Correndo atrás do próprio rabo

rabo2

Por Gilson Moura Henrique Júnior

A história recente da esquerda no Brasil tem um quadro incrivelmente eloquente de uma mistura da crise de representação porque passam os movimentos contestatórios mundialmente em relação ao estado com a histórica tendência à burocratização da esquerda partidária (Não só pós-Lênin, mas que ganhou nova característica com o leninismo). Soma-se a isso a desmobilização que a esquerda partidária sofreu pós-PT na presidência e temos o caldo cultural e político do caos na identidade e ação da esquerda como um todo, mas especialmente a marxista leninista partidária, e dos motivos do aprisionamento político-partidário em torno de símbolos petistas e na órbita do partido dos trabalhadores.

São inúmeros os exemplos dessa relação maluca entre a esquerda e o PT e que explicam o motivo pelo qual a esquerda partidária não supera a crise de representação que atinge praticamente todos os países do mundo e não consegue dar resposta aos desafios postos à sua frente sem estar refém de um partido da ordem que no passado tinha majoritariamente uma orientação socialista. Os mais recentes são o mar de voto crítico em Dilma no segundo turno das eleições e após esta nomear um ministério horroroso, mas cantado em verso e prosa há anos que iria acontecer por qualquer um com um mínimo de percepção conjuntura, o alinhamento em torno de Lula (sim, a maior liderança do partido da presidenta Dilma) para “questionar Dilma sobre o ministério”.

Sim, isso mesmo, a esquerda se alinha em torno de Lula,do mesmo partido da presidenta e maior liderança dele, para ser oposição ao governo e fazer as vias de oposição de esquerda unida em frente numa aparente relação esquizofrênica do PT com seu governo sustentada por lideranças de movimentos sociais (E não duvido que por partidos da dita oposição de esquerda).

O que salta aos olhos é a miopia por opção diante de uma enorme manobra do PT, Lula,etc para não perder apoio na esquerda enquanto nomeia um ministério para a direita. A tática de relação pendular com as forças políticas que já existia em Getúlio e que Lula foi mestre em fazer acontecer em seu Governo (E que Dilma não consegue realizar inclusive por seu perfil tecnocrata), é exemplo sintomático do domínio absoluto que o PT tem no imaginário político da esquerda, toda ela, mesmo que mais fortemente presente na esquerda partidária.

E vai funcionar, Lula e o PT conseguirão com a nomeação do ministério e a manobra de oposição a si mesmo capitaneada por Lula controlar, pela esquerda e pela direita, o cenário político nacional por mais alguns anos, e não duvido que gerencie a crise econômica e política elegendo a velha raposa como presidente em 2018.

Vai funcionar porque o quadro de aprisionamento, que era um dado contornável em eleições e conjunturas passadas, agora foi deixado claro pra todo mundo após o apoio significado, eloquente, explícito que toda a esquerda deu ao PT nas eleições de 2014. Declaração de voto crítico não esvazia o apoio presente, cristalino, de gravação de vídeo pra propaganda eleitoral inclusive, que foi dado pela esquerda, de PSOL a PSTU passando inclusive por parte do movimento anarquista que não soube raciocinar diante da pressão da política do medo.

Essa política e o apoio recebido foi a maior vitória do PT nesta eleição, que definitivamente deixou como recado coletivo para a população que o PT é tão de esquerda quanto os anarquistas presos. O apoio deixou claro para a população que o PT é contra a direita representada pelo PSDB. Pior, após a eleição a esquerda entra inteira de cabeça, a partir das lideranças construídas por ela, no reforço da tática de cooptação e aprisionamento a partir do apoio entusiástico a Lula como oposição do Pt ao próprio PT.

Ninguém pôs a mão na cabeça pra ver o óbvio? Que se trata de antecipação da campanha com desvio das críticas para Lula e não pra presidenta, que assim pode desfilar sua política e ostentar seu pragmatismo tecnocrata sem maiores ruídos? O lançamento da oposição a si mesmo na mesma semana da nomeação do ministério tira inteiramente do foco midiático e político as desastrosas nomeações e põe como foco a figura de Lula. E as lideranças de movimentos sociais, elogiadas por todos os partidos da esquerda, propagandeadas por partidos como o PSOL como salvação das lavouras para a oposição de esquerda? Com esse endosso à manobra de Lula deixam claro: O PT ainda é nosso representante.

