Nova colecção digital de textos sobre anarquismo

capturar14Fonte: Coletivo Libertário Évora

O projecto MOSCA (sobre o Movimento Social Crítico e Alternativo), sedeado na Universidade de Évora, editou um primeiro texto de uma nova colecção sobre anarquismo, em formato digital. Trata-se do texto de João Freire, ANARQUISMO E SOCIOLOGIA (2005), consistindo numa introdução sua a um debate organizado pelo Centro de Estudos Libertários naquela data, apenas ligeiramente retocado para a sua actual difusão. Cada uma das apresentações dos 4 “andamentos” foi seguida de debate com os circunstantes e suportada pela prévia distribuição de uns “textos de apoio”, a que se fazem algumas referências.

O texto encontra-se no arquivo do MOSCA e pode ser descarregado a partir desta ligação: http://mosca-servidor.xdi.uevora.pt/arquivo/index.php?p=digitallibrary%2Fdigitalcontent&id=1601&q=Jo%C3%A3o+Freire

Ciúmes: Causas e uma possível cura – Emma Goldman

Emma_Goldman_-_Union_Square,_New_York,_1916Por Emma Goldman

Fonte: Amor Y Anarquia

Ninguém em geral é capaz de uma intensa consciência interna, porque a vida sempre necessita de esperança para escapar da angústia mental e do sofrimento. O sofrimento, e muitas vezes o desespero, sobre a chamada característica eterna das coisas são a mais persistente companhia de nossas vidas. Mas eles não surgem em nós do exterior, através dos atos malignos de pessoas particularmente más. Eles são condicionados ao nosso próprio ser, de fato, eles estão interligados através de mil propostas e grossos fios com a nossa existência.

É absolutamente necessário que nós compreendamos esse fato, porque as pessoas que nunca se livram da noção de que sua desgraça é fruto da maldade dos outros nunca podem superar o ódio mesquinho e a malícia que constantemente acusa, condena e persegue os outros por algo que é inevitavelmente parte de si mesmos. Tais pessoas não irão subir para as alturas sublimes do verdadeiro humanista, para quem o bem e o mal, a moral e a imoral, são, portanto, termos limitados para o conflito interior das emoções humanas no mar da vida humana.

O filósofo “além do bem e do mal”, Nietzsche, é atualmente denunciado como criador de um ódio nacional e uma destruição metralhadora. Mas apenas maus leitores e maus alunxs o interpretam desta forma. “Além do bem e do mal” significa além do Ministério Público, além de fazer julgamentos, além de matar, etc. Além do Bem e do Mal se abre diante dos nossos olhos como uma visão do pano de fundo que é a afirmação individual, juntamente com a compreensão de todos aqueles que são o contrário de nós mesmos, que são diferentes.

Por isso eu não me refiro à tentativa desajeitada da democracia de regular as complexidades do caráter humano por meio da igualdade externa. A visão de “além do bem e do mal” aponta para a direita de si mesmo, à própria personalidade. Tais possibilidades não excluem a dor do caos da vida, mas excluem a justiça puritana que se insere no julgamento de todos os outros, exceto de si mesmo.

É auto-evidente que a profundidade radical – muitos são superficiais, você sabe – deve aplicar esta profundidade ao reconhecimento humano da relação de amor e sexo. Emoções de amor e sexo estão entre as mais íntimas, intensas e sensíveis, expressões do nosso ser. Elas são tão profundamente relacionadas às características físicas e psíquicas individuais como um carimbo em cada caso de amor como um caso independente, diferente de todos os outros casos de amor. Em outras palavras, cada amor é resultado das impressões e características que duas pessoas envolvidas dão a isso. Toda relação de amor deve, por sua própria natureza, permanecer como um caso absolutamente privado. Nem mesmo o Estado, a Igreja, a moralidade ou as pessoas devem mediar isso.

Infelizmente esse não é o caso. A mais íntima relação é submetida a proscrições, regulamentos e coerções; porém, esses fatores externos são absolutamente estranhos ao amor, e leva a eternas contradições e conflitos entre o amor e a lei.

O resultado disso é que nossa vida amorosa está imersa em corrupção e degradação. O “amor puro”, tão aclamado pelos poetas, é, no atual matrimônio, divórcio e disputas alienadas, um espécime raro. Com dinheiro, status social, e posição como critérios para o amor, a prostituição é quase inevitável, ainda que seja coberta pelo manto da legitimidade e da moralidade.

O mais permanente demônio da nossa mutilada vida amorosa é o ciúme, frequentemente descrito como “mostro de olhos verdes”, que mente, engana, trai e mata. O senso comum é de que o ciúme é inato e, portanto, nunca poderá ser erradicado do coração humano. Essa ideia é uma desculpa conveniente para aqueles que não têm capacidade ou vontade para mergulhar dentro das causas e efeitos.

A angústia sobre um amor perdido, sobre o fio quebrado da continuidade do amor é, de fato, inerente ao nosso ser. O sofrimento emocional tem inspirado muitas letras sublimes, com olhares muito profundos e exaltação poética de Byron, Shelley, Heine e outros. Mas será que é possível comparar esta tristeza com o que comumente acontece no ciúme? Eles são tão diferentes como a sabedoria e a estupidez. Como o refinamento e a rudeza. Dignidade e coerção brutal. O ciúme é o oposto da compreensão, da simpatia, e dos sentimentos generosos. O ciúme nunca adicionou algo ao caráter, nunca fez o indivíduo grande e bom. O que ele realmente faz é torná-lo cego com fúria, mesquinho com suspeita, e duro de inveja.

Ciúme, as contorções que vemos nas tragédias e comédias matrimoniais, são invariáveis por um lado, intolerantemente acusadoras, convencidas da sua própria justiça e da maldade, crueldade e culpa da sua vítima. O ciúme nem mesmo tenta compreender. Seu único desejo é punir, e punir tão severamente quanto possível. Essa noção é incorporada ao código de honra, como representada em um duelo ou em uma lei não escrita.  Um código que vai considerar que a sedução de uma mulher deve ser punida com a morte dx sedutor(a). Mesmo onde a sedução não tomou lugar, onde ambos voluntariamente cederam ao desejo mais íntimo, a honra só é restaurada quando o sangue é derramado, seja do homem ou da mulher.

O Ciúme é obcecado pelo sentimento de possessão e vingança. Isto está de acordo com todas as outras leis de punição nos estatutos que ainda aderem à barbárie noção de que uma ofensa, muitas vezes meramente resulta de injustiças sociais, e devem ser adequadamente punidas ou vingadas.

Um argumento muito forte contra o ciúme pode ser encontrado nos dados de historiadores como Morgan, Reclus e outros, como sobre as relações sexuais dos povos primitivos. Qualquer um que esteja familiarizado com suas obras sabe que a monogamia é uma forma de sexo que surgiu muito mais tarde, como resultado da domesticação e da propriedade das mulheres, e que criou o monopólio do sexo e o inevitável sentimento de ciúme.

 No passado, quando homens e mulheres se misturaram livremente sem a interferência da lei e da moralidade, não poderia existir ciúme, porque este repousa sobre a suposição de que certo homem tem o monopólio exclusivo sobre o sexo de determinada mulher e vice-versa. No momento em que ninguém visa transgredir este preceito sagrado, o ciúme está em pé de guerra. Sob tais circunstâncias, é ridículo dizer que o ciúme é perfeitamente natural. Fatidicamente, se trata de um resultado artificial de uma causa artificial, nada mais.

Infelizmente não são apenas os casamentos conservadores que são afetados pelo ciúme com a noção de monopólio sexual; as chamadas uniões livres também são vítimas dele. O argumento provavelmente levantado é que isto é mais uma prova de que o ciúme é um traço inato. Mas é preciso ter em mente que o monopólio sexual tem sido transmitido de geração em geração como um direito sagrado e como a base da pureza da família e do lar. E assim como a Igreja e o Estado aceitam o monopólio sexual como a única segurança para o vinculo matrimonial, eles tem justificado o ciúmes como uma arma legítima de defesa para a proteção do direito de propriedade.

Agora, se é verdade que um grande número de pessoas superou a legalidade do monopólio do sexo, elxs não superaram as suas tradições e hábitos. Por isso, elxs se tornaram tão cegxs pelo “monstro de olhos verdes” quanto seus/suas vizinhxs conservadorxs no momento os seus bens estão em jogo.

   Um homem ou uma mulher livre e grande o suficiente para não interferir ou inquietar-se sobre as outras atrações da pessoa amada são com certeza desprezadxs por seus/suas amigxs conservadores, e ridicularizadxs por seus/suas amigxs radicais. Elx também será acusadx de ser umx degeneradx ou umx covarde; e frequentemente alguns motivos materiais mesquinhos serão imputados a elx. De qualquer forma, esses homens e mulheres serão alvo de fofocas ou piadas grosseiras ou imundas por nenhuma outra razão além do fato delxs admitirem ao marido, esposa ou amantes o direito de seus próprios corpos e sua expressão emocional, sem fazer cenas de ciúmes ou ameaças selvagens para matar x intrusx.

Há outros fatores no ciúme: o conceito do macho e da inveja do feminino. O macho em matéria sexual é um impostor, um fanfarrão, que sempre se orgulha de suas façanhas e do sucesso com as mulheres. Ele insiste em desempenhar o papel de um conquistador, já que ele foi informado de que as mulheres querem ser conquistados, e que elas gostam de ser seduzidas. Sentindo-se o único galo do curral, ou o touro que deve confrontar com seus chifres a fim de ganhar a vaca, ele se sente mortalmente ferido na sua vaidade e arrogância no momento em que umx rival entra em cena – a cena, mesmo entre os chamados homens refinados, continua a ser o amor sexual da mulher, que deve pertencer a apenas um mestre.

Em outras palavras, o monopólio do sexo em perigo, juntamente com a vaidade do homem ultrajado, em 99 em cada cem casos são os antecedentes do ciúme.

No caso de uma mulher, o medo econômico por si mesma e pelas crianças e sua inveja mesquinha de todas as outras mulheres que ganham graça aos olhos do seu defensor, invariavelmente, criam ciúme. Em justiça, foi dito para as mulheres durante os séculos passados, que a atração física era seu único estoque na negociação, portanto, ela deve se tornar necessariamente invejosa do charme e do valor de outras mulheres como uma ameaça ao seu poder sobre sua propriedade preciosa.

O aspecto grotesco de toda a questão é que os homens e as mulheres geralmente criam uma inveja violenta daquelxs que realmente não se importam muito sobre isso. Portanto, não é o seu amor ultrajado, mas a sua vaidade e inveja indignada que clamam contra esse “terrível erro”. É provável que a mulher nunca amou o homem de quem ela agora suspeita e espiona. Provavelmente ela nunca fez um esforço para manter o seu amor. Mas no momento em que umx concorrente chega, ela começa a valorizar sua propriedade sexual para defendê-la de forma que nenhum meio é muito desprezível ou cruel.

Obviamente, então, o ciúme não é o resultado do amor. Na verdade, se fosse possível investigar mais casos de ciúmes, provavelmente descobririam que quanto mais violento e desprezível é o seu ciúme, menos as pessoas estão imbuídas de um grande amor. Duas pessoas vinculadas por harmonia interior e unidade não têm medo de prejudicar a sua confiança mútua e segurança, se um ou outro tem atrações externas, nem iram terminar seu relacionamento em inimizade vil, como é muitas vezes o caso de muitas pessoas. Muitos delxs não são capazes, nem deve de se esperar, de incluir a escolha da pessoa amada na intimidade de suas vidas, mas isso não xs dá qualquer direito de negar a necessidade da atração.

Assim como eu discutirei variedade e monogamia duas semanas a partir de hoje a noite, não me deterei nisso, nem aqui, exceto para dizer que olhar as pessoas que podem amar mais de uma pessoa de forma tão perversa ou anormal é ser muito ignorante mesmo. Eu já discuti uma série de causas para o ciúme, a qual devo acrescentar a instituição do casamento que o Estado e a Igreja proclamam como “o vínculo até a morte”. Isso é aceito como o ético modo correto de vida e a ação correta.

  Com amor, em todas a sua variabilidade e mutabilidade, acorrentadxs e apertadxs, é uma pequena maravilha se o ciúme surge fora dele. Que outra coisa senão mesquinhez, avareza, suspeita e rancor pode surgir quando um homem e uma mulher são oficialmente mantidxs juntxs com a fórmula “a partir de agora vocês são um em corpo e espírito.” Basta manter qualquer casal amarrado de tal maneira, dependentes umx dxs outrxs para cada pensamento e sentimento, sem um interesse ou desejo externo, e se perguntar se tal relação não deve tornar-se odiosa e insuportável com o tempo.

De uma forma ou outra os grilhões são quebrados, e como as circunstâncias que permitem fazê-lo são geralmente baixas e degradantes, não é de surpreender que eles coloquem em jogo os mais deteriorados e malvados traços e motivos humanos.

Em outras palavras, a interferência legal, religiosa e moral são os pais do nosso atual amor e vida sexual não naturais, e fora disso o ciúme cresceu. Esse é o chicote que açoita e tortura os pobres mortais por causa de sua estupidez, ignorância e preconceito.

Mas ninguém precisa tentar justificar-se em terra por ser uma vítima destas condições. É bem verdade que todos nós inteligentes estamos sob os fardos dos arranjos sociais injustos, sob coerção e cegueira moral. Mas não somos indivíduos conscientes, cujo objetivo é trazer a verdade e a justiça aos assuntos humanos? A teoria de que o homem é um produto de condições levou apenas à indiferença e a um fraco consenso sobre essas condições. Ainda que todos saibam que a adaptação a um modo de vida não saudável e injusto só fortalece a ambos, enquanto o homem, o chamado “coroa de toda a criação”, equipado com uma capacidade de pensar e ver e acima de tudo para empregar os seus poderes de iniciativa, cresce cada vez mais fraco, mais passivo, mais fatalista.

Não há nada mais terrível e fatal do que escavar dentro das vísceras de um de seus entes queridos e de si mesmo. Isso só pode ajudar a rasgar os fiapos de afeto que ainda são inerentes à relação e, finalmente, trazer-nos até a última trincheira, que tenta combater o ciúme, ou seja, a aniquilação do amor, amizade e respeito.

O ciúme é realmente um meio pobre para proteger o amor, mas é um meio seguro para destruir o auto-respeito. Para pessoas ciumentas, como “drogas-demônios”, rebaixa ao nível mais baixo e, no final, inspira apenas desgosto e repugnância.

