Entrevista: Eduardo Viveiros de Castro sobre Lévi-Strauss

Foto: Flor Pensée Sauvage

Foto: Flor Pensée Sauvage

Fonte: Epifenomenos

O etnólogo do Museu Nacional explica, nesta entrevista, o que distingue, para Lévi-Strauss, o pensamento em estado selvagem do pensamento científico.

Por Carolina Cantarino e Rodrigo Cunha

Etnólogo americanista, com experiência de pesquisa na Amazônia, professor e pesquisador do Museu Nacional, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, Eduardo Viveiros de Castro referiu-se recentemente a Lévi-Strauss, no último encontro da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs), como autor de uma obra de incrível versatilidade. Nesta entrevista, ele explica a abordagem de Lévi-Strauss sobre a distinção entre Natureza e Cultura, entre o pensamento selvagem e o científico, fala da universalidade do etnocentrismo, da importância do corpo para as culturas ameríndias e das relações entre mito, ciência e arte para Lévi-Strauss.

Em artigo publicado na revista Mana, o senhor afirma que a diferenciação entre Natureza e Cultura é, para Lévi-Strauss, o maior tema da mitologia ameríndia. Como ele descreve e interpreta essa diferenciação e quais os desdobramentos disso para a antropologia, em termos de novas interpretações ou revisões críticas?

Eduardo Viveiros de Castro – Com efeito, Lévi-Strauss afirma repetidas vezes, em sua obra, que a mitologia ameríndia – ou pelo menos aquela vasta porção da mitologia ameríndia que foi objeto de sua atenção ao longo de pelo menos sete livros – teria como tema central a diferenciação entre Natureza e Cultura. Interpretar essa afirmação aparentemente tão simples é, na verdade, tarefa bastante complicada, para a qual eu mesmo, entre outros colegas, venho tentando contribuir há vários anos. Em primeiro lugar, a dita diferenciação entre Natureza e Cultura é menos (ou mais) que umtema; ela é um problema para o pensamento indígena. Pois o tal tema central raras vezes se reduz, tanto no discurso mitológico como na análise levistraussiana do mesmo, a uma narrativa unívoca sobre a transcendência, conquista e domínio da Natureza pela Cultura, ao contrário do que se passa dominantemente em nossa mitologia ocidental (também conhecida pelo nome de “metafísica”). Ao contrário, os mitos, assim como seu analista, insistem sobre o caráter multiplamente problemático dessa separação: seja pelo alto preço que ela custa à espécie humana (a origem da cultura é costumeiramente associada, nos mitos, à origem da mortalidade, e à perda da comunicação linguística com os outros viventes do cosmos), seja pela remanência crucial de zonas, momentos ou fenômenos em que a separação se mostra incompleta ou impossível, seja, finalmente, por um poderoso impulso em direção contrária, uma “marcha regressiva” da Cultura em direção à Natureza que acompanha como uma sombra o movimento de separação, ao longo de toda essa mitologia. Na verdade, o percurso interpretativo empreendido por Lévi-Strauss dá testemunho de um progressivo deslocamento de ênfase, desde O cru e o cozido(1964) até História de Lince (1991), onde o caráter equívoco, ambivalente e problemático da separação entre Natureza e Cultura, vai predominando sobre um discurso “antropológico” ou hominizante. Esse deslocamento ecoa, por sua vez, a crescente indignação de Lévi-Strauss com as consequências suicidas da metafísica ocidental a respeito da “separação” entre Natureza e Cultura – estou-me referindo aqui à crise ecológica planetária.

Quando se pensa na abordagem de Lévi-Strauss sobre ciência, a primeira obra que tende a ser lembrada é O pensamento selvagem (1962), em que ele confere estatuto de pensamento aos mitos indígenas. Segundo Lévi-Strauss, a ciência ocidental teria acesso à natureza tal como é, enquanto que outras culturas fariam apenas imagens ou representações dessa natureza. Há outras possibilidades de se pensar a relação entre a ciência ocidental e o pensamento selvagem?

