Anarquismo, parlamentarismo e democracia, por Miguel Amorós

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Miguel Amorós

Fonte: La Haine

Quando durante a Revolução Francesa se tratou de instituir a democracia como poder do “povo” ou da nação – entendido como o poder do “terceiro estado” -, surgiram imediatamente graves problemas entre a maioria do tal “povo” e o Governo, nomeados como seus “representantes” eleitos.

A democracia popular baseada em clubes, seções e assembleias entrava em contradição com a democracia parlamentar jacobina. O Governo, a Convenção, as instituições nacionais, as leis e o sufrágio não garantiam a liberdade e a igualdade mais do que as classes possuidoras. Um setor radical dos “descamisados” de Paris (o povo parisino), os “Enragés”, no manifesto que apresentou na câmara de deputados no dia seguinte após ter sido votada a Constituição, no dia 25 de junho de 1793, afirmaria que: “A liberdade não é mais que um fantasma vão, quando um tipo de gente pode matar de fome a outra, impunemente. A igualdade não é mais que um fantasma vão, quando o rico, graças ao monopólio, dispõe do direito à vida e à morte sobre seus semelhantes”.

O experimento constitucional e parlamentar fracassaria devido à forte oposição entre os interesses das classes detentoras e os das classes populares. O “povo” não era mais que algo irreal. No parlamento não se manifestava nenhuma “vontade popular” senão os interesses da classe dominante. Não podia ter liberdade real sem igualdade econômica e a fonte de tal desigualdade radicava na propriedade. “O que é a propriedade? A propriedade é um roubo”, responderia Proudhon. E seguia: “a liberdade é igualdade, porque a liberdade não existe senão no estado social”. A questão da propriedade dividiu os democratas revolucionários e alcançou sua maior amplitude quando entrou em cena o proletariado e os “democratas sociais” – Marx, Proudhon e Bakunin se chamaram assim – identificaram seus interesses com os de todos os oprimidos. A tão desgastada vontade popular não seria outra coisa que não o interesse “da imensa maioria”, a saber, os operários. A “democracia social” equivaleria a um regime cujo protagonista principal seria a classe operária. Para uns, esse regime seria comunista. O jovem Marx acreditava que “o comunismo era a solução ao enigma da história”. Proudhon, em contrapartida, rechaçava as formulações autoritárias dos primeiros comunistas e se inclinava pela “organização das forças econômicas sob a lei suprema do contrato”, ou seja, pela propriedade cooperativa ou coletiva dos meios de produção, das “associações operárias organizadas democraticamente” e livremente federadas. Frequentemente, levaram-lhe pouco em consideração e o colocaram ao lado dos “utópicos”, isso quando não lhe tacharam de representante do “socialismo burguês”, tal como lhe qualificara injustamente Marx no Manifesto. Entretanto, Proudhon foi o primeiro que formulou uma crítica social especificamente proletária e a ele corresponde a crítica política do sistema parlamentar burguês mais incisiva, a que deu impulso ao ideário operário anarquista.

Para Proudhon, a autoridade chamada de Governo ou Estado, existente por cima da “vontade popular”, representava o mesmo despotismo dos reis, pois “o que compõe a realeza não é o rei, não é a herança; é o acúmulo dos poderes; é a concentração hierárquica de todas as faculdades políticas e sociais em uma só e indivisível função, que é o governo, este representado por um príncipe hereditário, ou também por um ou vários mandatários imóveis e eleitos”. A falha do sistema representativo estava na delegação de poderes, causa da separação entre governantes e governados: “Hoje mesmo, temos exemplos vivos de que a democracia mais perfeita não garante a liberdade. E isso não é tudo: o povo rei não pode exercer a soberania por si mesmo; está obrigado a delegá-la aos encarregados do poder. Se estes funcionários são cinco, dez, cem, mil, que importa o número ou o nome? Sempre será o governo do homem, o império da vontade e do favoritismo”. Se nenhum indivíduo reconhecesse mais autoridade que ele mesmo, se o povo inteiro quisesse realmente governar, não haveria governados. A impossibilidade de refletir-se a vontade do povo em uma autoridade delegada, exterior a ele, é o que forçava Proudhon a se declarar anarquista, partidário da abolição de qualquer forma de autoridade e chamar de “anarquia” o regime dos homens livres e iguais: “anarquia, ausência de amo, de soberano, tal é a forma de governo à que cada dia nos aproximamos”. A vontade popular somente podia se manifestar sem mediações, de modo direto. O governo do povo era uma falácia; se havia governo, não havia povo e vice-versa; se realmente um povo conseguisse se constituir, exercendo o poder diretamente, sem mediações, o governo não existiria. A anarquia era o governo de todos, e, portanto, o de ninguém: “a fórmula revolucionária não pode ser nem a legislação direta, nem governo direto, nem governo simplificado; a fórmula é nada de governo”. Bakunin contribuiu bem pouco para a análise proudhoniano. Partindo da premissa de que o governo tinha opção de ser verdadeiramente popular e representativo só se estava controlado pelo povo, como tal controle era fictício não existiu em nenhum país, concluía que a liberdade sob tal regime era irreal: “Todo o sistema do governo representativo é uma imensa fraude que se apoia nesta ficção: que os corpos legislativo e executivo, eleitos em sufrágio universal pelo povo, devem ou até podem representar a vontade do povo”. Esses poderes promoviam unicamente os poderes da burguesia. O sufrágio universal, dadas a desigualdade e a opressão em que se encontrava o povo trabalhador, era uma zombaria; votando, cada um elegia seu patrão. Devido a sua miséria, a sua falta de formação, à pouca disponibilidade de tempo, à ausência de informação, à inexistência de espaços de discussão etc., o povo não podia formular uma opinião geral e, por conseguinte, não podia utilizar o sufrágio universal “para a conquista da igualdade econômica. Sempre será de forma necessária um instrumento hostil ao povo, que de fato apoia a ditadura de fato da burguesia”. Malatesta chegou a dizer que “o direito eleitoral é o direito de renúncia aos próprios direitos”. O mesmo raciocínio circular há em Bakunin e Malatesta como em Proudhon: o governo não podia ser representativo porque a vontade popular não podia se formular através dele; si o fizesse, seria representativo, mas já não seria governo. A identidade entre governantes e governados, essência verdadeira da democracia, não podia se realizar mediante um governo parlamentar senão mediante sua abolição. As ideias proudhonianas de autonomia operária inspiraram os internacionalistas durante a Comuna de Paris (1871). Tanto Bakunin como o próprio Marx viram na Comuna a democracia proletária e a negação do Estado.

