Nós os Ecologistas, nós os Anarquistas

bookchin

Fonte: Protopia

Murray Bookchin

Hoje em dia, nossa relação com o mundo natural está atravessando uma fase crítica que não tem precedente na história da espécie humana. Estudos recentes sobre o “efeito invernal” (esfriamento global?) conduzidos nos Estados Unidos, demonstram que temos que encontrar desde agora a maneira de fazer diminuir a porcentagem de monóxido de carbono presente na atmosfera na qual vivemos. Caso contrário, não somente ocorrerão graves mutações químicas, como também a própria sobrevivência da espécie humana estará em grave perigo.

Não se trata nada mais do que de um problema de contaminação pelos venenos com os quais nos alimentamos. A alteração dos grandes ciclos geoquímicos poderia por fim à vida humana sobre este planeta. De minha parte estou consciente da necessidade de reagir imediatamente para neutralizar os processos que estão deteriorando a Terra. Sou totalmente solidário à muitos grupos ambientalistas, e nos últimos 30 anos tenho estado envolvido cotidianamente em atividades para a defesa do ambiente: contra usinas nucleares, contra a construção de novas estradas, contra a destruição do solo e o uso descontrolado de pesticidas e de biocidas, e pela promoção da reciclagem e de um crescimento qualitativo, não só quantitativo.

Estes problemas ambientais têm me preocupado por anos e décadas, tanto quanto atualmente continuam me preocupando. Estou de acordo com vocês sobre a necessidade de bloquear os reatores nucleares e de por fim à contaminação da atmosfera, das terras agrícolas e dos cultivos, ou seja, de libertarmo-nos dos venenos que se estão difundindo por todo o planeta e que põem em perigo a nossa espécie e toda a vida. Compartilho com vocês tudo isso, mas gostaria de ir um pouquinho mais além com nossos Plateamentos.

De fato penso que é essencial o empurrar sempre mais além o nosso questionamento, porque não podemos seguir pondo mais remendos (parches) aqui e ali que não resolvam os verdadeiros problemas. Possivelmente conseguimos um dia fechar uma fábrica que polui (inquina) a atmosfera. Mas no fim, o que conseguimos? Uma nova usina nuclear. Vivemos em um mundo baseado em intercâbios e contrapartidas, e seguimos nos comportando de acordo com essas leis. Definitivamente, passando de um mal maior a um mal menor, e de um mal a outro mal, seguimos piorando a situação geral. Não se trata só de uma questão de usinas para a produção de energia – por mais importante que elas sejam -, nem tampouco o problema dos gases poluentes, nos danos que causamos à agricultura, ou o congestionamento e poluição dos centros urbanos.

O problema é outro mais grave: estamos simplificando o planeta. Estamos dissolvendo os ecossistemas que se formaram em milhares de anos. Estamos destruindo as cadeias alimentares. Estamos rompendo as ligações naturais e levando o relógio evolutivo a um atraso de milhões de anos no tempo. Para a época em que o mundo era muito mais simples e não se encontrava a possibilidade de sustentar a vida humana.

Uma Visão Do Mundo Mais Coerente

Não se trata de nada mais do que a tecnologia, mesmo que o controle tecnológico seja muito importante. É claro que necessitamos de uma tecnologia baseada na energia solar e na eólica, e necessitamos novas formas de agricultura. Sobre isso não há dúvidas, estamos todos de acordo. Mas existem problemas de fundo, muito mais graves que aqueles criados pela tecnologia e pelo desenvolvimento moderno. Temos que buscá-los nas próprias raízes do desenvolvimento. E, antes de tudo, temos que buscá-los nas origens de uma economia baseada no conceito de “crescimento”: a economia de mercado; uma economia que promove a competição e não a colaboração, que se baseia na exploração e não na harmonia. E, quando digo viver em harmonia, entendo não somente o fazê-lo com a natureza, senão com as próprias pessoas.

Temos que empurrar até a construção de uma sociedade ecológica que mude completamente, que transforme radicalmente, nossas relações básicas. Enquanto vivermos numa sociedade que marcha em busca de conquista e poder, fundada na hierarquia e na dominação, não faremos nada mais do que piorar o problema ecológico, independentemente das concessões e pequenas vitórias que conseguirmos ganhar. Por exemplo, na Califórnia, doaram-nos alguns hectares de árvores, e logo derrubaram (talado) bosques completos. Na Europa estão fazendo a mesma coisa.

