça e para um novo mundo.

Em nosso presente estado pigmeu, para a maioria das pessoas, o amor é, de fato, um estranho. Incompreendido e evitado, raramente finca raízes, e se o faz, tão logo seca e morre. Suas fibras delicadas não aturam o stress e a tensão do cotidiano maçante. Sua alma é complexa demais para ajustar-se à trama viscosa de nosso tecido social. Ele chora e geme e sofre com aqueles que precisam dele, mas faltam da capacidade de elevar-se ao cume do amor.

Algum dia, algum dia homens e mulheres se elevarão, alcançarão o pico da montanha, se encontrarão grandes e fortes e livres, prontos para receber, partilhar, e refestelar-se nos raios dourados do amor. Que fantasia, que imaginação, que gênio poético pode, mesmo que aproximadamente antever as potencialidades de tal força na vida de homens e mulheres. Se o mundo alguma vez dará à luz ao verdadeiro companheirismo e união, não será o casamento, mas o amor a concebê-lo.

Notas do Tradutor:

1. Henrik Ibsen (1828-1906), literato escandinavo conhecido por sua tendência anarquista-individualista. A autora faz uma análise mais demorada da obra de Ibsen em seu livro “The Social Significance of the Modern Drama”. N. do T.

2. Referência a New York Society for the Prevention of Cruelty to Children, reconhecida como a primeira instituição devotada à “proteção do menor” nos E.U.A., em atividade desde 1874. Gerry Society é um outro modo de referir-se à mesma instituição. N. do T.

3. Ms. Alving é personagem de Ibsen na obra “Ghost”, uma análise desta obra e desta personagem encontra-se em livro já mencionado. N. do T.

Texto original: GOLDMAN, Emma. “Marriage and love” in: Anarchism and Other Essays. New York: Dover Publications, 1969. p. 227.

Tradução: José Paulo Maldonado de Souza

jxpxster@gmail.com

A política sexual, o surgimento do Estado e a contrarrevolução (nota sobre a prostituição), por Silvia Federici

Albrecht Dürer, A queda do homem (1510) Esta cena impactante sobre a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Éden evoca a expulsão dos camponeses de seus campos comuns, que começava a ocorrer na Europa oriental exatamente ao mesmo tempo em que Dürer produzia este trabalho.

Fonte: Notícias y Anarquía
Tradução: José Roberto de Luna

Os seguintes fragmentos correspondem à parte final do capítulo 1, “O mundo inteiro precisa de uma sacudida”, do livro Calibã e a Bruxa de Silvia Federici. Recomendo que não se faça uma interpretação limitada do pensamento federiciano sobre a prostituição a partir destes fragmentos, pois ao longo do livro Silvia Federici continua abordando o tema da prostituição de diversas perspectivas. As ilustrações e legendas correspondem à edição original do Livro. Saudações. N&A.

A fins do século XV, se pôs em marcha uma contrarrevolução que agia em todos os níveis da vida social e política. Em primeiro lugar, as autoridades políticas realizaram importantes esforços para cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes por meio de uma maliciosa política sexual, que lhes deu acesso a sexo gratuito e transformou o antagonismo de classe em hostilidade contra as mulheres proletárias. Como demonstrou Jacques Rossiaud em Medieval Prostitution (1988) [A prostituição medieval], na França as autoridades municipais praticamente deixaram de considerar o estupro de mulheres proletárias como delito nos casos em que as vítimas foram mulheres de classe baixa. Na Veneza do século XIV, o estupro de mulheres proletárias solteiras poucas vezes tinha como consequência algo mais que um puxão de orelhas, inclusive no caso frequente de um ataque em grupo (Ruggiero, 1989: 94, 91-108). O mesmo acontecia na maioria das cidades francesas. Nelas, a violação em bando de mulheres proletárias se transformou numa prática comum, que os autores realizavam aberta e ruidosamente pela noite, em grupos de dois a quinze, entrando nas casas ou arrastando as vítimas pelas ruas sem a mínima tentativa de se esconder ou dissimular. Quem participava nestes “esportes” eram aprendizes ou empregados domésticos, jovens e filhos das famílias acomodadas sem um centavo no bolso, enquanto que as mulheres eram garotas pobres que trabalhavam como criadas ou lavadeiras, de quem se espalhava que eram “possuídas” por seus amos (Rossiaud, 1988:22). Quase todos os jovens participaram alguma vez destes ataques, que Rossiaud descreve como uma forma de protesto de classe, um meio para que homens proletários – forçados a adiar seu matrimônio durante muitos anos devido a suas condições econômicas – cobravam “o seu” e se vingavam dos ricos. Mas os resultados foram destrutivos para todos os trabalhadores, assim que o estupro de mulheres pobres com consentimento estatal debilitou a solidariedade de classe que se alcançara na luta anti-feudal. Como se esperava, as autoridades perceberam os distúrbios causados por semelhante política (as algazarras, a presença de bandos de jovens perambulando pelas ruas em busca de aventuras e perturbando a tranquilidade pública) como um pequeno preço a pagar em troca da diminuição das tensões sociais, já que estavam obcecados pelo medo das grandes insurreições urbanas e da crença de que se os pobres conseguissem se impor, empoderariam suas esposas e as colocariam em igualdade (ibidem: 13).

Para estas mulheres proletárias, tão arrogantemente sacrificadas por amos e servos, o preço a pagar foi incalculável. Uma vez estupradas, não lhes era fácil recuperar seu lugar na sociedade. Com sua reputação destruída, tinham que abandonar a cidade ou se dedicar à prostituição (ibidem/ Ruggiero, 1985: 99). Mas não eram as únicas que sofriam. A legalização do estupro criou um clima intensamente misógino que degradou todas as mulheres, qualquer que fosse sua classe.

Também insensibilizou a população ante à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período. As primeiras condenações por bruxaria tiveram lugar a fins do século XIV; pela primeira vez a Inquisição registrou a existência de uma heresia e uma seita de adoradores do demônio completamente feminina.

Bordel, de uma impressão alemã do século XV. Os bordéis eram vistos como um remédio contra a luta social, a heresia e a homossexualidade.

Outro aspecto da política sexual fragmentadora que príncipes e autoridades municipais executaram com o fim de dissolver o protesto dos trabalhadores foi a institucionalização da prostituição, implementada a partir do estabelecimento de bordéis municipais que logo proliferaram por toda Europa. Possibilitada pelo regime de salários elevados, a prostituição gerida pelo Estado foi vista como um remédio útil contra a turbulência da juventude proletária, que podia desfrutar em La Grand Maison – como era chamado o bordel estatal na França – de um privilégio previamente reservado a homens mais velhos (Rossiaud, 1988). O bordel municipal também era considerado como um remédio contra a homossexualidade (Otis, 1985), que em algumas cidades europeias (por exemplo, Pádua e Florência) se praticava ampla e publicamente, mas que depois da Peste Negra começou a ser temida como causa de despovoação. (34)

Assim, entre 1350 e 1450 em cada cidade e aldeia da Itália e da França se abriram bordéis, geridos publicamente e financiados através de impostos, em uma quantidade muito superior à alcançada no século XIX. Em 1453, só Amiens tinha 53 bordéis. Além disso, eliminaram-se todas as restrições e penalidades contra a prostituição. As prostitutas podiam agora abordar seus clientes em qualquer parte da cidade, inclusive defronte à igreja e durante a missa. Já não estavam atadas a nenhum código de vestimenta ou a usar marcas distintivas, pois a prostituição era oficialmente reconhecida como um serviço público (ibidem: 9-10).