Na Espanha, país pouco afetado pela revolução industrial, e portanto, com um proletariado pouco desenvolvido, as ideias igualitárias e “socialistas” (contrárias à propriedade privada) foram filtradas pelos movimentos radicais da burguesia. A palavra “democrata”, em seus inícios, designava na política algo parecido com anarquista. No “Dicionário dos Políticos” (1855), do monarquista Juan Rico e Amat, dizia-se que “o democrata puro é inimigo acérrimo de tudo o que se relacione ao governo”; o democrata confiava na insurreição como método para alcançar seu objetivo, a igualdade política: “Se pertence à classe mediana, nunca usa “senhor”; sempre se chama fulano de tal apenas: gosta de tratar por “você” e de dar a mão aos de classe baixa, e nos pronunciamentos, chama de cidadãos os homens e de cidadãs as mulheres”. Uma fração dos democratas, os republicanos federais, trataram de conciliar o problema da mediação entre o povo e o Estado recorrendo à descentralização administrativa.

Nas palavras de Pi e Margall, tradutor de Proudhon: “Na atual organização, o Estado administra tudo; na federação, o Estado, a Província e o Município são três entidades igualmente autônomas, ligadas por pactos sinalagmáticos e concretos. Tem cada uma determinada sua esfera de ação pela mesma índole que os interesses que representa e podem todos moverem-se livremente sem que se entrechoquem”. A República Federal, governo do povo soberano, não seria mais do que a soma federada desses pactos. Mas para se constituir o povo primeiro teria que se romper o Estado monárquico, de forma que seus fragmentos autônomos decidissem livremente se confederarem. O partido federal, ao propugnar o desmembramento do Estado, se situava contra todos os demais partidos, mas mantinha distância do proletariado. Acreditava na harmonia das classes, respeitava a propriedade e era inimigo das greves e demais manifestações da luta social, e por isso bastou apenas que surgisse a Associação Internacional de Trabalhadores na Espanha para que perdesse o apoio dos militantes operários. Sua oportunidade histórica sumiu com o fracasso da Primeira República, a de 1873; não obstante, a ideia do município como célula da sociedade livre penetrou tão fundo como o pensamento de Bakunin, transmitido aos trabalhadores espanhóis pelos internacionalistas.

A distância entre As Cortes espanholas e a realidade social foi tão grande durante o século XIX que as massas populares, normalmente alheias à política, receberam as ideias anarquistas com agrado. O sistema político da Restauração baseado na alternância de dois partidos monarquistas artificiais não fez senão contribuir à identificação entre política, corrupção e coronelismo [em espanhol, caciquismo, que significa, segundo a RAE “Intromissão abusiva de uma pessoa ou uma autoridade em determinados assuntos, valendo-se de seu poder ou influência”; nota do tradutor]. Não obstante, um setor do movimento operário, o partido socialista, aceitou as regras do jogo e exerceu oposição junto com as minorias republicanas, enquanto à margem se desenvolvia um potente sindicalismo revolucionário. Entre 1916 e 1923 a CNT foi capaz de desenvolver uma democracia operária alheia completamente à política e consolidada pela solidariedade de classe, a base de assembleias sindicais, plenárias, palestras e congressos, o que alarmou tanto as classes detentoras que estas substituíram sua democracia coronelista [em espanhol, caciquista; cf. nota n°1] pela ditadura militar do general Primo de Rivera. A clandestinidade arruinou as possibilidades do sindicalismo revolucionário e arrastou seus dirigentes ao terreno das conspirações políticas e do possibilismo. A CNT entrou nela dividida entre moderados e revolucionários, para não pretender mais do que ser bucha de canhão em uma coalizão de partidos e personalidades opostas à ditadura e à monarquia, que abandonadas por seus aliados, caíram. A Segunda República não tratou bem os trabalhadores. A posição a respeito da República e a seu sistema parlamentar dividiu os anarcossindicalistas entre partidários de uma linha insurrecional e partidários da permanência dentro da legalidade republicana. Para os segundos, o abstencionismo, as alianças políticas ou inclusive a participação institucional eram questões táticas, não princípios. Enquanto isso, o avanço do proletariado tinha dividido a burguesia em duas metades opostas: uma, reformista, representada por partidos republicanos, e outra, militarista e clerical, representada pelo partido radical e pela direita. Quando a aliança direitista subiu ao poder – graças a umas eleições nas que as mulheres votavam pela primeira vez – teve de se enfrentar duas tentativas de insurreição, que terminaram enchendo as prisões de operários. Os anarquistas tiveram que atar novamente relações com seus inimigos de ontem, a burguesia republicana, parar separar do poder a outros muito piores, a burguesia fascista. Então renunciaram ao seu tradicional abstencionismo, e, embora não hajam convocado o voto em fevereiro de 1936, tampouco convocaram a abstenção. Entre os anarquistas se impunha uma tendência revolucionária que considerava a participação eleitoral como uma tática destinada a resistir ao fascismo. Durruti o expressou claramente com a seguinte instrução: “estamos diante da revolução ou da guerra civil. O operário que não votar e ficar também em sua casa, será outro contrarrevolucionário”.