Prometem acabar com as chuvas ácidas, e as chuvas ácidas seguem caindo. Decidem por no mercado alimentos naturais, não contaminados por pesticidas e, efetivamente, a porcentagem de veneno diminui, mas o pouco que resta está constituído pelos venenos mais perigosos para o organismo.

Nosso problema não é só melhorar o ambiente, ou parar as usinas nucleares, bloquear a construção de novas estradas, ou a construção, expansão e superpopulação das cidades, a contaminação do ar, da água e dos alimentos. A questão que temos que enfrentar é muito mais profunda.

Temos que chegar a uma visão de mundo muito mais coerente. Não temos que nos por a proteger os pássaros esquecendo-nos das usinas nucleares, e tampouco lutar contra as usinas nucleares esquecendo dos pássaros e da agricultura. Temos que chegar a compreender os mecanismo sociais e fazê-lo de uma maneira coerente.

Temos que focá-los numa visão coerente, uma lógica que prevê a longo prazo uma transformação radical da sociedade e da nossa própria sensibilidade. Até que essa transformação radical comece, conseguiremos pequenas coisas, de pouca importância. Venceremos algumas batalhas, mas perderemos a guerra, melhoraremos algo, mas não obteremos nenhuma vitória. Hoje em dia, vivemos em um momento culminante de crise ambiental que ameaça a nossa própria sobrevivência, temos de avançar até uma transformação radical, baseada em uma visão coerente que englobe todos os problemas. As causas da crise têm de aparecer, claras e lógicas, de maneira que todos nós, juntos, possamos entendê-las. Em outras palavras, todos os problemas ecológicos e ambientais são problemas sociais, que tem a ver fundamentalmente com uma mentalidade e um sistema de relações sociais baseadas na dominação e nas hierarquias. Estes são os problemas que nos oferecem, atualmente, a grande difusão da cultura tecnológica.

Nenhum Presente Da Parte Do Estado

O que então têm que fazer os Verdes? Antes de tudo, temos que clarear as idéias. Temos de evidenciar as relações existentes entre os problemas ecológicos e os problemas sociais.

Temos de demonstrar que uma sociedade baseada na economia de mercado, na exploração da natureza e na competição acabará por destruir ao planeta. Temos de fazer o possível para entendermos que se queremos resolver de uma vez por todas nossos problemas com a natureza, temos de nos preocupar com as relações sociais. O povo tem de entender que tudo precisa unificar-se em uma visão de mundo coerente, em uma visão baseada em análise, em uma crítica e em soluções de nível político, pessoal e histórico.

Isso significa dar outra a força ao povo. Temos de criar uma cultura política com uma visão libertária não limitada a um projeto que o estado execute. Temos de criar uma literatura política, uma cultura política que leve pessoas à participação, libertando-se, autonomamente, deste tipo de economia, de sociedade e de sensibilidade.

No movimento feminista, começa-se a discutir o tema da dominação do homem sobre a mulher, principiando na própria da família. Nos movimentos comunitários, se fala de necessidades na “escala humana” e de dar força aos bairros, às comunidades, s regiões.

Estes são os argumentos importantes que se discutem nos Estados Unidos. Em relação à tecnologia, não temos de nos preocupar somente com que esta seja mais eficiente e renovável, temos de inventar uma tecnologia criativa, que não só leve consigo um trabalho mais criativo, mas que contribua para melhorar o mundo natural, ao mesmo tempo que melhore o modo e a qualidade de nossas vidas.

Porém, tudo isso não nos será alcançado desde cima. Não pode ser um presente que o Estado nos faça. Não pode traduzir-se em uma lei salpicada por um Parlamento. Tem de ser fruto de uma cultura popular, de uma cultura política e ecológica difundida pelo povo. Então não teremos mais de elaborar estratégias libertárias que conduzam as pessoas, o povo, a participar do processo de transformação social, porque se não são as pessoas a querer mudar a sociedade, então não se efetuará nenhuma mudança real ou radical. Quando falamos de Ecologia, falamos de participação no mundo natural. Dizemos que nós, como seres humanos, compartilhamos a esfera da vida juntos, com todos os demais seres vivos, e com eles buscamos aplicar um sistema de relações que nos faça partícipes do eco-sistema.