Inclusive a própria Igreja chegou a ver a prostituição como uma atividade legítima. Cria-se que o bordel administrado pelo Estado provia um antídoto contra as práticas sexuais orgiásticas das seitas hereges e que era um remédio para a sodomia, assim como também um meio para proteger a vida familiar.

Torna-se difícil discernir, de forma retrospectiva, até que ponto essa “cartilha sexual” ajudou o Estado a disciplinar e dividir o proletariado medieval. O que é verdade é que este new deal foi parte de um processo mais amplo que, em resposta à intensificação do conflito social, conduziu à centralização do Estado como o único agente capaz de afrontar a generalização da luta e a preservação das relações de classe.

Neste processo, como se verá mais adiante, o Estado se converteu no gestor supremo das relações de classe e no supervisor da reprodução da força de trabalho – uma função que continua realizando até o dia de hoje.

Levando à frente esta função, os funcionários de muitos países criaram leis que estabeleciam limites ao custo do trabalho (fixando o salário máximo), proibiam a vadiagem (agora castigada duramente) (Geremek, 1985: 61 e sg.) e incentivavam os trabalhadores a se reproduzirem.

Em última instância, o crescente conflito de classes provocou uma nova aliança entre a burguesia e a nobreza, sem a qual as revoltas proletárias não teriam podido ser derrotadas. De fato, é difícil aceitar a afirmação que frequentemente fazem os historiadores de acordo com a qual estas lutas não tinham possibilidade de êxito devido à limitação de seu horizonte político e “à confusão de suas demandas”. Na verdade, os objetivos dos camponeses e artesãos eram absolutamente transparentes. Exigiam que “cada homem tivesse tanto como qualquer outro” (Perenne, 1937: 202) e, para conseguir este objetivo, uniam-se a todos aqueles “que não tivessem nada a perder”, agindo conjuntamente, em diferentes regiões, sem medo de se enfrentarem com os bem treinados exércitos da nobreza, e isto embora carecessem de técnicas militares.

Se foram derrotados, foi porque todas as forças do poder feudal – a nobreza, a Igreja e a burguesia -, apesar de suas divisões tradicionais, enfrentaram-nos de forma unificada por medo de uma rebelião proletária. Efetivamente, a imagem que chegou até nós de uma burguesia em guerra perene contra a nobreza e que levava em suas bandeiras a busca pela igualdade e pela democracia é uma distorção. Na Baixa Idade Média, onde quer que olhemos, de Toscana até Inglaterra e os Países Baixos, encontramos a burguesia já aliada com a nobreza na eliminação das classes baixas. (35) A burguesia reconheceu, tanto nos camponeses como nos costureiros e sapateiros democratas de suas cidades, um inimigo muito mais perigoso que a nobreza – um inimigo que inclusive fez que valesse a pena sacrificar sua apreciada autonomia política. Assim foi como a burguesia urbana, depois de dois séculos de lutas para conquistar a plena soberania dentro das muralhas de suas comunas, restituiu o poder da nobreza se subordinando voluntariamente ao reinado do Príncipe e dando assim o primeiro passo no caminho para o Estado Absoluto.

John Hus martirizado em Gottlieben sobre o Rin em 1413. Depois de sua morte, suas cinzas foram jogadas ao rio.

Alberto Durero, a queda do homem (1510)

Esta cena impactante sobre a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Éden evoca a expulsão dos camponeses de seus campos comuns, que começava a ocorrer na Europa oriental exatamente ao mesmo tempo em que Durero produzia este trabalho.

John Hus martirizado em Gottlieben sobre o Rin em 1413. Depois de sua morte, suas cinzas foram jogadas ao rio.

Notas

34- assim, a proliferação de bordéis públicos esteve acompanhada por uma campanha contra os homossexuais que se estendeu inclusive a Florência, onde a homossexualidade era uma parte importante do tecido social “que atraía homens de todas as idades, estados civis e níveis sociais”. A homossexualidade era tão popular em Florência que as prostitutas costumavam usar roupa masculina para atrair seus clientes. Os sinais de mudança vieram de duas iniciativas introduzidas pelas autoridades em 1403, quando a cidade proibiu os “sodomitas” de receberem cargos públicos e instituiu uma comissão de controle dedicada a extinguir a homossexualidade: a Oficina da Decência. Significativamente, o primeiro passo que deu a oficina foi preparar a abertura de um novo bordel público, de tal maneira que, em 1418, as autoridades ainda seguiam buscando meios para erradicar a sodomia “da cidade e do campo” (Rocke, 1997: 30-2, 35). Sobre a promoção da prostituição financiada publicamente como remédio contra a diminuição da população e a “sodomia” por parte do governo florentino, veja-se também Richard C. Trexler (1993:32):

Como outras cidades italianas do século XV, Florência cria que a prostituição patrocinada oficialmente combatia outros dois males incomparavelmente mais importantes do ponto de vista moral e social: a homossexualidade masculina – a cuja prática se atribuía o escurecimento da diferença entre os sexos e portanto de toda diferença e decoro – e a diminuição da população legítima como consequência de uma quantidade insuficiente de matrimônios.

Trexler aponta que é possível encontrar a mesma correlação entre a difusão da homossexualidade, a diminuição da população e os auspício estatal da prostituição em Lucca, Veneza e Sena entre os fins do século XIV e princípios do XV; aponta também que o crescimento em quantidade e poder social das prostitutas conduziu finalmente a uma reação violenta, de tal maneira que enquanto que: [A] começos do século XV pregadores e estadistas acreditaram profundamente (em Florência) que nenhuma cidade na que as mulheres e os homens parecessem iguais podia se sustentar por muito tempo […] um século mais tarde se perguntavam se uma cidade podia sobreviver quando as mulheres de classe alta não pudessem se distinguir das prostitutas de bordel (ibidem:65).

35- Em Toscana, aonde a democratização da vida política chegara mais longe do que em qualquer outra região europeia, na segunda metade do século XV se deu uma inversão desta tendência e uma restauração do poder da nobreza promovida pela burguesia mercantil com o fim de bloquear a ascensão das classes baixas. Nessa época se produziu uma fusão orgânica entre as famílias dos mercadores e as da nobreza, por meio de matrimônios e prerrogativas compartilhadas. Isto deu por terminada a mobilidade social, o logro mais importante da sociedade urbana e da vida comunal na Toscana medieval (Luzzati, 1981: 187, 206).

Silvia Federici

Fonte: Livro Calibã e a Bruxa (pág. 78-84).

E As Anarco-Feministas O Que São?

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Fonte: Nodo50, por Valéria Bolevari

Conhecemos a aparência de uma bota
vista de baixo,
conhecemos a filosofia das botas…

Logo invadiremos como ervas daninha
em todo lugar, mas devagar…
as plantas cativas farão revolta
conosco, os muros cairão.

Não existirão mais as botas
No entanto, comemos terra
e dormimos; estamos esperando
embaixo dos seus pés;

Quando dissermos: ataque!
você não ouvirá nada
no começo…

Peggy Kornegger

 

Quando se ouve a palavra anarco-feminismo, logo vem a impressão de mulheres que excluem os homens de suas vidas, que querem separar as pessoas pelo sexo, etc. Mas o que nem sempre se para prá pensar, é porque se tem essa impressão.

Continuam, até mesmo os anarquistas, a se espelharem nas imagens distorcidas que veiculadas pelos meios de comunicação da sociedade burguesa. Se assim fosse, acreditaríamos também que anarquia é bagunça, que Deus existe, que os anjos existem e tem asas…

É necessário, para se compreender realmente alguma coisa, que nos desvinculemos das respostas prontas já fornecidas pela imprensa burguesa, que a mente se abra para receber novas idéias e questioná-las.

Anarco-feminismo não é separatismo! Se você é homossexual e resolve se juntar a outros homossexuais para lutar por sua emancipação, você está sendo separatista? Você acredita que cada classe oprimida conquista sua liberdade através de seu próprio esforço e luta? Sim? Então, pára de reclamar! As mulheres estão se dando conta do quanto são oprimidas e exploradas dentro da sociedade patriarcal, de que nunca puderam ouvir sua própria voz e discutir sua opressão. O que acontece, hoje, no movimento libertário, é que nós, mulheres que estamos tomando consciência de nossa condição de proletária do proletário ou escrava do homem escravo, temos condições de levantar a cabeça e discutir com outras mulheres (que também são vítimas da mesma opressão) o que queremos fazer para lutar contra isso. E isso não são apenas os homens machistas, mas sim uma sociedade cristalizada no patriarcado, onde os valores estão montados em cima da exploração, da escravidão e do preconceito.

Precisamos de espaço para mostrar nossa cultura e desenvolver nossas potencialidades, que foram sufocadas no patriarcado. Tudo isso, só conseguiremos com muito trabalho conjunto e abertura, para que possamos mostrar o que queremos fazer e como fazer. Temos que desenvolver o nosso lado feminino real, e não o feminino imposto pela sociedade machista. Os nossos valores foram sufocados e, em lugar desses, vieram valores integrados, como a estética, a beleza, o comportamento, a maternidade obrigatória, etc., que não são naturais como parecem. Tais coisas, somente nós mesmas podemos avaliar, questionar e mudar, mais ninguém. Não se pode chegar para um negro e dizer-lhe o que fazer para lutar contra sua discriminação, se você nunca sofreu isso. Você pode ajudá-lo e apoiá-lo, mas se você nunca sofreu discriminação racial, nunca poderá saber o que ele sente, quanto mais decidir o que ele deve fazer. O mesmo ocorre com as mulheres.

Mudando nosso comportamento e nossa visão de mundo, estaremos muito mais abertas para relacionamentos realmente recíprocos, e não paternalistas. Teremos muito mais autonomia para batalhar em outros coletivos e tomar conta de nossas próprias vidas. Isso é fato!

Os grupos de mulheres têm essa função que, dentro do movimento anarquista, se torna imprescindível para quem almeja uma sociedade livre, humana e igualitária.

Aqueles que torcem o nariz ou fazem de tudo para atrapalhar a luta de um grupo específico, não compreendem que a base do anarquismo está no indivíduo, e que somente a partir do indivíduo é que se inicia uma revolução. Se cada classe oprimida se unisse e trabalhasse a sua questão, em vez de tentar ficar fazendo tudo ao mesmo tempo, nossa evolução/revolução seria muito mais concreta, com bases sólidas, pois cada grupo estaria desenvolvendo um trabalho contínuo, o que renderia frutos. Pense sobre isso.

Nós precisamos de espaço e vamos lutar por ele. Que alguns torçam o nariz, que outros falem mal por não entenderem, que façam abaixo assinados e panfletagens, o que quiserem, mas estamos aqui e pronto! Acreditamos no anarquismo, mas só acreditamos nele funcionando no dia-a-dia. Se nós mulheres criamos grupos específicos, é porque estes nasceram dá necessidade, e não por brincadeira.

Nossa luta não se restringe apenas ao feminismo, mas sim a tudo que engloba o anarquismo e, por isso, nossas atividades sempre são em conjunto com outros grupos anarquistas e anarco punks, os quais apoiamos e nos apoiam, sendo a luta e a caminhada lado a lado. Se a possibilidade das mulheres tomarem conta de sua própria luta o assusta, então apavore-se, pois nossa arte, nossa escrita, nossa poesia e nossa forma de lutar vão estar correndo livres velas ruas!


Valéria Bolevari
CAF/SP
C.Postal 117;
CEP: 07111-970;
Guarulhos

 