A angústia pela perda de um amor ou por um amor não correspondido entre as pessoas que são capazes de pensamentos elevados e finos jamais fará uma pessoa se tornar rude. Aquelxs que são sensíveis e finxs apenas devem perguntar-se se podem tolerar qualquer tipo de relação obrigatória, e um enfático “não” seria a resposta. Mas a maioria das pessoas continua a viver próximas uma das outras, apesar de terem a muito tempo deixado de viverem umas com as outras – uma vida fértil o suficiente para a operação do ciúme, cujos métodos percorrem todo o caminho desde abrir a correspondência privada até o assassinato. Comparado com tais horrores, adultério aberto parece um ato de coragem e libertação.

Um escudo forte contra a vulgaridade do ciúme é que o homem e a mulher não são um só em corpo e espírito. Eles são dois seres humanos, com temperamentos diferentes, sentimentos e emoções. Cada um é um cosmos pequeno em si mesmo, absorto em seus próprios pensamentos e idéias. Isso é glorioso e poético se estes dois mundos se encontram em liberdade e igualdade. Mesmo que isso dure pouco tempo, já valerá à pena. Mas, no momento em que os dois mundos são forçados a ficar juntos, toda a beleza e o perfume cessam e nada mais que folhas mortas permanecem. Quem compreende esta obviedade irá considerar o ciúme como algo abaixo de si e não permitirá que isso seja pendurado como uma espada de Dâmocles sobre elx.

Todos os amantes fazem bem ao deixarem as portas do seu amor aberto. Quando o amor pode ir e vir sem medo de encontrar um cão de guarda, o ciúme raramente irá criar raízes porque ele vai aprender rapidamente que onde não há fechaduras e chaves, não há lugar para a suspeita e desconfiança, dois elementos sobre os quais o ciúme cresce e prospera.

Este artigo é uma cortesia dos documentos de Emma Goldman: Divisão de Arquivos e Manuscritos, The New York Public Library, Astor, Lenox e Fundações Tilden.

Traduzido de:

http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/goldman/jealousy.html

A Reação na Alemanha (1842)

M.-Bakunin_reference

Por Bakunin

Fonte: Arquivo Bakunin

BAKUNINE, Miguel. A reação na Alemanha.In: Cadernos Peninsulares, Nova Série, Ensaio 17.  Tradução: José Gabriel. Portugal: Editora Assírio & Alvin, 1976. Pags. 105-127


OS ADVERSÁRIOS DA LIBERDADE


Liberdade, realização da liberdade: quem pode negar que estas palavras estão agora à cabeça da ordem do dia da história? Amigos e inimigos reconhecem-no apesar de tudo, e ninguém ousa declarar-se abertamente e audaciosamente adversário da liberdade. Mas falar de alguma coisa e reconhecê-la não lhe dá uma existência real, e isto, o evangelho, sabe-o bem
[1]; na realidade, há infelizmente ainda uma multidão que, verdadeiramente, não acredita do mais profundo do seu coração, na liberdade. Vala a pena, no interesse desta causa, ocuparmo-nos deles. Pertencem a tipos muito diferentes: encontramos, em primeiro lugar, pessoas bem colocadas, carregadas de anos e de experiência que, na sua juventude, eram mesmo diletantes da liberdade política; um homem rico e distinto encontra, na realidade, um certo prazer requintado em falar de liberdade e de igualdade, o que o torna, além do mais, duplamente importante na sociedade. Mas como não mais podem agora gozar a vida como no tempo da sua juventude, procuram dissimular o seu enfraquecimento físico e intelectual sob o véu da “experiência” — uma palavra tanta vez enganadora —: é perder tempo falar com estas pessoas; nunca levaram a liberdade a sério, nunca a liberdade foi para eles a religião que só conduz aos maiores prazeres e à felicidade suprema pela via das mais terríveis contradições, ao preço dos mais cruéis sofrimentos e da abnegação total e sem reservas. Verdadeiramente não há algum interesse em discutir com eles, porque são velhos e, assim, apesar de tudo, morrerão brevemente.

Mas também há infelizmente muitas pessoas jovens que partilham com as pessoas do primeira grupo as mesmas convicções, ou antes, a ausência de toda a convicção. Pertencem na maior parte, a essa aristocracia que pela sua natureza está marcada desde há muito tempo, na Alemanha, pela morte política, seja a classe burguesa e comerciante, seja a dos funcionários. Com eles não há nada a empreender, e menos ainda com as pessoas judiciosas e experimentadas da primeira categoria que têm já um pé no túmulo. Os últimos tinham ao menos uma aparência de vida, enquanto que os outros são de nascença seres inexistentes, homens mortos. Estão todos embaraçados nos seus interesses sórdidos de vaidade ou do dinheiro e unicamente preocupados com os seus quotidianos, ignoram mesmo tudo da vida e o que se passa á volta deles, a ponto que, se não tivessem ouvido falar um pouco na escola da história e da evolução das ideias, acreditariam provavelmente que o mundo nunca teria sido outro do que é agora. São naturezas mortas, sombras que não podem ser nem úteis, nem nocivas; não temos nada a temer delas, porque só o que é vivo é que pode agir e como já passou de moda ter comércio com sombras, não queremos perder o nosso tempo com eles.


Mas há ainda uma terceira categoria de adversários do princípio da Revolução: é o partido reaccionário surgido pouco depois da Restauração em toda Europa e que se chama conservadorismo em política, escola histórica na ciência do direito, e filosofia positiva nas ciências especulativas. Temos a intenção de discutir com este partido, e seria absurdo da nossa parte, ignorar a sua existência e considerá-lo como insignificante; reconhecemos ao contrário, sinceramente que é agora, em todo o lado, o partido dirigente, e, bem mais, estamos prestes a conceder-lhe que a sua força presente não é um jogo do acaso, mas que tem as suas raízes profundas na evolução do espírito moderno. Em geral, não reconheço, ao acaso, uma influência real sobre a história; a história é um desenvolvimento livre, mas também necessário, do pensamento livre, de maneira que se atribuísse, ao acaso, a preponderância actual do partido reaccionário, eu prestaria o pior serviço à profissão de fé democrática que se funda unicamente sobre a liberdade absoluta do pensamento. Isto seria tanto mais perigoso, para nós, de nos adormecer numa quietude nefasta e mentirosa, que infelizmente, até ao presente, estamos ainda muito longe de compreender a nossa situação. Perigo tanto maior que, no desconhecimento, o que não é muito frequente, da verdadeira origem da nossa força e da natureza do nosso inimigo, acabrunhados pelo triste espectáculo da vulgaridade, nós podemos perder toda a nossa coragem, ou — o que é talvez, pior — como o desespero não pode durar num ser cheio de vida, restar atormentado por um temor injustificado, infantil e estéril.


PARTIDO DEMOCRÁTICO

E PARTIDO REACCIONÁRIO


Nada pode ser mais útil ao partido democrático que conhecer a sua fraqueza momentânea e a força relativa dos seus adversários. Este conhecimento fá-lo sair, primeiramente da onda de imaginação e entrar nessa realidade onde deve viver, sofrer e finalmente vencer. Torna o seu entusiasmo reflectido e modesto. Quando, por este doloroso contacto com a realidade, tiver tomado consciência da sua missão sagrada e sacerdotal; quando for atormentado pelas inumeráveis dificuldades que se levantam em toda a parte sobre o seu caminho e que não têm o seu manancial — como frequentemente o partido democrático parece julgá-lo — no obscurantismo dos seus adversários, mas antes na riqueza e na complexidade da natureza humana que resiste às teorias abstractas; logo que estas dificuldades lhe façam conhecer, e em seguida, compreender as imperfeições de toda o sua existência presente e lhe tenham mostrado que o seu inimigo não está somente fora dele, mas também e, sobretudo, nele mesmo e que, depois, deve começar a vencer este inimigo imanente; logo que tenha adquirido a convicção de que a democracia não consiste somente numa oposição aos governantes, não é uma reforma particular constitucional, política ou económica, mas que anuncia uma transformação total da estrutura actual do mundo e uma vida essencialmente nova desconhecida até agora na história; logo que tudo isto o tenha convencido que a democracia é uma religião, logo que esta concepção o tenha tornado a ele mesmo, religioso, quer dizer, não somente convencido do seu principio em pensamento e em raciocínio, mas também fiel a este princípio na vida real, até nas mais pequenas manifestações — então, e só então, o partido democrático abancará sobre o mundo uma vitória efectiva.


Reconhecemos, portanto, sinceramente que a força actual do partido reaccionário não é fato do acaso, mas é uma necessidade histórica. Não tem a sua origem na imperfeição do princípio democrático: este é, na realidade, a igualdade entre os homens realizando-se em liberdade, mas é também esta identidade do espírito, a mais profunda, a mais geral, a mais universal, numa palavra esta identidade única que se manifesta na história. Esta força do partido reaccionário é o efeito da imperfeição do partido democrático que não é ainda bem sucedido na consciência afirmativa do seu princípio e, por consequência, não existe senão como negação da realidade presente. Mas não sendo senão negação, mantém-se, primeiro, necessariamente alheio a esta plenitude da vida, de que não pode ainda compreender o desenvolvimento a partir de um princípio concebido por ele sob uma forma quase unicamente negativa. É porque, até agora, ele é apenas um partido e não ainda essa realidade viva que é o futuro e não o presente. Como os democratas formam somente um partido (e ainda, a julgar pelas manifestações exteriores da sua existência, um fraco partido), como o facto de não ser senão um partido suposto, e oposto a eles, um outro partido potente, isto só devia esclarecer os democratas sobre as suas próprias imperfeições que residem essencialmente neles.


Segundo a sua natureza e o seu princípio, o partido democrático aspira ao geral e ao universal, mas segundo a sua existência, enquanto partido, é somente qualquer coisa de particular — o negativo— opondo-se a qualquer outra coisa de particular — o positivo. Toda a importância e toda a força irresistível do negativo consistindo no aniquilamento do positivo, mas, ao mesmo tempo que o positivo, o negativo breve na sua ruína, devido à sua natureza particular, imperfeito e inadaptado à sua essência. O partido democrático não existe como tal, na plenitude da sua afirmação, mas somente como a negação do positivo: é porque deve, nesta forma imperfeita, desaparecer ao mesmo tempo que o positivo, para renascer espontaneamente sob uma forma regenerada e na plenitude viva do seu ser. Assim, o partido democrático torna-se nele mesmo e esta transformação não é somente quantitativa, não é um simples alargamento da sua existência actual imperfeita: Deus nos guarde! Porque um tal alargamento conduziria e uma humilhação universal e o termo final da história seria um nada absoluto. Esta transformação é, ao contrário, qualitativa, é uma revelação que vive e que anuncia a vida, é um novo céu e uma nova terra, um mundo jovem e magnífico, no qual todas as dissonâncias actuais se transformarão numa unidade harmoniosa.


É impossível corrigir as imperfeições do partido democrático pondo um termo ao carácter exclusivo da sua existência como partido por uma aparente conciliação com o positivo: seriam esforços vãos porque o positivo e o negativo são, uma vez por todas, incompatíveis. O negativo, pelo que se isole da sua oposição ao positivo e que se considere em si, parece ser em substância e sem vida. Esta inconsistência aparente é mesmo a censura capital que os positivos fazem aos democratas; esta censura repousa sobre um mal-entendido, porque o negativo não pode ser tomado isoladamente — não seria absolutamente nada! — mas somente na sua oposição ao positivo; todo o seu ser, o seu conteúdo, a sua vitalidade tendem para a destruição do positivo. “A propaganda revolucionária”, diz o Pentarque
[2], “é pela sua natureza íntima a negação das instituições existentes do Estado, porque o seu carácter mais autêntico não lhe pode determinar outro programa que a destruição de tudo o que existe”. Mas, então, é possível que o negativo, que toda a vida não tem por missão senão destruir, possa aparentemente coexistir com o que a sua natureza íntima o obriga a destruir? Só podem pensá-lo as pessoas sem chama e sem energia que não fazem uma ideia séria do positivo e do negativo.

O PARTIDO DEMOCRÁTICO PERANTE

OS REACCIONÁRIOS PUROS


No seio do partido reaccionário podem-se distinguir actualmente dois grupos principais; num figuram os reaccionários puros e consequentes, no outro os inconsequentes e conciliadores. Os primeiros concebem a oposição em toda sua pureza; sabem bem que não se pode mais conciliar o positivo e o negativo, como a água com o fogo; não vendo no negativo o lado afirmativo da sua natureza, não podem acreditá-lo e deduzem correctamente que o positivo não se pode manter senão pelo esmagamento total do negativo. Ao mesmo tempo, não dão conta que o positivo não é o mesmo positivo defendido por eles senão na medida em que o negativo se opõe ainda a ele; não vêem que, por consequência, se o positivo obtivesse uma vitória total sobre o negativo, seria, daqui para o futuro, fora da oposição, não seria mais o positivo, mas antes o fim do negativo: é preciso perdoar-se-lhes esta incompreensão, porque a cegueira é o carácter essencial de todo o positivo, enquanto que o discernimento é próprio só do negativo. Na nossa triste época sem consciência, numerosos são aqueles que pela covardia tentam esconder a eles mesmos as estritas consequências dos seus próprios princípios e esperam, assim, escapar ao risco de serem alterados no edifício artificial e frágil das suas pretensas convicções. Também é necessário dizer um muito obrigado a estes senhores, aos mais reaccionários. São sinceros, honestos e querem ser homens inteiros. Não se pode falar muito com eles, porque nunca se querem prestar a uma conversa razoável e, agora que o negativo divulgou, por toda a parte, o seu fermento de decomposição, é-lhes bem difícil, senão impossível, manterem-se no puro positivo: a tal ponto que lhes é necessário separarem-se da sua própria razão; é de ter medo deles mesmo e temer o menor ensaio de demonstração das suas convicções, o que ocasionará, com certeza, a sua refutação. Têm perfeita consciência disto: também substituem a palavra pela injúria…  Não são homens menos honestos e inteiros, ou, mais exactamente, querem ser homens honestos e inteiros. Têm como nós o ódio a toda a meia-medida, porque sabem que só um homem inteiro pode ser bom e que as meias-medidas são fonte envenenada de todo o mal.