Mas eu lhes pergunto, queridos amigos, se queremos ser Verdes, se queremos “reverdecer” o planeta: Como podemos fazê-lo sem reverdecer a sociedade mesma? E se queremos reverdecer a sociedade: Como podemos pensar em uma participação do mundo natural a qual tome em consideração a participação popular na vida social?! Se, antes de tudo, queremos conquistar o poder para mudar a sociedade, lhes garanto que vamos perder. E não só porque alguns de nós, com toda a força de boa fé, se encontraram no Parlamento buscando fazer coalizões, fazer alianças, e usar o poder desde cima. De alguma maneira, eles também tornaram-se líderes espirituais aspirantes ao poder. Agora, raciocinam em termos de “males menores”, de um mal “sempre menor” que, no final, nos levará ao pior de todos os males. Isto é o que a história sempre nos ensinou.

Ecologia Profunda

Já é tempo de nós, os Verdes, propormos uma visão libertária, uma visão anarquista que leve as pessoas até um movimento Verde, que possa ser um movimento Verde no sentido mais profundo do termo. Um movimento Verde no qual não nos limitemos a levar adiante um projeto coerente e que unifique todos os problemas em um programa de análise comum, se não em um movimento no qual as pessoas sejam as primeiras protagonistas de sua história. Temos de apoiar a criação de uma sociedade libertária: ecolibertária. Isso é o que nos ensinaram as experiências alemãs e do Estados Unidos, alguns movimentos buscaram perseguir objetivos Verdes atuando “desde cima” através das leis, e sempre teve de ceder. Abandonar uma posição atrás de outra.

Com isso não quero dizer que não temos de nos empenhar em levar a cabo mudanças que possam atrasar ou bloquear a desagregação da sociedade atual e do mundo natural. Já sei que não temos muito tempo à nossa disposição. Os problemas são reais e envolvem também as duas gerações seguintes, e talvez nem sequer as duas gerações seguintes sejam decisivas pelo que diz respeito à sobrevivência de nosso planeta. De todas as formas, se não podemos dar às pessoas uma imagem unitária, uma visão prática e ética ao mesmo tempo, e que questionem as suas sensibilidades, então, vocês sabem quem vai tomar o poder neste caos?: a direita, os reacionários.

Hoje na América, a direita qualifica-se a si mesma como “a maioria moral”, e diz: – “Devolvamos seu significado à vida. Devolvamos seu significado às relações humanas.” E, por má sorte, o que sobrou da esquerda americana não faz outra coisa a não ser falar de “progresso”, de “centralizar” e de todas as mesmas coisas que o socialismo repete já faz 150 anos.

Primeiro temos que recuperar aquele campo sobre o qual as pessoas, o povo, está buscando a verdade, e não apenas a sobrevivência: uma maneira de viver que fale de qualidade e não só de quantidade. Temos de difundir uma mensagem coerente para todos, uma mensagem que seja para a base da sociedade, que a faça participante, que ensine o que significa ser cidadão e decidir autonomamente. Em outras palavras, temos que elaborar uma nova política, uma política Verde que desloque e substitua (reemplace) a velha política autoritária e centralista, baseada nas estruturas dos partidos e na burocracia. Isso é o mais importante que temos de aprender. Se não o conseguirmos, os movimentos verdes serão absorvidos pouco a pouco pelos movimentos tradicionais. O objetivo principal se dissolverá frente aos pequenos objetivos a curto prazo, de término rápido.

Os compromissos sobre “males menores” nos levará sempre a males piores. As pessoas dirão: O que é isso!? A mesma política de sempre! A mesma burocracia de sempre? O mesmo parlamentarismo que sempre tivemos? Porque eu deveria votar no verde? Porque deveria dar força aos verdes? Porque não deveria seguir apoiando a democracia cristã, ou o partido comunista, ou qualquer outro partido que garanta resultados imediatos, e satisfações imediatas? Nossa responsabilidade de Verdes da Europa – como na América – na Alemanha, como em tantas partes do mundo, e, sobretudo na Itália, já que vocês estão apenas começando agora, é de aprender o que está ocorrendo nos movimentos verdes já faz entre 5 e 10 anos.

Temos de nos dar conta que há que se substituir a velha política tradicional dos partidos, com uma política verde. Que há que se por energia em nível de base nas comunidades, que há que se elaborar análises que possam ir mais além do puro ambientalismo e dos outros problemas importantes aos quais nos dedicamos cotidianamente (pesticidas, energia nuclear, Chernobyl).

Temos de nos dar conta que esta sociedade não é somente dura e insensível, mas que suas próprias leis preveem a sua própria destruição, a destruição do planeta e das bases de sobrevivência humana. Temos de propor novas alternativas, novas instituições fundadas em uma democracia local, na participação local, que possa constituir um novo poder contra o Estado centralizado, que possa constituir um novo sistema de relações sociais, no qual um número cada vez maior de pessoas tome parte ativa em uma política realmente libertária. Esta é nossa única alternativa para evitar cair em uma mesma política de partido, corrupta e baixa, que torna as pessoas cínicas, indiferentes, sempre mais encerradas em suas próprias esferas privadas.

Um Momento De Transição

Deixem-me concluir com uma última consideração importante. Não só estamos para melhorar nossas relações humanas. Como o sistema de mercado, também o sistema capitalista segue simplificando não só a obra complexa de milhões de anos, mas também o espírito humano. Se está simplificando o espírito da própria humanidade, está se tirando a complexidade e a plenitude que contribuem para formar pessoas criativas. Então, nossa nova política não deve ter como único objetivo o de salvar o planeta e criar uma sociedade verde, ecológica, de caráter libertário, e uma alternativa política em nível de base. Há também que se ver além disso: se não se puser um fim à simplificação do planeta, da comunidade e da sociedade, conseguirão simplificar o espírito humano a tal ponto ( e com lixo do tipo de Dallas e de Dinasty”: e outros programas televisivos) que se acabará até mesmo com o espírito de rebeldia, o único capaz de promover uma mudança social e um reverdecimento real do planeta.

Hoje vivemos em um momento de transição, não só de uma sociedade para outra, mas também de uma personalidade à outra nova. Muito obrigado!!!

Guiné-Bissau: Luta por Água, Eletricidade e por uma Escola Libertária

(GUINÉ-BISSAU) CRÔNICA DE UMA LUTA POR ÁGUA E ELETRICIDADE; E PELO PROJETO DE UMA ESCOLA LIBERTÁRIA

FONTE: Portal Anarquista, Ex-Colectivo Libertário de Évora em 13 de Janeiro de 2015.

(Publicado originalmente na revista anarquista italiana ‘Rivista A’, nº 393, Novembro 2014 e traduzido e publicado depois no jornal ‘A Batalha’, nº 262, de Dezembro de 2014)

foto

Guiné Bissau: Quarenta anos de independência, pobreza e medo

por Vavá Oliveira

A Guiné Bissau tem o recorde negativo de se contar entre os países mais pobres do mundo: 65% da sua população vive no limiar da pobreza. Mesmo famílias que ganham um ou mais salários correm o risco de ter apenas uma refeição por dia. Na capital, Bissau, acresce o péssimo serviço da empresa pública que deve fornecer corrente eléctrica e água potável. Na ausência desta última o quadro sanitário piora e doenças como o tifo e a cólera são endémicas. Nos hospitais o serviço de saúde e os medicamentos estão sujeitos a pagamento. Não há escolas nem professores para todos, e mesmo após pagamento das taxas escolares o curso pode ser suspenso ou cancelado. O resultado é 50% de analfabetismo e uma esperança de vida que a custo ultrapassa os 45 anos.

No âmbito político o país vive sob a hegemonia do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) desde a independência de Portugal. Tal como noutros países da África subsaariana, uma élite nacionalista autóctone, espécie de pequena burguesia, assume o controlo do Estado e dos recursos naturais. Divididas entre si, as facções desta pequena burguesia combatem entre elas pelo controlo dos recursos públicos através de sucessivos golpes de Estado realizados pelos respectivos comparsas no interior das Forças Armadas.

A população, esmagada pela repressão em todas as mobilizações, esconde-se sob um véu de passividade e de silêncio (djitu ka ten). Assassinatos políticos, buscas e detenções arbitrárias, sobretudo nos últimos anos, estão presentes no imaginário popular e reforçam a cultura do medo.

