Zona Autônoma Permanente

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Por Hakim Bey

Fonte: Protopia

A teoria da Zona Autônoma Temporária (TAZ) busca tratar de situações existentes ou emergentes, mais que do utopismo puro. Por todo o mundo existem pessoas que estão deixando ou “desaparecendo” da Grade[1] da Alienação e buscando formas de restaurar o contato humano. Um exemplo interessante disto – no nível da “cultura popular urbana” – pode ser encontrado na proliferação de redes e conferências vinculadas a passatempos. Recentemente descobri zines destes grupos, Joias da Coroa das Altas Ondas[2] (dedicado ao colecionismo de isoladores elétricos de cristal) e uma revista sobre cucurbitologia (A Abóbora). Enormes quantidades de criatividade são dedicadas a estas obsessões. Os diversos encontros periódicos de companheiros-maníacos vêm a ser verdadeiros festivais cara-a-cara (não-mediados) de excentricidade. Não é só a “contra-cultura” quem busca suas zonas autônomas temporárias, seus acampamentos nômades e noites de liberação do consenso. Grupos auto-organizados e autônomos estão brotando entre todas as “classes” e “subculturas”. Vastas extensões do Império Babilônico estão agora vazias, povoadas somente pelos agentes secretos dos Meios de Massas e uns poucos policiais psicóticos.

A teoria da zona autônoma temporária dá conta disto que ESTÁ ACONTECENDO – não estamos falando sobre o que “deveria” ou será – estamos falando de um movimento já existente. Nosso uso de uma série de meios reflexivos e experienciáveis – poesia utópica e crítica paranóica (etc.) pretende ajudar a clarificar este movimento complexo ainda em grande medida não documentado, dar-lhe algum foco teórico e consciência de si mesmo, e sugerir táticas baseadas em estratégias integralmente coerentes – atuar como parteira ou panegírico, e não como “vanguarda”!

Então tivemos que considerar o fato de que nem todas as zonas autônomas existentes são “temporárias”. Algumas são (ao menos nas intenções) mais ou menos “permanentes”. Certas rachaduras no Monolito Babilônico parecem tão vazias que grupos inteiros podem se mudar para elas e lá se instalarem. Certas teorias, como a “permacultura”, têm sido desenvolvidas para lidar com esta situação aumentando as possibilidades. “Vilas”, “comunas”, “comunidades”, incluindo aí “arcologias” e “biosferas” (ou outros modelos de cidade-utopia) estão sendo experimentadas e implementadas. Mesmo nesse contexto a teoria da TAZ pode oferecer algumas ferramentas de pensamento, esclarecimentos e úteis reflexões.

E se tratarmos de uma poética (um “modo de fazer”) e de uma política (uma “forma de viver juntos”) para a TAZ “permanente” (ou ZAP)? O que existe na relação atual entre a temporalidade e a permanência? E como pode a ZAP periodicamente renovar-se com o aspecto festivo da TAZ?

A Questão da Publicidade

Os recentes eventos nos Estados Unidos e na Europa mostraram que os grupos auto-organizados/autônomos levam o temor ao coração do Estado. O MOVE[3] na Philadelphia, os Koreshitas de Waco,[4] os Dreadheads,[5] as Tribos do Arco-iris,[6] os piratas informáticos,[7] os okupas[8] (etc.) têm se tornado alvos do extermínio em vários níveis de intensidade . E ainda outros grupos autônomos seguem desapercebidos, ou pelo menos não são perseguidos. O que faz a diferença? Um fator pode ser o efeito maligno da publicidade ou mediação. A Mídia experimenta uma sede vampírica pela sombra-paixão do “Terrorismo”, o ritual público de expiação, o bode expiatório e sangue sacrificial da Babilônia. Uma vez que qualquer grupo autônomo permite que este “olhar” particular caia sobre ele, a merda bate no ventilador – a Mídia tentará organizar um mini-Armagedom para satisfazer sua viciosa ansiedade por espetáculo e morte.