Libera #46, março de 1995

Anarquismo e Feminismo

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Fonte: Nodo50
As novas formas de “relações conjugais” e de “relações domésticas” sugerem um novo modelo de feminilidade: o da “mulher liberada”, segundo um tipo de liberação que convém a economia capitalista e as políticas dos Estados governantes.
O princípio básico desta feminilidade é a igualdade na diferença. De um lado, as mulheres adquiriram os mesmos direitos e deveres que os homens, no que diz, respeito ao matrimônio, a família ao trabalho e à vida política social. Do outro lado, as diferenças específicas homem – mulher devem e precisam ser preservadas.
Esta especificidade refere-se a toda uma série de características físicas, intelectuais e emocionais que são consideradas típicas da natureza feminina. No entanto, tal conceituação de feminilidade não mais eficiente para descrever a mulher no mundo atual Antes, impõe e estabelece um novo estereótipo normatizado e normalizado da mulher.
Os componentes clássicos da mulher submissa eram: heterossexualidade, passividade, narcisismo e sentimentalismo. Hoje, os componentes básicos da mulher liberada camuflam os anteriores e adaptam a mulher às características deste novo ser emergente: individualismo, autonomia, força, autocontrole, eficácia e racionalidade.
Não obstante as suas contradições, este modelo e mulher justifica psicologicamente e permite socialmente ao mesmo tempo a relação conjugal, a maternidade e, na esfera das relações econômicas, a divisão do trabalho com o homem.
No contexto político, a feminilidade é objeto de negociações de todo tipo entre os movimentos feministas e as instituições que produzem, difundem e inculcam ideologias nas sociedades modernas: o Estado, os meios de comunicação e o meio cultural.
O modelo da “mulher liberada” é, basicamente, o reflexo das relações de poder entre esses dois agentes: Os movimentos feministas e os Estados governantes. Este novo modelo de feminilidade não só torna possível formas “avançadas” de opressão sobre a “mulher liberada”, como também, constitui o fator – chave da reversibilidade do movimento de liberação feminina, enquanto movimento cooptado pelo Estado.
A história das mulheres é uma história de avanços e recuos. Em certos períodos históricos, as mulheres adquiriram direitos formais e informais que, em outros períodos, foram perdidos. Por outro lado, outros foram conquistados, de maneiras diversas e em contextos diversos, e assim por diante.
Toda mudança econômica, social e política relevante implica em conseqüências positivas ou negativas para as mulheres. Melhorias em sua condição são sempre fruto de uma mobilização ativa, inserida na contradição dessas mudanças.
A ideologia da feminilidade reflete a variação, no tempo, de uma essência mantida imutável: “o eterno feminino”. A eficácia do feminismo, a curto e a longo prazos, depende, em grande parte, da capacidade das mulher em impedir a formação e a institucionalizacão de novas variantes do “eterno feminino”, mesmo que venham apresentadas como parte integrante do processo de liberação da mulher.
O potencial de força das mulheres somente poderá ser mobilizado e usado em favor de sua verdadeira liberação, se o movimento feminista trilhar um caminho verdadeiramente revolucionário. Em outras palavras, se optar por uma mudança da ordem social e não na ordem social.
O anarquismo oferece instrumentos de organização e de luta revolucionária capazes de tornar realidade o potencial subversivo do feminismo.
Em sua origem, o feminismo representou um sério golpe nas estruturas de poder, em sua forma mais elementar e básica: o controle interpessoal, no jogo recíproco de força e consenso.
Mas a força do protesto feminista pode-se voltar contra as mulheres, se, em sua luta contra a dominação, decidirem aliar-se às instituições detentoras de poder: os partidos políticos e os aparelhos de Estado.
O Estado tornou-se (ou foi convertido em) interlocutor privilegiado do movimento feminista moderno, desde seu surgimento, e de forma cada vez mais íntima. Em seu diálogo com o Estado, o movimento das mulheres, ao formular suas reivindicações principais, terminou por assimilar-lhe a linguagem.
Dessa forma, adquiriram elas direitos que o Estado pode garantir, reformas que o Estado pode realizar e recursos que o Estado pode distribuir.
Ainda o Estado apresenta-se como agente garantidor de mudanças em esferas privadas que ele (Estado) não pode realizar diretamente, coma no caso de relações sexuais e afetivas homem – mulher.
Da mesma maneira que a movimento operário, especialmente em suas formas sindicais institucionalizadas, o movimento feminista é, a todo momento, levado a negociar com o Estado. Por sen turno, o movimento feminista dispõe-se a esse tipo de negociação porque lhe parece que somente esta forma mostra-se capaz de impor respeito a maridos, patrões, pais, concidadãos, colégios, dirigentes de todo tipo, intelectuais, etc.
Essa interação movimento feminista – Estado é coerente com a lógica dos sistemas sociais vigentes. De fato, a função principal do Estado moderno é expressar e neutralizar as tensões e os conflitos causados por atritos entre sujeitos sociais, especialmente as relativos a classes sociais e sexos.
Todo movimento de protesto, a qualquer nível de luta, é necessariamente remetido ao Estado. E este dispõe dos recursos e mecanismos necessários para neutralizá-lo. Pode e tem reprimido protestos com o uso da violência, mas também tem e pode determinar realizar modificações funcionais do sistema, com vistas a reduzir as tensões, sem comprometer a sua autoridade e perpetuação.
A história do movimento operário, das lutas raciais, dos movimentos estudantis oferecem uma farta ilustração de como opera o mecanismo estatal de controle nas Sociedades modernas.
Sem dúvida, as mulheres obtiveram, sobretudo por parte doEstado, o reconhecimento de certos direitos e melhorias parciais de sua condição. Na maior parte dos casos, estas vitórias das mulheres tornaram-se, também, vitórias do Estado, na medida em que significaram, em certa medida, um aumento da capacidade do Estado de controlá-las e a seu movimento.
Alguns organismos instalados a nível governamental têm toda a aparência de mecanismos permanentes de controle sobre as mulheres e seu movimento, como, por exemplo, comitês, comissões, institutos montados para estudar a mulher, formular soluções para seus problemas e, até, para montar e implantar projetos feministas.
Estes organismos e instituições multiplicam-se e proliferam em sociedades nas quais a movimento feminista tem provocado fortes impactos e possui articulações regionais e internacionais.
A despeito dessa interação, as relações mulheres – Estado estão longe de ser harmoniosas. Isso porque a Estado não resolveu – e nem pode resolver – as contradições que alimentam a revolta e a resistência das mulheres. Se, por um lado, oferece-se como um interlocutor e lhe fornece canais legais de reivindicações, por outros neutraliza seu potencial revolucionário e corrói seu potencial de libertação.
0 movimento feminista proclama, como principio, que o privado é político. Séculos de opressão demonstram que a afirmação é verdadeira sob todos as seus aspectos.
É chegado o momento, no entanto, de uma predominâcia da esfera privada sobre a pública. A primeira é vida e desejo. A segunda é ordem e imposição. Imposição que sempre vem sob a camuflagem de ajudar o desejo, desejo que é sempre posto a serviço da ordem. Porque se trata, aqui, daquele desejo que a ordem programou e daquela imposição que o desejo previu e a ela se sujeitou.
Para subverter este sistema, é necessário superar a linha imaginária que se construiu entre esfera pública e esfera privada. São duas faces da mesma moeda: a Estado – família e a família – Estado.
É necessário liberar a consciência para o fato de que, neste âmbito de solidão e luta, a moeda corrente é o controle.
Além de outras formas que devem ser liberadas, está aquela a que me referi no inicio – a feminilidade – e tal só pode ser feito se entendermos que é o poder que a produz e que são as mulheres as suas prisioneiras.
Nicole Laurin-Frenette
Professora de Sociologia na Universidade de Montreal
Membro do Instituto Anarchos,
Montreal Canadá,
in “Volontà”, no. 4, 1982.
revista anarquista trimestral
editada na Itália
Revista Utopia #1, primavera de 1988

Um pouco da história do feminismo libertário…

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Fonte: Gritos Libertários

Muitas das anarquistas não se consideravam feministas por acreditarem que esse termo designava as mulheres que lutavam pelo voto. Porém elas são consideradas feministas por suas preocupações com a emancipação das mulheres, que tem profunda relação com as ideias libertárias do anarquismo, já que este busca a emancipação humana. Desse modo o anarquismo engloba o feminismo, porém os termos “anarcofeminismo” ou “feminismo libertário” passaram a ser usados para dar mais destaque ao campo de atuação que se trata.

Feminismo libertário no Brasil:

O feminismo anarquista tem destaque no Brasil do começo do século XX. Nessa época muitas mulheres atuaram politicamente, em greves pelo aumento de salário, redução da jornada de trabalho, respeito no trato a elas e às crianças e em solidariedade a seus companheiros. Vale lembrar que nessa época, diferentemente de hoje em dia, trabalhadores de diferentes categorias frequentemente entravam em greve em solidariedade a uma outra categoria. Assim, por exemplo, quando os ferroviários paravam, os padeiros, sapateiros e outros também paravam. Foi por esse tipo de organização que a Greve Geral de 1917 foi possível no Brasil.

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Maria Lacerda de Moura

Uma das militantes brasileiras de mais destaque da época foi Maria Lacerda de Moura. Ela foi professora, conferencista, jornalista, poetisa e escreveu vários livros que tinham como objetivo passar ideias sobre emancipação humana, questionando o papel da escola e da educação, da religião, do Estado, o fascismo, o militarismo e falando sobre controle da natalidade. Ajudou a fundar a “Federação Internacional Feminina” e o “Comitê Feminino Contra a Guerra”, nos anos 20, que tinham como objetivo articular as mulheres de São Paulo e Santos para além da luta pelo voto, articulada por outras feministas da época.

No caso da Federação Internacional Feminina alguns pontos de discussão eram: “assistência, sistemas coercitivos, trabalhos domésticos e trabalho industrial, seduções, jogo, infância delinquente, investigação à paternidade, júri, direitos civis e políticos da mulher, tráfico de mulheres, coeducação, casamento, (…) divórcio, salário, os crimes da maternidade fora da lei, eugenia, proteção aos animais etc”.

As feministas liberais da época criticavam as anarquistas por considerá-las muito radicais, e as últimas criticavam as primeiras alegando que sua luta era pouco transformadora, limitada à esfera pública burguesa e preservadora das relações hierarquizadas na esfera privada. Um exemplo disso é essa crítica feita por Isabel Cerruti, no jornal “A Plebe” em 1920:

“A Revista Feminina em seu programa propõe-se a propugnar pela emancipação da mulher conseguindo para ela o direito de empenhar-se em lutas eleitorais. (…) Como se a emancipação da mulher se resumisse em tão pouco…

O programa anarquista é mais vasto neste terreno; é vastíssimo: quer fazer compreender à mulher na sua inteira concepção, o papel grandioso que ela deve desempenhar, como factora histórica, para a sua inteira integralização na vida social (…).”

Outras militantes conhecidas são Maria Valverde e Sônia Oitica (filha do militante anarquista José Oiticica), que por volta dos anos 30 e 40 atuaram no teatro libertário e eram ligadas aos Centros de Cultura Social, de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde se discutia temas como moral sexual e sexualidade.