Das acções espontâneas à auto-organização

O agravamento das condições de vida após o último golpe fez aumentar o nível de indignação, especialmente entre os jovens. O aumento do preço dos géneros alimentares, o crescente desemprego juvenil e a carência de sistemas sanitários e educativos conduziram a acções espontâneas. Em Fevereiro de 2014, por exemplo, quatro jovens afrontaram as forças de segurança golpistas num protesto relâmpago frente dos escritórios das Nações Unidas em Bissau. Protestavam contra a suspensão das lições nas escolas públicas e contra a carência de água e electricidade. Paralelamente, nos bairros, alguns jovens organizavam grupos para limpar e reparar as estradas.

Mas se as condições sócio-económicas provocavam a indignação das massas juvenis, o  modelo piramidal do associativismo, dirigido por jovens pertencentes à élite do Partido, os limites ideológicos definidos pelo Estado e pelo “buonismo” sugerido pela cooperação internacional (ONU, União Europeia, ONGs internacionais) constituíam um obstáculo à auto-organização. Próximos da miséria quotidiana e da cultura política oligárquica, um grupo de jovens pertencentes a associações de bairro de Bissau e de Catió decidiu constituir grupos de reflexão sobre o associativismo na Guiné Bissau.

“As pessoas pensam que aos políticos tudo é permitido. Considerando a pobreza da cultura política e o medo reinante na sociedade após a independência, as pessoas crêem-se impotentes para enfrentar problemas que elas mesmas poderiam resolver. Pensam que o Estado é tudo. Pouco a pouco tem-se a impressão que estamos começando a discutir isto com a comunidade. A Bandim Bilà, por exemplo, parte dos habitantes do bairro adquiriu maturidade e consciência de classe, querendo agir directamente para melhorar as condições da comunidade: “Não devemos esperar a intervenção dos políticos que nada fizeram”.(Ailton J.)

guiné bissau p1 cinza JPEGEm fins de 2013 a rádio e canais televisivos relatavam na Guiné Bissau as manifestações contra o aumento das tarifas dos transportes em cidades brasileiras. Dali em diante, durante os debates no interior de algumas associações guineenses, passaram a ser comuns perguntas quanto à forma de organização do Movimento Passe Livre (MPL). Por decisão autónoma, cinco associações (quatro da cidade de Bissau e uma de Canchungo) organizaram-se segundo o modelo e princípios dos “movimentos autónomos”.

“Seguíamos através dos media a revolta do povo brasileiro contra o aumento de tarifas. Isto demonstra que o povo brasileiro tem maturidade política e consciência dos seus direitos. Mas porque é que as pessoas não arriscam fazer o mesmo aqui na Guiné Bissau?” (Zelmar R.).

Em Setembro de 2013, terminadas as discussões teóricas, ficou no ar uma última questão: “O que nos impede de criar um movimento social autónomo que reforce as acções espontâneas da população e promova uma nova cultura política no país?” Os debates deram lugar a atividades de mobilização em bairros da capital. A partir de pedidos concretos dos bairros, criar-se-ia um movimento social cujo foco atendesse às principais necessidades do povo.. No princípio de Outubro uma trintena de jovens de diversas associações fundaram o Movimento Luz ku Iagu (Movimento Luz e Água).

“Antes de criar o Movimento fizemos uma série de ‘trabalhos de base’ em comunidade de Bissau para identificar as principais necessidades. As pessoas que intervinham apontavam sempre a constante falta de luz e de água. Em paralelo participámos numa formação organizada pela JACAF (Associação Jovens de Catió) sobre democracia directa e autogestão. No fim da formação, em que participou uma quarentena de jovens pertencentes a várias associações, realizou-se um djumbai (debate) para individualizar as principais dificuldades que afectavam os jovens no interior da sua comunidade. Todos os grupos presentes concordaram quanto à ausência e péssima gestão dos serviços de água e electricidade. Todos sabíamos que a água era um bem inestimável e essencial para a vida humana. Assim decidimos fundar um movimento para que haja electricidade e água.” (Ailton J.)