Na atualidade, a ZAP dá um ótimo alvo, fácil para essa bomba inteligente midiática. Assediado dentro de seu “composto”, o grupo auto-organizado só pode sucumbir a algum tipo de martírio barato predeterminado. Seria presumível que este papel atraia somente aos masoquistas neuróticos??? Em todo caso, a maioria dos grupos desejam viver seu período natural ou suas trajetórias em paz e calma. Uma boa tática aqui pode ser evitar a publicidade da Mídia de Massas como se fosse uma praga. Um pouco de paranóia natural pode ser útil, contanto que não se converta em um fim em si mesma. A gente deve ser astuto para evitar ser apanhado. Um toque de camuflagem, uma aptidão para a invisibilidade, um sentido de tato como tática… poderiam ser tão úteis para uma ZAP como o são para uma TAZ. Humildes sugestões: use somente “mídias íntimas” (zines, rodas de telefones, BBSs[9], rádios livres e mini-FM, TV a cabo de acesso público, etc.); evite atitudes confrontacionistas de macho fanfarão – você não precisa de cinco segundos no telejornal diário (“Polícia derruba Seita”) para dar sentido a sua existência. Nosso slogan poderia ser: “Busque a vida, não um estilo de vida”.

Acesso

As pessoas provavelmente deveriam escolher as pessoas com quem querem viver. As comunas de “participação aberta” acabam invariavelmente atoladas com aproveitadores[10] e patéticos abobados sedentos por sexo. As ZAPs devem eleger mutuamente seus próprios membros – isto não tem nada que ver com “elitismo”. A ZAP pode exercer uma função temporalmente aberta – como abrigar festivais ou compartilhar comida gratuita –, mas não precisa estar permanentemente aberta a qualquer autoproclamado simpatizante que apareça.

A Emergência de uma Economia Alternativa Genuína

Uma vez mais, isto já está acontecendo, mas ainda precisa de uma imensa quantidade de trabalho antes de entrar em foco. As sub-economias do “lavoro nero”[11], as transações livres de taxas, o truque, etc., tendem a ser severamente limitadas e localizadas. As BBSs e outros sistemas de redes podem ser usados para colocar em relação estas economias regionais/marginais (”empresas caseiras”) em uma economia alternativa viável de certa magnitude. “P.M.”[12] delineou já há algum tempo alguma coisa semelhante a isto em “bolo’bolo”[13] – de fato já existe um número de possíveis sistemas, ao menos em teoria. O problema é: como construir uma verdadeira economia alternativa, isto é, uma economia completa sem atrair o Imposto de Renda e outros cães de caça capitalistas? Como posso trocar minhas habilidades como, digamos, escavador de poços ou destilador de álcool, pelos alimentos, livros, abrigo e plantas psicoativas que desejo – sem pagar impostos, bem como sem utilizar nenhum dinheiro forjado pelo Estado? Como posso viver uma vida confortável (inclusive luxuosa) livre de toda interação e transação com o Mundo da Mercadoria? Se tomássemos todas as energias que os esquerdistas colocam em suas manifestações inúteis e toda a energia que os ultra-liberais[14] despendem em seus fúteis joguinhos de terceiro partido, e se nós redirecionássemos toda esta potência para a construção de uma verdadeira economia subterrânea, já teríamos alcançado “a Revolução” há muito tempo atrás.

O “Mundo” Chegou ao Seu Fim em 1972

A efígie frívola do Estado absoluto finalmente veio abaixo em “1989”. A última ideologia, o Capitalismo, não é mais que uma doença de pele do Neolítico muito tardio. É uma máquina-de-desejos que segue funcionando vazia. Tenho a esperança de vê-lo desaparecer ainda durante a minha vida, como uma das paisagens mentais de Dali[15]. E quero ter algum lugar para onde “ir” quando a merda toda vier abaixo. É claro que a morte do capitalismo não implica necessariamente na destruição ao estilo Godzilla de toda cultura humana; este cenário é meramente uma imagem de terror propagandeada pelo próprio capitalismo. É claro que o cadáver sonolento terá contrações e espasmos violentos antes que o rigor mortis se estabeleça – e Nova Iorque ou Los Angeles podem não ser os locais mais inteligentes para se esperar pelo fim da tempestade. (E a tempestade pode já ter se iniciado). [Por outro lado Nova Iorque e Los Angeles podem não ser os piores lugares para se criar o Mundo Novo; alguém poderia imaginar bairros inteiros ocupados, gangues transformadas em Milícias Populares, etc.] Agora, o modo de vida cigano-realidade virtual pode ser uma forma de lidar com o atual processo de fundir-se do Capitalismo Muito Tardio – mas no que me consta, preferiria um belo monastério anarquista em algum lugar – um local típico para que os “eruditos” possam suportar a “Idade das Trevas”[16]. Quanto mais nos organizarmos AGORA neste sentido, menos problemas teremos para enfrentarmos no futuro. Não estou falando de “sobreviver” – não estou interessado na mera sobrevivência. Quero florescer. VOLTEMOS A UTOPIA.