Viveiros de Castro O pensamento selvagem não versa sobre mitos indígenas, mas sobre certas disposições universais do pensamento humano: ameríndio, europeu, asiático ou qualquer outro. O “pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “primitivos” (em oposição ao “pensamento ocidental”), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em vista da obtenção de um rendimento. O pensamento selvagem não se opõe ao pensamento científico como duas formas ou duas lógicas mutuamente exclusivas. Sua relação é, antes, uma relação entre gênero (o pensamento selvagem) e espécie (o pensamento científico). Ambas as formas de pensamento se utilizam dos mesmos recursos cognitivos; o que as distingue é, diz Lévi-Strauss, o nível do real ao qual eles se aplicam: o nível das propriedades sensíveis (caso do pensamento selvagem), e o nível das propriedades abstratas (caso do pensamento científico). Mas a tendência, diz o autor, é que o pensamento científico, à medida em que avança, vá-se aproximando do pensamento selvagem, ao se mostrar capaz de incorporar as dimensões sensíveis da experiência humana em uma abordagem unificada, onde física e semântica não estão mais separadas por um abismo ontológico. Ou seja, o futuro da ciência não é se distanciar do pensamento selvagem, mas convergir com ele.

Para Lévi-Strauss, a visão de mundo indígena é tão etnocêntrica quanto a ocidental, e a distinção básica entre ambas estaria na relação entre corpo e alma. Como ele explica isso?


Viveiros de Castro
– A questão do etnocentrismo não passa pela distinção (ou pela indistinção) entre pensamento selvagem e pensamento domesticado. O que Lévi-Strauss diz é que existe uma tendência humana universal a tomar o próprio grupo como exemplo acabado da humanidade, e a ver os demais coletivos humanos (outras culturas, povos e sociedades) como exemplares menos perfeitos dessa humanidade e, no limite, como estando fora do escopo desse conceito. Isso é o chamado etnocentrismo. A universalidade de tal disposição, porém, não exclui diferenças importantes em seu modo de exercício e de manifestação. Assim, ao falar das percepções recíprocas da alteridade mobilizadas pela invasão e conquista européia das Américas, Lévi-Strauss insiste sobre a diferença radical entre o que chama de “abertura ao Outro”, característica do pensamento ameríndio, e o fechamento fanático dos europeus – fechamento político, filosófico, estético – diante da alteridade social e natural oferecida pelo Novo Mundo. As consequências políticas dessa diferença dispensam, creio, comentários.

Quais foram as principais contribuições de Lévi-Strauss acerca da importância do corpo para as culturas ameríndias, em obras como O cru e o cozido? Há releituras posteriores desses trabalhos que mereçam ser destacadas?

Viveiros de Castro – Ao mesmo tempo em que é um estudo formal dedicado às mitologias ameríndias, as Mitológicas, cujo primeiro volume é justamente O cru e o cozido, revelam também outra coisa, a saber, que os materiais simbólicos de que as sociedades indígenas lançam mão para se constituírem são refratários às categorias tradicionais da sociologia e da antropologia social. Princípios cosmológicos embutidos em oposições de qualidades sensíveis, uma economia simbólica da alteridade inscrita no corpo e nos fluxos materiais, um modo de articulação com a natureza que pressupõe uma socialidade universal (a diferenciação entre Natureza e Cultura de que falávamos não exclui, muito pelo contrário, um fundo comum de socialidade que atravessa todo o campo do vivente), são os materiais e processos que parecem tomar o lugar dos idiomas jurisdicistas e economicistas com que a antropologia descreveu as sociedades de outras partes do mundo, com seus feixes de direitos e deveres, suas corporações de parentesco perpétuas e territorializadas, seus elaborados regimes de propriedade e herança, seus modos de produção linhageiros… Longe de se constituírem em conteúdos “superestruturais” ou “culturais” das formações sul-americanas, esses materiais e processos articulam diretamente uma sociologia indígena.