A questão principal não era o temido triunfo da direita, mas sim o fracasso eleitoral que impulsionaria o golpe de estado. Para Durruti, o triunfo eleitoral dos socialistas e republicanos permitia ganhar tempo, mas somente um movimento revolucionário poderia detê-las de fato: “O fascismo, ou Revolução Social”, tal era sua conclusão. Como tanto a sublevação militar como a revolução social triunfaram meio a meio e se desencadeou uma guerra civil ficando o proletariado isolado internacionalmente, o “antifascismo” deixou de ser uma tática antiburguesa para acontecer colaboracionismo de classes. O Estado, o Governo, a Nação, as instituições democráticas, as leis, os partidos, a própria burguesia, foram valorados de modo diferente como habitualmente o haviam sido. O anarquismo saiu profundamente alterado da guerra civil e nunca se recompôs desde então.

O sistema parlamentar voltou à Espanha em 1977 como prolongamento da ditadura franquista. A vontade popular só podia se formular em torno da democracia proletária das assembleias. Unicamente o proletariado constituído politicamente como classe em coordenações ou conselhos operários podia encarnar o interesse da imensa maioria. Mas quem realmente se constituiu como nação, como “povoado”, foi a burguesia franquista. Longe de dissolver as instituições fascistas, pactuou a desativação do movimento operário em troca de um espaço político para a oposição. O exílio pôde regressar sem compensações, sequer morais: a oposição tinha assinado também um pacto de silêncio: o esquecimento do genocídio do pós-guerra civil e dos anos de perseguições e sofrimentos. O franquismo anistiado legalizou os partidos e sindicatos e convocou eleições, livrando-se de cadáveres como As Cortes, a CNS ou o Movimento Nacional, mas guardou íntegro seu aparato, que se transformou no aparato da nova “democracia”. A polícia, a Justiça, a Monarquia, a guarda civil, o Exército, os deputados, os governos civis e militares, as capitanias, a diplomacia, a administração, os serviços secretos…; tudo, absolutamente tudo, permaneceu intocável. Nem as eleições, nem o processo constituinte nascido delas afetaram à burocracia estatal ou à burguesia. Um partido nascido do franquismo, a UCD, comandou o processo de “transição” – ou acordou a “reforma” – em suma, o sobrevir democrático da ditadura, auxiliado pela oposição: esse foi o “contrato social” da democracia espanhola. O advento da “democracia” – as eleições municipais, as duas câmaras, o sindicalismo reformista, os Pactos da Moncloa, a constituição, os estatutos de autonomia – foi uma sinistra comédia que teve como preço a liquidação da democracia socialista esboçada pelos trabalhadores. Representou-se quando o sistema parlamentar no mundo subsistia como caricatura. O Parlamentarismo espanhol teve todas as misérias dos demais e nenhuma de suas glórias. Todos os partidos eram partidos de ordem burguesa. Votar significou em seu primeiro momento adoecer voluntariamente de amnésia e colaborar com a farsa, legitimá-la, sujar-se com o sangue dos mortos que até o fim acompanharam o franquismo. O anarquismo precisava de uma revisão a fundo de sua experiência que queria passar a borracha naquelas datas cruciais. Ao não o fazer, não pôde renovar sua crítica, nem tornar concreta uma tática, e não influenciou nos acontecimentos. Acabou sem se inteirar de nada, convertido numa ideologia autista e contemplativa, apoiada em um relato sem contradições de um passado histórico mutilado. Os efeitos foram paralizadores.

A transformação da classe operária em massa sem classe acabou com a possibilidade de que ela mesma pudesse alçar-se como representante do interesse geral e encarnar a vontade popular nas formas da democracia direta que tinha conseguido pôr de pé nas fábricas e nos bairros. O reino indiscutível do capital transformou em pouco tempo a sociedade graças a um desenvolvimento acelerado da tecnologia. As características próprias das massas, como a atomização, a movimentação frenética, o consumismo e o confinamento na vida privada, se acentuaram na sociedade tecnológica, eliminando os restos de sociabilidade e potenciando o controle social totalitário. Ao ganhar preponderância o mercado mundial sobre os Estados, os parlamentos perderam o escasso poder que conservavam. Nem sequer serviam para formular o interesse específico da classe dominante; este se formava diretamente nas instituições mundiais do mercado capitalista. A maioria parlamentar de tal ou qual partido podia introduzir mudanças no espetáculo político, mas na verdade essas mudanças afetavam o poder real. Os aspectos técnicos do parlamentarismo – a campanha, a recontagem de votos, os debates televisivos, as votações nas câmaras, as moções, as comissões etc. – foram conservados, mas o que progredia era o monólogo da dominação, a tecnovigilância, a erosão do direito, a criminalização da dissidência e a população carcerária. Nesse momento se concluía um ciclo: os partidos deixavam de representar opções distintas da mesma ordem para não representar mais do que interesses particulares e de particulares, o que bastaria para explicar a extensão do fenômeno da corrupção política. Por sua parte, o sistema parlamentar deixava de se diferenciar da ditadura fascista. Fascismo tão suave como se queira dizer, fascismo tecnológico, mas fascismo. Na etapa globalizadora as liberdades aparentes pouco a pouco se afogam num estado de exceção e o estado tecno-democrático se dirige para o Estado penal. A política do ano 200 é a do “panóptico” de Bentham ou a do “Big brother”, o Grande Irmão do qual falava Orwell. Nestas circunstâncias a abstenção é mero reflexo da dignidade dos oprimidos. As razões táticas do tipo “para que não ganhe a direita” não atrasam a marcha do totalitarismo, ou como sempre se disse, do “fascismo”, mas sim contribuem com ela. Tal como estamos agora, quando dizem “cidadão”, é preciso entender “fascista”, pois quem acredita nas instituições, confia no novo totalitarismo. A cidadania satisfeita é a base do fascismo moderno. Não há direita nem esquerda porque não há política. Os assuntos do poder se resolvem em outra parte, são extraparlamentares. A luta social também o será.