Estes reaccionários fanáticos acusam-nos de heresia, e, se fosse possível, fariam surgir do arsenal da história a força oculta da Inquisição para a utilizar contra nós; eles negam-nos todo o sentimento bom ou humano e vêem em nós anticristos endurecidos que é permitido combater por todos os meios. Pagamos-lhes na mesma moeda? Não, seria indigno para nós e a grande causa que defendemos. O grande princípio ao serviço do qual nos pusémos dá-nos, entre outras vantagens, o bom privilégio de ser justos e imparciais sem para isso causar dano à nossa causa. Tudo o que repouse sobre um ponto de vista irredutível não pode utilizar como arma a verdade, porque a verdade está em contradição com todo o ponto de vista irredutível. Tudo o que é irredutível é forçosamente nas suas declarações parcial e fanático, porque não pode afirmar-se senão pela supressão brutal de todos os outros pontos de vista irredutíveis que lhe são opostos e que são justificados tanto como ele. Um ponto de vista irredutível, pelo único facto de existir, supõe que existem outros que deva, em razão da sua natureza particular, eliminar para se manter. Esta contradição é a maldição que pesa sobre ele, uma maldição que trás em si e que muda em ódio a expressão de todos os bons sentimentos inatos em todo o homem considerado como tal.


Somos, de certo modo, infinitamente mais felizes; certamente, como partido, opomo-nos aos positivistas, combatemo-los, e esta luta acorda em todos nós as más paixões; o facto de pertencermos, nós mesmos, a um partido torna-nos também frequentemente parciais e injustos. Mas não somos somente este partido negativo oposto ao positivo; a nossa fonte de vida, é o principio universal da liberdade absoluta, um principio que oculta nele tudo o que tem de bom no positivo e que está por cima do positivo, como também por cima de nós, considerados como partido. Enquanto partido fazemos somente política, mas não encontramos a nossa justificação senão no nosso princípio, senão a nossa causa não seria melhor que aquela do positivo, e é-nos necessário, para a nossa própria conservação, ficar fiel ao nosso princípio como inimigos da religião cristã — é só conosco que está dizer, elevarmo-nos continuamente desta existência estreita e somente política até à religião do nosso princípio universal e aberto sobre a vida. Devemos agir não só politicamente, mas também na nossa política religiosamente, o que significa ter a religião da liberdade de que a única expressão autêntica é a justiça e o amor. Sim, é conosco — tratam-nos como inimigos da religião cristã — é só conosco que está reservada esta tarefa de que fazemos dever supremo: praticar efectivamente o amor mesmo nos combates mais obstinados, este amor que é o mais alto poder do Cristo e o princípio único do verdadeiro cristianismo.


Procuramos ser justos mesmo perante os nossos inimigos, e reconhecemos voluntariamente que eles se esforçam de querer realmente o bem, e mais, que a sua natureza os tinha destinado para o bem e para uma vida animada e que só um inconcebível golpe do destino os desviou da sua verdadeira vocação. Não falamos daqueles que só se juntaram ao seu partido para deixar o campo livre às suas más paixões: os tartufos, há infelizmente muitos em todos os partidos! Não falamos senão dos defensores sinceros do positivismo consequente, que se esforça por chegar ao bem sem ter a vontade de o realizar, e aí reside o seu grande infortúnio e a sua consciência é por isso dilacerada. Não vêem no principio da liberdade mais que uma fria e vulgar abstracção, na qual a vulgaridade e a secura de vários defensores deste princípio colaboraram activamente, uma abstracção vazia de toda a vida, de toda a beleza e de toda a santidade. Não compreendem que não se deve confundir este princípio com a sua forma actual, medíocre e totalmente negativa, e que não pode vencer e realizar-se se não for a viva afirmação de si mesmo suprimindo o negativo como também o positivo. A sua opinião, dividida ainda infelizmente por muitos dos aderentes do partido negativo, é que o negativo ensaia de se propapagar enquanto tal, e pensam, exactamente como nós que a difusão do negativo faria soçobrar na vulgaridade toda a sociedade intelectual. Ao mesmo tempo, os seus sentimentos espontâneos fazem-nos aspirar de pleno direito à plenitude de uma vida apaixonada e, não encontrando no negativo mais que a humilhação desta vida, retornam ao passado, ao passado tal como existia antes que surgisse a oposição entre o negativo e o positivo. Têm razão, na medida, em que esse passado era um todo animado de vida própria apresentando-se, como tal, bem mais vivo e mais rico que o presente dilacerado pelas suas contradições. Mas cometem um grande erro quando pensam poder ressuscitar esse passado tão vivo; esquecem que a plenitude do passado só lhes pode surgir sob a forma de uma imagem desunida e quebrada no espelho das contradições actuais que fatalmente engendraram, e que este passado, pertencendo ao positivo, não é mais que um cadáver sem alma abandonado as leis mecânicas e químicas da reflexão. Adeptos do um positivismo cego, não compreendem isto, se bem que os seres vivos, em razão da sua própria natureza, ressintam perfeitamente esta falta de vida; e como eles não sabem que, pelo só facto de serem positivos suportavam deles o negativo, rejeitam para o negativo toda  responsabilidade desta falta de vida; o seu impulso para a vida e a verdade, incapaz de se satisfazer, mudou em ódio e fazem pesei o peso deste fracasso sobre o negativo. Tal é necessariamente, em todo o positivista consequente, o desenrolar interno dos seus sentimentos: isto porque a meu ver são verdadeiramente de lastimar, tendo os seus esforços uma origem quase sempre honesta.

O PARTIDO DEMOCRÁTICO PERANTE OS REACCIONÁRIOS CONCILIADORES


Os positivistas conciliadores têm uma outra posição: distinguem-se dos positivistas consequentes de duas maneiras: mais corrompidos que estes últimos pela falsa visão que têm da nossa época, não somente rejeitam pura e simplesmente o negativo como um mal absoluto, mas acordam-lhe mesmo uma justificação relativa e momentânea; e por outra parte, não possuem a mesma pureza cheia de energia, esta pureza à qual aspiram, ao menos, os positivistas consequentes e intransigentes e que assinalamos como o indício de uma natureza inteira, rica e honesta. Podemos definir o ponto de vista dos conciliadores como o da desonestidade no domínio da teoria; digo bem: da teoria, porque prefiro evitar toda a acusação contra os actos ou pessoas e porque não acredito que, na evolução dos espíritos, uma má vontade pessoal possa intervir para o entravar; contudo, é necessário reconhecer que a desonestidade teórica, em razão da sua própria natureza, leva necessariamente quase sempre à desonestidade prática.


Os positivistas conciliadores têm mais inteligência e penetração que os consequentes; são os inteligentes e os teóricos por excelência e, nesta medida, os principais representantes da época actual. Poderíamos aplicar-lhes o que, no começo da revolução de Julho, dizia um jornal francês o “Juste Milieu”. “O lado esquerdo diz: dois vezes dois, fazem quatro; o lado direito: dois vezes dois, fazem seis… e o justo centro diz: dois vezes dois, fazem cinco.” Mas achariam isto ruim! Vamos também tentar estudar muito seriamente a sua natureza confusa e difícil e com o mais profundo respeito pela sua sabedoria. É muito mais penoso dar razão aos conciliadores que aos consequentes. Estes últimos manifestam nos seus actos a força das suas convicções, sabem o que querem e falam claramente, e odeiam, tal como nós, toda a indecisão, toda a obscuridade porque as suas naturezas enérgicas na acção não podem respirar livremente senão no ar puro e luminoso. Mas com os conciliadores, é outro negócio! São indivíduos maliciosos, oh! são inteligentes e prudentes! Nunca permitem na prática à paixão da verdade destruir o edifício artificial das suas teorias; são muito experimentados, muito inteligentes para dar ouvidos à voz imperativa da simples consciência prática. Seguros dos seus pontos de vista, lançam sobre ela olhares cheios de distinção, e quando dizemos que só o que é simples é verdadeiro e real, porque só ele pode jogar um papel criador, eles pretendem, ao contrário, que só o complexo é verdadeiro: tiveram, na realidade as maiores dificuldades em o remendar e é o único sinal que permite distingui-los, a eles, os indivíduos inteligentes, da plebe imbecil e inculta (e é bem difícil vencer estes indivíduos porque, precisamente, sabem tudo!). Outras razões da sua atitude: sendo hábeis políticos, resistem a uma imperdoável fraqueza de serem tomados de imprevisto por qualquer acontecimento; enfim, ajudados pela reflexão, deslizaram em todos os recantos do mundo da natureza e do espírito e, depois desta longa e penosa viagem intelectual, adquiriram a convicção de que não vale a pena manter contactos ardentes com o mundo real. Com estes indivíduos é difícil tirar alguma coisa a claro, porque, assim como as constituições alemãs, tomam com a mão direita o que dão com a esquerda; nunca respondem com um sim, ou um não, dizem: “Numa certa medida vocês têm razão, mas contudo …”, e quando não têm argumentos dizem então: “Sim, é uma questão delicada.”


E, contudo, desejamos experimentar entrar em relações com o partido dos conciliadores que, apesar da inconsciência da sua doutrina e incapacidade de jogar um papel de direcção, é actualmente um partido forte, mesmo o mais forte, se tivermos em conta, bem entendido, o número e não as ideias. A sua existência é um sinal do tempo, e um dos mais importantes: também não é permitido ignorar este partido ou passá-lo sob silêncio.


DISCUSSÃO DA NATUREZA LÓGICA

DA CONTRADIÇÃO


Toda a sabedoria dos conciliadores consiste em pretender que duas tendências opostas, pelo facto mesmo da sua posição, são exclusivas e, por consequência, falsas, e se os dois termos da contradição, tomados no abstracto, são falsos, é necessário, portanto, que a verdade esteja entre os dois, á necessário conciliar os contrários para chegar à verdade. À primeira vista, este raciocínio parece irrefutável; nós mesmos admitimos o carácter exclusivo do negativo enquanto ele se opuser ao positivo e que nesta oposição relacione tudo consigo. Não resultará daqui que se realize e se complete essencialmente no positivo? E os conciliadores não têm razão de querer conciliar o positivo e o negativo? De acordo, se esta conciliação for possível: mas será verdadeiramente possível? A única razão de ser do negativo não é a destruição do positivo? Logo que os conciliadores fundam o seu ponto de vista sobre a natureza da contradição, quer dizer, sobre o facto que duas exclusividades opostas se supõem, enquanto tais, adversários, é-lhes necessário então permitir e aceitar que esta natureza toma toda a sua extensão; é-lhes necessário também, em razão das consequências que isto arrasta para eles, ficar fiéis ao seu ponto de vista, visto que a face da contradição que lhes é favorável é inseparável daquela que lhes é desfavorável. Ora, o que é desfavorável para eles é que a existência de um termo da contradição supõe a existência do outro: e isto não é qualquer coisa de positivo, mas bem de negativo e de destruição, É necessário chamar a atenção destes senhores sobre a lógica de Hegel onde ele faz um estudo tão notável sobre a categoria da contradição.


A contradição e o seu desenvolvimento imamente formam um dos nós principais de todo o sistema hegeliano, e como esta categoria é a categoria principal, a característica principal da nossa época, Hegel é sem réplica o maior filósofo do nosso tempo, o mais alto cume da nossa cultura moderna considerada unicamente do ponto de vista teórico. E precisamente, porque ele é este cume, porque compreendeu esta categoria e, por consequência a analisou, precisamente ele está na origem de uma necessária auto-decomposição da cultura moderna. Certamente, no princípio, era ainda prisioneiro da teoria, mas porque ele é este cume, evadiu-se, está por cima dela e postula um novo mundo prático; um mundo que não se realizará, em caso algum, pela aplicação formal e a extensão de teorias feitas, mas somente por uma acção espontânea do espírito prático autónomo. A contradição é a essência a mais íntima, não somente de toda a teoria determinada ou particular, mas ainda da teoria em geral; e assim, o momento em que a teoria é compreendida é também, ao mesmo tempo, quando o seu papel acabou. Devido a este contributo a teoria transforma-se num mundo novo prático e espontâneo, na presença real da liberdade. Mas não é aqui o lugar para desenvolver longamente esta questão, e queremos ainda, mais uma vez, debruçarmo-nos sobre a discussão da natureza lógica da contradição.


A própria contradição, enquanto tal, inclui os dois termos exclusivos num e no outro, é total, absoluta, verdadeira; não se lhe pode censurar esta natureza exclusiva à qual está necessariamente ligado um carácter superficial e estreito, porque ela não é somente o negativo, mas é também o positivo e, englobando-o inteiramente, é a plenitude total, absoluta, não deixando nada fora dela. E isto autoriza os conciliadores a exigir que não se retenha abstractamente só um dos dois termos em exclusivo, mas que, respeitando o laço necessário e indissolúvel que os une, se apreendam na sua totalidade: “Só a contradição á verdadeira”, dizem eles: “cada um dos termos opostos, tomados em si, é exclusivo e, portanto, falso; resulta que devemos compreender a contradição na sua totalidade para conhecermos a verdade”. Mas é precisamente aqui que começa a dificuldade: a contradição é bem a verdade, mas não existe como tal, ela não é como a totalidade, é somente uma totalidade em si e escondida, e a sua existência nasce precisamente da oposição e da divisão dos seus dois termos: o positivo e o negativo. A contradição, enquanto que verdade total, é a união indissolúvel da sua simplicidade e da sua própria divisão num princípio único. É essa a sua natureza em si, a sua natureza escondida que, por consequência, o espírito não pode imediatamente apreender, e precisamente porque esta união está escondida, a contradição só existe unicamente sob a forma da divisão dos seus termos e não é mais que a adição do positivo e do negativo; ora, estes termos excluem-se um ao outro tão categoricamente que esta exclusão recíproca constitui toda a sua natureza. Mas então como compreender a contradição na sua totalidade? Restam-nos, parece, duas saídas: ou bem que arbitrariamente é preciso fazer a abstracção da divisão refugiar-se nesta totalidade da contradição, totalidade simples e precedente da divisão — mas isto á impossível, porque o que escapa à compreensão nunca pode ser compreendido pelo espírito e porque a contradição, como tal, não tem existência imediata senão como divisão dos seus termos, e sem estar não existe; ou bem que é preciso procurar conciliar os termos opostos com um cuidado maternal, e é nisto que se esforça a escola conciliadora: vamos ver se tem êxito.


CARACTERES DO POSITIVO E DO NEGATIVO:
PREPONDERÂNCIA DO NEGATIVO


O positivo parece ser, primeiramente, o elemento calmo e imóvel; e mesmo é positivo unicamente porque nele não repousa nenhuma causa de perturbação e não há nada nele que possa ser uma negação, porque, enfim, no interior do positivo não há nenhum movimento, visto que todo o movimento é uma negação. Mas precisamente o positivo é tal que nele a ausência de movimento está estabelecida como tal, e assim, tomado em si, tem por imagem a ausência total do movimento; ora, a imagem que evoca em nós a imobilidade está indissoluvelmente ligada à do movimento, ou antes, elas não são mais que uma só e mesma imagem, e assim o positivo, repouso absoluto, só é positivo em oposição ao negativo, agitação absoluta. A situação do positivo relativamente ao negativo apresenta-se assim sob dois aspectos: de uma parte, traz consigo o repouso, e esta calma apática que o caracteriza não tem qualquer traço do negativo, em si; de outra parte, para conservar este repouso, afasta energicamente dele o negativo, como se tivesse qualquer coisa de oposto ao negativo. Mas a actividade que desenvolve para excluir o negativo é um movimento, e assim o positivo, tomado em si mesmo e precisamente por causa da sua positividade, já não é mais o positivo, mas o negativo; eliminando dele o negativo, elimina-se a ele próprio e corre para a sua própria perda.