Lévi-Strauss estabelece uma relação entre arte, mito e conhecimento. Muitos trabalhos contemporâneos em ciências humanas e sociais costumam ver a arte como único conhecimento, hoje, capaz de questionar politicamente a ciência, inclusive nos seus princípios operatórios. Como pensar essa relação entre mito, ciência e arte, partindo de Lévi-Strauss?

Viveiros de Castro – A arte é, para Lévi-Strauss, como que o refúgio ecológico do pensamento selvagem dentro do mundo racionalizado e tecnicizado das sociedades modernas. Na arte, ainda é lícito sermos “selvagens”, no bom sentido que o adjetivo sempre tem na pena de Lévi-Strauss. O mestre francês não entende, porém, ao contrário desses trabalhos contemporâneos mencionados pela pergunta (e que confesso ignorar completamente quais sejam), que a arte, ou o mito, possuam qualquer superioridade sobre a ciência. Ao contrário, Lévi-Strauss afirma repetidas vezes que a ciência é uma aquisição fundamental da espécie, e que o tipo de conhecimento tornado possível pela ciência é de um valor inestimável, ao qual nem o mito nem a arte podem pretender. Não há como transformar Lévi-Strauss em um profeta anti-científico! Mas ele certamente não é, por outro lado, um admirador incondicional da civilização que gerou a ciência (e que é até certo ponto gerida por ela, ou pior, que pensa sê-lo); muito pelo contrário. E também é certo que Lévi-Strauss vê na arte a expressão máxima do gênio humano. A arte é para ele, no final das contas (assim me parece), um modelo para a ciência, essa forma de conhecimento que em seus momentos culminantes se aproxima da arte. O mito representa para Lévi-Strauss aquele momento quase-adâmico da história cognitiva da espécie, quando a arte e a ciência ainda não haviam tomado rumos distintos. E o futuro do pensamento humano – se é que há um – não poderá consistir senão em um movimento em espiral de volta à região onde impera, inesgotável, o impulso gerador do mito.

Extraído de : Revista Com Ciência, No. 114 – 10/12/2009

Uma carta aberta a quem diz que “Funk não é Cultura”

duelo

 

Por Carlos Palombini

Fonte: El Hombre

O professor de musicologia Carlos Palombini, da UFMG, explica por que o proibidão merece tanto respeito quanto o samba ou qualquer outro gênero musical.

Dia 9 de agosto de 2012, depois de encontrar meu amigo Gustavo Lopes, o MC Orelha, em seu estúdio no Largo da Batalha, em Niterói, escrevi a Nilo Batista. Eu ouvira de seu DJ-produtor, Gelouko, que Gustavo não recebia direitos autorais por “Na faixa de Gaza é assim”, hoje com mais de quinze milhões de acessos no YouTube, porque “proibidão não paga direito autoral”.

Em 23 de outubro Carlos Bruce Batista me escreveu para dizer que seu pai tivera a ideia de incluir um livro sobre proibidões na série Criminologia de Cordel, publicada pela Revan para o Instituto Carioca de Criminologia. Carlos convidou um grupo de autores das áreas de direito, música e cultura, e obtivemos a colaboração de dois dos mais importantes compositores do subgênero que, nas palavras do DJ Marcelo André (em entrevista recente), “é o mais autêntico”: Thiago dos Santos, da Vila Cruzeiro (o “Praga”), e o próprio MC Orelha.

Minha contribuição para o livro consistiu numa entrevista com Gustavo Lopes e numa análise de “Na faixa de Gaza é assim”. Em 26 de novembro de 2013 nos reunimos no Circo Voador para o lançamento do livro. O ministro argentino da Corte Suprema de Justiça, Raúl Zaffaroni, o delegado Orlando Zaccone D’Elia Filho, o empresário Rômulo Costa, e os MCs Catra, Leonardo e Smith estiveram presentes.