E por que isso acontece? Em primeiro lugar porque a oposição de esquerda, em um quadro de ampliação da capilarização e crescimento parlamentar esqueceu que era a crítica “responsável” da crise de representação petista e endossou o PT no segundo turno das eleições, com suas principais figuras públicas indo pra TV e internet declarar sem nenhuma discussão com a base que apoiavam Dilma. Ou seja, em plena crise de representação do PT a esquerda na oposição disse: O PT nos representa, mesmo que a contragosto. Bonito,né?

Mas calma! Vai piorar!

Fazendo isso e deixando a descoberto toda representação pela esquerda de contrariedade ao PT (Porque é bom lembrar que quem tem algo contra não vota, assim entende o coleguinha na rua) a própria oposição de esquerda que ainda tentava se livrar da crise de representatividade agora é parte dela. Bacana,né?

Pra piorar parte do movimento anarquista entrou na onda, deixou-se pegar no papel pega mosca da política do medo e parece não ter notado que estava reelegendo um governo homofóbico, proibicionista, anti-índio, antiecológico, que apoia a política de extermínio da população negra. Esqueceu-se isso tudo e foi na fé, esqueceu-se até que para anarquista o voto é muito mais que apertar botãozinho e fazer seu papel de participante da festa da democracia, e quem lembrava isso era “cartilhista”, era muito mais importante pra parte do movimento anarquista ser parte da contaminação da política do medo do que ser o esteio da crítica da pouquíssima diferença entre PT e PSDB. Essa parte inclusive é também amante da lógica de socialização na política, da política como convescote de idealistas em nome de um mundo melhor, pregou que a oposição à Dilma deveria ser “diferente” da com Aécio, como se ambos não fossem parte da ordem. A ordem que nem esperou o defunto da burrice coletiva da esquerda esfriar para reaprisionar companheiros anarquistas e autonomistas e depois sumiu, como via de regra todos os amantes do “voto crítico”.

Agora temos além de uma esquerda aprisionada, um movimento anarquista sendo preso dentro de um processo de ampliação da operação condor para muito além das fronteiras da América do Sul. São anarcos sendo presos e processados no Brasil, no Chile, na Espanha, Portugal, EUA, México, Grã Bretanha,etc. Sim, aprisionados pelo estado, este estado que se endossou ao propor coletivamente para toda a esquerda a suspensão da descrença em apoio à Dilma como “Mal menor” em relação a Aécio Neves.

E até pra nos defender perdemos o Chapolin colorado, único que nos defenderia dado que PSOL, PSTU, PT, todos majoritariamente fizeram e fazem parte do processo de criminalização de anarquistas e autonomistas sem pudor nenhum, e foram apoiados por parte do movimento anarquista nestas eleições de 2014. Ou seja, receberam um endosso, “continuem aprender nossos companheiros porque vocês são um mal menor em relação a Aécio, embora ambos, PT e PSDB, nos prendam e suspendam nossos direitos democráticos”.

Essa parte do movimento anarquista que optou pela acriticidade, pela suspensão da descrença pra seguir bovinamente a política do medo sem tentar usar o maldito cérebro ao menos uma vez pra ver holisticamente o tamanho da merda que estava fazendo merece ou não merece nosso parabéns?

Enfim, diante de um quadro da esquerda e anarquistas correrem atrás do próprio rabo como cães enlouquecidos por algum tipo de dor, coceira ou entorpecimento, temos um dos piores e mais brutalmente autoritários ministérios da história.

Para resistir ao que o governo aponta pelas nomeações que vai fazer precisávamos de movimento organizado ocupando as ruas e fazendo o país parar. Mas em vez disso temos o movimento abraçando o aprisionamento e a domesticação ao participar de uma frente única com o partido do próprio governo, ou seja, para que a resistência seja domesticada, se houver. Quem poderia fazer diferente deu um tiro na cabeça da própria militância que resistia diuturnamente à cooptação pelo PT ao ter suas principais figuras públicas endossando o governo Dilma no segundo turno de 2014.

Existem as Federações anarquistas e a maioria do movimento anarquista que resistiu à cooptação, embora este movimento também tenha sido abalado pela aderência dos anarquistas do terceiro milênio dos últimos dias, aqueles que mesclam Deleuze com Rui Falcão, ao dilmismo Coração Valente, que ao menso criaram no interior dos debates o vírus do medo. Mas estas federações e coletivos anarquistas são hoje o principal inimigo do Estado, são perseguidos, silenciados e só contam com o apoio das próprias mídias para sustentarem sua resistência.