Aqueles núcleos de discussão que sobrevivem ou se organizam têm sobre suas costas a missão de reconstruir retalhos de vida pública e de democracia direta dentro de uma sociedade massificada que não sejam efêmeros experimentos. E a partir deles forjar opiniões, discutir, informar, instruir, enfim, ligar à memória esquecida e às tradições perdidas de luta. É o conhecimento com que se terá de enfrentar à classe dominante e seu totalitarismo tecnófilo. Saberão interpretar as questões tecnológicas como problemas políticos e sociais da maior magnitude, pois lutam contra um regime totalitário fascista com roupagem liberal e nos sistemas desse tipo as verdadeiras questões aparecem como se fossem problemas técnicos. “A tecnologia é o futuro”, dizem os servos. O anarquismo, se souber escapar das armadilhas da ideologia, será o instrumento teórico mais adequado para forjar uma crítica radical da sociedade, porque é o único ideário que insistiu na democracia direta como fórmula emancipadora. Enquanto que as teorias comunistas puseram em destaque a igualdade como condição necessária da liberdade humana, sem que a travessia por fases autoritárias as afetasse, em troca, o anarquismo proclamou que sem liberdade não pode ter igualdade, e, por conseguinte, o caminho da emancipação estará fecundado por ela.

Será a Guerra – contra a Droga – a Saúde do Estado?

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Bob Black

Fonte: Protopia

Neste momento, nos Estados Unidos da América, 2.700.000 pessoas estão presas (o maior índice per capita do mundo). Todas as semanas são mais 1.600 as pessoas que entram na prisão para além das que saem. Mais de 40% dos presos estão lá por crimes não-violentos relacionados com drogas. Nas políticas da maioria dos governos do mundo o combate à droga assume crescente protagonismo. O seguinte artigo, escrito por Bob Black – anarquista e advogado de profissão –, lança uma visão diferente sobre este fenômeno. Ainda que baseada no contexto norte-americano, com ajustes de pormenor e de escala, a argumentação poderá ser extrapolável a outros países.

Ninguém alguma vez fez observação mais importante em sete palavras do que Randolph Bourne: “A guerra é a saúde do estado” (Resek, 1964 :71). A guerra tem sido o motor principal da extensão do poder estatal na Europa ao longo de 1000 anos, e não só na Europa. A guerra alarga o estado e aumenta a sua riqueza e os seus poderes. Promove obediência e justifica a repressão sobre dissidentes, redefinida como deslealdade. Serena tensões sociais dirigindo-as para fora, para um estado inimigo que simultaneamente faz, claro, exactamente o mesmo com semelhantes consequências. Da perspectiva do estado há só uma coisa errada nas guerras: elas terminam.

Que as guerras terminam é, em última análise, mais importante do que o facto de elas terminarem em vitória ou derrota. Ocasionalmente a derrota tem como consequência a destruição do estado, como aconteceu com os impérios Otomano e Austrohúngaro após a Primeira Guerra Mundial, mas não frequentemente, e mesmo quando isso sucede, esses estados dão origem a outros estados. O sistema estatal não só dura, como prevalece. Normalmente a guerra vale bem o risco — não para os combatentes ou para os civis sofredores, claro, mas para o estado.

A paz é, mais uma vez, um outro assunto. A consequência imediata poderá ser a recessão ou a depressão, como após a Revolução Americana ou a Primeira Guerra Mundial, cujas dificuldades são tão mais humilhantes quando recaem sobre a população que “ganhou” a guerra e que ingenuamente supõe ir partilhar os frutos de uma vitória que pertence ao estado, não ao povo. O regime pode prolongar artificialmente o clima de repressão e sacrifício, como fizeram os Estado Unidos fabricando o Red Scare (Pânico Vermelho) após a Primeira Grande Guerra, mas cedo o povo suplicaria por aquilo que Warren Harding lhe prometera, o regresso à normalidade. Os vencidos, é certo, raramente se saem tão bem como o Japão ou a Alemanha ocupadas se saíram após a Segunda Guerra Mundial, mas mesmos os alemães inicialmente conheceram a fome.

Houve épocas em que alguns estados estavam quase sempre em guerra, como acontecia na Roma republicana, cujas oligarquias, tal como Livy (1960) repetidamente demonstrou, estavam bem conscientes de como a guerra consistia numa válvula de escape para dissipar conflitos de classe. As guerras coloniais servem bem este fim já que são travadas longe de casa e normalmente empreendidas contra antagonistas que, apesar de corajosos, são largamente inferiores em termos militares.

O império britânico nos séculos dezoito e dezanove é um bom exemplo. Congestionados com a riqueza do capitalismo comercial (em breve inimaginavelmente engrandecida pela revolução industrial), seguros pela sua insularidade, escudados pela maior armada do mundo, com uma robusta e desumana classe dirigente, sábia da arte de governar, o estado britânico poderia suportar uma guerra quando dela precisasse. Existiam, no mercado, completos mercenários, tais como os Hessianos. E os inimigos de ontem eram as tropas de hoje. Os irlandeses, repetidamente esmagados no século dezassete, eram uma fonte. Começando em 1746, os ingleses aniquilariam a sociedade e a cultura dos escoceses, recrutando depois regimentos de entre os que sobreviveram. Viriam a repetir estes “métodos económicos” na Índia, em África, em todo o lado. E depois existiam as fontes ingleses de dispensáveis: os camponeses expulsos das terras pelo emparcelamento, e os pobres da cidade. Não deixariam saudades, e havia sempre mais de onde estes vieram.

Mas os tempos mudaram. Alguns estados possivelmente podem continuar, por algum tempo, agindo à moda antiga – talvez a Sérvia, Coreia do Norte, Iraque – mas os Estados Unidos não, no mínimo por duas razões: somos demasiado escrupulosos, e somos demasiado pobres. Demasiado escrupulosos no sentido em que, enquanto Saddam Hussein se vangloriou antes da segunda Guerra do Golfo*, a América é uma sociedade que não consegue tolerar 10.000 mortos. Ele tinha razão, embora isso não lhe tenha valido de nada já que foi incapaz de infligir 10000 ou mesmo 1000 mortos. Granada e Panamá foram um divertimento, mas mesmo guerras de dois tostões como o Líbano e Somália já não o foram, e ninguém tem mais estômago para uma guerra no Haiti ou na Bósnia. Os americanos estão a perder rapidamente o seu gosto por guerras mediáticas, para já não falar das verdadeiras guerras.

