A Comuna de Paris segundo Louise Michel

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Por Samanta Colhado Mendes, bacharel e licenciada em Historia pela Universidade
Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (Unesp) e mestre em História e Cultura Social pela mesma universidade; é pós-graduanda lato sensu em Revisão de Texto.

Resumo:
O presente trabalho visa entender a Comuna de Paris de 1871, que em 2011 completa 140 anos, sob a perspectiva de seus próprios sujeitos históricos, ou seja, buscamos esgatar a memória desta experiência histórica através das memórias e relatos de seus próprios atores. Para tal, estudamos a anarquista Louise Michel, figura central desse texto, que lutou pela Comuna desde suas raízes, no ano de 1870 com a deflagração da guerra franco-prussiana, até a hecatombe final, em maio de 1871.

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A Comuna de Paris (Kropotkin)

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Fonte: Protopia

No dia 18 de março de 1871, o povo de Paris levantou-se contra o governo que desprezava e detestava e declarou que Paris era agora uma cidade independente, livre e dona do seu destino.

Essa derrubada do poder central aconteceu sem a costumeira encenação teatral que normalmente acompanha as revoluções. Não houve tiros e o sangue não chegou a correr sobre as barricadas. Quando o povo armado saiu às ruas, os governantes fugiram, as tropas abandonaram a cidade e os funcionários civis refugiaram-se apressadamente em Versalhes, levando tudo o que podiam. O governo se evaporou como uma poça de sangue estagnado em meio à brisa da primavera e no dia 19 de março Paris se viu livre da sujeira que a havia maculado, sem que tivesse corrido quase nenhuma gota de sangue de seus filhos. Entretanto essa mudança assim obtida deu início a uma nova era na longa série de revoluções pelas quais os povos começavam a trocar a servidão pela liberdade. Sob o nome de “Comuna de Paris”, nasceu uma nova idéia que havia de se tornar o ponto de partida para revoluções futuras.

Como acontece sempre, essa idéia não tivera origem no cérebro de um individuo isolado, nem era fruto das reflexões de um filosofo. Ela surgiu do espírito coletivo, nasceu no coração de toda a comunidade. Mas a princípio era algo vago e muitos daqueles que agiram e deram suas vidas para defendê-la não a viam com os mesmos olhos com que hoje a vemos. Eles não percebiam o alcance da revolução que haviam criado ou as possibilidades do novo conceito que acabavam de pôr em prática. Só depois é que começaram lentamente a entender suas conseqüências. Só mais tarde, quando começaram a refletir sobre o novo conceito é que ele se tornou mais claro e preciso e a beleza, justiça e importância dos resultados obtidos puderam ser avaliados.

Durante os cinco ou seis anos anteriores à Comuna, o socialismo ganhara novo alento graças ao rápido desenvolvimento da Associação Internacional de Operários. Em suas filiais regionais ou durante os congressos que realizava, os trabalhadores da Europa se encontravam e trocavam idéias sobre a questão social, algo que nunca tinham feito antes. Entre aqueles que percebiam que a revolução social era inevitável e que se preparavam ativamente para vivê-la, surgiu um problema que deveria ser resolvido antes de qualquer outro: O atual desenvolvimento da indústria forçará a eclosão de uma grande revolução econômica; essa revolução abolira a propriedade privada, fazendo com que todo o capital reunido pelas gerações pregressas passe a ser um bem comum a todos.

Após essas mudanças no sistema econômico, qual seria a melhor forma de organização política? “Não poderá ser uma agremiação apenas nacional respondeu a Associação Internacional mas deve estender se além das fronteiras artificiais e de todos os limites naturais.” Logo essa idéia grandiosa apossou-se do coração e do cérebro dos homens e, embora venha sendo perseguida desde então pelos esforços conjuntos de reacionários dos mais variados tipos, permanece viva ainda hoje. E quando as vozes dos povos em revolta tiverem removido os obstáculos que impedem o seu progresso, ela ressurgira mais forte do que nunca… Mas ainda faltava descobrir quais deveriam ser os elementos que iriam compor essa gigantesca associação. A essa pergunta, foram dadas duas respostas que expressavam duas correntes distintas. Uma falava em estado popular; outra, em anarquia.

Os socialistas alemães defendiam a idéia de que o estado deveria apossar-se de todos os recursos e riquezas acumuladas, distribuindo-as entre as associações de operários e mais, que estes deveriam tomar a si as atividades de produção e comércio e, de uma maneira geral, todas as atividades da sociedade.