O restante da esquerda optou por fazer eco à criminalização de anarquistas e autonomistas, ou se omitir diante disso, o que dá no mesmo.

Portanto, estamos sozinhos.

A esquerda partidária se juntou numa frente única burocratizada e construída em nome do pavor de ser atropelada por algo que não controla: a insatisfação popular. O quadro aponta para mobilizações fora de movimentos sociais organizados e partidos ou então danou-se.

Para isso nossas esperanças são nos movimentos contra os aumentos de passagem, as greves de garis, as mobilizações indígenas e quilombolas, as mobilizações contra o aquecimento global e a insistência para que lutadores não mais se organizem em partidos.

E mesmo essas esperanças enfrentarão um quadro de acirramento da repressão.

A vida será mais dura.

Quando o estandarte do sanatório geral vai passar?

World-Map-Drawn-in-a-Fools-Head

Por Gilson Moura Henrique Junior

A construção de um novo mundo é top 10 dos discursos de toda a esquerda e pós-esquerda (como alguns anarquistas se reivindicam). A questão é que o processo de transformação do mundo exige mais que discurso, exige postura, práxis, ação cotidiana.

Discursos radicais ou aparentemente radicais lançam perdigotos cotidianos nos rostos de interlocutores, disputando quem tem a maior quantidade de leitura possível pra bancar o argumento de autoridade mais poderoso sobre o outro. Enquanto isso o planeta, as mulheres, as pessoas trans, os negros, os índios, estes comem o pão que o diabo cuspiu depois de amassar, alienados que são dos sonhos de consumo revolucionários.

Neste processo lemos, vemos, ouvimos que o meio ambiente não faz parte da luta de classes, que os índios que se proletarizem para serem atores visíveis no processo revolucionário digno de nota pros meninos levados do processo revolucionário da emancipação do proletariado, que as mulheres precisam dosar sua independência para que não retirem dos homens o protagonismo produzido por Deus e bonito por natureza sobre todas as lutas.

Tudo isso porque a revolução é aguardada como um grande evento escatológico, um carnaval fora de época, e a população reagirá a ela, como quem e pega de surpresa por um processo onde é alheia, que só observa, ela, como muares absortos em um cotidiano que não pertence a nós, revolucionários iluminados.

Tá tudo muito bom e tudo muito bem, mas o que isso diz sobre os processos de transformação necessários para a emancipação da vida na terra e mesmo sua manutenção? Diz e grita eloquentemente que estamos fodidos.

Estamos fodidos porque os lutadores buscam revolucionar um mundo do qual evitam participar, dialogar, discutir e enfrentar. Preferem criar condições objetivas para que a população desperte, como que movida pela palavra mágica da ideologia de plantão e não pelo trabalho de base de convencimento cotidiano sobre a necessária libertação de todos nós.

“Revolucionários” que não se revolucionam, é isso o que a maior parte da esquerda é.

Sabe por que criam uma revolução como evento e esperam e duvidam como a população reagirá a ela? Por que querem ser reis de uma revolução sobre um povo imbecil que nada sabe. Nós, os intelectuais iluministas do milênio fodão é que sabemos tudo. Nós despertamos para “A Verdade” e vemos o futuro com clareza, coisa que o reles populacho jamais verá. E como o povo é burro e jamais verá, só a revolução caindo na cabeça deles é que perceberão o futuro, a verdade, a vida.

Sabe por que se índios não se proletarizarem e negros e mulheres não souberem seus lugares a revolução não virá? Sabe por que eles “dividem a luta”? Porque o sacrossanto saco escrotal da ideologia quer revolucionar até a página dois, porque revolução, no sentido crasso da palavra que mesmo sendo iluministas nem todos conhecem, é mudança demais.

Como um índio em sua silvícola sacação das paradas sabe mais que eu, sacrossanto moleque que leu meia página de um fragmento de texto de Lênin ou Bakunin enquanto tomava meu Toddynho? Jamé. Eu sei de tudo, eu que milito no sindicato pagando de über operário qualificado que li tudo e sei citar versículo a versículo de Malatesta, sei de tudo e mais um pouco, mesmo que ache a luta ambiental secundária porque meio ambiente é árvore e bicho, e a tal crise hídrica é invenção da burguesia.

Enquanto isso marxistas e anarquistas de galinheiro esperam a revolução chegar, e enquanto eles esperam o capital avança sobre corpos, mentes, peles, pretas, amarelas, brancas e vermelhas, a crise climática, ecológica, hídrica, etc, ataca de frente a população mundial, extingue a população animal e vegetal e aponta pro cadafalso do fim da existência de vida como a conhecemos na face da Terra.