Embora a maioria dos autores não esteja exatamente no início de suas carreiras, creio poder falar em nome de todos e dizer que é um trabalho do qual nos orgulhamos particularmente, pois estamos na companhia de pessoas que admiramos pessoal e profissionalmente. Tanto que, há alguns dias, fui procurar na rede mais quinze exemplares do livro para dar de presente.

Foi quando me deparei com alguns comentários curiosos e talvez representativos, um deles publicado no portal El Hombre. Pedro Nogueira, editor-chefe, me convidou a respondê-los.

Não é estimulante, do ponto de vista intelectual, refutar o senso comum, em especial quando ele não se dá ao trabalho de revestir-se de qualquer coerência, mas limita-se a fazer alarde de gostos e opiniões teórica e empiricamente desinformadas. O que há de mais elaborado no texto é o título, síntese de uma ignorância que o benefício da dúvida me obriga a considerar honesta. Não pode haver “culturalização” do que em si já é cultura. Seria necessário que o autor apresentasse uma definição de cultura capaz de excluir o funk carioca para que o termo tivesse qualquer autoridade.

Mas “culturalização” aqui deve ser tomada como paródia pura e simples de “criminalização”. Tal procedimento, comum no funk carioca, mostra a impossibilidade em que a cultura nacional se encontra de produzir um intelectual de direita. Tampouco há “choradeira em torno da crise do gênero brasileiro”, porquanto não está em crise a música, estão em crise alguns daqueles que a produzem. Para o autor, o problema é simples: ele vai passar-nos uma descompostura e necessita da “choradeira” justificativa. Esse “pai” preocupado com nossa educação carece de autoridade todavia.

Na introdução alguns parágrafos pretensamente neutros deveriam fornecer evidência de imparcialidade se não houvessem sido anulados pelo investimento libidinal excessivo do título. Examinemos não mais que um excerto:

O samba aconteceu “de dentro para fora” como expressão da cultura popular brasileira e, assim, foi autêntico, espontâneo; o funk carioca ocorreu “de fora para dentro” como derivação do miami bass americano e, assim, foi forjado, imposto como expressão da cultura popular brasileira por um discurso ideológico elitista, reacionário e paternalista consistente em um moralismo às avessas (induzir a sociedade a interpretar coisificação da mulher como luta feminista, pobreza como estilo de vida, ignorância como caricatura, conformismo como engajamento político, ostentação material como cidadania) interessado em processar o etnocentrismo, o higienismo e a marginalização que aprisiona, domestica e submete as classes pobres na armadilha da segregação social.”

A contraposição entre uma música que aconteça “de dentro para fora” e outra que ocorra “de fora para dentro” não tem qualquer embasamento na História. Trata-se da expressão de uma ideologia, esta sim, em crise. Ao dizer-nos essas “duras verdades”, o bom pai ríspido estetiza o político para inverter papéis, e apresentar-se em pele de cordeiro: somos nós “os interessados na manutenção da segregação social”; somos nós que projetamos “nos outros os próprios preconceitos”; somos nós quem quer convencê-lo “de que as classes pobres estão sendo valorizadas”.

Durante o período de ascensão do nazi-fascismo muitos intelectuais aderiram ao regime. Louis-Ferdinand Céline, escritor engajado, escreveu panfletos antissemitas e aproximou-se dos colaboracionistas, mas não deixou de ser considerado um dos grandes inovadores da literatura francesa. Já Robert Brasillach foi julgado e condenado à morte. Em sua defesa saíram Paul Valéry, Paul Claudel, François Mauriac, Albert Camus, Jean Paulhan, Jean Cocteau, Colette, Arthur Honegger, Jean Anouilh e Jean-Louis Barrault, entre outros. Artur Dias não é fascista nem intelectual, mas talvez tenha razão neste ponto: “Entre os níveis de obscurantismo aos quais uma sociedade pode ser submetida — pobreza material, pobreza artística, pobreza cultural —, talvez o pior deles seja a pobreza simbólica.” Quem não estiver convencido que o leia.

***

Leia mais textos de Carlos Palombini em seu site Proibidão.