E demasiado depauperados para qualquer guerra suficientemente longa para produzir um efeito durável no índice de popularidade de um qualquer presidente. O ataque ao Iraque foi o ponto de viragem. Como habilidosamente a manipulação das massas ocorreu, os americanos somente foram para a frente com a guerra na condição de que os “aliados” pagassem. Mesmo mentes pouco capacitadas estão conscientes que a parte de leão dos seus impostos federais vai para pagar dívidas de guerra e gastos militares dos quais eles nunca colherão quaisquer benefícios. A contrapartida para as vidas numa fotogénica guerra de alta tecnologia é dinheiro. Custa mais, imensamente mais, do que alguma vez a guerra custou. Mas os Estados Unidos não têm mais, imensamente mais riqueza do que alguma vez tiveram. Têm progressivamente menos e menos e menos.

Mesmo com as forças maciças da ABC, NBC, CBS, CNN e todo o resto dos grandes media por detrás (Black, 1992), e apesar de uma esmagadora vitória que deveu tanto à sorte como ao engenho, George Bush tornou-se o primeiro presidente americano a ganhar uma guerra e a perder uma eleição — para um fumador de erva e mulherengo que não cumpriu o serviço militar.

Deste modo o regime é apanhado no que os marxistas costumavam chamar de “contradição”. Precisa de guerra, já que a guerra é a saúde do estado, mas (com efémeras excepções ocasionais) não consegue suportar tanto ganhar como perder guerras. Mas que tipo de guerra é possível travar, com um custo tolerável, que evite esta dupla armadilha — uma guerra que não possa ser ganha ou perdida?

A “Guerra Contra a Droga”. Que não é uma verdadeira guerra, claro, mas apenas aquilo que os alemães chamariam um “sitzkrieg”, uma falsa guerra. Antes venderam-nos a guerra para acabar com todas as guerras. Agora vendem-nos uma guerra interminável.

Tal é a utilidade, para o estado, da Guerra Contra a Droga. Não pode ser perdida, já que não existe um inimigo a derrotar. E por incontáveis razões não pode ser ganha. O governo não consegue interditar mais do que uma fracção da cocaína, heroína, marijuana e outras drogas que, ao ilegalizálas, o governo fez subir o seu preço até ao ponto de valer a pena traficá-las. E alguma droga, tal como a marijuana e o ópio, é facilmente produzida dentro dos Estados Unidos. Dezenas de milhões de americanos já se entregaram ao consumo de drogas ilegais, incluindo o Presidente. Os filhos não vêem qualquer razão para não experimentar aquilo que os pais já consumiram, independentemente daquilo que os pais agora preguem. As crianças tendem a não prestar atenção aos pais quando sabem que estes estão a mentir. Para além disso, há sempre o álcool.

E nos subúrbios, tal como nos guetos, ilegalizar as drogas fez disparar o seu preço até níveis tão altos que prendendo vendedores não tem qualquer efeito no lado da oferta. Tirar um vendedor de droga das ruas apenas abre uma vaga para outro empresário. Na verdade, é prática corrente dos vendedores fazer com que os seus competidores sejam presos, com o fim de ganharem uma parcela adicional de competitividade. Mas não faz mais diferença quem trafica a droga ou quem dirige o estado. De facto, até podem ser as mesmas pessoas! A Guerra Contra a Droga é a saúde do estado.

Porque apenas é uma falsa guerra, a Guerra Contra a Droga é fiscalmente comportável. O governo pode gastar tanto mais ou tanto menos quanto desejar, já que o resultado será sempre o mesmo. Mesmo os custos para o contribuinte são disfarçados, divididos como são por governos federais, regionais e locais, e confundidos com financiamento ao sistema de justiça. A maior despesa individual, as prisões, é aquela que a maior parte das pessoas erradamente interpretam como a melhor coisa que o governo faz por elas. Suportar este erro é um equívoco acerca sobre qual é o produto do sistema de justiça criminal. Não é o controlo do crime, se é que tal pudesse ser medido com alguma exactidão, não há qualquer prova de que a imposição da lei em geral reduza o crime (Jacob, 1984). O produto são índices de criminalidade (Black, 1970), que são uma função, não do nível de criminalidade, mas do nível de imposição da lei. Daí que as autoridades possam fabricar uma “onda de criminalidade” se quiserem mais dinheiro, ou abrandar o controlo se quiserem obter algum crédito por fazerem exactamente o oposto. Tirando eles próprios e os seus superiores hierárquicos, os únicos beneficiários daqueles 100 000 polícias adicionais que o Presidente Clinton quer colocar nas ruas serão os vendedores de donuts.

Para além disto, até um certo ponto a Guerra Contra a Droga paga-se a si mesma. Tal como os exércitos que costumavam subsistir largamente “através do terreno”, pilhando as zonas que atravessavam, também os guerreiros da droga amontoam os seus cofres com o saque de bens confiscados. E isto só a nível formal e legal. À margem da lei, claro que a polícia sempre confiscou muito mais droga do que aquela que chega à sala de provas. É improvável que os vendedores ou os drogados protestem (o cenário clássico: um polícia faz uma busca ilegal na rua. Ele encontra algo. Pergunta, com cortesia, “Isto é seu?” e a resposta é sempre “Não”). Alguma droga a polícia vende por sua conta. Alguma consomem-na eles próprios. E alguma utilizam para “tramar” (colocar drogas na posse de suspeitos vendedores ou adicionar mais droga àquela que foi encontrada para converter um delito menor num crime grave) (Knapp Commission, 1973).