O positivo e o negativo não são, em consequência, iguais em direitos como o pensam os conciliadores; a contradição não é um equilíbrio, mas uma preponderância do negativo. O negativo é, portanto, o factor dominante da contradição, determina a existência do positivo e encerra só em si a totalidade da contradição: é também ele o único que está autorizado, por direito, de uma maneira absoluta. Talvez me objectem não termos admitido que o negativo considerado abstractamente é tão exclusivo como o positivo e que o alargamento da sua existência actual imperfeita conduzirá a um achatamento universal? Sim! mas falei somente da existência actual do negativo, falei do negativo que, afastado do positivo, dobra-se pacificamente sobre si mesmo e, assim toma os caracteres do positivo. E como tal, é negado pelo positivo, e os positivistas consequentes, negando a existência do negativo e o seu pacífico comportamento executam ao mesmo tempo uma função lógica e sagrada… sem, aliás, saber o que fazem. Julgam negar o negativo, e ao contrário, negam o negativo unicamente na medida em que se identifica com o positivo; acordam o negativo deste repouso de bom burguês para que não está destinado e reconduzem-no à sua grande vocação: sem descanso e sem reservas, destruir tudo o que tiver uma existência positiva.


Reconheçamos que o positivo e o negativo têm direitos iguais, mas este último dobra-se sobre si próprio pacifica e egoisticamente e, assim, é infiel à sua missão. Mas o negativo não deve ser egoísta, deve-se dar com amor ao positivo para o absorver e, neste acto de destruição religioso, cheio de fé e de vida, revelar a sua natureza íntima inesgotável e cheia de futuro. O positivo é negado pelo negativo e, inversamente, o negativo pelo positivo; portanto, o que é comum a ambos e quem os domina? O facto de negar, de destruir, de absorver apaixonadamente o positivo, mesmo quando este procura com astúcia esconder-se sob os traços do negativo. O negativo encontra a sua justificação nesta negação radical —  e como tal está absolutamente justificado: é, na realidade, por ele que age o espírito prático bem presente como invisível na contradição, o espírito que, por esta tempestade de destruição, exorta ardentemente à penitência das almas pecadoras dos conciliadores e anuncia a sua vinda próxima, a sua Revolução próxima numa Igreja da Liberdade verdadeiramente democrata e aberta à humanidade universal.

Esta auto-decomposição do positivo é a única conciliação possível entre o positivo e o negativo, porque este último é ele mesmo, de maneira imanente e total, o movimento e a energia da contradição. Assim, qualquer outro modo de conciliação é arbitrário, e todos aqueles que tendem para uma conciliação demonstram somente pela mesma que não estão penetrados pelo espírito do tempo e que são estúpidos, ou sem carácter: não se é, na realidade, verdadeiramente inteligente e moral se se abandona por completo este espírito e se se é penetrado por ele. A contradição é total e verdadeira: mesmo os conciliadores o reconhecem. Sendo total é animada por uma vida intensa, e desta vida que abraça extrai precisamente a sua energia, do positivo ardente na chama pura do negativo.


ARGUMENTOS DOS CONCILIADORES E CRÍTICA

DESTES ARGUMENTOS


Que fazem então os conciliadores? Concedem-nos tudo isto, reconhecem, como nós, o carácter total da contradição, com a diferença de que a despojam — ou antes, querem despojá-la — do seu movimento, da sua vitalidade e da sua alma inteiramente: esta vitalidade, na realidade, é uma força prática, incompatível com as suas alminhas impotentes, e por isso mesmo acima de tudo o que possam tentar para a sufocar. Já dissémos e demonstrámos que o positivo, tomado em si mesmo, está privado de todos os direitos: não se justifica senão na medida em que opõe a sua recusa à quietude do negativo e a toda a relação como ele, em que afasta de si o negativo categoricamente e sem reservas e mantém assim a sua actividade, na medida, enfim, em que se transforma num negativo activo. Esta actividade que consigo carrega a negação, à qual os positivistas se elevam graças à potência invencível da contradição e à sua presença invisível em todas as naturezas vivas, esta actividade que constitui a única justificação dos positivistas e o único sinal da sua vitalidade, é ela precisamente que os conciliadores querem proibir. Por uma desgraça singular e incompreensível, ou antes, em razão desta desgraça perfeitamente compreensível que nasce da sua falta de carácter e da sua importância na vida prática, não conhecem nos elementos positivos senão
o que neles há de morto, de apodrecido, e dedicados à destruição recusam o que cria toda a sua vitalidade: a luta viva com o negativo, a presença da contradição.

E vejamos o que dizem aos positivistas: “Senhores, vocês têm razão em conservar os restos apodrecidos e ressecados pela tradição. Como a vida é bela e agradável nas ruínas, neste mundo absurdo da rococó cujo ar, para os nossos espíritos anémicos, é tão saudável como o ar de um estábulo para os corpos anêmicos. No que nos diz respeito, nós ter-nos-íamos estabelecido com a maior alegria no vosso mundo, num mundo onde o Verdadeiro e o Sagrado não se avaliem à escala da razão e das decisões razoáveis da vontade humana, mas àquela da longa duração e da imobilidade, um mundo como, em consequência, é certamente a China com os seus mandarins e os seus bestonados para a Verdade absoluta. Mas, o que é preciso fazer agora, senhores? Vivemos dos tristes tempos, nossos inimigos comuns, os negativos, ganharam muito terreno. Á nossa raiva para com eles é também forte, senão mais forte que a vossa, porque eles se permitem nos seus excessos desprezar-nos. Mas tornaram-se fortes e é-nos necessário — quer queiramos, quer não — levá-los em consideração, sob pena de sermos inteiramente destruídos por eles. Não sejam, portanto, tão fanáticos, senhores, concedam-lhes um lugarzito na vossa sociedade. Que vos importa se, no vosso museu histórico, eles tomam o lugar frequentemente de ruínas, aliás muito veneráveis mas completamente arruinados? Acreditem-nos: contentíssimos da honra que assim lhes testemunhais, conduzir-se-ão na vossa respeitável sociedade com muita calma e discrição. Não são, afinal de contas, senão indivíduos jovens tornados amargos pela necessidade e a falta de uma situação isenta de cuidados: é a única razão dos seus gritos a de todo o barulho que fazem, esperançados por adquirirem uma certa importância e obterem um lugar agradável na sociedade.”


Depois voltam-se para os negativistas e dizem-lhes: “Senhores as vossas aspirações são nobres! Compreendendo o vosso entusiasmo juvenil pelos puros princípios temos por vós a maior simpatia; mas, acreditem-nos, os puros princípios são na sua pureza inaplicáveis á vida; é necessário para viver ter uma certa dose de eclectismo, o mundo não se deixa guiar segundo os vossos desejos e é preciso ceder-lhe sobre certos pontos para poder exercer sobre ele uma acção eficaz: senão a vossa situação no mundo estará completamente perdida”. Os conciliadores parecem-se com os judeus polacos que, diz-se, aquando da última guerra da Polónia, queriam prestar serviços aos dois partidos em luta, aos polacos e aos russos, e foram pendurados por um e por outro; da mesma maneira, estes infelizes atormentem-se com o seu empreendimento impossível de conciliação exterior e, em agradecimento, são desprezados pelos dois partidos. É somente deplorável que na época actual falte tanta força e energia para fazer sua a lei de Sólon!
[3]


”Não passam de frases!” dirão; “os conciliadores são indivíduos, na maior parte, honrosos e tendo uma formação científica há entre eles um grande número de pessoas universalmente consideradas e altamente colocadas, e vocês apresentam-os como indivíduos sem discernimento e sem carácter!” Que posso contra isso, se isso é verdade? Não me quero entregar a qualquer ataque pessoal; os sentimentos íntimos de um indivíduo são para mim uma coisa santa e inviolável, qualquer coisa de incomensurável sobre a qual nunca me permitiria fazer um julgamento; eles podem ter para o indivíduo um valor imenso, mas, na realidade, para o mundo eles existem, na medida em que se manifestam, e o mundo vê-os tal como eles se manifestam. Todo o homem é realmente o que é no mundo real, é-me impossível chamar branco ao que é preto.


Sim, responderão, as aspirações dos conciliadores parecem-nos negras, ou mais exactamente acinzentadas; na realidade, querem somente o progresso, tendem para ele e favorizam-no mais que vós mesmos, metendo-se ao trabalho com prudência e não com a presunção dos democratas que procuram fazer saltar o mundo inteiro. Mas já vimos o que é este pretendido progresso visado pelos conciliadores, já vimos que eles não querem, no fundo nada que não seja abafar o único princípio vivo da nossa época, aliás, tão miserável, o princípio criador e rico de futuro do movimento que desintegra todas as coisas. Vêem tão bem como nós que o nosso tempo é o da contradição; admitem que é uma situação difícil e cheia de tumultos, mas no lugar de a deixarem evoluir, sob o efeito da contradição levada ao seu termo, para uma realidade nova, afirmativa e orgânica, querem manter eternamente esta situação, tão miserável e tão débil na sua existência presente, através duma infinidade de reformas graduais. É isto progresso? Eles dizem aos positivos: “Conservais o que é velho, mas permiti ao mesmo tempo aos negativos desagregá-lo pouco a pouco”. E aos negativos; “Destrui o que é velho, mas não de um só golpe nem totalmente, afim que possais ter sempre qualquer obra a fazer; quer dizer, ficai cada um na vossa exclusividade, enquanto que nós os Eleitos, guardaremos para nós o usufruto da totalidade!” Miserável totalidade que somente pode satisfazer os espíritos miseráveis! Eles despojam a contradição da sua alma prática e sempre em movimento e regozijam-se de poder, em seguida, tratá-la segundo a sua fantasia. A grande contradição actual não é para eles uma força prática do tempo presente, à qual todo o ser vivo deve abandonar-se para conservar a sua vitalidade, mas um simples brinquedo teórico. Não estão penetrados pelo espírito prático do tempo e são, por esta razão, indivíduos sem moralidade; sim, sem moralidade! eles que se vangloriam da tal forma da sua moralidade! Porque fora desta igreja da humanidade livre não haveria possibilidade de haver moralidade, sem a qual não há salvação! É preciso repetir-lhes o que o autor do Apocalipse diz aos conciliadores do seu tempo
[4];

 “Conheço a tua conduta; não és nem trio, nem quente – não és nem uma coisa, nem outra!

 Assim, já que estás tépido, nem quente nem trio, vou vomitar-te da minha boca.

 Tu imaginas-te: eis-me rico, enriqueci-me e nada me falta; mas tu não o vês; és tu que és infeliz, piedoso, pobre, cego e nu.”

Mas” dir-me-ão, “não irão cair, com a vossa separação absoluta dos extremos, neste ponto de vista abstracto desde há muito tempo superado por Shelling e Hegel? E este mesmo Hegel que tendes em tão alta consideração, não remarcou justamente que na luz pura se vê tão pouco como na obscuridade pura, e que só a união concreta dos dois torna a visão geralmente possível? E o grande mérito de Hegel não é de ter demonstrado que todo o ser vivo não vive se não possuir a sua negação não exteriormente a ele, mas nele como uma condição vital imanente, e que se fosse somente positivo e tivesse a sua negação exteriormente a ele, seria privado de movimento e de vida?”. Sei-o muito bem, senhores! Admito que, por exemplo, um organismo vivo não vive se não traz o germe da sua morte. Mas se querem citar Hegel, é necessário fazê-lo integralmente. Vereis então que o negativo não é condição vital dum determinado organismo senão durante o tempo em que aparece nesse organismo como factor mantido na sua totalidade. Vereis que chega um momento onde a acção gradual do negativo é bruscamente quebrada, transformando-se em principio independente, que este instante significa a morte deste organismo e que a filosofia de Hegel caracteriza este momento como a passagem da natureza a um mundo qualitativamente novo, ao mundo livro do espírito.

CONTRADIÇÃO SEMPRE MAIS AGUDA ENTRE

NÃO-LIBERDADE E LIBERDADE
DECOMPOSIÇÃO DAS IGREJAS E DOS ESTADOS

 Os mesmos factos reproduzem-se na história; por exemplo, o princípio da liberdade teórica despertou no mundo católico do passado desde os primeiros anos da sua existência. Este princípio foi a fonte de todas as heresias tão numerosas no catolicismo. Sem este princípio, o catolicismo teria permanecido congelado; foi, portanto, ao mesmo tempo o princípio da sua vitalidade, mas somente, enquanto foi mantido na sua totalidade como um factor simples. E assim o protestantismo fez, pouco a pouco, a sua aparição; a sua origem remonta mesmo à origem do catolicismo, mas um dia a sua progressão cessou bruscamente de ser gradual e o princípio da liberdade teórica elevou-se até se tornar um princípio autónomo e independente. É somente então que a contradição aparece na sua pureza, e vós bem o sabeis, senhores, vós que vos dizeis protestantes, o que Lutero respondeu aos conciliadores do seu tempo quando lhe vieram propor os seus serviços.


Como vemos, a ideia que faço sobre a natureza da contradição presta-se a uma confirmação não somente lógica, mas também histórica. Sei que nenhuma demonstração tem efeito sobre vós, porque, sendo sem vida, vós tendes como ocupação preferida o domínio da história, e não é sem razão que vos consideraram arrumadores insensibilizados! “Não estamos ainda vencidos” talvez me respondam os conciliadores; “tudo o que dizeis sobre a contradição é verdadeiro; mas há uma coisa com que não podemos estar de acordo, é que a situação actual esteja tão má como a pretendeis. Há contradições na nossa época, mas não são tão perigosas como vós o assegurais. Vejamos, em toda a parte reina a calma, em toda a parte a agitação está sossegada, ninguém pensa na guerra e a maioria da nações e dos homens vivos actualmente empregam todas as suas forças para manter a paz; é que eles sabem que, sem a paz, não podem ser favorecidos os seus interesses materiais, que parece terem-se tornado o principal negócio da política e do mundo civilizado. Que excelentes ocasiões apareceram para fazer a guerra e para destruir o regime existente, desde a revolução de Julho até aos nossos dias! Durante estes doze anos produziram-se tais complicações que nunca se acreditou ser possível a sua solução pacífica, houve tantos momentos em que um conflito geral parecia inevitável e que as mais terríveis tempestades nos ameaçavam: e, entretanto, as dificuldades, pouco a pouco, desapareceram, tudo ficou tranquilo e a paz parece ter-se estabelecido para sempre sobre a terra”!


A paz, dizeis vós: como se se pudesse chamar paz a isto! Sustento, ao contrário, que nunca as contradições estiveram tão acentuadas como no presente; afirmo que a eterna contradição que existe desde sempre, mas que, durante a história, não fez mais que crescer e desenvolver-se esta contradição entre a liberdade e a não-liberdade, tomou o seu impulso no nosso tempo tão análogo aos períodos da decomposição do mundo pagão e atingiu o apogeu! Não leram sobre o frontão do templo da Liberdade erigido pela Revolução estas palavras misteriosas e terríveis: Liberdade, Igualdade, Fraternidade? Não sabeis e não sentis que estas palavras significam a destruição total da presente ordem política e social? Nunca ouviram dizer que Napoleão, esse pretenso vencedor dos princípios democráticos, tem, como filho digno da Revolução, propagado por toda a Europa, pela sua mão vitoriosa, os princípios igualitários? Talvez ignorais tudo sobre Kant, Fichte, Schelling e Hegel, e não sabeis verdadeiramente nada de uma filosofia que, no mundo intelectual, estabeleceu o princípio da autonomia do espírito, idêntico ao princípio igualitário da Revolução? Não compreendeis que este princípio está em contradição absoluta com todas as religiões positivas actuais, com todas as Igrejas existentes?


”Sim”, respondeis, “mas estas contradições são justamente da história antiga; em França, a revolução foi vencida pelo sábio governo de Louis-Philippe, e foi Schelling, ele próprio, que recentemente derrubou a filosofia moderna, quando tinha sido ele um dos seus maiores fundadores. Em toda a parte, e agora em todas as esferas da vida, a contradição será superada!” Acreditais verdadeiramente nesta resolução, nesta vitória sobre o espírito revolucionário? Sois, portanto, cegos ou surdos? Não tendes olhos nem orelhas para perceber o que progride à vossa volta? Não, senhores, o espírito revolucionário não foi vencido; a sua primeira aparição abalou o mundo inteiro até aos seus fundamentos, em seguida apenas se dobrou sobre si próprio, ocultou-se somente em si para pouco depois, de novo, se anunciar como o princípio afirmativo e criador, e escava agora sob a terra como uma toupeira, segundo a expressão de Hegei! Que não trabalha inutilmente, é o que mostram todas estas ruínas que juncam o solo do edifício religioso, político e social. E falais de superação da contradição e de reconciliação! Olhai à vossa volta e dizei-me o que ficou vivo do velho mundo católico e protestante? Falais de vitória sobre o princípio negativo! Não leram nada de Strauss, de Feuerbach e de Bruno Bauer, não sabeis que as suas obras estão em todas as mãos? Não vêem que toda a literatura alemã, todos os livros, jornais e brochuras estão penetrados por este espírito negativo e que mesmo as obras dos positivistas, inconsciente e involuntariamente, o estão também. E é a isto que chamais paz e reconciliação!


Sabemos que a humanidade, em razão da sua nobre missão, não pode encontrar a sua satisfação e o seu apaziguamento senão no princípio prático universal, num princípio que com força abraça a si as mil diversas manifestações da vida espiritual. Mas onde está este princípio, senhores? Entretanto, chegamos por vezes, durante a vossa existência ordinária tão triste, a viver instantes cheios de vida e de humanidade, desses instantes em que rejeitais para longe de vós os móveis mesquinhos que animam a vossa vida quotidiana e aspirais à verdade, a tudo o que é grande e santo; respondam-me então sinceramente, a mão sobre o coração: já encontrásteis em alguma parte qualquer coisa de vivo? Já alguma vez, entre as ruínas que nos rodeiam, descobriram este mundo tão desejado onde poderíeis renascer para uma nova vida num abandono total e numa comunhão perfeita com toda a humanidade? Seria isto, por acaso, o mundo do protestantismo? Mas esse está atormentado pelas mais horríveis desordens, e em quantas seitas diferentes não está ele dividido? “Sem um grande entusiasmo geral”, diz Schelling, “só há seitas, mas não há opinião pública”. E o mundo protestante actual está em mil lugares a ser penetrado por um tal entusiasmo, porque é o mundo mais prosaico que se possa imaginar. Seria isto, por acaso, o catolicismo? Mas onde está o seu antigo esplendor? Ele, que foi o mestre do mundo, não se tornou o instrumento submisso de uma política imoral, estranha aos seus princípios? Ou talvez encontreis a vossa satisfação no Estado tal como é presentemente? Pois bem! isto seria uma bonita satisfação! O Estado consagrou-se, agora, às contradições interiores mais extremas, porque o Estado sem religião e sem princípios sólidos comuns não pode viver. Se vos quereis convencer, olhai somente para a França e Inglaterra: prefiro não falar da Alemanha!

Olhai para vós mesmos, senhores, e digam-me sinceramente se estais contentes convosco e se vos é possível ser? Não vos pareceis todos, sem excepção, com os tristes e miseráveis fantasmas da nossa triste e miserável época? Não estais cheios de contradições? Sois homens inteiros? Acreditais verdadeiramente em alguma coisa? Sabeis o que quereis e, sobretudo, sois capazes de querer alguma coisa? O pensamento moderno, esta epidemia da nossa época, terá deixado viva uma só parte de vós, não vos penetrou até ao recôndito, paralisados e quebrados? Em verdade, senhores, é necessário que reconheçam que a nossa época é uma época miserável e que nós somos as crianças ainda mais miseráveis!

DA DESTRUIÇÃO DO VELHO MUNDO SURGIRÁ

UMA ORDEM NOVA


Mas por outro lado manifestam-se à nossa volto fenómenos precursores: são o sinal de que o Espírito, esta velha toupeira
[5], acabou o seu trabalho subterrâneo e irá
brevemente reaparecer para fazer a sua justiça. Formam-se, por todo o lado, e sobretudo em França e na Inglaterra, associações de tipo, ao mesmo tempo, socialista e religioso, que, inteiramente à parte do mundo político actual, irão buscar a sua vitalidade em fontes novas e desconhecidas, desenvolvendo-se e propagando-se secretamente. O povo, a classe das pessoas pobres que constituem sem dúvida alguma a imensa maioria da humanidade
[6], essa classe de que já se reconheceu os direitos em teoria, mas que o seu aparecimento e a sua situação de condenados, até ao presente, à miséria e à ignorância e, do mesmo modo, a uma escravidão de facto, esta classe que constitui o povo propriamente dito, toma por toda a parte uma atitude ofensiva; começa a enumerar os seus inimigos, cujas forças são inferiores às suas, e a reclamar a efectivação dos seus direitos que todos já lhe reconheceram. Todos os povos e todos os indivíduos estão plenos de um vago pressentimento, e todo o ser normalmente constituído espera ansiosamente este futuro próximo, onde serão pronunciadas as palavras libertadoras. Mesmo na Rússia, esse império imenso de estepes cobertas de neve que conhecemos tão pouco e a quem se abre talvez um grande futuro, mesmo nesta Rússia se amontoam nuvens escuras, precursoras da tempestade. Oh! a atmosfera sufoca o está cheia de tempestades!


[1] Bakunine referia-se, sem dúvida, à passagem do Evangelho segundo S. Mateus “Não é dizendo-me: Senhor! Senhor! que se entra ao reino dos céus, mas é fazendo a vontade de meu Pai que está nos céus” (A Bíblia, editada pela Escola Bíblica do Jerusalém — pág. 1298).

[2] Segundo uma nota de Rainer Beer (Bakounine — “Phllosophie der Tat”, Edições Hegner, em Colónia) este sobrenome, designaria um teórico do Direito, Fréderic Julius Stahl (1820-1861), um dos criadores desta concepção cristã-conservadora que concebe ao Estado e ao Direito uma origem divina

[3] Por volta da 594 a. o. Solon promulgou em Atenas ame isi surpreendente: perda parcial ou total dos direitos políticos (atimie) dos cidadãos culpados de abstenção política em caso de agitação ou da perigo necional Por volta de 454 a. o., depois de Marathon e antes da grande Invasão de Xerxes, esta lei tinha cado em desuso e para combater os sd,,ersár]os do rearmamento de Atenas, Thérmisrode lisa o ostracismo.

[4] As linhas que se seguem são extraídas do Apocalipse; cartas às Igreja da Ásia (Laodicée). O texto referido é reproduzido da Bíblia (Escola Bíblica de Jerusalém), pág. 623. O texto alemão de Bakunine está inteiramente conforme a tradução apresentada.

[5] Alusão e essa passagem de Haqel: -Frequentemente parece que o espirito esquece-se, perde-se; mas no interior está sempre em opoolçâo cora ele mesmo. é progresso interior, como Hemlat diz do eepprilo de seu pai- ‘Bom trabalho, velha toupeiral». até ao momento em que encontre nele mesmo tanta força para levantar a crosta terrestre que o separado sol”. Marx utilizou e mesma imagem: “Logo que a revolução tenha acabado o seu trabalho subterrâneo, a Europa saltará do seu lugar e rejubilará: “Bem escavado, velha toupeira!”

[6] Comparar Proudhon (“Filosofia do Progresso”, 1853): A classe assalariada, a mais numerosa e a mais pobre, tanto mais pobre do que numerosa.”

A Emergência Anarquista I

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Fonte: Liga-RJ

A emergência anarquista é uma proposta de estudo aproximativa dos conceitos anarquistas e libertários contemporâneos. Não sendo um estudo conclusivo que se propõe a afirmar conceitos fechados ou uma teoria unitária, traduz nossa leitura do próprio movimento anarquista, assim como do universo libertário, respeitando a multiplicidade, pluralidade e diversidade nos campos organizativos de ações, métodos e ideias. Tampouco é este um estudo que busca resgatar as teorias clássicas do anarquismo, não as desconsiderando ou estando desconectado do processo histórico, mas partindo de uma análise de que as manifestações recentes de novos atores sociais emergentes no campo político e econômico não estão necessariamente conectadas – pelo menos conscientemente – ou endividadas para com os clássicos teóricos do campo de ação anarquista. Obviamente que os conceitos amadurecidos e sistematizados pelos pensadores anarquistas e libertários estão presentes nesta reflexão, mas não como um tema central ou que nos ocupe como objeto de nossa pesquisa. Antes disso, são eles conceitos – como dito anteriormente – sistematizados a partir de uma prática, é esta prática que nos interessa, não diminuindo a importância deste esforço de teorização, mas julgamos que tais teóricos e suas teorias já são devidamente debatidas em outros estudos, não menos importantes e não menos urgentes. 

É saudável pontuar uma separação entre libertários e anarquistas. Entendemos aqui todo anarquista como um libertário, mas o campo libertário é mais amplo que o anarquista, abarcando outras tendências que nem sempre terão as características definidoras de uma prática e um pensamento anarquista. Dada a diversidade do movimento libertário e a consequente confusão de suas zonas de contingência com o movimento anarquista, acreditamos que reforçar a ideia desta sinalização é um ponto importante de partida para as reflexões que seguirão.   

Creio ser necessário, a título de justificativa, deixar clara nossa posição sintetista enquanto anarquistas. Tal posição obviamente guiará as questões que surgirão no decorrer da leitura deste ensaio e o próprio objetivo de aproximação, sem a pretensão de tirarmos daqui conclusões definitivas acerca das práticas e ideias anarquistas correntes. Sintetismo ou sinteticismo, em poucas palavras, pode ser entendido aqui como uma posição anarquista e libertária que respeita e encoraja múltiplas formas de ação no âmbito anarquista, busca uma síntese entre as correntes de pensamento que emergem ou orbitam o universo libertário e o movimento anarquista, rejeita, portanto, os planos fechados, plataformas ou programas que tendem a controlar o comportamento e delegar funções aos corpos que se movem em sentindo libertário, respeita a livre federação e aglutinação coletiva, sem, contudo, se fechar ao diálogo com as correntes de pensamento e organizações anarquistas que tendem ao plataformismo ou ao especifismo. Entendemos, portanto, que a pluralidade e multiplicidade de métodos e ações em diferentes campos e de formas variadas são elementos benéficos à construção de uma sociedade livre.

Faz-se necessária uma reflexão para dentro do próprio movimento anarquista. Esta esbarrará, como previsto, nas zonas de contingência que existem com o universo libertário e a prática autonomista. A emergência de ações coletivas e ainda individuais que se autoidentificam ou são lidas como – e não de forma ilícita – práticas anarquistas, impelem-nos a uma leitura e ao esforço de compreensão das mesmas em uma articulação com a conjuntura atual do movimento como um todo.

O recente e notório descontentamento popular com as estruturas governamentais representativas, as históricas desigualdades econômicas inerentes ao modo de produção capitalista somadas ao seu ciclo de crises estruturais e rupturas que abateram o sistema de forma global nas últimas duas décadas e, em uma perspectiva que nos coloca geográfica, histórica e socialmente inseridos no contexto latino-americano, ao total fracasso das estruturas sindicais em comportar as demandas da classe trabalhadora, geraram uma série de ações espontâneas que apontam para uma tendência autonomista e em alguns casos muito próximas das práticas que nos remetem à tradição anarquista. Seja o fenômeno das assembleias populares ou trabalhadoras que primam por métodos horizontais, sejam os recentes movimentos grevistas puxados pela base em detrimento dos grupos dirigentes de seus respectivos sindicatos e mesmo contra eles em alguns casos, os movimentos que pautam a questão da mobilidade urbana e o direito a cidade, reivindicando uma gestão mais direta do sistema de transportes e organizando-se de forma descentralizada e até federalizada, a tendência a autogestão que é identificada nas ocupações promovidas pelos movimentos pautados na questão da moradia – na verdade a falta dela – e a disseminação e radicalização de tendências libertárias que visibilizam questões como o direito ao corpo e a descriminalização das drogas. Todas estas tendências nos remetem de alguma forma ao universo que orbita ou emerge do conjunto de práticas e métodos anarquistas, autonomistas ou libertários. A presença deles é sentida em todos estes campos, sem que, contudo, estes possam ser classificados como movimentos anarquistas de fato.

Todos estes movimentos que desenvolvem em seu seio tais métodos o fazem por uma simples questão conjuntural, impelidos pelas necessidades organizativas, muito mais do que por tendência ideológica consciente, ainda que agrupamentos atuem no interior de tais movimentos e assim o façam de forma consciente não é possível afirmar que isso vale para o todo. Tal ação não configura o direcionamento da organização subsequente no sentido de controle do movimento por parte destes mesmos grupos atuantes.

Obviamente que as formas de organização assumidas pelos movimentos contemporâneos levaram consequentemente à exposição midiática do anarquismo e subsequentemente a um processo de criminalização da prática anarquista. Tal movimento criminalizante não é exclusividade do Brasil ou da América Latina – apesar dos recentes e alarmantes eventos de perseguição verificados neste continente – é um processo que se desenvolve em âmbito global e de forma articulada.

Tal situação nos leva a algumas questões da qual não podemos e não devemos nos furtar: é possível afirmar que há “O anarquismo” ou os anarquismos? O anarquismo ou os anarquismos constituem uma teoria político-econômica-social, uma ideologia, ou um conjunto de práticas libertárias em que seja mais correto falar em “cultura anarquista”? É desejável uma unidade de luta articulada, ainda que sem unidade teórica ou a potência do movimento anarquista se encontra precisamente em sua atomização e descentralização total, onde – perdoem a metáfora geológica – nos remete a uma configuração insular de arquipélago, encontrando-nos isolados e atuando em frentes desconectadas, desarticuladas e desprovidas de comunicação? Em que ponto os movimentos anarquista e autonomista encontram zonas de contingência e de separação entre si no campo libertário de ação?

Tais questões nos afligem e julgamos merecedoras de reflexão caso desejemos seriamente construir um mundo onde uma sociedade livre seja possível para além da utopia. Não só são questões provocadoras que justificam a reflexão e um amplo debate por uma maior articulação – se esse é nosso desejo enquanto companheiros e companheiras de luta – como são questões urgentes motivadas por uma conjuntura que nos indica uma articulação global de repressão às práticas anarquistas e libertárias. São destas questões que vamos nos ocupar nesta série de estudos que, apesar de constituírem uma ainda tímida provocação aos companheiros e companheiras, temos motivos para crer que são questões solúveis e de tomadas de posições possíveis dentro de nosso campo de atuação em direção a construção de um mundo novo, igualitário e liberto de opressões.

(Estado espanhol) CNT contra a perseguição ao movimento anarquista

final

Fonte: Coletivo Libertário Évora

A CNT solidariza-se com todos os detidos na operação policial de 30 de Março

O Estado volta a recorrer à repressão e tenta, de novo, criminalizar a ideologia e os colectivos anarquistas. Para isso põe em marcha todo o seu poder mediático e judicial, tentando desta maneira instalar na sociedade um clima de medo e insegurança que justifique a aprovação e a aplicação de novas leis, cada vez mais repressivas e reaccionárias. Precisam de um inimigo e fabricam-no. Primeiro fazem as leis; depois procuram alegados culpados a quem elas se apliquem. Com isto pretendem esconder ao serviço de quem está toda a máquina do estado, que não é senão as grandes empresas e a banca.

Quando, apesar dos apelos à participação nos processos eleitorais, se mantêm ou aumenta a resposta na rua contra os cortes sociais e laborais e a perda de direitos, o estado necessita reforçar as suas ferramentas repressivas e de controlo social. E põem-nas em acção contra aqueles que o enfrentam.

As prisões e as buscas de hoje acontecem, precisamente, poucos dias depois de ser aprovada a nova Lei de Segurança Cidadã, mais conhecida como Lei Mordaça, à qual não só se opõem os movimentos sociais e sindicais mais combativos. Instituições tão pouco suspeitas de serem “anarquistas Terroristas” como ONG’s e outros movimentos sociais, a União Europeia ou a ONU também manifestaram o seu repúdio ou as suas reservas face a esta lei.

A relação entre os dois factos parece-nos nítida. As operações policiais acompanham a aprovação de uma lei tão controversa, jogando aqui o movimento e os colectivos anarquistas o papel de vitimas “à mão de semear”: como não se apresentam a eleições nem têm lugar fixo nas tertúlias televisivas, as suas denúncias ficam silenciadas pelo ensurdecedor ruído mediático. Ao mesmo tempo que a lei gera alarme social e procura uma base de apoio a política do quero e posso reprime qualquer reivindicação que ponha em perigo o seu controlo sobre a resposta social e sindical aos seus ataques-

 O único terrorismo real de que sofre a classe trabalhadora é o que se exerce a partir do poder: os despejos, o desemprego, o desmantelamento do sistema de saúde e de educação… Como gritamos nas ruas “violência é o dinheiro não chegar ao fim do mês”. Não podemos permitir que espezinhem os nossos direitos mais básicos. Antes prendiam manifestantes e grevistas. Hoje prendem anarquistas. Amanhã serás tu. E então já será tarde.

 Não à repressão. Não à prisão de quem luta.

Secretariado Permanente do Comité Confederal da CNT

http://www.cnt.es/noticias/cnt-en-contra-de-la-persecuci%C3%B3n-al-movimiento-anarquista

relacionado: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2015/03/30/novas-detencoes-de-anarquistas-no-estado-espanhol/

https://directa.cat/policia-espanyola-dete-28-persones-en-una-operacio-contra-collectius-anarquistes

https://www.diagonalperiodico.net/libertades/26261-26-detenciones-madrid-la-segunda-parte-la-operacion-pandora.html

Reforma política é segunda demão no estado

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Por Gilson Moura Henrique Junior

O uso pelos partidos da ordem e pela esquerda partidária da reforma política como panaceia para a solução dos problemas do país esconde uma preguiça intelectual fortemente aliada ao oportunismo eleitoreiro.

O primeiro problema das propostas de reforma política que ela não é política em seu inteiro teor, ela é uma reforma eleitoral, e tímida. Enquanto reforma não abrange sequer outras formas de políticas fora do eixo eleitoral, mas ainda dentro da institucionalidade, como a expansão dos comitês e conselhos que já existem na esfera municipal, para além de conselhos consultivos ou expansão para as esferas estaduais e federais com ganho de poderes e capilaridade. Enquanto política as propostas de reforma sequer tangenciam uma discussão sobre o caráter democrático do estado e a necessária repactuação deste para que o exercício do poder não seja platônico, onde uma elite dirigente quase intocável conduz a população conforme foi eleita para fazer, nas palavras de Eduardo cunha, presidente da câmara.

E isso ainda sendo discutida a reforma política nos parâmetros reformistas do estado conforme se propõe a esquerda partidária e os partidos da ordem, sequer comecei a debater o problema sob a luz da superação do sistema e do estado, coisa que pelo menos superficialmente os partidos da oposição de esquerda se dizem desejosos.

Sob o ponto de vista para além do estado é preciso dizer que o que se deveria exigir é mais que reforma do estado, que nada mais é que uma segunda demão na pintura exterior do aparato estatal ampliando direitos e deveres sob o ponto de vista eleitoral reduzindo pontual e mediocremente a questão política à financiamento público de campanha, recall e plebiscito.

Até por exigência ecológica é preciso que se exija uma descentralização absoluta do processo decisório sobre economia, energia e gestão a ponto de obrigar a um repensar de produção e consumo a níveis radicais, não por uma preferência ideológica descolada da realidade, mas por absoluta necessidade de manutenção da vida na terra.

Enquanto a economia não for lógica ou ecológica, enquanto a gestão de recursos entendê-los ainda como infinitos e ignorar resíduos, ignorar a ruptura metabólica causada pela extração de recursos e pela geração de resíduos, em escala geométrica e reproduzida de forma praticamente infinitesimal, enquanto a compreensão da casa (oykos+logos) for secundarizada pela administração da casa (oykos+nomos), correremos o risco da casa cair.

E é esse o eixo que grita a necessidade de ir além da reforma da casa, ou de parte dela ou de parte superficial de parte dela, é fundamental que se grite a obrigatoriedade da exposição á população do risco do modelo em curso de gestão da vida das pessoas e recursos para a vida no planeta, para a existência das civilizações e a partir disto é fundamental horizontalizar os processos decisórios, torná-los comunais, organizados de rua a rua, bairro a bairro, vila a vila, cidade a cidade, estado a estado, para que cada ponto onde a ação econômica atinge e afeta, produzindo danos ambientais, sociais, comunitários,etc, tenha poder para decidir sobre seus rumos, para decidir sobre como é afetado, para além da decisão distante de gestores que sequer sabem da existência dos pontos atingidos por suas ações.

Se nem como reforma isso é posto em perspectiva, diante da absoluta necessidade de por em prática uma gestão democrática radical da produção de alimentos, da produção industrial, de energia, e do consumo disso tudo, inclusive sob o ponto de vista da saúde, se isto não é visto como política e parte do que se propõe como reforma para a política, que reforma e que política é essa?

Que política e essa onde diante da absoluta necessidade de, por exemplo, discutirmos a produção de alimentos centralizada e cujo resultado dela percorre milhares de quilômetros para chegar às mesas dos consumidores, recebendo para isso uma carga absoluta de produtos químicos para sua conservação até lá e com eles afetando a saúde dos consumidores, o que ocorre é a omissão, o silêncio e a troca disso por plebiscitos aqui e ali e um recall ou outro?

Que política é essa onde transgênicos e agrotóxicos são naturalizados e entendidos como algo externo à população que no máximo que se terá de acesso á decisão é se um dia vier, no fantástico mundo da institucionalidade, a plebiscito? E como viria? Por que o inteiro teor das leis não pode ser discutido por quem sofre com elas?

Cadê a política dessas reformas?

A grande reforma que daria solução para os problemas do país, dos países, com a democracia só pode ser a reforma definitiva do estado, que é sua superação e substituição por processos horizontais de decisão, organizados em confederações de conselhos organizadas em cantões, pela descentralização da própria ideia artificial de nação, de Brasil, França ou seja lá o que os estados nacionais tomam pra si como se fossem proprietários da população que reside entre as cercas embandeiradas que separam quintais. População esta forçada a se entender como parte de uma ficção, por vezes na base da porrada, que não tem nenhuma raiz na constituição coletiva além de elementos políticos externos à ela, construído nos altos fornos das elites políticas.

Pra que perder tempo com reformas desta ficção? Não é melhor criar uma outra estória, um outro riso, uma outra peça, um outro poema, uma outra canção?

Sacco & Vanzetti e o Significado da Palavra “Anarquista”

Postado em em 29 de novembro de 2014

A poetisa americana Edna St. Vincent Millay

O texto original, da autoria de Maria Popova, foi publicado no site Brainpickings. A tradução é de Camila Nogueira.

Em 1921, os imigrantes italianos Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, de trinta e poucos anos, foram presos sob acusação assassinato de um guarda e de um contador durante um assalto em Massachusetts. A evidência balística utilizada para condená-los era altamente duvidosa e múltiplas testemunhas afirmaram ter visto Sacco em outra cidade no dia do suposto crime. O caso se arrastou por anos a fio, até que Sacco e Vanzetti foram condenados à morte em abril de 1927. Muitos, inclusive um grande número de intelectuais, acreditavam que a condenação era equivocada e que sua principal intenção era punir ambos os homens por suas históricas como ativistas sociais e anarquistas – e que, assim sendo, a sentença representava o fracasso não apenas da justiça – e sim da própria humanidade. Edna St. Vincent Millay constava entre os ultrajados – poetisa, amante da música, escritoras de cartas de amor apaixonadas e a terceira mulher a receber o Prêmio Pulitzer de Poesia.

No dia 22 de agosto de 1927, Millay, na época com trinta e cinco anos, enviou uma carta ao governador de Massachusetts, Alvan T. Fuller, na época um dos homens mais ricos da América. A carta pode ser encontrada na compilação The Letters of Edna St. Vincent Millay. Millay, que estava escrevendo um artigo sobre aquele caso, o havia entrevistado naquela mesma tarde.

Millay escreveu:

Vossa Excelência,

[…]

Esta noite, com a humanidade em dúvida, com esta nação imersa na dúvida, com os olhos da Europa inteira voltados para Massachusetts e para os Estados Unidos em lancinante dúvida e angústia – o senhor ainda tem certeza? Nem mesmo uma leve sombra de dúvida atormenta a sua consciência? Porque, embora seu espírito seja de fato forte, continua sendo o espírito vulnerável de um ser humano. O senhor não necessita, nesse momento, do auxílio de um espírito superior ao seu próprio?

Tente refletir. Reflita tanto quanto puder.

Que caminho Ele teria percorrido, este Jesus em quem o senhor acredita? Certamente não o senhor percorreu!

Você me prometeu, e eu acredito em você, que pensaria em tudo o que eu disse. Quero que cumpra sua promessa agora mesmo. Fique, por um instante, sozinho consigo mesmo. Olhe para dentro da sua própria alma. Deixe que tudo abandone sua mente perturbada, tudo exceto isso: – “Que caminho Ele teria percorrido, o Jesus em quem eu acredito?”

Milhões de vozes formam a minha própria quando imploro: Responda às nossas dúvidas. Exerça a clemência, pois sua posição permite que o faça.

Esta noite, Massachusetts exige um grande homem. Não é tarde demais para que o senhor seja esse homem.

Edna St. Vincent Millay”

St. Vincent Millay protesta contra a condenação: "A honra americana morre com Sacco e Vanzetti".

O governador jamais ascendeu à grandiosidade. Millay foi presa por participar de protestos públicos contra a sentença e da “vigília da morte”. Sacco e Vanzetti foram executados pouco depois da meia-noite do dia 23 de agosto.

Nos três meses que seguiram a execução, Millay continuou a investir na história e na ampla implicação cultural da mesma. No dia 9 de novembro de 1927, a revista semanal nova-iorquina The Outlook publicou seu artigo sobre a decisão. Seu título era “Fear” [“Medo”] – uma espécie de carta aberta ao público, uma opinião contra a execução dos dois homens e, em um sentido mais amplo, da própria pena de morte. Ela escreveu:

Na superfície de um Cristianismo já tão desonrado e desfigurado pelos crimes cometidos pela Igreja, esta mancha não é tão escura. Frente a uma liberdade enigmática, cutilada por todos os crimes cometidos pelo próprio Estado, um dilaceramento como este é distinguido com sofrível dificuldade.

E você está certo; o melhor é esquecer que os homens morrem. Até agora, não inventamos nenhuma maneira de derrotar, enganar ou subornar a morte. A qualquer momento, uma nuvem pode se partir sobre nós e deixar que a lança dourada da morte penetre em nossos corações. A qualquer momento, a terra pode se partir ao meio e a mão da morte pode segurar nossos tornozelos e nos arrastar ao abismo. A qualquer momento, o vento pode soprar e varrer o teto de nossas casas, transformando-nos em poeira. Se isso não acontecer, e daí? De qualquer modo, vamos morrer em breve. E o melhor é esquecer que as coisas são assim.

Mas que homens, antes da hora, impiedosa e arbitrariamente, sejam arrebatados da luz do sol em direção a escuridão do túmulo devido à cegueira ou ao medo de seus companheiros; – não podemos nos esquecer disso.”

Millay argumenta que a atrocidade da sentença em si foi amplificada pelo equívoco da justiça; que, em sua opinião, condenou dois homens inocentes à morte a fim de puni-los por seu ativismo social:

“Se você se deslocasse de seu próprio corpo por um instante e contemplasse sua existência, você se sentiria perturbado, eu imagino, e muito menos tranquilo e confiante, ao descobrir que é possível que um homem como você, inocente de qualquer crime, seja preso e condenado à morte. Não importa se aqueles homens, a quem não pretendo nomear, cometeram ou não assassinato – o fato é que não foi este o motivo de sua execução. O crime pelo qual os executaram foi o seguinte: Eles respiraram sobre a janela congelada e olharam para fora.

[…]

É assim que você enxerga a situação: Esses homens eram anarquistas, e é melhor mesmo que fiquem fora do caminho… É provável que fossem assassinos. Não que importe de verdade. Em qualquer caso, é muito melhor que eles fiquem longe do seu caminho. Foi a palavra Anarquista que os conduziu à cadeira elétrica, a palavra e asua ignorância do significado dela.

Um anarquista, insiste você, é um homem que produz bombas e as coloca sob a Casa Civil, e isso é tudo. Mas não é verdade. Ao contrário do que você pensa, isso não é tudo. A pessoa que você tem em mente não é um anarquista, e sim um bombardeiro – e você poderá encontrá-lo em qualquer lugar, em qualquer grupo; entre anarquistas, fascistas, modernistas, agentes da Lei Seca, fundamentalistas e principalmente entre membros da Ku Klux Klan. Ele é aquele indivíduo que, quando não gosta de determinada coisa, lincha-a, despedaça-a, arranca-a, amaldiçoa-a… – ou a bombardeia. O nome dele é legião, e você o encontrará em toda parte.

Um anarquista, segundo o dicionário, é uma pessoa que acredita na bondade natural dos seres humanos; e que, se deixados por conta própria, eles governariam a si mesmos – a partir de um acordo mútuo – de modo muito mais efetivo e mais pacífico do que se fossem governados por um governo violento.”

Bartolomeo Vanzetti (esquerda) e Nicola Sacco, algemados

Millay argumenta também que a posição dos homens como imigrantes os tornou mais vulneráveis à injustiça.

Esses homens eram náufragos em nosso litoral, e nós, uma tribo ignorante e selvagem, os matamos porque seu discurso e seus modos não eram compatíveis com os nossos – e porque, para a mente inculta, aquilo que é estranho é necessariamente diabólico e perigoso.

Esses homens foram executados porque preocupavam você; e seus filhos sabem disso. Sim – As mentes dos seus filhos são como piscinas límpidas que refletem fielmente tudo que passa por sua margem; na piscina de sua própria mente, quando uma imagem alheia se curva, um peixe de terror pula para encontrá-la, danificando sua reflexão”.

As palavras selecionadas por Millay para encerrar sua linha de raciocínio mostra a profundidade com a qual o caso havia tocado uma parte secreta da sua própria humanidade e, até os dias de hoje, quase um século depois, sua mordacidade é usada em debates sobre a pena de morte:

“Eu sou livre para dizer tais coisas porque não sou anarquista, embora você vá dizer que sou. Na sua visão, a pessoa que consente em arriscar-se para o bem de outra é muito insensata, a menos que ambas pertençam à mesma família, à mesma fraternidade ou no mínimo ao mesmo partido político. No que diz respeito a você e ao seu vizinho, você quer o bem dele; mas nem tanto assim.

[…]

Eu me atrevo a dizer tais coisas porque não sou anarquista, mas não só por isso. Eu me atrevo a dizer tais coisas porque minha liberdade individual, meu poder de escolha e até mesmo minha vida pessoal não são, atualmente, tão importantes para mim como foram um dia. Mesmo a morte, aquela intrusa, aparece para mim de vez em quando, principalmente quando penso no que aconteceu em Boston há dois meses. Nesses momentos, a morte aparece para mim como uma espécie de cômodo escuro onde podemos descansar nossos corpos desgastados afastados do resto do mundo, deixando a varredura da travessia para aqueles que ainda acham importante varrê-la. Como se realmente importasse se a travessia está limpa ou não quando, de todas as pessoas que passam por ela no curso de um dia, uma em cada dez mil possui uma faísca de coragem em seu coração e um pouquinho só de amor (além do amor que um gato sente por uma lareira) por qualquer criatura além de si própria. O mundo, o mundo físico, que um dia foi tudo para mim, de tempos em tempos me parece um labirinto sem saída, um oceano sem ilha, e então nada é capaz de me consolar. A beleza de algumas coisas não mais compensa a feiúra do homem, sua maldade, sua ganância, sua hipocrisia”

O anarquismo que aí vem

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

(O texto que hoje traduzimos foi publicado no órgão da FAI, Tierra y Libertad, de Fevereiro, colocado na internet, mas depois apagado. No entanto, já tinha sido publicado em diversos outros sites de língua castelhana. É um texto polémico cujo autor afirma que os anarquistas têm que deixar as análises do passado e olhar mais para a sociedade em que vivem, onde as próprias relações de poder se estão a alterar).

Andrea Papi

Para muitos, o mundo actual é pouco atractivo e para muitos outros está-se a tornar inabitável. Uma condição difusa que, por si mesma, deveria ser suficiente para empurrar as massas humanas insatisfeitas para uma alternativa de libertação social. O fracasso histórico do bolchevismo, entre outras coisas, deveria ter, pelo menos em teoria, favorecido a adesão aos movimentos anarquistas que, neste momento, estariam cheios de adeptos e de simpatizantes atraídos de uma forma irresistível. Em vez disso assistimos a um empobrecimento da presença militante, enquanto se registam adesões, nalguns casos consistentes, para comportamentos práticos e experiências que podem reconduzir ao sentido e à qualidade das propostas anarquistas (decisões colectivas através de formas de democracia directa, recusa das hierarquias, tensões igualitárias, cooperação e solidariedade partilhadas de forma mútua, etc.), em geral sem se reconhecerem e definirem como tais e muito longe do que era a militância em sentido clássico.

Noutras palavras, o anarquismo está a mudar a forma e o modo de ser fora dos canais ligados à experiência “oficialmente” codificada enquanto tal. Por isso, suponho que se está a produzir uma renovação espontânea, feita de um impulso libertário sincero e genuíno que o velho anarquismo não está na disposição de absorver ou integrar (ou porque não quer, ou porque não o entende, ou porque não é capaz, à parte de algum esporádico e raro caso). Não seria afastarmo-nos da realidade afirmar que nesta fase está a tomar forma e a manifestar-se autonomamente um “anarquismo de novo sabor”, já que o seu nascimento está desligado daquele que existe e é historicamente reconhecido.

Não há nada de mau nisto. Inclusive, em certos aspectos pode ser visto como algo de bom. O considerado “velho”, sobretudo pelo peso intrínseco da sua poderosa história, desde há décadas que aparece facilmente esclerótico e frequentemente imóvel, quando, na realidade, considerado na sua natureza específica de “movimento” deveria estar permanentemente “animado”, genuinamente capaz de se renovar sem ficar pesadamente ancorado a esquemas que se tornaram velhos e obsoletos. Se o “novo” (acrescento eu), com toda a sua multiplicidade de manifestações, antes ou depois não se relaciona com o “velho”, inovando-o cultural e experimentalmente, com muita dificuldade poderá conservar essa integridade libertária que o distingue, para ser (maldito seja!) absorvido por lógicas e visões que o reconduzirão ao maléfico “bando autoritário”, sempre à espreita.

Saber renovar-se quer dizer, antes de mais nada, adquirir a capacidade de actualizar a leitura da realidade, para captar os movimentos, as mutações, as mudanças. Depois há que saber colocar hipóteses para os experimentar, meios e métodos aptos para contestar de forma eficaz e inteligente o contexto despótico que exerce a dominação, para tentar superá-la ou eliminá-la: em suma, para conseguir acabar com ela, com o objectivo de viver relações sociais livres através de tensões libertadoras e libertárias. Parece-me claro que um tal percurso, que não se pode definir senão quando se põe em prática, deverá necessariamente ser expurgado de esquematismos  e ideologismos que escondem o caminho, sabotando-o e, de facto, impedindo-o de ser percorrido.

Não temos que ter medo de abandonar os velhos esquemas que definem o percurso revolucionário, que propõem uma narração do conflito social que, de forma mais ou menos sabida, se apresenta como se fosse absoluta, quase sugerindo que não pode haver outra (a lógica dogmática da “única via possível”). E, nesta vertente, a adesão à “luta de emancipação” pode cair em atitudes cegas e religiosas.

Pensar e agir “em grande”

Na verdade, tudo mudou e continua a mudar, e o anarquismo, se for autêntico, não pode ser entendido como fixo ou parado. Como tudo o que está vivo e em movimento, não pode ser visto como se fosse imóvel: como um corpo que cresce tem continuamente constantes alterações de desenvolvimento. Mesmo em relação aos primeiros momentos em que foi concebido e pensado, realizado nos limites do possível, mudou também profundamente o contexto planetário circundante, como mudaram também os estímulos, o tipo de observações e o imaginário, tudo aquilo que em conjunto define uma visão do mundo. Como todas as visões do mundo pode transformar-se e dilatar-se mantendo intacta a sua substância. Tendo bem presente esta dinâmica, julgo que não deve ser entendido como uma ideologia, ainda que alguns o façam, por vezes, talvez na ilusão de fixarem uma globalidade que, de facto, não é sua.

A velha narrativa em que nos forjámos fala-nos, por exemplo, de insurreição revolucionária para tomar o poder e impor a ditadura do proletariado (como sustentava o marxismo-leninismo) ou para destruir o Estado (como sempre defenderam os anarquistas). Nos dois casos ter-se-ia que tomar os “Palácios do Poder”, num caso para se apossar deles, no outro para destrui-los e eliminar todas as formas de autoritarismo político. Hoje já não há nenhum “Palácio” a conquistar, enquanto que, pelas condições em que nos obrigam a viver, estamos permanentemente imersos num nível de confronto que pode inclusivamente desembocar em lógicas de guerra, sem inimigos nem lugares claramente identificados. Claro que algumas vezes vai-se conseguir vencer alguma escaramuça com as forças da polícia, mas como o verdadeiro poder já não está onde se encontrava dantes e gerou outras formas de poder enormemente sofisticadas, isso não resolve nada.

A velha narrativa dizia-nos que tudo gira em torno da luta irreconciliável entre a burguesia e o proletariado, um confronto permanente entre patrões e explorados intrínseco à estrutura sobre a qual se construiu a sociedade capitalista, vista quase como a ultima forma estrutural da história. Uma visão rígida, que não chega para perceber as dinâmicas da actual liquidez social (para dizê-lo como Bauman), nem a complexidade das redes globais que está a envolver o mundo no seu conjunto. A nova servidão e os novos escravos são massas humanas submissas que representam uma realidade muito mais complexa e articulada do que a working class da memória marxiana, enquanto que a rede global de especulação que alimenta e favorece a oligarquia financeira, capaz de sujeitar a economia produtiva à própria avidez, é algo muito mais complexo e estruturado do que a velha burguesia capitalista de antigamente. O mundo está a enredar-se em algo muito mais ilusório e multiforme do que o conflito dialéctico linear colocado como hipótese nessa altura.

Já não temos que nos confrontar simplesmente com generais, reis, chefes de governo, patrões e todas essas figuras que sempre personificaram o poder enquanto mando e vontade de imposição. Não me interpretem mal; todas essas figuras estão ainda presentes por todo o lado, mas já não representam o vértice da concentração de poder de que depende o destino do mundo. O despotismo, base fundamental da qualidade das relações, continua a crescer, mas tem sofrido mutações que alteram a qualidade das formas e dos métodos de imposição. Atravessamos um passo prepotente e significativo do “mando” para a “coerção objectiva”, como fundamento da capacidade de dominar.

Por tudo isto, não podemos continuar a desgastar-nos numa extenuante guerra de oposição, que se queria revolucionária, na ilusão perpétua de derrubar as estruturas caducas de poderes cada vez menos poderosos, nalguns casos, mesmo em extinção. Devemos, pelo contrário, começar a pensar e a agir “em grande” (entendendo grande em termos cósmicos), escolhendo e inaugurando de forma séria uma rota dedicada sobretudo a construir e a experimentar, de todas as formas criativas possíveis, o novo e diferente que acreditamos poderem concretizar a libertação e a liberdade desejadas, deixando de nos apresentarmos como se estivéssemos numa guerra permanente contra imagens fantoche, que só servem como espantalhos do poder para nos ter entretidos com “tarefas” destinadas ao nosso aniquilamento.

 

A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

ethos

Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.

Os anarquistas e a geografia urbana (2): Reclus

Poster comemorativo para os jovens libertários (DD LL) da Catalunha, de 1937. "A anarquia é a mais alta expressão da ordem".

Poster comemorativo para os jovens libertários (DD LL) da Catalunha, de 1937.
“A anarquia é a mais alta expressão da ordem”.

Postado em Passa Palavra, em 30 de novembro de 2014

Com Élisée Reclus, aprende-se que a ação humana sobre o meio circundante, e a influência do meio sobre a ação humana, são fatores determinantes para o desenvolvimento das cidades. Que as cidades e suas relações recíprocas podem ser concebidas de outras formas que não aquelas pautadas pelas necessidades do Estado e das empresas. Por Manolo

Leia aqui a primeira parte do artigo.

2 Elisée Reclus, pioneiro da geografia urbana

Élisée Reclus (1830-1905) é um dos fundadores da geografia moderna, junto com Paul Vidal de la Blache, Carl Ritter, Jean Brunhes e Friedrich Ratzel. Tido como um dos principais geógrafos do seu tempo, chegou inclusive, graças à sua reputação, a contribuir para a solução de problemas diplomáticos internacionais [1]. Sua militância política e o forte acento social e histórico de sua geografia, entretanto, levaram os outros fundadores da geografia moderna – e seus discípulos – a dizer, textualmente, que sua obra “contém interessantes pontos de vista geográficos, mas que é sobretudo história e sociologia”.