Mas tá tudo bem, a revolução como evento escatológico e teleológico virá, impávida que nem Muhamad Ali! Vira que eles viram!

Enquanto isso tentar discutir com seriedade e sem uma tipo de concurso de tamanho peniano teórico sobre como mudar o quadro ecológico, político, étnico, de gênero e transgênero, de respeito à orientações sexuais e de processo civilizatório, se transforma num trabalho extremamente árduo, e um trabalho onde a quantidade de inimigos de classe vive também na aldeia gaulesa que se busca independente e que quer superar o império romano.

Enquanto se espera que o estandarte do sanatório geral passe, se discute muito, se tergiversa muito, mas se faz pouco pra construir um processo revolucionário ecológico, feminista, trans feminista, antirracista e classista, palavra essa que deveria conter tudo o anteriormente citado sem precisar de legenda.

A questão é que a revolução pode não vir.

Odeio dar más notícias, mas a crise ecológica não só já veio como aponta um limite pra ficarmos esquecendo todas as derrubadas de hierarquia necessárias para que a revolução ocorra. É um limite de tempo e um limite de tempo que não nos dá muito mais que setenta anos pra que a vida na terra não seja muito diferente da da lagosta prestes a ser comida.

A crise ecológica é parte da luta de classes, quem não vê, não vê por que não quer. A questão racial, de gênero, transgênero, de respeito e relação com outras culturas, também. Quem não vê, não vê porque não quer, e é parte do problema e não da solução.

Quando o estandarte do sanatório geral vai passar? Está passando, e somos nós.

Chomsky alerta sobre o colapso das democracias europeias.

517907645_14_o

Tradução: José Roberto Luna – Coletivo Anarquia ou Barbárie

Fonte: El Ciudadano

As democracias europeias chegaram ao colapso total, independentemente do espectro político dos governos, pois quem toma as decisões são os dirigentes e burocratas de Bruxelas não eleitos, afirmou sexta passada em Roma o filósofo estadunidense Noam Chomsky.

Ao participar do Festival das Ciências no Auditório de Roma, Chomsky advertiu que com a destruição das democracias no velho continente se seguirá até as ditaduras. Em particular, opinou que na Itália a democracia desapareceu quando em novembro de 2011 subiu ao governo o ex-comissário europeu, Mario Monti, designado “pelos burocratas de Bruxelas” e não pelos eleitores, em referência à Comunidade Europeia (CE).

Mas disse que o fenômeno é universal e que a sociedade atual vai caminhando para uma plutocracia.

“Até o Wall Street Journal descreveu que a democracia estadunidense está na borda do colapso, pois todo governo, seja de direita ou de esquerda, seque a mesma política, decidida por grupos de banqueiros e burocratas”, afirmou.

Segundo Chomsky, tanto nos Estados Unidos, como na Europa a agenda política é ditada pelos interesses particulares de grandes grupos financeiros e bancários, que têm como objetivo principal a destruição do sistema de previdência que foi uma das principais conquistas europeias do pós-guerra. Disse que o conceito foi muito bem sintetizado pelo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, quem em uma recente entrevista reconheceu que o contrato social morreu. “Isto quer dizer que a política só serve para enriquecer os banqueiros”, afirmou o também linguista.

Atentou que até a internet e os novos meios, espaços e linguagens inovadores que para muitos poderiam contribuir para romper o círculo vicioso do poder, trazem perigos. “Me parece que frequentemente os novos meios de comunicação levam para uma visão mais estreita do mundo, porque as pessoas são atraídas pelos meios que expressam exatamente sua mesma concepção das coisas”, disse. Explicou que enquanto os diários ainda podem apresentar opiniões diferentes, em um blog pela internet existe somente uma. “Depende muito de como se usam estes meios de comunicação. Podem ser um bem ao ampliar nossos horizontes, mas também um mal”, sintetizou.

O linguista também se referiu ao neoliberalismo como “um grande ataque contra a população mundial, o maior ataque ocorrido nos últimos 40 anos”.

Preconceito lingüístico: uma introdução sobre a língua e relações de poder na sociedade

Neste texto, pretendo tratar de uma discussão pouco realizada. Embora conste na declaração de direitos humanos o direito à língua, essa forma de opressão é bastante ignorada pela esquerda, sendo restrita às reivindicações de acadêmicos da lingüística.

