Cildo Meireles é um artista visual brasileiro (1948) de forte importância na cena de arte nacional e internacional. Suas obras são conhecidas por contestarem a ditadura militar, o consumo, a dependência brasileira da economia global e afins.
E, para falar um pouco sobre a arte de Cildo, foi separado um trecho da tese de doutorado de Ana Lúcia Mandelli de Marsillac (Aberturas Utópicas : Singularidade da Arte Política nos Anos 70, tese disponível completa aqui ou trecho completo aqui) cujo fim é abordar a obra “O Sermão da Montanha: Fiat Lux”, projetado em 1973, exposto em 1979.
O trecho começa com aspas de Meireles, e segue com texto de Ana Lúcia:
“Quem começou a fazer arte a partir de 1964 teve apenas duas opções: ou ia fazer um trabalho ligado à realidade e com uma visão critica dela, correndo o risco de ser taxado de subversivo, ou então aceitava as regras impostas. O companheiro mais constante da gente tem sido o medo de vários tons e sabores, este medo que se cristaliza no Esquadrão da Morte, por exemplo. Hoje, quando certos fatos deste período começam a vir à tona, a indignação aparece. Minha proposta é um momento de reflexão sobre o espaço da repressão e da força. O espelho é o próprio ato de refletir, e ele indica que a sua omissão volta a você como repressão.” (MEIRELES, 1979, In: MEIRELES, 2009, p. 75)
Neste depoimento, Cildo refere-se, em especial à sua obra: “O Sermão da Montanha: Fiat Lux” (Imagem abaixo), projetado em 1973 e exposto em 1979, no Centro Cultural Cândido Menezes, no Rio de Janeiro. Tratava-se de um grande bloco, composto por 126.000 caixas de fósforo da marca Fiat Lux, que tinham como logotipo o desenho de um olho. Cercado por atores, disfarçados de seguranças com óculos escuros, que tinham por função, com atitudes intimidadoras, proteger o bloco eminentemente explosivo. A sala, com cerca de 60m² era rodeada por 8 espelhos e por frases retiradas do Sermão da Montanha: capítulo 5, do evangelho de São Matheus, versículos 3 a 12. O chão, forrado por lixas, através de uma interferência sonora, amplificava o som dos passos no chão, conferindo maior tensão ao espaço. Exposição fugaz que durou apenas 24 horas.
“Felizes os pobres de espírito, porque é deles o reino dos Céus; felizes os mansos, porque herdarão a terra; felizes os aflitos, porque serão consolados; felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados; […] felizes os que promovem a paz, porque serão chamados de filhos de Deus; felizes os que são perseguidos, por causa da justiça, porque é deles o reino dos céus.” Sermão da Montanha
Cildo resgata as tranquilizadoras frases do evangelho, tão presentes no imaginário popular, contrastando-as com a “bomba”, que havia ao centro da sala de exposição. Os espelhos; bem como a logo-marca das caixas de fósforo: OLHO¹, que se repetiam por etiquetarem os fardos de fósforos no bloco central; jogavam com a condição especular, de ser visto, olhando; de ser questionado, por aquilo que se olha. “Sua omissão, volta a você como repressão.” Frente a uma explosão possível, o que se faz? O ato de Cildo parece questionar a um só tempo a força da repressão, mas também o campo das artes, que tendia a produzir obras para serem apenas contempladas. O som das lixas e os seguranças², embaralham posições e insinuam que o espectador pode ser o agente da explosão. Fiat Lux, expressão em latim, que segundo a Bíblia (Gênesis 1-3), foi utilizada por Deus na criação do mundo: faça-se a luz!
“O Sermão da Montanha: Fiat Lux, una de las obras más brillantes, audaces y perspicaces de la época, y de épocas posteriores, que se hayan hecho en cualquier país.” (BRETT, In: MEIRELES, 2009a, p. 87)
Esta obra surge de uma situação cotidiana vivida pelo artista, ao se deparar com uma venda no interior da Bahia, que não tinha quase nada, a não ser fósforos e querosene. Cildo Meireles se deu conta de que o ato de comprar uma caixa de fósforo não era visto como subversivo, nem perigoso. Joga então com isso, criando uma obra composta por 126 mil caixas. “Era a criação de uma situação de perigo através de um procedimento legal. Portanto, você não está cometendo nenhum crime, mas exercendo um direito de consumidor.” (MEIRELES, 2009, p. 269)
“A união faz a força”. Esta era a frase contida no convite da exposição, na qual Cildo valeu-se de uma das imagens da sua obra: “Estojo de Geometria”, na qual prende 400 lâminas de barbear, com dois parafusos, formando um bloco. Esta ação relativiza a mensagem de que a união faz a força; pelo contrario, a união pode anestesiar. Isso se tornava claro, em alusão ao fascismo, ou mesmo, à ditadura que assolava o Brasil, nesta época. União cega pelo poder. Entretanto, parece que Cildo não deixa clara esta questão, há uma condição paradoxal das coisas e dos conceitos em sua trajetória artística, suas escolhas são precisas e extremamente significantes. Enquanto as lâminas são fortes em sua individualidade e fracas, “alienadas”, na sua união; os frágeis palitos de fósforo, individualmente não oferecem maior risco, mas quanto maior for o seu número, maior o seu potencial de explosão. Parece que o artista deixa esta pergunta: qual união faz a força?
(Trecho retirado da tese de doutorado de Ana Lúcia Mandelli de Marsillac, link de acesso na introdução)
Notas de rodapé:
1 – Atualmente, a logo marca deste fósforo não é mais o desenho de um olho.
2 – Os homens de óculos escuros fazem uma menção aos agentes à paisana que controlavam a tudo e a todos na época ditatorial.
OBS.: Mudanças foram feitas apenas na disposição de imagens nas notas de rodapé.
E, para finalizar, a quem não conheceu a caixa de Fósforos OLHO da Fiat Lux, aqui abaixo está a imagem: