Fonte: Vai dar pé
Na zona sul de São Paulo, a ocupação Jardim da União reúne mais de 800 famílias, conta com educação própria, reciclagem e pode sofrer reintegração de posse a qualquer momento
Por Henrique Santana
Fotos: André Zuccolo
O Jardim da União está há um ano e meio no distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo. Com 820 famílias distribuídas em quatro quadras, a ocupação se tornou uma pequena cidade autônoma. Com a falta de políticas do Estado, o número de famílias dobrou no decorrer do último ano. Hoje, conta com educação própria, reciclagem e agricultura.
A caminhada das famílias passou por uma violenta reintegração de posse em uma ocupação localizada no Itajaí, também no Grajaú, em setembro de 2013. Sem teto e sem terra, as cerca de 200 famílias que perderam os barracos – destruídos pela Tropa de Choque – passaram a ocupar o terreno do Varginha e fizeram o batismo: Jardim da União.
Mesmo com a função social que exerce, o Jardim da União pode sofrer reintegração de posse a qualquer momento. O terreno, ironicamente, pertence ao CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), empresa do governo estadual responsável pelo desenvolvimento urbano e de habitações populares para pessoas de baixa renda. As autoridades alegam que a ocupação se localiza em área de manancial e, por isso, deve ser desocupada.
Educação é nóis que faz
A creche “Filhos da Luta” foi a mais recente construção dos moradores, realizada em outubro (12) do ano passado e inaugurada no dia das crianças. A tarefa de cuidar dos mais novos é divida entre quatro mulheres, duas fazem o trabalho no turno da manhã e as outras duas à tarde.
Aldenira Amarante é conhecida por sua simpatia, o que lhe rendeu o apelido de Sorriso. Chega à creche no segundo período, já que de manhã vai ao Curso de Educação de Jovens e Adultos (Eja). “A creche foi construída com muita dificuldade. Todos os moradores ajudaram com mutirões. A gente tinha 17 crianças, esse ano diminuiu porque algumas foram chamadas para a escola”, conta a cearense, que tem três filhos cursando a faculdade graças às notas obtidas no Enem.
Sorriso diz que gosta de trabalhar com crianças e que, depois da experiência com a creche, pretende cursar pedagogia. Além de frequentar o Eja, Sorriso também vai às aulas de espanhol da ocupação, ministradas por Samuel, boliviano que também ocupa o terreno do CDHU.
Sandra de Moura, uma das coordenadoras da ocupação, ressalta que os moradores realizam trabalhos deixados ao léu pelo governo, como o coletivo de educação. A iniciativa conta com uma escola de futebol, aulas de capoeira e atende não só crianças da ocupação, como também de bairros vizinhos.
O Jardim da União não para por aí. Aulas de alfabetização, jiu-jitsu, cooperativa de costura e dezenas de hortas comunitárias também compõem o leque de iniciativas promovidas pela ocupação. A ideia é que as pautas se expandam em um projeto de educação popular promovido pelos próprios moradores.
“É uma tentativa de educação popular. Educar dentro da luta”, afirmou Carolina Moura, pedagoga e militante da Rede Extremo Sul, um ano atrás, quando a ocupação começava a ganhar seus moldes.
Eco-ocupação
Apesar de se localizar em área de mananciais, o Jardim da União está a frente de muitos bairros no quesito reciclagem. Lixo na rua não tem. Quando tem a comunidade cobra. “Tem que recolher isso aí. Se não vai entrar cobra na sua casa”, reclama Aricleiton, também coordenador, ao ver algumas caixas de madeira no meio da rua.
Sete pessoas trabalham na reciclagem, dois homens e cinco mulheres. Entre as tarefas, há o recolhimento do lixo e a divisão de materiais que vão ser reciclados. O resto dos moradores também participam do processo, organizando o despejo para facilitar a coleta. As poucas coisas que não servem para reciclagem são levadas para uma caçamba do lado de fora da ocupação e levados pelo caminhão da prefeitura.
Maria Aparecida é mais conhecida na ocupação como Cida, a “manda chuva” da reciclagem, brinca. “Se não fosse nóis aqui dentro, ia tá cheio de lixo. Porque nóis cata o lixo todinho e traz para cá”, conta.
A coleta se dá a cada dois dias, das 8h até às 12h. O dinheiro da venda dos materiais é dividido. Parte dele fica no caixa da ocupação e o resto é distribuído igualmente entre quem trabalha na reciclagem. Em média, os trabalhos rendem R$ 250 para cada envolvido.
As mercadorias saem da ocupação no caminhão de Bruno, também morador do Jardim da União. Ele não cobra pelo deslocamento e ajuda na venda de reciclados. “Se for pagar caminhão por fora, nóis não ganha nada. Só o deslocamento do material em um carreto custa R$ 40”, explica a “manda chuva”.
Cida morava antes em casa alugada, saiu porque não tinha condição de pagar, assim como muitos dos que vivem na ocupação. “Eu pagava R$ 450 de aluguel, fora água e luz. Com o salário que eu tinha não dava para se manter. Era eu, meu marido, filho pequeno e meu outro filho rapaz.”
A ocupante conta que atualmente sua situação melhorou. O filho mais novo vai para a creche de manhã enquanto a reciclagem funciona a todo vapor. A creche é a grande paixão de João Victor, atualmente com três anos. Aos sábados e domingos, sem os compromissos escolares, ele “chora e esperneia” e Cida tem que levá-lo até a creche para mostrar que está fechada.
Aqui não tem patrão!
A estrutura do Jardim União se diferencia de muitos movimentos de moradia, buscando quebrar as estruturas de hierarquização na luta. Toda quarta-feira, o salão de assembleias ganha vida. Os moradores se reúnem para discutir questões da ocupação e deliberar decisões em conjunto. Não existe pauta fixa, os próprios ocupantes que decidem o que será discutido.
A atual coordenadora, Sandra, pontua que todas as decisões são tomadas em conjunto. “Então, quando eu saio para trabalhar não faz falta, porque tem outra pessoa que pode tocar as tarefas”, comenta.
“A ocupação é uma responsabilidade de todo mundo. Um exercício que coloca dificuldades porque é muito mais fácil chegar alguém dizendo que manda. A gente não quer isso”, explica Guto, que também milita na Rede Extremo Sul. O movimento se divide em grupos de coordenadores rotativos, uma forma de todos participarem e entenderem mais a fundo o funcionamento da ocupação.
Mariano está no terreno desde a chegada dos moradores. No passado, trabalhava na roça e hoje cuida de uma bela horta na ocupação. Com um galo embaixo do braço e um pé de couve na outra mão, desabafa: “Na roça eu trabalhava para patrão e nóis aqui não quer ter patrão”.