Yasuní: A Luta Pela Defesa Da Vida

Originalmente publicado por Mª Cruz Tornay, em 18 de fevereiro de 2015, no site Revista Pueblos

As políticas do governo do Equador incorporam como ponto transversal a mudança da matriz produtiva e a transição energética para uma economia pós-petroleira que permita à nação alcançar os princípios do “bom viver” ou ‘sumak kawsay’. Entretanto, o estado pretende conseguir o bem-estar da população através dos recursos obtidos pela exploração petroleira da Amazônia, uma decisão que põe em risco a sobrevivência das populações indígenas e que levou as mulheres amazônicas a protagonizarem a luta pela defesa da vida e do território.

Emma Gascó.

O Parque Nacional do Yasuní se localiza na Amazônia ocidental equatoriana e é um dos ecossistemas com maior bio-diversidade do planeta. Encontra-se situado em um território ancestral do povo waorani e conta com a presença de povos em isolamento voluntário que habitam uma área declarada zona intangível.

Os efeitos que a atividade petroleira havia causado em outros territórios da zona levaram à mobilização a inícios dos anos 90 e, mais adiante, à criação de propostas que protegessem as zonas mais sensíveis da Amazônia, como o Parque Nacional do Yasuní. A denominada Iniciativa Yasuní ITT foi a alternativa idealizada pelas organizações ecologistas para manter sob terra o petróleo cru dos campos petroleiros de Ishpingo, Tambococha e Tiputini (ITT), e desta maneira apostar numa etapa de transição pós-petroleira.

Em sua chegada ao governo, em 2007, o presidente Rafael Correa assumiu de forma oficial a iniciativa ITT e a proposta foi apresentada publicamente à comunidade internacional. O estado equatoriano se comprometia a manter inexploradas de forma indefinida as reservas dos denominado Bloque 43 em troca de receber as doações equivalentes à metade dos lucros que teria recebido o estado pela exploração. Assim se manteriam intactos os mais de oitocentos milhões de barris de petróleo cru estimados da reserva e se evitaria a emissão de quatrocentos e dez milhões de toneladas de CO2.

A proposta defendida pelo governo equatoriano gerou uma grande expectativa a nível internacional, já que de forma inovadora implicava diferentes autores internacionais, públicos e privados, na busca de alternativas ao desenvolvimento extrativista dos combustíveis fósseis e na transição para um novo modelo energético que seja respeitoso com o meio ambiente. Entretanto, enquanto se realizavam campanhas de adesão à iniciativa ITT, o governo trabalhava em um “plano B” que contemplava a exploração do recurso petroleiro em caso de que a comunidade internacional não respondesse ao chamado.

Em agosto de 2013, o presidente da república deu por finalizado o prazo de espera para a captação das doações que confirmassem a viabilidade do “plano A” e anunciou a exploração feita pela empresa estatal Petroamazonas de um milésimo do Parque Nacional do Yasuní. Em seis anos só se tinha conseguido coletar 0,37 por cento dos 3.600 milhões de dólares que teriam evitado a exploração. Rafael Correa qualificou a decisão como a mais difícil de seu mandato, mas como a única via de lucros necessários para acabar com a pobreza do país.

Violência sobre o território e os corpos

Patrícia Gualinga luta há anos pela defesa dos territórios que constituem a Amazônia. Em 2002 era líder da Mulher e a Família do povo sarayaku. Junto a outros membros de sua comunidade, viajou para Costa Rica para processar ao estado equatoriano ante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por permitir e amparar a entrada de empresas petroleiras em seu território. Apesar de que a Corte foi favorável ao povo sarayaku e que o estado teve que pedir perdão, os territórios da Amazônia e a vida das comunidades que a habitam e seguem ameaçadas por projetos extrativos como o do Yasuní.

Depois de anos observando de perto a presença das empresas multinacionais, Patricia tem uma opinião muito clara sobre as consequências do “plano B” do governo: “A vida é incompatível com a extração de petróleo. Os povos em isolamento estão condenados à extinção”. A líder sarayaku se refere às comunidade dos tagaeiri, taromenane e oñamenane que habitam o sul do parque Yasuní que decidiram seu isolamento voluntário; uma situação que as faz vulneráveis em relação às decisões que se tomam no exterior: “Os povos que estão em isolamento não têm voz própria para falar. Sua voz é uma voz silenciosa que está pedindo que os deixem em paz e o governo deveria escutá-la ou se cometeria um etnocídio terrível”.

Patrícia é uma das muitas mulheres amazônicas que assumiram a luta pela defesa do território ao que estão unidas vital e espiritualmente. As mulheres dos povos afetados decidiram sair para apoiar os líderes que estavam sendo ignorado pelo governo e dizer que elas tampouco queriam a presença das multinacionais em seu território.

Se, como afirma patrícia, a vida é incompatível com a extração do petróleo, ainda o é mais para as mulheres que perdem sua autonomia pelo deslocamento das formas de vida tradicionais. Quarenta anos de exploração dos recursos da Amazônia é tempo suficiente para saber o que vem após a chegada das empresas: a militarização do território, a contaminação da água e do ar, o alcoolismo, a violência, a aparição de prostíbulos…

A presença de empresas extrativas implica a masculinização de um território no que se estabelecem relações assimétricas de poder, que começam pela presença das forças de repressão do estado com o fim de proteger o funcionamento da atividade petroleira. A entrada dos rapazes em postos da empresa provoca a perda dos ofícios tradicionais, o reforço das funções de gênero e o incremento das desigualdades entre os homens que recebem um salário e as mulheres que veem aumentada a dependência e as relações de subordinação em relação a seus maridos.