Festivais

A ZAP desempenha uma função vital, como um nodo na rede de TAZs, um ponto de encontro para um círculo amplo de amizades e alianças que podem realmente não viver realmente o tempo todo na “fazenda” ou na “aldeia”. As antigas aldeias celebravam feiras que traziam riqueza para a comunidade, proporcionavam mercados para os viajantes e criavam um tempo/espaço festivo para todos os seus participantes. Hoje em dia o festival está emergindo como uma das formas mais importantes para a própria TAZ, mas ele também pode proporcionar renovação e avivamento para a ZAP. Recordo ter lido em algum site que na Idade Média havia cento e onze dias festivos ao ano; deveríamos tomar isto como nosso “mínimo utópico”[17] e nos esforçarmos para conseguir algo ainda maior.

A Terra Vivente

Acredito que há uma abundância de boas razões egoístas para desejar o “orgânico” (é mais sexy), o “natural” (que é mais gostoso), o “verde” (é mais belo) e o Selvagem[18] (é mais excitante). A Communitas[19] (como denominada por Paul Goodman[20]) e a convivialidade (como chamada por Ivan Illich[21]) são mais prazerosas que seus opostos. A terra vivente não tem porque excluir a cidade orgânica – a pequena mas intensa conglomeração de humanidade dedicada às artes e aos prazeres ligeiramente decadentes de uma civilização expurgada de todo seu gigantismo e solidão forçada – no entanto mesmo aqueles de nós que gostamos das cidades podemos ver motivos imediatos e hedonistas para lutar pelo “meio ambiente”. Somos biófilos militantes. Ecologia profunda, ecologia social, permacultura, tecnologia apropriada… não somos exigentes demais com as ideologias. Que brotem mil flores.

Tipologia da ZAP

Uma “religião esquisita” ou um movimento de arte rebelde pode se tornar um tipo de ZAP não-local, algo como uma rede de hobbies muito intensa e abrangente. A Sociedade Secreta (como a Tong chinesa) também proporciona um modelo para uma ZAP sem limites geográficos. Mas o “cenário do tipo ideal” implica num espaço livre que se estende em um tempo igualmente livre. A essência da ZAP deve ser a intensificação prolongada dos prazeres – e riscos– da TAZ. E a intensificação da ZAP será… a Utopia Agora.

Hakim Bey Zona Autônoma Permanente de DreamTime, Agosto de 1993

Referências

  1. A ideia de grade aqui evocada por Bey relaciona-se à cartografia, faz referência às linhas e paralelos dos mapas, coordenadas polares e geodésicas, latitude e longitude. Todos os espaços e alterações mapeados, estão sob o julgo do poder (N. do T.).
  2. No original Crown Jewels Of The High Wire(N. do T.).
  3. MOVE é uma organização formada na Philadelphia, Pennsylvania em 1972 por John Africa (1931 – 1985) e Donald Glassey (1946). Se organiza na forma de uma rede descentralizada de negros (afro-americanos) cujos membros em sua grande maioria adotaram o sobrenome África, defendendo um estilo de vida de “retorno a natureza” sendo em muitos sentidos contrários à tecnologia. Em 1985 o grupo foi alvo de uma operação de ataque do Departamento de Polícia da Filadélfia. Nesta operação foram mortos 7 de seus membros incluindo seu fundador John Africa. Mumia Abu-Jamal é um dos apoiadores mais ativos do MOVE escrevendo em 1998 de dentro da prisão onde se encontra uma longa carta intitulada ‘Longa Vida a John Africa’! (N. do T.)
  4. Nome dado aos seguidores da seita de David Koresh (1959 – 1993), uma facção davidiana. Em 1993 a ATF e o FBI realizaram um cerco ao centro espiritual koreshita, estes por sua vez responderam ao cerco atirando com suas armas, ao final desta operação estavam mortos 82 membros da seita incluindo o próprio David Koresh. Na época do cerco, Koresh encorajava seus seguidores a pensar neles próprios como “estudiosos dos Sete Selos” mas do que “Davidianos”. Outras facções de Davidianos nunca aceitaram sua liderança.
  5. “Dreadheads” foi um dos termos utilizados pela mídia norteamericana para designar os homens e mulheres que se insurgiram contra a polícia e os símbolos do Capital durante as manifestações contra a OMC em Seattle em 1999, já que a maioria destes possuíam cortes de cabelo afro chamados dreads. Especula-se que muitos deles eram adeptos do anarco-primitivismo influenciados principalmente pelas ideias de John Zerzan (N. do T.).
  6. “Rainbow Tribes” é o nome de uma ampla rede anarco-xamânica que tem entre seus adeptos muitos defensores da ecologia profunda. Cada “tribo” no entanto, possui suas particularidades (N. do T.).
  7. Bey refere-se à pirataria politizada de centenas de grupos e indivíduos localizados principalmente nos países da Europa Oriental. Estes piratas têm como principal ação política o crackeamento e a livre disponibilização de uma infinidade de softwares, livros, filmes e álbuns musicais. No Brasil a pirataria politizada ganhou alguma notoriedade nas ações do Coletivo Sabotagem, um grupo de anarquistas que vem já há algum tempo, contrariando as leis de direitos autorais, disponibilizando livros digitalizados através de seu site na Internet (N. do T.).
  8. Okupas (“Squats”em inglês) é uma prática comum na Europa e Estados Unidos que consiste na ocupação e reforma de construções abandonadas por grupos libertários, transformando-as em locais para moradia, centros culturais e pontos de referência e descanso para viajantes anarquistas, além de abrigarem festivais de música e espaços de exposição. Okupa é também a denominação de pertencimento dos habitantes deste tipo de ocupação (N. do T.).
  9. BBS (acrônimo inglês de bulletin board system) é um sistema informático, um software, que permite a ligação (conexão) via telefone a um sistema através do seu computador e interagir com ele, tal como hoje se faz com a internet. Essas redes se tornaram populares nas décadas de 70 e 80 e podem ser consideradas o início da internet. (N. do T.)
  10. O termo utilizado aqui originalmente é “freeloader”, que significa alguém que, se aproveitando de uma relação igualitária comunal, consome excessivamente mais do que o justo compartilhamento dos recursos (N. do T.).
  11. Do italiano, significa “trabalho negro” e é empregado aqui para definir as muitas formas de trabalho sujo, pesado e mal remunerado que na Europa são geralmente efetuadas por imigrantes ilegais (N. do T.).
  12. P.M. é o pseudônimo utilizado por um autor libertário anônimo nascido na Suíça (N. do T.).
  13. Bolo’bolo é o famoso livro anti-capitalista e autonomista escrito por p.m. e publicado em 1983 em Zürich, pela editora Paranoid City (N. do T.).
  14. No original, “libertarian”. Nos EUA o termo significa ultra-liberal ou (polemicamente) anarco-capitalista. Em termos semânticos “libertarian” pouco tem a ver com a ideia por trás do termo “libertário” nos países de língua latina. Os ultra-liberais (libertarians) defendem o fim do Estado, ou pelo menos a minimização deste, por o considerarem demasiadamente intervencionista na “liberdade de Mercado”, que para eles é a única forma de liberdade realmente verdadeira. Durante os anos de 1980 o Partido Libertário alcançou certa relevância nos EUA, chegando a ser o terceiro em votos, ainda que muito abaixo dos democratas e dos republicanos (N. do T.).
  15. Salvador Dalí (1904 – 1989), pintor expoente do surrealismo, nascido na Espanha (N. do T.).
  16. O termo utilizado originalmente no inglês, ”Dark Ages”, é uma das formas como os expoentes da Idade Moderna chamavam pejorativamente a Idade Média. (N. do T.)
  17. Os “Mínimos Utópicos” propostos por Charles Fourier consistiam em mais comida e sexo que a quantidade desfrutada pelo aristocrata mediano do século XVIII; Buckminster Buller propôs o termo “mínimo nú” como um conceito similar (N. do A.).
  18. No original “Wild(er)ness” abrangendo tanto a ideia de “selvagem”, como a ideia de “Natureza Intocada” (N. do T.).
  19. O título de um dos livros escritos por Paul Goodman e seu irmão Percival Goodman, publicado em 1947 (N. do T.).
  20. Paul Goodman (1911 – 1972), anarquista sociólogo, poeta e escritor nascido nos Estados Unidos. Goodman é atualmente lembrado como o autor do livro Absurdo Crescente (Growing up Absurd) e por sua militância pacifista durante os anos de 1960 tornando-se uma fonte de inspiração para a contracultura daquela época (N. do T.).
  21. Ivan Illich (1926 – 2002), filosofo anarquista nascido na Áustria, autor de uma série de críticas muito bem fundamentadas às instituições centrais da cultura ocidental contemporânea tais como a educação, o trabalho e o desenvolvimento econômico. No início de sua vida, Illich foi padre, mas rompeu com a igreja se tornando um de seus maiores críticos (N. do T.).