Temos que arder sim!

zp_xigubo-2

Em apoio à resistência negra e às suas chamas nos Estados Unidos da América hoje, um poema do poeta e ativista pela libertação de Moçambique, José Craveirinha:

Temos que arder sim!

Grito negro

Eu sou carvão!

E tu arrancas-me brutalmente do chão

e fazes-me tua mina, patrão.

 

Eu sou carvão!

E tu acendes-me, patrão,

para te servir eternamente como força

motriz

mas eternamente não, patrão.

 

Eu sou carvão

e tenho que arder sim;

queimar tudo com a força da minha

combustão.

 

Eu sou carvão;

tenho que arder na exploração

arder até às cinzas da maldição

arder vivo como alcatrão, meu irmão,

até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão.

 

Tenho que arder

Queimar tudo com o fogo da minha

combustão.

 

Sim!

Eu serei o teu carvão, patrão.

José Craveirinha

(28 de Maio de 1922 – 6 de Fevereiro de 2003)

Arte e Resistência: Cildo Meireles nos anos 70

Cildo_Meireles
Cildo Meireles é um artista visual brasileiro (1948) de forte importância na cena de arte nacional e internacional. Suas obras são conhecidas por contestarem a ditadura militar, o consumo, a dependência brasileira da economia global e afins.

E, para falar um pouco sobre a arte de Cildo, foi separado um trecho da tese de doutorado de Ana Lúcia Mandelli de Marsillac (Aberturas Utópicas : Singularidade da Arte Política nos Anos 70, tese disponível completa aqui ou trecho completo aqui) cujo fim é abordar a obra “O Sermão da Montanha: Fiat Lux”, projetado em 1973, exposto em 1979.

O trecho começa com aspas de Meireles, e segue com texto de Ana Lúcia:

Quem começou a fazer arte a partir de 1964 teve apenas duas opções: ou ia fazer um trabalho ligado à realidade e com uma visão critica dela, correndo o risco de ser taxado de subversivo, ou então aceitava as regras impostas. O companheiro mais constante da gente tem sido o medo de vários tons e sabores, este medo que se cristaliza no Esquadrão da Morte, por exemplo. Hoje, quando certos fatos deste período começam a vir à tona, a indignação aparece. Minha proposta é um momento de reflexão sobre o espaço da repressão e da força. O espelho é o próprio ato de refletir, e ele indica que a sua omissão volta a você como repressão.” (MEIRELES, 1979, In: MEIRELES, 2009, p. 75)

Neste depoimento, Cildo refere-se, em especial à sua obra: “O Sermão da Montanha: Fiat Lux” (Imagem abaixo), projetado em 1973 e exposto em 1979, no Centro Cultural Cândido Menezes, no Rio de Janeiro. Tratava-se de um grande bloco, composto por 126.000 caixas de fósforo da marca Fiat Lux, que tinham como logotipo o desenho de um olho. Cercado por atores, disfarçados de seguranças com óculos escuros, que tinham por função, com atitudes intimidadoras, proteger o bloco eminentemente explosivo. A sala, com cerca de 60m² era rodeada por 8 espelhos e por frases retiradas do Sermão da Montanha: capítulo 5, do evangelho de São Matheus, versículos 3 a 12. O chão, forrado por lixas, através de uma interferência sonora, amplificava o som dos passos no chão, conferindo maior tensão ao espaço. Exposição fugaz que durou apenas 24 horas.

cildo meireles - sermão

Cildo Meireles, O Sermão da Montanha: Fiat Lux, 1979. 126.000 caixas de Fósforos Fiat Lux, 8 espelhos, lixa preta, 8 bem aventuranças do Sermão da Montanha (Mateus V, 3-10), 5 atores, duração de 24 horas. Dimensão aprox.: 64m².