Ainda de uma outra maneira, a Guerra Contra a Droga oferece um dos benefícios de uma verdadeira guerra sem os seus custos e riscos. Toda a verdadeira guerra é um holocausto de liberdades cívicas (Murphy, 73). Mesmo ao nível formal e legal, a segurança nacional — um chamado “interesse obrigatório do estado” — tende a imporse aos direitos fundamentais, pelo menos até que o tiroteio pare. Entretanto vigilantes patrióticos levam a cabo as castrações, os linchamentos, e os incêndios — o trabalho demasiado sujo para o estado fazer mesmo numa suposta emergência de guerra, mas não demasiado sujo para o estado não fazer vista grossa depois. Os Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial e durante o Red Scare é um exemplo; a Itália que os liberais deixaram que os fascistas tomassem, depois de os deixarem, à margem da lei, esmagar socialistas, comunistas e anarquistas, é outro. Mas a paz regressa e o terreno legal perdido é, na sua grande parte, recuperado ou mais terreno ainda é retirado. Uma vez que o estado tenha demolido irreparavelmente a oposição radical, pode muito bem repor direitos constitucionais para os impotentes sobreviventes e gozar o calor da sua própria glória anunciada, desfilando a sua tolerância quando esta já não fizer qualquer diferença.

A falsa guerra é muito mais eficaz. Não pode ser conduzida sem massivas invasões de propriedade e limitações da liberdade. O mais importante direito individual implicado, e ameaçado pela Guerra Contra à Droga é a Quarta Emenda [da Constituição], que proíbe buscas e apreensões injustificadas. Este corpo legal efectivamente começou durante a Proibição e hoje é, como afirma Fred Cohen, “conduzido pelas drogas.” Os direitos de qualquer pessoa são definidos pelos direitos que a Justiça de má vontade concede aos delinquentes de casos de droga.

Outros direitos são, também, reduzidos. Sob a legislação de confisco, propriedade individual é retirada sem um processo ou justa compensação. Aplicada a nativos americanos e outros, a legislação sobre droga interfere com a liberdade de religião; como a prática comum de forçar condutores embriagados a participar em “reabilitações” para os doutrinar com dogmas religiosos dos Alcoólicos Anónimos. Até a campanha contra a posse de armas é uma consequência indirecta da Guerra Contra a Droga. A proibição tornou a droga uma comodidade muito valiosa: no interior das cidades, de longe uma das mais valiosas comodidades. Entretanto, os toxicodependentes roubam para suportar o seu vício. O resultado é uma corrida ao armamento e um clamor pelo controlo das armas. Uma proibição conduz a outra.

Para o criminoso, o último desafio é o crime perfeito. Para o estado é a legislação perfeita. Será a proibição?

Talvez não. A proibição da droga é actualmente muito mais popular do que a proibição do álcool alguma vez o foi, mas dentro da memória viva, a descriminalização foi um séria possibilidade. Poderá tornar-se assim novamente se a histeria anti-droga continuar a crescer até chegar a um ponto impossível de suportar. E provavelmente crescerá, porque a Guerra Contra a Droga foi institucionalizada. Várias agências e organizações têm direitos adquiridos sobre a sua ilimitada expansão, embora isso seja, não só impossível, como destituiria o estado da grande vantagem da Guerra Contra a Droga sobre a verdadeira guerra: a sua previsibilidade e exequibilidade. À medida que alguns órgãos governamentais crescem e crescem, sobra menos e menos para os outros. Já que a vitória, tal como a derrota é impossível, não existirão nunca “dividendos de paz” para repartir. O estado está, provavelmente, já a gastar mais fundos da sociedade civil do que seria consentâneo com os seus interesses a longo prazo. Se mais e mais for tirado, o parasita matará o hospedeiro — ou o hospedeiro matará o parasita.

Eventualmente o estado poderá sucumbir ao seu próprio sucesso. O estado é gigantesco. E é burocrático. Isto significa que está intrinsecamente subdividido por funções (ou por aquilo que era inicialmente considerada uma divisão do operariado por funções: de facto, jurisdição sobreposta e conflituosa é comum e tende a crescer com o tempo). Mesmo quando a mão esquerda sabe o que a mão direita faz, pode não ser capaz de fazer nada acerca disso. A cooperação entre agências torna-se mais difícil quando que se torna mais frequente e mais necessária. “A complexidade da acção em conjunto frusta a acção ou o seu objectivo” (Pressman & Wildausky, 1984).

É muito difícil administrativamente reduzir o orçamento de um gabinete, mas é fácil aumentálo. Os gabinetes resistem ferozmente aos orçamentos “zero-based” — isto é, partindo do zero, tem que haver uma rejustificação anual de cada linha do orçamento apresentado — como se tratasse do reinvento da roda. E é difícil as altas autoridades identificarem áreas para redução de custos, se quiserem apenas, já que a própria raison d’être da organização burocrática é a deferência para com os peritos institucionais. A maneira fácil é tomar o anterior orçamento como o presumível próximo; são apenas desvios do status quo, não o status quo em si, que necessitam de justificação. O gabinete, preenchido com supostos peritos, é ele próprio a fonte usual de justificação para desvios, e os desvios são sempre na direcção de mais dinheiro e mais poder para o gabinete. O que vai para cada gabinete vai para todos. Daí o governo cresce.

Referindo a forma como a competição entre trabalhadores faz descer os salários para todos eles, Fredy Perlman (1969) observou: “A prática diária de todos anula os objectivos de cada um.” Tal como acontece com a competição entre agências pelo dinheiro dos impostos. As implicações a longo termo da Guerra Contra a Droga são, para o estado, ameaçadoras. Quanto mais o estado estende o seu controlo sobre a sociedade, menos controlo ele tem sobre si mesmo, quanto mais o estado absorve a sociedade, mais fraco como entidade responsável por uma colectividade ele se torna. Ele desintegrase num pluralismo autoritário reminescente do feudalismo, ainda que carecendo do seu charme romântico. Algumas agências engordam à custa da Guerra Contra a Droga, mas muitas não. As que engordam são as primeiras a seguirem os seus próprios caminhos. A procuradora-geral Janet Reno não teve controlo sobre o Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms quando este exterminou os Branch Davidians para ganhar o que equivalia a nada mais do que um guerra de “gangs”: mas ela tomou a responsabilidade. A Drug Enforcement Administration é igualmente tão independente como o FBI de Hoover e a CIA de qualquer um.