A isso os socialistas latinos, que tinham atrás de si uma grande experiência revolucionária, responderam dizendo que seria um milagre se tal estado pudesse um dia existir, mas que, se isso chegasse a acontecer, certamente ele acabaria por se tornar a pior das ditaduras. Esse ideal de criar um Estado todo poderoso e bom é apenas uma cópia de algo que existiu no passado, diziam, e confrontavam-no com a idéia de um novo ideal, a anarquia, isto é, a abolição total do estado, um sistema em que todas as formas de organização social, da mais simples à mais complexa, fossem obtidas através de federações livres, reunindo grupos populares de produtores e consumidores.

Até mesmo os socialistas mais liberais admitiram que a anarquia sem dúvida representava um tipo de organização bem superior àquela pretendida pelo estado popular. Mas, diziam eles, o ideal anarquista é algo tão distante, que não podemos perder tempo com ele agora.

Ao mesmo tempo, a verdade é que a teoria anarquista necessitava de uma forma de expressão que fosse clara e concisa, uma fórmula ao mesmo tempo simples e pratica, em que pudesse demonstrar suas origens e incorporar suas concepções, onde provasse que era apoiada por uma tendência que já existia antes entre o povo. Uma federação de associações operárias e grupos de consumidores que não levasse em conta as fronteiras e se mantivesse independente em relação aos estados já existentes ‘parecia urna idéia demasiado vaga: e mais, era fácil perceber que ela não poderia satisfazer totalmente a infinita variedade de exigências humanas. Era preciso encontrar uma fórmula mais simples, mais facilmente compreensível, que tivesse uma base firme e bem enraizada na vida real.

Se o problema se resumisse apenas a encontrar a melhor forma de elaborar urna teoria, poderíamos dizer que as teorias, como teorias, não são assim tão importantes. Mas enquanto uma nova idéia não encontra uma forma de expressão clara e precisa, a partir de fatos concretos, tais como eles existem na realidade, ela não conseguirá apoderar-se da mente dos homens. Nenhum homem se animará a mergulhar no desconhecido se não for animado por idéias positivas e claramente formuladas que lhe sirvam, por assim dizer, como um trampolim quando chegar o momento.

Quanto a esse momento, será preciso que a própria vida o indique.

Durante cinco longos meses, Paris esteve cercada pelos alemães. Durante cinco meses, ela precisou lançar mão de seus próprios ‘recursos vitais e de toda a força moral de que dispunha. Teve então idéia de sua capacidade de resistência e percebeu o que ela significava. Percebeu também que o bando de tagarelas que havia tomado o poder não tinha a menor idéia sobre como organizar a defesa da cidade ou sobre como promover seu desenvolvimento interno. Viu um governo que se opunha a todas as manifestações de inteligência daquela metrópole poderosa. Entendeu, finalmente, que qualquer governo é impotente para proteger-se das grandes catástrofes é incapaz de preparar o caminho para a evolução. Durante o cerco, a cidade vira seus defensores, os operários, sofrendo as mais terríveis privações enquanto os ociosos se regalavam em meio a um luxo insolente e, graças aos esforços do governo central, presenciara o fracasso de todas as tentativas de acabar com essa situação escandalosa. E cada vez que o povo demonstrava sinais de um desejo de libertar-se, o governo colocava novos grilhões na corrente. Essas experiências fizeram com que se chegasse naturalmente à conclusão de que Paris precisava libertar-se, tornar-se uma comunidade independente, capaz de satisfazer sozinha todas as aspirações de seus cidadãos.

Mas a Comuna de Paris não podia ser mais do que uma primeira tentativa. Iniciada ao término de uma grande guerra, espremida entre dois exércitos prontos a dar as mãos para esmagá-la, ela não se atreveu a enveredar pelo caminho da revolução econômica. Não iniciou um processo de expropriação do capital ou de organização do trabalho. Não soube ao menos avaliar os recursos da cidade. Também não conseguiu romper com a tradição de um governo representativo, nem procurou realizar dentro da comuna, o mesmo tipo de organização que, partindo do simples, chegas- se ao mais complexo, e que fora instaurada externamente pela proclamação da independência da cidade e a livre associação das federações.

E no entanto, o certo é que se a Comuna de Paris tivesse durado mais alguns meses, ela teria sido inevitavelmente levada pelas circunstâncias em direção a essas duas revoluções.

Não esqueçamos que a classe média francesa gastou quatro anos (de 1789 a 1793) em ações revolucionárias, antes que conseguisse transformar a monarquia limitada numa república. Deveríamos pois surpreender-nos ao ver que o povo de Paris não conseguiu ultrapassar de um salto a distância que separa uma comuna anarquista de um governo de espoliadores? Além disso, não devemos esquecer que a próxima revolução que, pelo menos na França e na Espanha deverá ser comunista, vai retomar o trabalho da Comuna de Paris no ponto que foi interrompido pelos massacres da soldadesca de Versalhes.