Uma crítica feita pelas feministas anarquistas é que os partidos políticos de esquerda da época diluíam a causa das mulheres na causa do partido, pois estes alegavam que elas deveriam se empenhar na luta pela revolução através do partido, relegando a causa feminista à questão da opressão de classe e criticando os espaços específicos das mulheres, ou seja, não reconhecendo uma opressão específica às mulheres, mas alegando que todos os que não são os detentores dos meios de produção são oprimidos pelo capitalismo (como se isso se desse da mesma forma para todos). Assim, para as anarquistas, a divisão das mulheres em partidos enfraqueceu a luta pela emancipação da mulher.

Feminismo libertário em outros países:

Emma Goldman

Emma Goldman

Nos Estados Unidos a figura de Emma Goldman se destaca. A militante nasceu em 1869 na Lituânia, mas se mudou para os EUA em 1885 (com 15 anos), fugindo de um casamento arranjado por seu pai. Lá teve contato com as greves pela jornada de 8 horas de trabalho, o que resultou nas mortes de muitos manifestantes – situação que ficou conhecida como caso dos “Mártires de Chicago”.

Sua militância tratava de temas como o controle de natalidade e o amor livre, militarismo e patriotismo como ameaças à liberdade. Apesar do início da sua militância ter tido mais contato com a ideologia de Bakunin, que utilizava a violência como meio para a revolução, no decorrer de sua vida e principalmente após se encontrar com Kropotkin Emma passou a ter ideias humanitaristas. Ela escrevia a revista “Mother Earth” e teve inúmeros relacionamentos, muitos deles com homens bem mais jovens, causando escândalo para a sociedade da época.

Em 1917 em uma manifestação contra o alistamento para a Primeira Guerra Mundial Emma foi presa acusada de conspiração. Ela foi deportada para a Rússia e conheceu Lênin, que havia executado e encarcerado anarquistas e outros dissidentes, além deste último alegar que a liberdade de expressão era um conceito burguês (liberdade esta tão valorizada por Goldman). Isso fez com que a anarquista escrevesse o livro “Minha desilusão com a Rússia”. A partir de então ela mora em vários países diferentes, morrendo no Canadá em 1940. Suas cinzas foram para o Waldheim Cemetery, ao lado dos mártires de Chicago.

Militante das “Mujeres Libres”

Militante das “Mujeres Libres”

No caso da Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), havia a milícia das Mujeres Libres, que atuavam ao lado da CNT-FAI (Confereración Nacional del Trabajo e Federación Anarquista Ibérica). O grupo foi fundado por Apolonia de Castro, Felisa de Castro, Maruja Boadas, María Cerdán, Nicolasa Gutiérrez, Soledad Estorach, Elodia Pou, Conchita Liaño, dentre outras. Durante a guerra o aborto foi legalizado na Catalunha, o grupo atuou pela educação das mulheres por uma maternidade consciente e propunha que elas fossem agentes da revolução para a construção de uma nova sociedade.

Havia a revista “Mujeres Libres”, editada e escrita exclusivamente por mulheres e que se dirigia a mulheres da classe trabalhadora com a intenção de atraí-las para a causa libertária. Falavam de causas como o anticlericalismo (alegando que a religião usava as mulheres como guardiãs da ordem social e moral tradicional), prostituição, o direito ao prazer sexual e o amor livre, alegando que a monogamia se relacionava estreitamente ao capitalismo e à propriedade privada.

O grupo propunha uma solução coletiva para a emancipação feminina, conscientização e educação. Assim, na Espanha predominou um feminismo que não buscava direitos políticos, mas que fazia reivindicações trabalhistas e educativas, vendo essa luta com uma perspectiva de classe e relacionada ao anarcossindicalismo. A cultura e a educação eram vistas como fundamentais à emancipação humana.

Referências:

(AIT) Trabalhemos por uma maior participação das Mulheres no nosso Movimento!

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

Por ocasião do Dia Internacional da Mulher gostávamos de abordar os problemas que afectam, de maneira desproporcionada, as mulheres nos locais de trabalho, tratando-os duma maneira mais efectiva e aumentando a participação das mulheres no nosso movimento.

Ao falarmos com companheiros seja do movimento anarco-sindicalista, seja de fora deste, podemos ver que ainda há um longo caminho a percorrer até conseguirmos adoptar uma postura organizativa para lutar contra o sexismo nos locais de trabalho. Na recente conferência anarco-feminista internacional, durante a sessão que tratava da organização nos locais de trabalho, apercebemo-nos de que as mulheres tinham queixas e experiências semelhantes, mas poucas delas se dispunham a organizarem-se em torno destas questões nos sítios onde trabalham. Apenas algumas estavam integradas em sindicatos, fossem maioritários ou alternativos.

As razões para isto podem ser muito complexas e envolver também muitas especificidades pessoais. Mas vale a pena discutir este tema. Nalgumas das nossas organizações temos um desequilíbrio de género ou as mulheres vêem-se de algum modo marginalizadas, devido a regras de comportamento que podem estar mais inclinadas para a socialização masculina. No entanto, sabemos todos que o nosso movimento não deveria funcionar deste modo e que a luta pela igualdade não é somente económica, mas sim una luta pela igualdade em todos os aspectos.

Nesta ocasião fazemos um apelo aos nossos companheiros para que abordem estes temas e dêem os passos necessários para fazerem os melhoramentos que forem necessários e para que ponham em relevo o papel das mulheres onde estas se tenham destacado e tenham tido sucesso.

Secretária Geral da AIT

8/3/2015

Em inglês: http://www.iwa-ait.org/content/lets-work-towards-greater-participation-women-our-movement

Em castelhano: http://www.iwa-ait.org/node/676

Somos Todos Grupelhos

JL

Felix Guattari

Fonte: Protopia

Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos. É fácil falar, sobretudo em países onde as forças materiais estão cada vez mais na dependência das máquinas técnicas e do desenvolvimento das ciências.


Derrubar o czarismo implicava na ação em massa de dezenas de milhares de explorados e sua mobilização contra a atroz máquina repressiva da sociedade e do Estado russo, era fazer as massas tomarem consciência da sua força irresistível face à fragilidade do inimigo de classe; fragilidade a ser revelada, a ser demonstrada pela prova de forças.


Para nós, nos países “ricos”, as coisas se passam de outro jeito; não é tão óbvio que tenhamos que enfrentar apenas um tigre de papel. O inimigo se infiltrou por toda parte, ele secretou uma imensa interzona pequeno-burguesa para atenuar o quanto for possível os contornos de classe. A própria classe operária está profundamente infiltrada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas… Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático. Primeiro, participação material em escala planetária: as classes operárias dos países economicamente desenvolvidos estão implicadas objetivamente, mesmo que seja só pela diferença crescente de níveis de vida relativos, na exploração internacional dos antigos países coloniais. Depois, participação inconsciente e de tudo quanto é jeito: os trabalhadores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da burguesia – maldição do roubo, da preguiça, da doença, etc. Eles reproduzem, por conta própria, objetos institucionais alienantes, tais como a família conjugal e o que ela implica de repressão intrafamiliar entre os sexos e as faixas etárias, ou então se ligando à pátria com seu gostinho inevitável de racismo (sem falar do regionalismo ou dos particularismos de toda espécie: profissionais, sindicais, esportivos, etc., e de todas as outras barreiras imaginárias que são erguidas artificialmente entre os trabalhadores. Isto fica bastante claro, por exemplo, na organização, em grande escala, do mercado da competição esportiva).


Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do “socialismo” burocrático são corroídas por uma angústia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de auto-sujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. A obtenção deste resultado repousa sobre o desenvolvimento de um antagonismo reforçado entre um ideal imaginário, que inculcamos nos indivíduos por sugestão coletiva, e uma realidade totalmente outra que os espera na esquina. A sugestão audiovisual, os meios de comunicação de massa, fazem milagres! Obtém-se assim uma valorização fervorosa de um mundo imaginário maternal e familiar, entrecortado por valores pretensamente viris, que tendem à negação e ao rebaixamento do sexo feminino, e ainda por cima à promoção de um ideal de amor mítico, uma mágica do conforto e da saúde que mascara urna negação da finitude e da morte. No final das contas, todo um sistema de demanda que perpetua a dependência inconsciente em relação ao sistema de produção; é a técnica do intéressement (2).


O resultado deste trabalho é a produção em série de um indivíduo que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas importantes de sua vida. É completamente desarmado que ele enfrentara a realidade, sozinho, sem recursos, emperrado por toda esta moral e este ideal babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz de se desfazer. Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar no resto… Agora, toda a sua vida ficará envenenada em maior ou menor grau pela incerteza de sua condição em relação aos processos de produção, de distribuição e de consumo, pela preocupação com seu lugar na sociedade, e o de seus próximos. Tudo passa a ser motivo de grilo: um novo nascimento, ou então “a criança não vai muito bem na escola”, ou ainda “os mais grandinhos se enchem e aprontam mil loucuras”; as doenças, os casamentos, a casa, as férias, tudo é motivo de aborrecimento…


Assim, tornou-se inevitável um mínimo de ascensão nos escalões da pirâmide das relações de produção. Não precisa nem fazer um desenho ou uma lição. Diferentemente dos jovens trabalhadores, os militantes de origem estudantil que vão trabalhar na fábrica estão seguros de se virar caso sejam despedidos; queiram ou não, eles não podem escapar à potencialidade que os marca de uma inserção hierárquica “que poderia ser bem melhor”. A verdade dos trabalhadores é uma dependência de fato e quase absoluta em relação à máquina de produção; é o esmagamento do desejo, com exceção de suas formas residuais e “normalizadas”, o desejo bem pensante ou bem militante; ou, então, o refúgio numa droga ou em outra, se não for a piração ou o suicídio! Quem estabelecerá a porcentagem de “acidentes de trabalho” que, em realidade, não eram senão suicídios inconscientes?


O capitalismo pode sempre dar um jeito nas coisas, retoca-las aqui e ali, mas no conjunto e no essencial tudo vai cada vez pior. Daqui a 20 anos alguns dentre nós terão 20 anos a mais, mas a humanidade terá quase duplicado. Se os cálculos dos especialistas no assunto se revelam exatos, a Terra atingirá pelo menos 5 bilhões de habitantes em 1990. Isto deveria colocar no decorrer do processo alguns problemas suplementares! E como nada nem ninguém está em condições de prever ou organizar alguma coisa para acolher estes recém-chegados – à parte alguns porra-loucas nos organismos internacionais, que aliás não resolveram um só problema político importante durante os 25 anos em que estiveram aí instalados -, podemos imaginar que seguramente acontecerá muita coisa nos próximos anos. E de tudo quanto é tipo, revoluções, mas também, sem sombra de dúvida. Umas merdas do tipo fascismo e companhia. E dai o que é que se deve fazer? Esperar e deixar andar? Passar à ação? Tudo bem, mas onde, o quê, como? Mergulhar com tudo, no que der e vier. Mas não é tão simples assim, a resposta a muitos golpes está prevista, organizada, calculada pelas máquinas dos poderes de Estado. Estou convencido de que todas as variações possíveis de um outro Maio de 1968 já foram programadas em IBM. Talvez não na França, porque eles estão fodidos, e ao mesmo tempo bem pagos para saber que este tipo de baboseira não constitui garantia alguma e que não se encontrou ainda nada de sério para substituir os exércitos de tiras e de burocratas. Seja o que for, já está mais do que na hora de os revolucionários reexaminarem seus programas, pois há alguns que começam a caducar. Já está mais do que na hora de abandonar todo e qualquer triunfalismo – note-se o falismo – para se dar conta de que não só estamos na merda até o pescoço, mas que a merda penetra em cada um de nós mesmos, em cada uma de nossas “organizações”.


A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorado: autoridade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá-la a partir do vocabulário de uns e de outros, seu jeito de falar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim! A luta de classe contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou o interior de cada um de nós com seu eu, com o ideal de status que acreditamos ter de adotar para nós mesmos. Já está mais do que na hora de se organizar em todos os níveis para encarar esta luta de classe generalizada. Já é hora de elaborar uma estratégia para cada um destes níveis, pois eles se condicionam mutuamente. De que serviria, por exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização antiautoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos superativos, se eles se comportam com os militantes dos outros grupos, no interior de seu próprio grupo, com seus próximos ou cada um consigo mesmo, como perfeitos canalhas, perfeitos carolas? De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? Os fins políticos são pessoas desencarnadas. Eles acham que se pode e se deve poupar as preocupações neste domínio para mobilizar toda a sua energia em objetivos políticos gerais. Estão muito enganados! Pois na ausência de desejo a energia se auto-consome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia. E pelo tempo que já estão nessa, já podiam ter se dado conta destas coisas por si mesmos!


A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica – a libido – em objetivos de luta social. É fácil reduzir tudo às famosas contradições principais. É demasiadamente abstrato. É até mesmo um meio de defesa, um troço que ajuda a desenvolver phantasias (3) de grupo, estruturas de desconhecimento, um troço de burocratas; se entrincheirar sempre atrás de alguma coisa que está sempre atrás, sempre em outro lugar, sempre mais importante e nunca ao alcance da intervenção imediata dos interessados; é o princípio da “causa justa”, que serve para te obrigar a engolir todas as mesquinharias, as míseras perversões burocráticas, o prazerzinho que se tem em te impor – “pela boa causa” – caras que te enchem o saco, em forçar tua barra para ações puramente sacrificiais e simbólicas, para as quais ninguém está nem aí, a começar pelas próprias massas. Trata-se de uma forma de satisfação sexual desviada de seus objetivos habituais. Este gênero de perversão não teria a menor importância se incidisse em outros objetos que não revolução – e olha que não faltam objetos! O que é chato é que estes monomaníacos da direção revolucionária conseguem, com a cumplicidade inconsciente da “base”, enterrar o investimento militante em impasses particularistas. É meu grupo, é minha tendência, é meu jornal, a gente é quem tem razão, a gente tem a linha da gente, a gente se faz existir se contrapondo às outras linhas, a gente constitui para si uma pequena identidade coletiva encarnada em seu líder local… A gente não se enchia tanto em Maio de 68! Enfim, tudo ocorreu mais ou menos bem até o momento em que os “porta-vozes” disto ou daquilo conseguiram voltar à tona. Como se a voz precisasse de portador. Ela se porta bem sozinha e numa velocidade louca no seio das massas, quando ela é verdadeira. O trabalho dos revolucionários não é ser portador de voz, mandar dizer as coisas, transportar, transferir modelos e imagens; seu trabalho é dizer a verdade lá onde eles estão, nem mais nem menos, sem tirar nem por, sem trapacear. Como reconhecer este trabalho da verdade? É simples, tem um troço infalível: está havendo verdade revolucionária, quando as coisas não te enchem o saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer, correndo até o risco de morte. A verdade, a vimos atuando em Maio de 68; todo mundo a entendia de cara. A verdade não é a teoria nem a organização. É depois dela ter surgido que a teoria e a organização têm de se virar com ela. Elas sempre acabam se situando e recuperando as coisas, mesmo que para isso tenham de deformá-la e mentir. A autocrítica cabe à teoria e à organização e nunca ao desejo.