Não pretendo, entretanto, me aprofundar nesse assunto tão amplo, mas apenas trazer breves explanações introdutórias para a divulgação desse assunto.

letras

  1. A língua e o indivíduo

Por muito tempo se acreditou que a língua fosse um instrumento do ser humano usado para comunicação. Essa visão, apesar de muito difundida, é reducionista e simplista. A língua possui uma ligação muito mais complexa com o indivíduo.

Chomsky, na minha opinião o maior lingüista que já pisou nessa terra, trouxe uma visão diferente para a relação entre língua e sujeito, que transcrevo a seguir: “[…] a linguagem humana é livre de controle de estímulos e não serve a uma função meramente comunicativa, mas é antes um instrumento para a livre expressão do pensamento e para a resposta apropriada às novas situações. […] O resultado é uma linguagem humana que serve primordialmente como órgão do pensamento, como meio de chegar ao pensamentos reflexo e só secundariamente serve à finalidade de comunicação social”. Em suma, Chomsky concebe a língua como algo inato à natureza humana, isto é, geneticamente determinado à raça humana; é algo intrínseco a nós, que nos diferencia dos animais, nos ajuda a construir o pensamento e o mundo subjetivo. A língua nos constitui.

Para que melhor seja ilustrado, imagine que você, leitor, está numa cabine escura e começa a ouvir uma voz que narra uma história. A partir daquela voz, é possível deduzir sexo, idade, grau de escolaridade, classe social, tribo urbana, cor etc. do falante. A língua é uma espécie de cartão de visitas. Se tivermos isso em mente, começaremos a entender que a repulsa por um modo de falar nada mais é que uma repulsa pelo tipo de indivíduo que a usa. Chamar um modo de falar de “errado” é chamar seu falante também de errado; é não lhe garantir existência ou relevância. Por isso se deve considerar amplamente tal discussão, pois, ainda que muitos ignorem, é uma forma de opressão contundente.

  1. As variações lingüísticas

Este autor que lhes escreve é um recifense. Se o leitor morar, por exemplo, no Rio Grande do Sul, com certeza terá uma maneira de falar diferente da minha. Muitas palavras terão uma pronúncia bastante diferente, como “sal” ou “tia”. Também conhecerá palavras que me são bastante estranhas. Pois bem, essas diferenças dentro de uma mesma língua se chamam variação lingüística. Essa variação não se dá apenas em relação à região onde vive o falante, mas também em relação à classe social, sexo, idade, entre outros fatores.

Maurizio Gnerre, em seu livro Língua, escrita e poder, diz que uma variante vale tanto quanto vale seu falante na comunidade. Observe, no exemplo a seguir, como esse preconceito é discreto: “tia” em São Paulo é dito com som de “tch” (como em tchau). Isso é completamente aceito, mesmo que nas demais localidades se pronuncie um “t” diferente (como o de touro). Em contrapartida, quando algum falante ouve a variação “tchurma”, ri e zomba sem dificuldade. Isso se dá porque “tchurma” é usado pelas classes mais baixas da sociedade, mesmo trazendo uma variação de som igual à paulista. Os exemplos não são escassos e podem ser observados diariamente. O preconceito lingüístico, deve-se frisar, não é lingüístico, mas social. Só é considerado errado aquilo que é típico das minorias.

  1. Gramática tradicional

A gramática tradicional (doravante GT) constitui uma compilação de regras do “bem dizer”. É uma espécie de guia de como usar sua língua. Possui o objetivo de prescrever regras a serem seguidas no uso da língua. A GT, que a priori estava relacionada à língua escrita, se estende à modalidade oral e a qualquer situação comunicativa. Se sustenta, também, no mito de que a língua é um caos.

A primeira gramática prescritiva no ocidente surgiu na Grécia antiga, ainda com o mito da existência de uma língua-mãe e ideal, criada por um adão mítico, que possuía o real significado das coisas, mas esse valor foi se perdendo pelo tempo (proposta de Platão). Essa gramática contemplava a variante falada pelos usuários cultos da aristocracia ateniense; desde já seu caráter opressor pode ser visto. Essa tradição foi até Roma, onde surgiu o termo “barbarismo”, para designar os “erros” cometidos pelos bárbaros que utilizavam o latim (denominado vulgar). As regras, principalmente ortográficas, são extremamente arbitrárias e ambíguas. Por que o som “s” é representado por tantas letras (a saber: x, c, ss, ç, s, xc, sc)?