Para o estado, outra consequência adversa inevitável da Guerra Contra a Droga é a corrupção (Sisk, 1982). Não que a corrupção seja necessariamente uma coisa má para o estado. Até certo ponto, as extorsões policiais a vendedores de droga, chulos e outros empresários extra-legais beneficiam o estado de diversas formas. Quanto mais os polícias recolherem em privilégios e confiscos, menos têm que ser pagos em salário. Os polícias cujos superiores sabem que eles estão envolvidos em extorsão (como decerto sabem já que eles próprios a isso se dedicam também) (Chambliss, 1988) fazem vista grossa a não ser que, por alguma razão, tenham necessidade de se livrar de um polícia em particular. A corrupção é, pois, uma ferramenta de gestão.

Mas alguns polícias tornam-se demasiado gananciosos e vão longe de mais. A maioria são “comedores de erva” (subornados) que aceitam aquilo que lhes aparecer, mas alguns são “comedores de carne” (extorsionários) — corrupção activa — que activamente buscam ou montam oportunidades de corrupção, como os detectives da Special Investigative Unit retratados no filme Serpico (Daley, 1978; Knapp Commission, 1973). Os comedores de erva dão cobertura aos comedores de carne (o “código de silêncio”) já que todos têm algo a esconder. Até recentemente, os administradores de polícia e os seus aliados académicos julgaram poder manter a corrupção sob controlo através de várias reformas institucionais, a maioria das quais foram inicialmente propostas pela Comissão Knapp (Sherman, 1978). Talvez as reformas resultassem, excepto numa coisa: na Guerra Contra a Droga. A corrupção está de regresso, mesmo na NYPD* reformada por Knapp (Dombrink, 1988). Já que as penalizações são mais severas e os lucros do tráfico de droga são mais altos, a protecção que a polícia vende dita um preço maior (Sisk, 1982). A corrupção motivada pela droga é o sector em maior crescimento nos abusos de conduta da polícia (Carter, 1990).

Para o estado, o problema da corrupção descontrolada é que ela não pode ser confinada ao espaço onde os benefícios excedem os custos. O estado necessita da polícia para um bocadinho de imposição selectiva da lei e, mais importante que isso, para controlo social — logo que a situação exija furar uma greve, evacuar squatters, suprimir tumultos, reprimir dissidentes e manter o tráfego a circular. Mesmo nestes tempos sofisticados, em que a manipulação é a estratégia de controlo mais em voga, frequentemente não há substituto para a arma e o cassetete.

Mas os polícias que impõem leis contra a droga ficam indisponíveis para impor outras leis. Tem havido um expansão tremenda no trabalho de polícias à paisana nos anos recentes (Marx, 1988), inevitavelmente acompanhada de mais corrupção (Girodo, 1991). Os polícias, como trabalhadores, são particularmente difíceis de gerir pois estão normalmente sós, não controlados. Os detectives, especialmente, estão numa posição de poderem ser reservados acerca das suas actividades (Skolnick, 1975; Daley, 1978), e mais controlo do tráfico de droga significa mais trabalho à paisana e de detective. Estes polícias estabelecem a sua própria agenda.

Os escândalos de corrupção desmoralizam a polícia a ilegitimam o estado. A maioria das pessoas obedece à lei na maior parte do tempo, não porque receiem ser punidas se não o fizerem, mas porque acreditam no sistema. Assim que deixem de acreditar, deixarão de obedecer — não só às leis que não importam (como “não consuma drogas”) como também àquelas que importam (como “pague os seus impostos”). E, ironicamente, operações anti-corrupção comprometem a eficácia policial em outras áreas (Kornblum, 1976).

O estado adquiriu um peso tão grande que esse peso começa a quebrar as suas fundações. Não é o tipo de elefantismo que pode ser aliviado através da privatização. Não importa quem recolhe o lixo. O que importa é quem tem as armas. A essência da soberania — os meios para impor a ordem — está deteriorada. O cancro é inoperável. Os estado pode bem morrer de uma overdose.

ReferênciasEditar

  • Black, Bob (1992) Friendly Fire. Brooklyn, NY: Autonomedia

  • Black, Donald (1970) “Production of Crime rates.” American Sociological Review 35: 733-748

  • Carter, David L. (1990) “Drug-Related Corruption of Police Officers: A Contemporary Typology.” Journal of Criminal Justice 18: 85-98

  • Chambliss, William J. (1988) On The Take: From Petty Crooks to Presidents. 2nd ed. Bloomington & Indianapolis, IN: Indiana University *Press

  • Daley, Robert (1978) Prince of the City: The True Story of a Cop Who Knew Too Much. Boston, MA: Houghton Mifflin Company

  • Dombrink, John (1988) “The Touchables: Vice and Police Corruption in the 1980’s.” Law and Contemporary Problems 51: 201-232

  • Girodo, Micahel (1991) “Drug Corruption in Undercover Work: Measuring the Risk.” Behavioral Science and the Law 9: 361370

  • Jacob, Herbert (1984) The Frustration of Policy: Responses to Crime by American Cities. Boston, MA: Little, Brown and Company

  • Knapp Commission (1973) The Knapp Commission Report on Police Corruption. NY: George Braziller

  • Kornblum, Allan M. (1976) The Moral Hazards: Police Strategies for Honesty and Ethical Behavior. Lexington, MA: Lexington Books

  • Livy (1960) The Early History of Rome. Translated by Aubrey de Sélincourt. Baltimore, MD: Penguin Books

  • Marx, Gary T. (1988) Undercover: Police Surveillance in America. Berkeley, CA: University of California Press

  • Murphy, Paul L. (1972) The Constitution in Crisis Times, 1918-1969. NY: Harper Torchbooks

  • Perlman, Fredy (1969) The Reproduction of Everyday Life. Detroit, MI: Black & Red