Sobre cidades e comunidades anarquistas

Por Gilson Moura Henrique Junior

A relação entre anarquia e superação do estado é algo que compõe uma miríade de vertentes e opções. Dentre todas existem as que me parecem dominantes hoje e que compõe uma ópera de individualismo e misticismo, quase um elemento de constituição da elevação espiritual do ser anarquista, do indivíduo anarquista, e sua relação com o mundo.

A ideia de diferenciação do anarquista em relação aos demais ultrapassa os sinais pontuais presentes nas propagandas ideológicas que tratam quem não se alinha ao anarquismo como “zumbis” ou “escravos”, e segue a ideia de que ao se afastar do mundo se estabelece um “contra mundo” capaz de, por algum mistério inexplicável e jamais conscientemente estabelecendo um método de transformação, fazer com que todo mundo seja anarquista.

Essa ideia é presente em um sem número de publicações, páginas, fan pages e domina o lado virtual do mundo anarquista. É notório na virtualidade o método de propaganda ideológica que estabelece um projeto de agitação e propaganda da desqualificação da tecnologia, do mundo “normal”, das relações de poder e de todo um arcabouço de modos de vida e de pensamento como inferiores e limitados.

Se por um lado essa metodologia acerta na crítica à civilização, ela estabelece um projeto de contra hegemonia estéril que não constrói nenhuma metodologia prática de contra hegemonia concreta. Torna-se apenas um modo de vida que cria fantasias travestidas de práxis e que pouco oferecem de alternativas além do exemplo.

Essa crítica é fundamentalmente, e brilhantemente, trazida por Murray Bookchin e perfeitamente direcionada à ideia das zonas autônomas temporárias e da mistificação da retirada do mundo que cai como uma luva nas posturas anarquistas em voga.

Essa crítica é irmã da crítica ao fetiche da ferramenta estabelecido com sinal contrário contido na repulsa à tecnologia construída em torno do anarco primitivismo.

Ao estabelecer um sistema de crítica idealizada à tecnologia, no sentido de não estruturada numa lógica que analisa de forma refinada o processo tecnológico como inserido em contextos simbólicos e práticos que vão muito além da ferramenta em si, parte dos anarquistas abole o engenho como parte da transformação estrutural que buscam construir, ou seja, em última análise culpam a roda pela civilização.

Nesse meio tempo o mundo processa e estabelece parâmetros de debate e de exercício da dominação que exigem uma luta contra hegemônica para muito além da retirada do palco de parte dos atores.

Ou seja, não é que a comunidade de permacultura ou as zonas autônomas temporárias ou o louvor a um primitivismo idealizado cometam um erro universal em sua estrutura, apenas todos eles abdicam do enfrentamento cotidiano dos problemas das pessoas e das comunidades e do estabelecimento de parâmetros de pensamento e organização anarquistas no combate ao uso da tecnologia como ferramenta de dominação, do estabelecimento de paradigmas ecológicos nas organizações cotidianas, na estruturação de métodos usuais de refundação cultural a partir de elementos primários libertários, etc.

Um exemplo é a abdicação do uso de ferramentas de construção em permacultura como meios de influência em ocupações de terreno por sem tetos ou por ocupação de áreas rurais por sem-terra.

Além disso, as zonas autônomas temporárias, que é parte da influência dos movimentos Occupy mundo afora, tendem a serem elementos de fundamentação temporária de ações isoladas e não um elemento estruturado e metodologicamente estabelecido de ações de médio e longo prazo.

Tudo isso leva ao debate sobre a relação entre anarquistas e as cidades em um mundo onde a revolução urbana alcançou seu auge e estabeleceu um paradigma de ocupação urbana que supera pela primeira vez na história a população rural a partir de vinte e três de maio de 2007.