A GT guarda em sua essência um caráter discriminatório, legitimador da variante de prestígio social. Quando dizemos que tal coisa é errada porque na GT é dito algo contrário, estamos, automaticamente, dando validade a essa opressão.

Também é preciso lembrar-se do prestígio da escrita sobre a fala, mas isso é assunto para outro texto.

  1. A gramática interna

Um mito de que a língua é um caos, sem regras definidas e que pode acabar caso não conte com a ajuda dos bondosos Pasquales é bastante difundido. A isso não é muito difícil se opor, pois basta lembrar de que pessoas sem nenhuma escolaridade conseguem se comunicar normalmente em sociedade. É preciso entender que a língua já possui regras internalizadas pelos seus falantes. Ela não funciona em meio a um caos, mas segue regras rígidas. E, na verdade, estudos recentes apontam que a língua dita “errada” é mais regular e lógica que a língua gramatical, cujas regras e exceções já se perderam no tempo.

Qualquer falante responderá que frases como (1) não lhe fazem sequer sentido, assim como jamais produzirá uma semelhante.

(i) para foram meninos o casa.

Tal fato apenas corrobora que já possuímos regras internalizadas que regem a língua. Essas regras, como se sabe, não são rígidas e estão sempre em mudanças, assim como tudo o que é natural e humano. No caso de (II), por exemplo, a mudança decorre de uma economia lingüística.

(ii) Os menino foi pra casa.

Sabemos que no português o determinante (artigo) traz as informações de gênero e número do substantivo. As flexões ocorrem primeiramente nele. Tal fato se comprova quando qualquer falante compreende que em (II) mais de um menino foi para casa. A queda do “s” plural se dá pela redundância na estrutura sintática. O falante não sente mais necessidade de marcar o substantivo no plural porque já o faz no determinante e assim é entendido o que pretende expressar.

Essa mudança não se dá no meio individual, mas no meio social.

Podemos concluir, então, que as mudanças estigmatizadas não possuem nada de grotesco ou ignorante; são, na verdade, câmbios regulares que aprimoram a capacidade comunicativa da língua.

  1. Vale tudo?

Um dos argumentos falaciosos utilizados por quem critica tais fatos é de que se nada é errado, se não houver um padrão, ninguém se entenderá mais. Um astrólogo conhecido por dar palpites na filosofia dá a entender que os que não possuem o domínio da norma culta são preguiçosos. Ele diz que na Espanha e na França não há esse tipo de problema porque as crianças são, desde cedo, iniciadas na leitura.

O primeiro argumento mostra-se incorreto em dois pontos: nunca se defendeu o fim da GT e as variações não podem ser controladas.

O que se defende é o conhecimento dos contextos comunicativos. Em contextos formais a língua deve ser formal, isto é, deve seguir a norma culta. Já em contexto informal, a língua pode flexibilizar essas regras sem nenhum problema. Ninguém é obrigado a escrever no estilo acadêmico. É até estranho quando alguém fala de modo pomposo numa conversa espontânea de amigos. Pede-se apenas que essas situações sejam compreendidas e que, em caso de desvio, o falante não seja zombado como o é hoje em dia. Pede-se, também, que não se estigmatizem formas características da língua das minorias, por motivos amplamente citados acima.

Outro ponto a ser observado é que, no fim das contas, cada um fala de seu modo e nenhuma gramática poderá conter essas variações. Entretanto, faz-se necessário, por questões pragmáticas, que haja um padrão a ser seguido na escrita. Repito: nunca se defendeu o fim da gramática.

Sobre os casos na Espanha e França, fica mais do que claro que isso é pura ingenuidade ou má fé. Só quem não conhece a realidade desses países pensa assim. Na frança, há muito tempo atrás, já se falava em “fim do francês”. Na Espanha, bastam apenas alguns minutos de conversa e verá que os desvios gramaticais são bastante comuns, assim como o preconceito.

  1. Considerações finais

Como pôde ser observado, os pontos dessa discussão foram expostos de forma bastante superficial, para que sirva apenas como uma introdução ao assunto. Expor todas as reflexões contidas nesse tema tão vasto seria extremamente cansativo e impossível para apenas um texto. Lembro, porém, que virão outros textos, com a mesma problemática, que focalizarão e aprofundarão o leitor em outros tópicos diversos da relação entre língua e sociedade. Por ora é só. Este autor se despede e agradece a atenção.