O que está em questão agora, é o trabalho da verdade e do desejo por toda parte onde pinte encanação, inibição e sufoco. Os grupelhos de fato e de direito, as comunas, os bandos, tudo que pinta no esquerdismo tem de levar um trabalho analítico sobre si mesmo tanto quanto um trabalho político fora. Senão eles correm sempre o risco de sucumbir naquela espécie de mania de hegemonia, mania de grandeza que faz com que alguns sonhem alto e bom som em reconstituir o “partido de Maurice Thorez” ou o de Lenin, de Stalin ou de Trotsky, tão chatos e por fora quanto seus Cristos ou de Gaulles, ou qualquer um desses caras que nunca acabam de morrer.


Cada qual com seu congressinho anual, seu mini-Comitê Central, seu super-birô político, seu secretariado e seu secretário-ge(ne)ral e seus militantes de carreira com seu abono por tempo de serviço, e, na versão trotskista, tudo isso duplicado na escala internacional (congressos mundiais, comitê executivo internacional, seção internacional, etc.).


Por que os grupelhos, ao invés de se comerem entre si, não se multiplicam ao infinito? Cada um com seu grupelho! Em cada fábrica, cada rua, cada escola. Enfim, o reino das comissões de base! Mas grupelhos que aceitassem ser o que são, lá onde são. E, se possível, uma multiplicidade de grupelhos que substituiriam as instituições da burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo, etc. Grupelhos que não temessem, além de seus objetivos de luta revolucionária, se organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam.


Ah, então trata-se de anarquia! Nada de coordenação, nada de centralização, nada de estado-maior… Ao contrário! Tomem o movimento Weathermen nos Estados Unidos: eles estão organizados em tribos, em gangues, etc., mas isto não os impede de se coordenar e muitíssimo bem.


O que é que muda se a questão da coordenação, ao invés de se colocar para indivíduo, se coloca para grupos de base, famílias artificiais, comunas?… O indivíduo tal como foi moldado pela máquina social dominante é demasiado frágil, demasiado exposto às sugestões de toda espécie: droga, medo, família, etc. Num grupo de base, pode-se esperar recuperar um mínimo de identidade coletiva, mas sem megalomania, com um sistema de controle ao alcance da mão; assim, o desejo em questão poderá talvez fazer valer sua palavra, ou estará talvez mais em condições de respeitar seus compromissos militantes. É preciso antes de mais nada acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico, uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contingência, sua finitude e para seus objetivos de luta. O movimento revolucionário deve portanto construir para si uma nova forma de subjetividade que não mais repouse sobre o indivíduo e a família conjugal. A subversão dos modelos abstratos secretados pelo capitalismo, e que continuam caucionados até agora, pela maioria dos teóricos, é um pré-requisito absoluto para o reinvestimento pelas massas de luta revolucionária.


Por enquanto, é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não, quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados.

[editar]NOTAS

1. No original, groupuscule. Corresponde ao “grupelho” no Brasil, nome dado aos grupos de dissidência do partido comunista, da década de 60 – anarquistas, trotskistas, guevaristas, maoístas -, época da desestalinização que o PCF parece ter ignorado. O termo grupelho traz em si um sentido pejorativo, pois desde a perspectiva do PC, perspectiva adotada na época pelos próprios esquerdistas uns contra os outros, ser minoritário era ser facção insignificante, marginal, acometida pela “doença infantil do comunismo”, justificativa suficiente para sua exclusão, como medida sanitária, visão aliás compartilhada pela direita: em junho de 68, de Gaulle, já no controle da situação, através de seu ministro do Interior, proibiu a existência desses grupelhos, baseando-se numa lei da Frente Popular contra as milícias fascistas armadas e paramilitares.

Ora, o autor retoma aqui a própria idéia de grupelho como afirmação de uma posição política. “Somos todos grupelhos”: a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define um grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. É neste devir que a luta se generaliza. “Saúde infantil” do político, que se contrapõe à tendência a generalizar a luta em torno de uma representação totalizadora, sua “doença senil”. Desta perspectiva, tamanho não é documento, e um pequeno grupo também pode ser acometido de “doença senil”.

A noção de grupelho pode ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de “grupo sujeito”, contraposto a “grupo sujeitado” (cf. nota 7 de “A Transversalidade”), à idéia de “agenciamento coletivo de enunciação” e, na década de 70, ao conceito de “molecular”, contraposto a “molar”. (N. do Trad.).

2. O intéressement, pedra de toque da doutrina social do gaullismo, designa uma modalidade de participação dos operários nos lucros da empresa, através de uma remuneração que se acrescenta ao salário fazendo com que o trabalhador se “interesse” pela produtividade da empresa. Esta doutrina, considerada mistificadora pela esquerda francesa, foi por ela amplamente denunciada. (N. do T.).

3. No original alemão Phantasie, traduzido em francês por fantasme. Na tradução de Freud para o português (edição da Standard), optou-se por “fantasia”, de acordo com as traduções inglesa (fantasy ou phantasy, o primeiro consciente e o segundo inconsciente, segundo proposta de Susan Isaacs) e espanhola (fantasia). Preferimos adotar o termo “phantasia”, sugerido na tradução para o português dos Escritos de Lacan (Perspectiva, SP, 1978), que preserva o arcaísmo do termo francês fantasme (cf. nota 14 dos Escritos). (N. do T.).

Tradução de Suely Rolnik

Fontes: GUATTARI, Félix. Revolução Molecular. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 13-19.

Predefinição:Origem-sabotagem

MANIFESTO: CONSTRUIR UM POVO FORTE PARA POSSIBILITAR OUTRO MUNDO

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

(Manifesto apresentado hoje em Madrid por vários activistas libertários)*

Muitas pessoas recordam que na “Transição” a sociedade acreditou que era possível acabar com um regime que se desmoronava para criar novos modelos de ruptura. Lutou-se, mas acabou-se perdendo: os movimentos sociais foram assimilados; as organizações desmanteladas; e as lutas desarticuladas.

Actualmente o sistema enterrou a política do “consenso” e do “pacto social” própria do Regime de 1978 e da chamada Cultura da Transição. Uma forma de organização criada pelo próprio sistema para fazer frente às exigências de transformação social de uma classe operária poderosa e fortemente organizada. Negociar a mudança para que nada mudasse. Uma vez que fomos despojados das nossas referências ideológicas e organizativas e que conseguiram desvanecer a confiança em nós próprios, o regime, apoiado na desculpa da crise, deu por finalizada a estratégia de concertação social e lançou-se de cabeça na imposição do neoliberalismo por decreto com a justificação da crise económica.

Apesar da orfandade e da indefinição que nos foi inculcada como classe durante as últimas décadas, os níveis de descrédito e de afastamento que o sistema alcançou fez com que nos tivéssemos procurado e reencontrado novamente nas ruas e praças para enfrentar com ânimo a defesa das nossas liberdades e dos bens comuns frente a uma elite que deles se quer apropriar a preço de saldo.

Nós, subscritores e subscritoras deste manifesto, também partilhamos esse desejo de nos reconstruirmos como sociedade livre e soberana, assumirmo-nos como protagonistas das nossas próprias vidas e fazer perceber à elite do velho regime que “não nos representa”. E como outros companheiros e companheiras também sentimos que a este ciclo de mobilizações sociais faltava “alguma coisa” para que nos constituíssemos como alternativa suficiente e capaz de se impor à elite, à casta, ao 1% ou como queiram que seja denominada a classe social que domina as nossas vidas.