Desiludidos com as associações burocráticas e estimulados pelas vitórias de Junho de 2013 no Brasil, os membros decidiram dotar o Movimento com uma estrutura de gestão horizontal. Durante o primeiro ano de existência, as principais decisões foram tomadas colectivamente pelos membros reunidos em assembleia geral com base em em propostas elaboradas em comissões temáticas ou em propostas individuais.

guiné obras JPEGDebates sobre autogestão, democracia, acção directa… 

O primeiro princípio do Movimento é a autonomia. Um Movimento é autónomo a partir do momento em que toma decisões por si só. Somos independentes e não temos qualquer dependência dos partidos políticos. Assumimos, como princípios de base, a democracia directa, a igualdade de género e a autogestão. No MLI não existe líder. Construímos um movimento horizontal no qual as decisões são tomadas pela assembleia geral”. (Valdir K.)

“Ninguém actua em nome do Movimento. Para agir em nome do Movimento é necessário ter sido delegado pela assembleia geral. Quando a assembleia geral toma uma decisão, elege-se um grupo de pessoas que implicitamente se oferecem voluntariamente para realizar a actividade.” (Luizinho B.)

“Os membros do Movimento, presentes na assembleia geral interessados em aprofundar determinados temas, criam uma comissão específica. Uma vez criada a comissão, a sua primeira actividade será elaborar uma proposta a submeter à atenção da assembleia geral. Uma vez aprovada pelo plenário, será levado a cabo a sua realização pela comissão. Funciona assim” (Ailton J.).

Os debates sobre autogestão, democracia, acção directa e direito de manifestação tiveram um papel importante na escolha dos princípios de gestão interna no Movimento. A aplicação prática destes princípios sofreu logo no início forte oposição: um dirigente político juvenil acusou o Movimento de querer destruir “os valores da hierarquia” no país. Noutra ocasião, o presidente duma notável Associação exigiu a eleição dum presidente no MLI, chegando a ameaçar, recusar  reunir-se com os delegados no Movimento na ausência dum ‘responsável’ eleito.

“Esta forma de organização é recente na Guiné Bissau. Decidimos criar uma organização horizontal porque a ‘cultura dos representantes’ não está em condições de cativar as massas. Por exemplo, quando andávamos nos bairros a fazer trabalho político, só conseguíamos falar com o presidente ou com o secretário da associação local. As pessoas da comunidade permaneciam fora da conversação. Abandonamos esta estrutura para trabalharmos directamente com as pessoas, abrindo a todos a participação no processo em debate. Diga-se que mesmo as pessoas acham inusitada esta forma de organização. Estavam habituadas ao ‘representante’ e a não funcionar sem um presidente. Mas já estamos operando há um ano sem presidente e sem que isso apresente qualquer dificuldade. Porque um presidente pode decidir coisas que não exprimem a vontade da maioria. Connosco isso nunca acontece: Todos somos convocados para se tomar qualquer decisão”. (Jailton J.)

Na sua fase inicial, o Movimento Luz ku Iagu centrou-se na realização de três tarefas principais: a) divulgação do Manifesto programático do Movimento e a preparação da Campanha Nacional pelo Luz e Água; b) formação política dos membros do Movimento na «Escola de democracia directa» e no trabalho político entre a comunidade de bairro; c) mobilização da comunidade através de acções directas e constituição de núcleos de bairro.

“Actualmente o Movimento está trabalhando numa campanha por luz e água nos bairros de Bissau. Um dos objectivos é dar a conhecer à população o nosso Manifesto. O nosso propósito é que a EAGB (empresa pública de electricidade e água) passe a breve prazo sob controlo social. A termo médio, queremos criar dois conselhos nacionais, um para a gestão democrática dos recursos naturais e outro para a gestão da água e electricidade. Num tempo mais distante o objectivo final é que a EAGB passe a gestão popular tal como o garante a Constituição do país, nos seus artigos 2 e 3. O artigo 2 afirma que o povo pode exercer o poder político directamente ou através dos seus representantes. Enquanto segundo o artigo 3 os cidadãos têm direito a participar na gestão pública. Queremos que estes artigos sejam respeitados”. (Ailton J.). 