A Comuna foi enfim derrotada e sabemos muito bem como a classe média se vingou do susto que o povo lhe havia pregado ao tentar soltar as cordas que seus senhores mantinham em torno dos seus pescoços. Isso veio provar que a sociedade moderna é, na verdade, composta por duas classes: de um lado, o homem que trabalha e cede mais da metade daqui- lo que produz aos que detêm o monopólio da propriedade e que, no entanto, parece indiferente aos males que os patrões podem fazer-lhe; de outro, o ocioso, o espoliador que odeia o seu escravo e que está sempre pronto a matá-lo, como se ele fosse uma caça qualquer, um homem animado pelos mais selvagens instintos sempre que vê ameaçada a sua propriedade.

Depois de ter cercado o povo de Paris e fechado todas as vias de saída, o governo soltou sobre eles um bando de soldados embrutecidos pelo vinho e pela vida na caserna, homens que haviam sido publicamente instruídos para “acabar logo com os lobos e suas crias”.

Depois dessa orgia louca, dos corpos empilhados após esse extermínio em massa, veio a vingança mesquinha, o chicote, os ferros, os golpes e insultos dos carcereiros, a quase morte pela fome, enfim todos os requintes da crueldade. Poderá o povo esquecer esses fatos?

Derrubada mas não vencida, a Comuna renasceu. Já não é mais um sonho dos vencidos, acariciando na imaginação a bela imagem da esperança. Não! A comuna se tornou hoje o objetivo visível e definido da revolução que ruge sob os nossos pes. A idéia penetrou fundo entre as massas, que a recebe com gritos de entusiasmo. Contamos com a geração atual para fazer com que a revolução aconteça dentro da comuna, para pôr um fim ao ignóbil sistema de exploração nas mãos da classe média, para livrar o povo da tutela do Estado e iniciar uma nova era de liberdade, igualdade, solidariedade.

Dez anos nos separam do dia em que o povo de Paris derrubou o traidor que subira ao poder no crepúsculo do Império; por que será que as massas oprimidas do mundo civilizado ainda hoje sentem uma irresistível atração pelo movimento de 1871? Por que a idéia representada pela Comuna de Paris ainda fascina os operários de todos os países? A resposta é fácil. A revolução de 1871 foi, antes de mais nada, uma revolução popular, feita pelo próprio povo, surgindo espontaneamente da massa e nela encontrando seus defensores, seus heróis e seus mártires. E exatamente por ser tão “baixa”, a classe média jamais pode perdoá-la. E ao mesmo tempo, o que a tornava tão popular era seu caráter de revolução social, uma idéia certamente um tanto vaga, talvez inconsciente, mas ainda assim um esforço no sentido de obter enfim, depois de séculos de luta, a verdadeira liberdade, a verdadeira igualdade para todos os homens. Era o levante das camadas mais baixas buscando a conquista dos seus direitos.

Muitas foram as tentativas feitas para mudar o verdadeiro significado dessa revolução, representando-a como um simples esforço para retomar a independência de Paris e desse modo constituir um pequenino Estado dentro da França. Mas nada pode ser mais falso. Paris não procurou se isolar da França, nem muito menos conquistá-la pela força das armas; a ela não agradaria a idéia de permanecer encerrada dentro de suas próprias fronteiras, como uma monja num convento: o que a inspirava não era o espírito limitado do claustro. Se ousara reclamar sua independência, se tentara evitar a interferência do poder central em seus assuntos, foi porque vira nessa independência uma forma de elaborar com tranqüilidade as bases da futura organização política e de provocar uma revolução social dentro de seus próprios limites. Uma revolução que teria alterado completamente todo o sistema de produção e troca, dando-lhe como base a justiça; que teria modificado totalmente as relações humanas colocando-as em pé de igualdade; que teria renovado a nossa moral social baseando-se na igualdade e na solidariedade. Para o povo de Paris, a independência da cidade era apenas um meio, seu objetivo maior era a revolução social.

E esse objetivo poderia ter sido atingi-lo se a revolução de 18 de março tivesse seguido seu curso natural, se o povo de Paris não tivesse sido trucidado pelos assassinos de Versalhes. A verdadeira preocupação do povo de Paris, desde os primeiros dias de sua independência, foi encontrar uma idéia precisa e clara, algo que pudesse ser facilmente entendido por todos e que resumisse em poucas palavras o que era necessário para que a revolução se tornasse uma realidade.