Embora cada projeto de exploração garantiu o uso da última tecnologia, não existem experiências nas que o território não tenha sido afetado de alguma maneira. Só neste ano, a empresa estatal petroamazonas é responsável de 19 vazamentos. A contaminação da água e do ar termina afetando a saúde dos membros da comunidade, que são atendidos pelas mulheres de acordo com as funções de gênero. E também são as mulheres as que devem buscar alimentos quando a chácara fica contaminada pelas águas tóxicas.

Mobilizações contra a extração

O presidente Correa chamou a Cadeia Nacional[1] para comunicar aos cidadãos a decisão tomada acerca do futuro de um dos ecossistemas mais diversos do mundo. As reações contra o “plano B” do governo e em defesa da Amazônia geraram um movimento cidadão que se lançou às ruas sob o nome de Yasunidos e que se transformou em alvo corriqueiro nas sabatinas do presidente.

Gabriela Ruales militava há muito tempo no ativismo ecologista e acabou participando dentro da organização do movimento cidadão Yasunidos. Gaby lembra como as marchas aconteciam cotidianamente, não só em quito, mas também em todas as províncias do país. Manter o nível de mobilização de pessoas que historicamente não tinham estado vinculadas no ativismo se transformou em um desafio que se soube canalizar com a campanha de coleta de assinaturas pela celebração de uma consulta popular que permitisse à população decidir sobre o futuro do Bloque 43.

Depois de seis meses de presença nas ruas, os yasunidos conseguiram recolher 750.000 assinaturas, cifra que superava amplamente as requeridas por lei para ser feita a consulta; mas o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) terminou reconhecendo só 350.000 rubricas em um processo que Gabriela não tem dúvidas de que foi fraudulento por causa do uso de um sistema de verificação não confiável e por causa dos contínuos episódios de abuso de poder para o coletivo cidadão.

O governo lançou duras críticas contra um movimento ecologista que a burocracia considerava alheio à realidade cotidiana que vivem os povos em uma das regiões mais deficientes em serviços básicos. Em todo este processo de desqualificações, as mulheres amazônicas também se organizaram em uma marcha de seus territórios até a capital do país para dar visibilidade a seu repúdio aos ataques aos Yasuní, embora o projeto se justifique pela obtenção de lucros econômicos para acabar com a “miséria” da zona, nas palavras do presidente.

O discurso da pobreza e o bem-estar

Uma vez que fica desestimado um plano que foi qualificado de “ingênuo” pelo presidente, o executivo apresenta o projeto de extração do bloco ITT como a única alternativa viável de lucros para reduzir a desigualdade social e aumentar a infraestrutura das cidades do oriente do país. Concretamente, se anuncia a obtenção de 18 milhões de dólares: os governos locais da Amazônia receberão 2,14 milhões, enquanto que 1,568 milhões se destinarão aos governos autônomos.

Com estes recursos fica garantida a construção, entre outras infraestruturas, das denominadas Escolas do Milênio, criadas para ampliar a cobertura e o acesso à educação e nas que estudam e residem os jovens que não tinham a possibilidade de continuar com seus estudos nas comunidades. Para o governo, projetos como este são parte da construção do sumak kawsay, o bom viver do cosmo-visão andina que está na constituição de 2008.

Mas não todas as comunidades estão de acordo com esta interpretação do pensamento indígena. Para Patricia Gualinga, é uma contradição que se utilize a exploração da natureza como meio para alcançar o sumak kawsay. “Se vê o bem viver no plano material, de forma desconectada do bem viver espiritual e de estar em harmonia com a Mãe Natureza”. Para esta líder sarayaku, a harmonia é impossível desde o momento no qual se fala de exploração petroleira e mineira porque “o sumak kawsay não existe se não se respeita a natureza”.

Patricia sustenta que o discurso sobre a pobreza das comunidades indígenas é uma “teoria racista” de quem chega a seus territórios para lhes dizer o que têm que fazer e decidir o que é o melhor para eles, sem se importar com seu contexto territorial e formas de vida. Como mulher líder de seu povo, sabe que existem carências e que são necessárias algumas infra-estrutura, mas isso não significa que sejam pobres: “o empobrecimento das comunidades chega quando temos que comprar água e comida porque as nossas estão contaminadas”.

Está justificado, então,”sacrificar” uma parte do território para que o resto da população consiga um maior bem-estar? Para as organizações ecologistas, a cifra de um milésimo dada pelo Governo sobre a afetação do parque é enganosa, já que só contempla o desmatamento necessário para levantar a infra-estrutura que exige a exploração do petróleo, mas não leva em consideração o impacto sobre o resto do ecossistema e nem o futuro das comunidades.

O movimento conservacionista se mantém na defesa da Iniciativa Yasuní ITT como meio de obtenção de recursos que permitam o desenvolvimento de fontes de energia renováveis, além do aumento de impostos aos lucros do capital e a economia de gastos governamentais que consideram prescindíveis.

Os povos indígenas contrários à exploração se opõem a um modelo de desenvolvimento extrativista que veem condenado ao fracasso. O povo sarayaku defende o conceito do kawsak sacha, selva viva, uma nova categoria que seja patrimônio da humanidade e que reconheça não só os direitos da natureza, como estabelece a constituição, senão a todos os seres protetores que nela moram, e na que fique excluída a perpetuidade da exploração do petróleo cru.

Para os povos dos territórios afetados, a defesa da vida na Amazônia deve transcender a luta dos povos indígenas e se converter em uma ação coletiva que ponha fim às relações de poder sobre o território e a vida.

NOTAS:

1. No Equador, comunicado oficial de retransmissão obrigatória e imediata para os meios de comunicação.