  • Pressman, Jeffrey L., and Aaron Wildavsky (1984) Implementation. 3rd ed., expanded. Berkeley, CA: University of California Press

  • Resek, Carl, ed. (1964) War and the Intellectuals: Essays by Randolph S. Bourne, 1915-1919. NY: Harper Torchbooks

  • Sherman, Lawrence M. (1978) Scandal and Reform: Controlling Police Corruption. Berkeley, CA: Univ. of California Press

  • Sisk, David E. (1982) “Police Corruption and Criminal Monopoly: Victimless Crimes.” Journal of Legal Studies 11: 395-403

  • Skolnick, Jerome H. (1975) Justice Without Trial: Law Enforcement in a Democratic Society. 2nd ed. NY: John H. Wiley & Sons

  • Tilly, Charles (1992) Coercion, Capital and European States, AD 900-1992. Rev. Paperback ed. Cambridge, MA: Blackwell.


 

Reforma política é segunda demão no estado

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Por Gilson Moura Henrique Junior

O uso pelos partidos da ordem e pela esquerda partidária da reforma política como panaceia para a solução dos problemas do país esconde uma preguiça intelectual fortemente aliada ao oportunismo eleitoreiro.

O primeiro problema das propostas de reforma política que ela não é política em seu inteiro teor, ela é uma reforma eleitoral, e tímida. Enquanto reforma não abrange sequer outras formas de políticas fora do eixo eleitoral, mas ainda dentro da institucionalidade, como a expansão dos comitês e conselhos que já existem na esfera municipal, para além de conselhos consultivos ou expansão para as esferas estaduais e federais com ganho de poderes e capilaridade. Enquanto política as propostas de reforma sequer tangenciam uma discussão sobre o caráter democrático do estado e a necessária repactuação deste para que o exercício do poder não seja platônico, onde uma elite dirigente quase intocável conduz a população conforme foi eleita para fazer, nas palavras de Eduardo cunha, presidente da câmara.

E isso ainda sendo discutida a reforma política nos parâmetros reformistas do estado conforme se propõe a esquerda partidária e os partidos da ordem, sequer comecei a debater o problema sob a luz da superação do sistema e do estado, coisa que pelo menos superficialmente os partidos da oposição de esquerda se dizem desejosos.

Sob o ponto de vista para além do estado é preciso dizer que o que se deveria exigir é mais que reforma do estado, que nada mais é que uma segunda demão na pintura exterior do aparato estatal ampliando direitos e deveres sob o ponto de vista eleitoral reduzindo pontual e mediocremente a questão política à financiamento público de campanha, recall e plebiscito.

Até por exigência ecológica é preciso que se exija uma descentralização absoluta do processo decisório sobre economia, energia e gestão a ponto de obrigar a um repensar de produção e consumo a níveis radicais, não por uma preferência ideológica descolada da realidade, mas por absoluta necessidade de manutenção da vida na terra.

Enquanto a economia não for lógica ou ecológica, enquanto a gestão de recursos entendê-los ainda como infinitos e ignorar resíduos, ignorar a ruptura metabólica causada pela extração de recursos e pela geração de resíduos, em escala geométrica e reproduzida de forma praticamente infinitesimal, enquanto a compreensão da casa (oykos+logos) for secundarizada pela administração da casa (oykos+nomos), correremos o risco da casa cair.

E é esse o eixo que grita a necessidade de ir além da reforma da casa, ou de parte dela ou de parte superficial de parte dela, é fundamental que se grite a obrigatoriedade da exposição á população do risco do modelo em curso de gestão da vida das pessoas e recursos para a vida no planeta, para a existência das civilizações e a partir disto é fundamental horizontalizar os processos decisórios, torná-los comunais, organizados de rua a rua, bairro a bairro, vila a vila, cidade a cidade, estado a estado, para que cada ponto onde a ação econômica atinge e afeta, produzindo danos ambientais, sociais, comunitários,etc, tenha poder para decidir sobre seus rumos, para decidir sobre como é afetado, para além da decisão distante de gestores que sequer sabem da existência dos pontos atingidos por suas ações.

Se nem como reforma isso é posto em perspectiva, diante da absoluta necessidade de por em prática uma gestão democrática radical da produção de alimentos, da produção industrial, de energia, e do consumo disso tudo, inclusive sob o ponto de vista da saúde, se isto não é visto como política e parte do que se propõe como reforma para a política, que reforma e que política é essa?

Que política e essa onde diante da absoluta necessidade de, por exemplo, discutirmos a produção de alimentos centralizada e cujo resultado dela percorre milhares de quilômetros para chegar às mesas dos consumidores, recebendo para isso uma carga absoluta de produtos químicos para sua conservação até lá e com eles afetando a saúde dos consumidores, o que ocorre é a omissão, o silêncio e a troca disso por plebiscitos aqui e ali e um recall ou outro?

Que política é essa onde transgênicos e agrotóxicos são naturalizados e entendidos como algo externo à população que no máximo que se terá de acesso á decisão é se um dia vier, no fantástico mundo da institucionalidade, a plebiscito? E como viria? Por que o inteiro teor das leis não pode ser discutido por quem sofre com elas?

Cadê a política dessas reformas?

A grande reforma que daria solução para os problemas do país, dos países, com a democracia só pode ser a reforma definitiva do estado, que é sua superação e substituição por processos horizontais de decisão, organizados em confederações de conselhos organizadas em cantões, pela descentralização da própria ideia artificial de nação, de Brasil, França ou seja lá o que os estados nacionais tomam pra si como se fossem proprietários da população que reside entre as cercas embandeiradas que separam quintais. População esta forçada a se entender como parte de uma ficção, por vezes na base da porrada, que não tem nenhuma raiz na constituição coletiva além de elementos políticos externos à ela, construído nos altos fornos das elites políticas.

Pra que perder tempo com reformas desta ficção? Não é melhor criar uma outra estória, um outro riso, uma outra peça, um outro poema, uma outra canção?