Mas uma grande idéia não pode germinar num só dia, por mais rápida que seja a elaboração e a difusão de idéias durante os períodos revolucionários. Ela precisa sempre de um determinado tempo para que possa desenvolver-se, para que penetre na massa, transformando-se finalmente em ação e a Comuna de Paris não lhe deu tempo suficiente. Ela fracassou principalmente porque, como já observamos antes, há dez anos atrás o socialismo passava por um período de transição. O comunismo autoritário e semi-religioso de 1848 já não conseguia conquistar as mentes mais práticas e mais livres da nossa época. O coletivismo que tentará juntar o sistema de salários com a propriedade privada era incompreensível, despido de atrativos e cheio de falhas que dificultavam a sua aplicação na prática. O comunismo livre ou anarquista recém começava a tomar forma no cérebro dos operários e ainda não tinha coragem de provocar as críticas daqueles que defendiam o governo. Estavam todos indecisos. Os próprios socialistas, sem um objetivo definido em vista, não se atreviam a lançar-se sobre a propriedade privada; eles se iludiam com a desculpa que já impedira a ação de muitos outros em épocas anteriores: “Precisamos ter primeiro a certeza de que venceremos e só depois será possível ver o que pode ser feito”.

Certeza na vitória! Como se houvesse alguma forma de criar uma comuna livre sem acabar com a propriedade privada. Como se fosse possível vencer o inimigo quando as massas não estão diretamente interessadas na vitória da revolução, percebendo que ela poderá trazer bem estar moral, material e intelectual para todos! Eles tentaram consolidar a Comuna e só depois tratar da revolução social sem perceber que a única forma correta de agir seria consolidar a Comuna através da revolução social.

O mesmo aconteceu com respeito ao conceito de governo. Ao proclamar a Comuna livre, o povo de Paris proclamara também um princípio básico do anarquismo, ou seja, a derrubada do estado. Mas como o conceito de anarquismo recém começava a surgir, não tardou para que fosse contido, e logo o velho princípio da autoridade ressurgiu e o povo se outorgou um Conselho nos moldes dos conselhos municipais já existentes.

Entretanto, se admitimos que a existência de um governo central que regule as relações entre as comunas e algo totalmente desnecessário, por que deveríamos admitir que necessitamos dele para regular as relações mútuas dos vários grupos que constituem a comuna? E se deixamos que as próprias comunas diretamente interessadas decidam sobre as questões que interessam várias cidades ao mesmo tempo, por que recusar esse direito aos vários grupos que compõem cada comuna? Assim como nos parece desnecessária a existência de um governo fora da comuna, deveríamos também perceber a inutilidade de um governo dentro dela.

Mas em 1871, o povo de Paris, que já derrubou tantos governos, recém fazia a sua primeira tentativa de revolta contra o próprio sistema: conseqüentemente, deixaram-se levar pela admiração fetichista que os governos inspiravam então e criaram o seu próprio governo.

O resultado todos conhecem. Paris enviou seus filhos mais dedicados para a Câmara Municipal. Lá, perdidos entre pilhas de velhos documentos, obrigados a legislar quando o instinto lhes dizia que deveriam estar agindo entre a massa, obrigados a discutir quando era necessário agir, a acomodar-se quando a melhor política teria sido lutar e, finalmente, perdendo a inspiração que só é renovada pelo contato continuo com as massas, eles se viram reduzidos à impotência. Paralisados pela distância que os separava do povo – o centro e coração da revolução – eles próprios acabaram paralisando a iniciativa popular.

Assim, a Comuna de Paris, fruto de um período de transição, nascida sob a mira das armas prussianas, estava destinada a desaparecer. Mas pelo seu caráter eminentemente popular. ela deu origem a uma nova série de revoluções e pelas idéias que lançou tornou-se a precursora de todas as revoluções sociais. O povo aprendeu a lição e, quando surgirem mais uma vez na França os protestos das comunas revoltadas, ele já não esperara que o governo tome atitudes revolucionárias. Quando tiverem se libertado dos parasitas que os devoram, tomarão posse de toda a riqueza social disponível de acordo com os princípios do comunismo anarquista. E quando tiverem abolido totalmente a propriedade privada, o governo e o estado, irão se organizar livremente, de acordo com as necessidades indicadas pela própria vida. Rompendo as correntes, derrubando seus ídolos, a humanidade marchará em direção a um futuro melhor, desconhecendo senhores e escravos e venerando ainda os mártires que pagaram com seu sofrimento e o seu sangue naquelas primeiras tentativas de emancipação que iluminaram a nossa marcha pela conquista da liberdade.