Felizes os pobres de espírito, porque é deles o reino dos Céus; felizes os mansos, porque herdarão a terra; felizes os aflitos, porque serão consolados; felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados; […] felizes os que promovem a paz, porque serão chamados de filhos de Deus; felizes os que são perseguidos, por causa da justiça, porque é deles o reino dos céus.” Sermão da Montanha

Cildo resgata as tranquilizadoras frases do evangelho, tão presentes no imaginário popular, contrastando-as com a “bomba”, que havia ao centro da sala de exposição. Os espelhos; bem como a logo-marca das caixas de fósforo: OLHO¹, que se repetiam por etiquetarem os fardos de fósforos no bloco central; jogavam com a condição especular, de ser visto, olhando; de ser questionado, por aquilo que se olha. “Sua omissão, volta a você como repressão.” Frente a uma explosão possível, o que se faz? O ato de Cildo parece questionar a um só tempo a força da repressão, mas também o campo das artes, que tendia a produzir obras para serem apenas contempladas. O som das lixas e os seguranças², embaralham posições e insinuam que o espectador pode ser o agente da explosão. Fiat Lux, expressão em latim, que segundo a Bíblia (Gênesis 1-3), foi utilizada por Deus na criação do mundo: faça-se a luz!

seguranças sermão

Cildo Meireles, O Sermão da Montanha: Fiat Lux, 1979.

O Sermão da Montanha: Fiat Lux, una de las obras más brillantes, audaces y perspicaces de la época, y de épocas posteriores, que se hayan hecho en cualquier país.” (BRETT, In: MEIRELES, 2009a, p. 87)

Esta obra surge de uma situação cotidiana vivida pelo artista, ao se deparar com uma venda no interior da Bahia, que não tinha quase nada, a não ser fósforos e querosene. Cildo Meireles se deu conta de que o ato de comprar uma caixa de fósforo não era visto como subversivo, nem perigoso. Joga então com isso, criando uma obra composta por 126 mil caixas. “Era a criação de uma situação de perigo através de um procedimento legal. Portanto, você não está cometendo nenhum crime, mas exercendo um direito de consumidor.” (MEIRELES, 2009, p. 269)

A união faz a força”. Esta era a frase contida no convite da exposição, na qual Cildo valeu-se de uma das imagens da sua obra: “Estojo de Geometria”, na qual prende 400 lâminas de barbear, com dois parafusos, formando um bloco. Esta ação relativiza a mensagem de que a união faz a força; pelo contrario, a união pode anestesiar. Isso se tornava claro, em alusão ao fascismo, ou mesmo, à ditadura que assolava o Brasil, nesta época. União cega pelo poder. Entretanto, parece que Cildo não deixa clara esta questão, há uma condição paradoxal das coisas e dos conceitos em sua trajetória artística, suas escolhas são precisas e extremamente significantes. Enquanto as lâminas são fortes em sua individualidade e fracas, “alienadas”, na sua união; os frágeis palitos de fósforo, individualmente não oferecem maior risco, mas quanto maior for o seu número, maior o seu potencial de explosão. Parece que o artista deixa esta pergunta: qual união faz a força?

Cildo Meireles, Estojo de Geometria (neutralização por Oposição e/ou Adição), 1977-79. Caixa de madeira, dois cutelos, dois pregos, 400 lâminas de barbear, c. 50 x 30 x 5 cm.

Cildo Meireles, Estojo de Geometria (neutralização por Oposição e/ou Adição), 1977-79. Caixa de madeira, dois cutelos, dois pregos, 400 lâminas de barbear, c. 50 x 30 x 5 cm.


(Trecho retirado da tese de doutorado de Ana Lúcia Mandelli de Marsillac, link de acesso na introdução)

Notas de rodapé:

1 – Atualmente, a logo marca deste fósforo não é mais o desenho de um olho.
2 – Os homens de óculos escuros fazem uma menção aos agentes à paisana que controlavam a tudo e a todos na época ditatorial. 

OBS.: Mudanças foram feitas apenas na disposição de imagens nas notas de rodapé.

E, para finalizar, a quem não conheceu a caixa de Fósforos OLHO da Fiat Lux, aqui abaixo está a imagem:

estojo-caixa-de-fosforos-fiat-lux-olho