“Outra obrigação é a criação de núcleos nos bairros em que estamos trabalhando. Através destes núcleos podemos realizar acções de impacto imediato. Por exemplo, se uma comunidade tem problemas com o lixo, vamos trabalhar juntos para resolver o problema. Simultaneamente é uma maneira de fazer com que as pessoas tomem consciência dos seus próprios direitos.” (Zelmar R).

guiné  prof e crianças comunidade JPEGUma escola libertária em Bissau

Respondendo ao interesse geral em continuar o debate sobre democracia directa, autogestão e história das lutas sociais, o Movimento decidiu abrir uma escola permanente de formação para os seus membros. A escola autogerida por alunos e professores utiliza as instalações dum liceu citadino. Desde Março de 2014 oferece três temas: Ciência Política, Língua inglesa e História da Guiné Bissau, esta última ausente dos programas de estudo nas escolas públicas e privadas.

No início de 2014 os alunos duma escola conjunta e outros estudantes que não pertencem ao MLI fundaram o Colectivo Autónomo Estudantil (CAE), também ele uma organização com gestão de base. Afrontando a oposição da Confederação Nacional de Estudantes (CONEAGUIB), órgão burocratizado e heterodoxo, e sem temor das ameaças repressivas do Estado, em Maio de 2014 a CAE organizou uma assembleia estudantil das escolas públicas que realizou o primeiro protesto estudantil que se recorda desde há muitos anos. Com o resultado de que o Estado e dois sindicatos de docentes foram obrigados a ceder às exigências dos estudantes: retomar imediatamente as aulas e recuperar o ano escolar 2013/2014.

No interior das actividades realizadas, a acções directas empreendidas pelo MLI em conjunto com os habitantes dos bairros foram aquelas que mais estimularam a auto-organização comunitária. Uma clara demonstração de acções directas e autogestionárias  do Movimento é a Escola Comunitária de Bandim Bilà. Trata-se duma antiga escola primária pública situada num bairro central e pobre da cidade, que após ter sido abandonada pelo Estado e entregue ao saque, acabou por se tornar uma imensa lixeira. Foram anos de abandono, as crianças deixaram de frequentar a escola e casos de malária e cólera, incentivados por esta imensa descarga a céu aberto aumentaram, mas nem por isso a câmara de Bissau (a Prefeitura) removeu um único saco de lixo.

“Queremos repor em funções a escola para a autogerir com os habitantes do bairro. Para começar principiamos por libertar as salas de aula da imundície para dar vida à recuperação”.(Valdir K.)

«Afirmamos defender a autogestão por estarmos certos da capacidade dos trabalhadores e dos estudantes para autogerir as suas necessidades.” (Ailton J.)

Foram enviadas cartas às autoridades, assinadas pela comunidade, com o pedido de reactivar a escola e remover o lixo…Ninguém se dignou responder. Nem mesmo o Ministério da Educação se dignou dar sinal de vida. Este desinteresse não foi surpresa, dado que todos os filhos de políticos e da alta burocracia estudam na Europa ou no Brasil. Agora tocava aos residentes mais activos e aos militantes do Movimento organizar uma série de assembleias de bairro para discutir o que fazer. Não havia nada a perder esperando por resposta do Estado, a proposta do MLI foi que a comunidade devia encontrar uma solução independente.

“O Presidente da Câmara de Bissau (Prefeito) fez saber que não havia fundamento para qualquer actividade. Mas para onde vai o dinheiro dos nossos impostos? Entretanto sugerimos à comunidade a realização de acções para pressionar a autoridade.” (Ailton J.)

Na falta duma intervenção pública e receando a população vir a sofrer repressão pelas forças de segurança, cujos métodos bem conhecidos vão da prisão arbitrária ao espancamento, à tortura, não restava aos habitantes activos de Bandim Bilà e aos activistas do Movimento mais do que arregaçar as mangas, armarem-se de pás e baldes para limpar o lixo, pelo menos nas duas salas da antiga escola em melhor estado. O tecto de lâminas de ferro zincado, como o travejamento e as portas de madeira haviam sido removidas há anos, mas as paredes permaneciam de pé, assim como os ladrilhos do pavimento e a estrutura puderam ser reactivadas.

“Se se fala de política a uma comunidade esta retrai-se. Tem medo de partilhar a nossa ideia. É natural. Por isto privilegiamos trazer actividades práticas à comunidade. Isto demonstra ser a prática correcta para conquistar a confiança das pessoas”. (Zelmar R.).