Se é correta a crítica às insustentáveis megalópoles e ao menos a busca por uma reforma urbana que as tenha como alvo para sua necessária descentralização redimensionamento, não é pela negação da urbe que teremos o processo necessário de refundação da ideia de concentração de pessoas.

Se é importante estabelecer um processo de paulatina redução das cidades ou migrações para cidades pequenas e medias, não se pode construir a partir disso a lógica de que pela ausência de alguns que tem meios de constituir esse processo, ele se resolve automaticamente.

É preciso lidar com as megalópoles a partir de suas periferias e da ausência de direitos e estrutura nelas. A base material da vida das periferias é inclusive parte do problema ambiental das megalópoles e não deve ser combatida apenas por sua negação.

Negar a megalópole não empondera e nem retira da miséria ou da falta de moradia os milhões de pobres nelas. Migrar pra comunidades livres das neuroses das megalópoles não resolve o impacto mobilidade urbana predatória na vida do mundo todo.

É fundamental estabelecer um processo de integração entre a ideia da sustentabilidade da permacultura com a resolução do problema do deficit de moradia nas mega, grandes e médias cidades.

É fundamental conceber as zonas autônomas temporárias como ferramenta de combate à lógica urbana de desocupação das praças, das ruas, do estabelecimento de zonas livres de pobres, da elitização dos espaços e da gentificação.

É fundamental estabelecer um processo que interligue as críticas à civilização como formas concretas de rediscussão dos parâmetros civilizatórios a partir da integração da perspectiva ameríndia, aborígene, africana e de outras etnias na concepção de vida, família, cidade, natureza e espaço público.

Pra isso é fundamental antes de mais nada sairmos da idealização hegeliana que acomete as ideias anarquistas a partir de um sem número de crossover teóricos que bebem no anarco individualismo e geram uma confusão dos diabos no estabelecimento de práticas anarquistas.

É fundamental produzir um acúmulo de práxis e teoria que rediscuta que transporte queremos nas cidades, que educação queremos nas cidades, que relação entre homem e natureza queremos nas cidades.

Em um mundo onde a dita natureza está se tornando mitologia, ser parte da expansão da ocupação humana em seu interior não me parece outra coisa senão o caminho da expansão das fronteiras do desenvolvimento produtivista travestida de douração de pílula naturista.

Em um mundo mais urbano que rural o fundamental é menos o isolamento idealizado espiritualista que nega a cidade e mais a integração nas inúmeras cidades, de todos os tamanhos, de perspectivas transformadoras de seu dia a dia. Ou seja, é prioritário refundar as cidades e a ideologia hegemônica nelas.

Para combater a carrocracia é fundamental o exercício da pressão para a ampliação de transporte público por trilhos movido a energia renovável e do uso de bicicletas.

É fundamental estabelecer parâmetros ecológicos para a construção de moradia que resolva o deficit habitacional.

É fundamental reler a cidade, entendendo que favela é cidade, periferia é cidade. É central discutir a descentralização habitacional, de decisões sobre energia e consumo, de debates sobre mobilidade urbana, de decisões sobre alimentação.

Para combater a concentração urbana é fundamental debater a descentralização urbana, da distribuição de alimentos; é preciso debater as distâncias entre a produção e o consumo; é preciso discutir o consumo e a relação com a tecnologia; é fundamental debater ciência, economia, cultura; É preciso nos livrar da hierarquização de direitos estabelecidos na distribuição econômica da população na geografia das cidades.

Como fazer isso se nos isolamos em comunidades ou estabelecemos uma ideia pirotécnica de anarquia como estilo de vida?

Enquanto construímos uma ideia de ecologia que rima como alienação pequeno-burguesa, outros coletivos se constituem como ferramentas concretas de enfrentamento ao estado e à institucionalidade e não construímos uma face ecológica para este combate.

Por que em vez de nos isolarmos uns dos outros não estabelecemos pontes que integrem o debate sobre a cidade ao debate contra hegemônico mantido por esses coletivos?

As cidades não serão enfrentadas ou reformadas com a ausência dos anarquistas nos debates e nas práticas de sua transformação.

Ao nos colocarmos como eco-anarquistas distanciados dos debates das periferias das grandes cidades construímos de tudo um pouco, menos o necessário meio de enfrentamento ecológico que pode levar à transformação do mundo.

Pra mudar o mundo é preciso menos negá-lo e mais mudá-lo.