Respeitamos os companheiros e as companheiras que face ao mesmo diagnóstico estão a optar pela via da participação institucional através de iniciativas eleitorais, mas apelamos à memória colectiva para sublinhar que os direitos, as conquistas e as grandes transformações sociais nunca nos foram oferecidas a partir das instituições. Foram lutas travadas e ganhas nas ruas, nos locais de trabalho e nos bairros. A nossa memória vem de muito longe para nos recordar que só um povo forte e combativo se impõe às elites que nos governam. Por isso entendemos que é necessária uma grande INICIATIVA SOCIAL que nos ajude a organizarmo-nos, fazermo-nos reconhecer e tornarmo-nos visíveis com todo o potencial que albergamos.

Chegou o momento de impulsionar a independência popular face a outras estruturas para podermos dar um passo em frente e nos erigirmos como povo para vencer. Superar a simples defesa do que já foi alcançado para passar à ofensiva. Impulsionar a auto-organização e o autogoverno para recuperarmos a confiança na nossa capacidade para atingirmos uma sociedade livre e igualitária. Conquistar em conjunto uma verdadeira democracia:

. DEMOCRACIA ECONÓMICA, com um modo de produção que sibstitua o capitalismo pela economia de propriedade colectiva, gerida pelos produtores e consumidores de forma cooperativa.

. DEMOCRACIA POLÍTICA, com um regime que substitua o Estado pela decisão confederal com todas as pessoas que habitam cada território em pé de igualdade.

.DEMOCRACIA DE PARTICIPAÇÃO DIRECTA E EFECTIVA, com representantes que cumpram o que for decidido pelos seus representados e sejam revogáveis a qualquer momento.

. DEMOCRACIA INCLUSIVA DE TODOS E PARA TODOS, que escute, tenha proximidade e compreenda que no mundo há muitos mundos, que assuma e integre todas as lutas que procuram uma mudança para uma sociedade mais igualitária.

. UMA DEMOCRACIA LIBERTÁRIA, DAS PESSOAS E NÃO DOS MERCADOS.

Para isso consideramos como necessárias as iniciativas que actuem nas organizações de trabalhadores e trabalhadoras, de vizinhos e vizinhas, nas cooperativas, nas organizações feministas e de estudantes. Fomentando a sua melhoria qualitativa e quantitativa, a sua democracia interna e a sua eficácia. Actuando para favorecer a sua autonomia face à administração e aos partidos ou candidaturas eleitorais e de forma a respeitar a sua pluralidade interna.

Iniciativas que sejam capazes de elaborar análises e discursos para que possam ser identificadas as necessidades de cada momento e aumentar a nossa preparação como activistas. Que sejam capazes de elaborar estratégias sobre as quais se construa a democracia e que nos permitam acumular forças enquanto caminhamos nessa direcção. Agindo com humildade e reconhecendo a pluralidade existente porque é o povo, e não os projectos ou siglas concretas só por si, quem pode conseguir novos avanços”.

Tradução Portal Anarquista

Aqui: https://construyendopueblofuerte.wordpress.com/

*O manifesto foi apresentado em 19 de fevereiro de 2015 (Nota do coletivo Anarquia ou Barbárie)

Face aos projectos eleitoralistas, espaços e activistas libertários procuram novas formas organizativas – Uma alternativa ao Podemos e a outros movimentos eleitoralistas [Estado espanhol]

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

No Estado Espanhol continua viva a discussão em torno da necessidade de criar organizações que coordenem a actuação dos diversos espaços e activistas libertários, cuja acção decorre sobretudo junto dos movimentos sociais.

No campo sindical, o espaço libertário possui duas organizações fortes, a CNT e a CGT (sendo mesmo, em número de militantes, a CGT a terceira central sindical no Estado Espanhol, depois das CCOO e da UGT), mas no campo específico do movimento libertário têm sido criadas diversas estruturas com pouco peso e pouca relevância.

A FAI junta somente alguns grupos e mesmo assim, apenas de afinidade, quando hoje muitos militantes preferem organizar-se por locais de residência ou por interesses específicos.

Na Catalunha existe já desde há algum tempo o projecto de criação de uma organização de coordenação libertária – o Procés Embat -, enquanto que diversos activistas têm avançado propostas também nesse sentido, como é o caso de Carlos Taibo.

Construindo um povo forte”

Hoje uma nova proposta nesse caminho foi apresentada publicamente em Madrid. Sob o lema “Construindo um povo forte”, o manifesto agora divulgado refere que “é o povo, e não os projectos ou siglas concretas só por si, quem pode conseguir novos avanços” sociais.

Segundo o Periódico Diagonal, este novo projecto pretende servir de espaço de confluência para colectivos e pessoas que, face aos projectos surgidos à volta da via eleitoral, apostam pela mobilização a partir de baixo.

À margem das iniciativas eleitorais

Tudo parte do famoso 15M. Muitas das pessoas que militávamos em movimentos sociais vimos nesse momento que o debate político ultrapassava as fronteiras dos novos movimentos e chegava à sociedade”, diz Dilia Puerta, militante feminista e participante neste processo. “Todos, pessoas de diferentes ideais políticos com diferentes perspectivas, sentiamo-nos amparados por baixo do chapéu de chuva do “não nos representam”. Esse “não nos representam” teve diversas consequências e desembocou em diferentes iniciativas, algumas delas optando por tentarem mudanças por via eleitoral”, continua Puerta. “A grande pergunta é como e onde nos colocamos nós, as pessoas que se sentem reticentes face a estas vias”, conclui.

Uma vida que mereça ser vivida

A iniciativa “Construindo povo forte” nasceu há cerca de um ano em fóruns da internet, nos quais militantes de colectivos libertários impulsionaram um debate em torno da forma de actuar frente à nova situação social e política. Nele têm participado desde militantes feministas a sindicatos. Em geral “qualquer pessoa com vontade de reflectir mais profundamente, que seja capaz de participar na criação de um espaço de confluência, em que possam ser gerados debates que vão até à raiz”, explica a activista Lorea Moral, que ressalta a necessidade de “tirar o dinheiro do centro e pôr a vida no seu lugar, não qualquer vida, mas sim uma vida que mereça ser vivida”. “Uma mudança assim tão radical é difícil que seja conseguida por via eleitoral”, conclui Lorea Moral, citada pelo  jornal alternativo “Diagonal”.

Uma alternativa ao Podemos e a outros movimentos eleitoralistas

No fundo, é a procura de uma resposta libertária para construir uma alternativa coordenada em torno dos diversos espaços e activistas que não passe pela via eleitoral e possa servir de alternativa também a todos aqueles que não se revêem em processos como o do Podemos ou similares, construídos a partir dos movimentos autónomos, mas centralistas e com uma visão autoritária e eleitoralista da vida política e social.

No último ano e meio várias iniciativas têm vindo a rearticular o movimento libertário em Espanha: a Federacão Estudantil Libertária e a Federação Estudantil Anarquista (para a Catalunha), a Federação Anarquista de Catalunha, el Procés Embat (também da Catalunha), o Espaço Libertário de Madrid, o Conceyu Anarquista Asturianu, a Federación Anarquista de Gran Canaria, o C.R.A. e as numerosas assembleias libertárias nas universidades, bairros e concelhos, que se espera possam fortalecer a alternativa libertaria, convertendo-a num actor político real a nivel estatal.