Solidariedade internacional

Após esta primeira acção de limpeza seguiram-se outras, que reuniram sucessivamente novos membros na comunidade. E não acabaram aqui. Desde que entrou nas suas ideias recuperar a escola graças somente às duas próprias forças, os habitantes discutiram animadamente quanto à sua gestão. Não se tratava de construir uma escola primária mais, mas fazer com que se tratasse duma escola de excelência, que não fosse estatal nem privada, mas autogerida pelas crianças, pelas famílias e pelos professores. Trata-se dum desafio imenso, dado que a escola actual, assim como a única escola superior pública para a formação de docentes se baseava no ensino mnemónico e não participativo dos alunos. O que se pretende é implementar na escola de Bamdim Bilà uma didática indutiva, uma educação personalizada sobre os interesses dos alunos, que eduque para a utilização dos instrumentos de trabalho e de investigação em percursos autónomos. Ensinando a procurar respostas e soluções em processos acompanhados mas não impostos. Para isto ocorre uma ajuda concreta. Servem voluntários: professores, pedagogos, educadores experientes que venham acompanhar os docentes locais, privados de conhecimentos suficientes ou de material didáctico. Companheiros e companheiras docentes, docentes reformados ou que durante as suas férias dedicam um ou dois meses de voluntariado para formar jovens docentes guineenses da escola, acompanhando-os no processo de fazer quotidiano.

De momento são duas as Comissões que trabalham para a criação da escola Comunitária de Bandim Bilá. Uma é responsável pela temática didáctica e psico-pedagógica, dos conteúdos e a docência e da formação dos futuros docentes; a outra está encarregada de organizar a reabilitação dos edifícios (tecto, portas, pintura, serviços higiénicos e outros). Ambas são constituídas pelas famílias do bairro e militantes do MLI. Com as novas iniciativas das Comissões aumenta o número dos residentes que nelas participam. O objectivo é que a escola primária de Bandim Bilà se converta num centro comunitário no qual a população dê início à luta pela água e luz juntamente com outros bairros vizinhos.

“Agora estamos procurando fundos para reconstruir a escola. A escola será comunitária. A comunidade será a proprietária e orientadora da escola, não o Estado.” (Luizinho K.)

“Queremos que a escola seja comunitária para assegurar aos nossos filhos um nível de educação diversificado e excelente. Uma escola que não ensine a obedecer mas a pensar livremente. Para tal temos necessidade urgente da colaboração nacional e internacional que nos acompanhe na formação dos docentes”. (Zelmar R.)

Se agora, a escassa participação inicial deixou de ser fonte de preocupações, a falta de recursos económicos, de pessoal formado e de materiais didáticos são os pontos críticos a superar. É urgente encontrar fundos para continuar a restauração e a aquisição de materiais escolares de primeiríssima necessidade (canetas, lápis cadernos) dado que a  maioria dos materiais didácticos se não encontra na Guiné Bissau.

Para a aquisição de materiais de construção para restauro essencial, dado que a mão-de-obra será fornecida por voluntários da comunidade e do Movimento, necessitam-se 1.300.000 francos CFE (cerca de dois mil euros). Quem quiser contribuir de qualquer modo com a iniciativa da escola comunitária de Bandim Bilà, pode contactar através do endereço e-mail:cordajanis@gmail.com. Para mais informações aceder à página facebook do MLI: Movimentu Lus ku Iagu Guiné-Bissau

 

Núcleo Nova Santa Quitéria – PR

cleianova

Fonte: Movimento de Organização de Base

A Nova Santa Quitéria é uma ocupação urbana localizada no Bairro Santa Quitéria de Curitiba. Também conhecida como Portelinha 2 é vizinha da Portelinha e tem a situação do terreno igual a da comunidade vizinha. Desde 2006 centenas de famílias lutam por moradia digna e regularização.

Neste ano de 2014 os moradores estão construindo uma Associação de Moradores ativa e de luta, em que o MOB está presente.

diadas

Ciranda Espertirina Martins

ciranda2A partir do segundo semestre de 2014 o Movimento de Organização de Base – Paraná em conjunto com o Coletivo Quebrando Muros estão construindo a Ciranda Espertirina Martins. De segunda à sexta, das 8 hrs ao meio dia, militantes do MOB, CQM e voluntários organizam várias oficinas em conjunto com as crianças da Nova Santa Quitéria e Portelinha.

ciranda