2.1 Meio-espaço, meio-tempo, ação recíproca e as “leis” da geografia social

Élisée Reclus

A metodologia de Élisée Reclus é, num primeiro contato, estranha:

No estudo das características diversas do planeta, em suas reações mútuas de justaposição e influência, nas mudanças provocadas pela série das eras, o elemento de comparação que sempre teremos diante dos olhos será a sociedade humana. A história da Terra e aquela da humanidade em suas ações e reações continuadas, desde as origens conhecidas até os tempos que se preparam, serão o objeto de nosso estudo. Para resumir nosso pensamento, buscaremos seguir a evolução da humanidade em relação às formas terrestres e a evolução das formas terrestres em relação à humanidade (RECLUS, 2010a, p. 78-79)

Haveria em Reclus mais que relações, mas praticamente uma unidade entre sociedade e natureza, quase rompendo a distinção physis/nomos herdada há milênios da ontologia aristotélica? A dificuldade da empreitada ontológica era reconhecida pelo próprio Reclus:

É verdade, eu sabia de antemão que nenhuma pesquisa far-me-ia descobrir essa lei de um progresso humano cuja miragem sedutora agita-se incessantemente em nosso horizonte, e que foge de nós e dissipa-se para recriar-se uma vez mais […] Não, mas podemos ao menos, nessa avenida dos séculos que os achados dos arqueólogos prolongam constantemente naquilo que foi a noite do passado, reconhecer a íntima ligação que une a sucessão dos fatos humanos à ação das forças telúricas: é-nos permitido perseguir no tempo cada período da vida dos povos correspondendo à mudança dos meios, observar a ação combinada da Natureza e do próprio Homem, reagindo sobre a Terra que o formou. (RECLUS, 2010a, pp. 45-46)

Mais modestamente, o que Reclus propôs foi uma análise simultaneamente sincrônica e diacrônica do espaço: “Ao meio-espaço, caracterizado por milhares de fenômenos exteriores, deve-se ajuntar o meio-tempo, com suas transformações incessantes, suas repercussões sem fim” (RECLUS, 1905a, p. 110). Para Reclus, ao contrário de muitos deterministas seus contemporâneos, não havia qualquer primazia do meio natural sobre o homem:

…todas estas forças [naturais] variam de lugar em lugar e de época em época; é portanto em vão que os geógrafos têm ensaiado classificar numa ordem definitiva, a série de elementos do meio que influem sobre o desenvolvimento de um povo; os fenômenos múltiplos, entrecruzados da vida não se permitem enumerar numa ordem metódica. […] A história da humanidade, em seu conjunto e suas partes, não se pode assim explicar pela soma dos meios com “juros compostos” pela sucessão dos séculos; mas para entender a evolução que se realiza, também temos de apreciar em que medida os próprios meios evoluem pelo fato da transformação geral [da sociedade] e modificam sua ação em consequência. […] Há também os aspectos da natureza que, sem haver mudado em nada, não deixam de exercer uma ação completamente diferente por efeito da história geral [da sociedade] que modifica o valor relativo de todas as coisas. (RECLUS, 1905a, p. 112-114)

Meio-tempo, meio-espaço e ação combinada e recíproca da Natureza e do Homem – desfazendo, assim, qualquer fetiche naturalista ou de certo ecologismo vulgar hoje em moda – são conceitos-chave da geografia social, cujas três “leis” Reclus sintetizou:

A primeira categoria de eventos que o historiador constata mostra-nos como, por efeito de um desenvolvimento desigual entre os indivíduos e sociedades, todas as coletividades humanas, à exceção das tribos permanecidas no naturismo primitivo, se desdobram, por assim dizer, em classes ou castas, não somente diferentes, mas opostas em interesses e tendências, mesmo francamente inimigas em todos os períodos de crise. […] O segundo fato coletivo, consequência necessária do desdobramento dos corpos sociais, é que o equilíbrio rompido de indivíduo a indivíduo, de classe a classe, se equilibra constantemente em torno de seu eixo de repouso: a violação da justiça clama sempre por vingança. Daí as incessantes oscilações. […] Um terceiro grupo de fatos, ligando-se ao estudo do homem em todas as épocas e todos os países, atesta-nos que nenhuma evolução na existência dos povos pôde ser criada senão pelo esforço individual. É na pessoa humana, elemento primário da sociedade, que se deve buscar o choque impulsivo do meio, destinado a se traduzir em ações voluntárias para disseminar as ideias e participar das obras que edificarão o comportamento das nações. O equilíbrio das sociedades só é instável pela perturbação imposta aos indivíduos em sua franca expansão. A sociedade livre estabelece-se pela liberdade fornecida em seu completo desenvolvimento a cada pessoa humana, primeira célula fundamental, que, em seguida, agrega-se e associa-se como lhe apraz às outras células da mutável humanidade. […] A “luta de classes”, a busca do equilíbrio e a decisão soberana do indivíduo, tais são as três ordens de fatos que nos revela o estudo da geografia social e que, no caos das coisas, mostram-se assaz constantes para que se possa dar-lhes o nome de “leis”. (RECLUS, 1905a, pp. II-IV; 2010a, pp. 47-50)

2.2 A geografia urbana de Reclus

Aldeias normalmente espaçadas (de L'homme et la terre)

Muito à frente de seu tempo, e graças à influência de Piotr Kropotkin, Élisée Reclus foi um dos primeiros geógrafos a dedicar atenção especial às cidades – e entre os pioneiros da disciplina, foi o que mais analisou a questão.

Entre as obras de Élisée Reclus, a Nouvelle Géographie Universelle (19 volumes) fez muito sucesso na época de sua publicação (1876-1894). É uma descrição extremamente minuciosa e rigorosa do “estado do mundo” na época, riquíssima em dados demográficos, corográficos, econômicos, topográficos, cartográficos, geológicos etc. Nesta obra, Reclus divide internamente os países em zonas de influência (com bastante riqueza e detalhe), zonas de vegetação (com menor impacto na obra), a pertença étnica de sua população (onde isto se aplicava) e… a “rede urbana”, entre muitas aspas. Nesta obra Reclus não conceituou a rede, não estruturou abstratamente a hierarquia entre cidades; apenas identificou empiricamente fatos concretos que se repetiam e os descreveu o mais detalhadamente possível, sem extrair deles qualquer teoria geral.

Já em L’homme et la terre (1905-1908, 6 vols.) as intuições reclusianas sobre “rede urbana” chegam ao nível de uma primeira teoria sobre o assunto, especialmente no capítulo II do livro IV, intitulado ”Répartition des hommes” (Repartição dos homens). Este pequeno ensaio – 41 páginas no original francês (RÉCLUS, 1905b, pp. 335-376) – é repleto de ideias sobre questões como causas do êxodo rural na Europa; vantagens da convivência urbana; fatores de atração locacional na fundação de cidades; relação entre agricultura, clima e relevo na formação de cidades; método para estudo da “personalidade” e do “caráter” de uma cidade tal como se apresenta através da acumulação de obras, construções, aglomerações, bairros etc.; morfologia urbana; especulação imobiliária; usos militares da malha urbana; indústria e poluição; estética e monumentos urbanos; saneamento urbano; relação entre meios de transporte e suburbanização; cidades-jardim (Port Sunlight, Bourneville, Letchworth); superpopulação urbana, concentração urbana e sua perspectiva futura.

O ponto central deste ensaio é a teoria da localização urbana e hierarquização entre cidades. Se considerarmos o “panteão” da teoria da localização econômica como composto por Johann Heinrich von Thünen (1783-1850), Alfred Marshall (1842-1924), Alfred Weber (1868-1958), Walter Christaller (1893-1969) eAugust Lösch (1906-1945) e verificarmos certo grau de formalização matemática de suas teorias como elemento comum, faltou apenas isto para que Élisée Reclus fosse incluído neste rol. Toma-se aqui a liberdade de expor os pontos centrais da teoria da localização urbana e hierarquização entre cidades de Élisée Reclus numa só e longa citação:

Aldeias anormalmente espaçadas (de L'homme et la terre)

Se a Terra fosse completamente uniforme em seu relevo, na qualidade do solo e nas condições do clima, as cidades ocupariam uma posição geométrica, por assim dizer: a atração mútua, o instinto de sociedade, a facilidade das permutas as teriam feito nascer a distâncias iguais umas das outras. Tendo em vista uma região plana, sem obstáculos naturais, sem rio, sem porto, situada de uma maneira particularmente favorável, e não dividida em Estados políticos distintos, a maior cidade teria sido construída diretamente no centro do país; as cidades secundárias ter-se-iam distribuído a intervalos iguais sobre o território, espaçadas ritmicamente, e cada uma delas teria seu sistema planetário de cidades inferiores, tendo seu cortejo de vilarejos. A distância normal de uma jornada de marcha, tal deveria ser, sobre uma planície uniforme, o intervalo entre as diversas aglomerações urbanas; o número de léguas percorridas por um caminhante comum entre a aurora e o crepúsculo, sejam doze ou quinze correspondendo às horas do dia, constitui a etapa regular de uma cidade à outra. A domesticação dos animais, depois a invenção da roda, e, em seguida, das máquinas, modificaram, gradual ou bruscamente, as medidas primitivas: o passo da montaria, depois o giro do eixo da roda determinaram a distância normal entre as grandes reuniões de homens. Quanto aos vilarejos, sua distância média tem por medida o percurso que pode fazer o agricultor empurrando seu carrinho de mão carregado de feno ou de espigas. A água para o gado, o transporte fácil dos frutos do solo, eis o que regula a localização do estábulo, do celeiro e da cabana. Entre as regiões povoadas há muito tempo e ainda apresentando na distribuição urbana de seus habitantes as distâncias primitivas, encontramos, na aparente desordem das cidades, uma ordem de repartição que foi, evidentemente, outrora regulada pelo passo dos caminhantes. […] [P]odemos constatar a surpreendente regularidade com a qual se distribuíram as aglomerações urbanas antes que as explorações mineiras e industriais viessem perturbar o equilíbrio natural das populações. […] Entre a capital [Paris] e os centros administrativos de segunda ordem, fundaram-se, em intervalos sensivelmente iguais, cidades menores, mas ainda consideráveis, separadas por uma dupla etapa, de vinte e cinco a trinta “léguas”: Orléans, Tours, Poitiers, Angoulême. Enfim, a meio caminho de cada um desses centros de terceira ordem, formaram-se cidades modestas, indicando a etapa média: Etampes, Amboise, Châtellerault, Ruffec, Libourne. Assim, o viajante, atravessando a França, encontrava alternativamente uma cidade de simples repouso e uma cidade de completo reconforto: a primeira bastava ao pedestre, a segunda convinha ao cavaleiro. Em quase todas as estradas o ritmo das cidades produz-se do mesmo modo, cadência natural regulada pela marcha dos homens, dos cavalos e das carruagens.

Cidades europeias com pelo menos 100 mil habitantes (de L'homme et la terre)

As irregularidades da rede das etapas explicam-se todas pelas características do relevo, pelo curso dos rios, pelos mil contrastes da geografia. […] Todas as condições da natureza, agrícolas, geográficas, climáticas, influem para bem ou para mal no desenvolvimento das cidades. Cada vantagem aumenta sua força de atração, cada desvantagem a diminui. A grandeza dos grupos urbanos mede-se exatamente pela soma dos privilégios naturais, admitindo, evidentemente, que a ambiência histórica seja identicamente a mesma. Duas cidades, uma da África, a outra da Europa, encontrando-se em condições similares, serão contudo muito diferentes, porquanto a evolução da história circundante difere para cada uma delas: no entanto, haverá paralelismo em seus destinos. […] [D]ois centros urbanos próximos influenciam-se mutuamente, seja para desenvolver-se juntos quando seus interesses completam-se […], seja para prejudicar-se quando os privilégios são da mesma ordem […]. Depois das vantagens do clima e do solo, aquelas do sub-solo exercem, às vezes, uma influência decisiva. […] Cada conquista do homem cria pontos vitais em locais imprevistos […] Que mudança rápida na repartição das cidades quando o homem tornar-se senhor da aviação, da aeronáutica! (RECLUS, 2010, pp. 38-41, 46-48)

Modelos deste tipo são uma das três teorias fundamentais da geografia atual juntamente com a renda fundiária e a difusão – o que leva a considerar Reclus não apenas como um precursor em matéria de análise urbana, mas igual e claramente como um dos fundadores da geografia contemporânea (BOINO, 1999).

Mais especificamente, a rede urbana e a hierarquização entre cidades são dois conceitos fundamentais comumente associados a Walter Christaller e sua teoria das localidades centrais,criada em 1933 a partir da observação empírica da rede urbana da Alemanha meridional, ou a George Kinglsey Zipf e sua criação daregra da ordem-tamanho em 1935. Roberto Lobato Corrêa (CORRÊA, 1989, p. 20) aponta que muitas das ideias sobre a rede urbana e a hierarquização de cidades já estava presentes nas obras do economista franco-irlandês Richard Cantillon (1755), do filósofo saint-simoniano francês Jean Reynaud (1841) e do engenheiro francês Léon Lalanne (1863); como se vê, Élisée Reclus já ultrapassa o status de precursor e apresenta uma teoria muito refinada da rede urbana e da hierarquização entre cidades.

Aldeias agrícolas e industriais (de L'homme et la terre)

Além disso, quando comparada, por exemplo, com a teoria dos lugares centrais de Walter Christaller, a teoria da localização e hierarquização urbanas de Reclus mostra-se mais dinâmica, flexível e pragmática. Enquanto o modelo reclusiano de hierarquização urbana funda-se nodesenvolvimento tecnológico, no deslocamento humano (e no alargamento tecnológico do alcance deste deslocamento) e nas necessidades do trabalho, o modelo christalleriano está totalmente enraizado no consumo de bens centrais [2]; o modelo reclusiano, deste modo, é muito mais útil a um planejamento do espaço urbano feito por trabalhadores em função de suas próprias necessidades que o modelo christalleriano, perfeito para planejar o espaço na perspectiva do Estado e das empresas.

2.3 O resgate da obra de Reclus

Lançada ao esquecimento por décadas, a obra de Élisée Reclus foi resgatada entre os anos 1960 e 1970 por Yves Lacoste e David Harvey. Atualmente, Federico Ferretti e Phillipe Pelletier esforçam-se mais detidamente para fazer pontes entre a obra de Reclus e temas como colonialismo e estudos pós-coloniais, educação popular e geopolítica.

No Brasil, país objeto de monografia específica de Reclus (Reclus, 1900), até onde foi possível pesquisar nenhuma obra de Reclus havia sido publicada desde o início do século XX até 1985, quando sai publicada na coleção “Grandes Cientistas Sociais”, da editora Ática, uma coletânea de trechos da obra reclusiana.

Graças ao esforço pioneiro de Plínio Augusto Coelho, que traduz e publica escritos anarquistas desde 1989 através da editora Imaginário, capítulos da obra L’homme et la terre estão sendo traduzidos para o português e publicados na forma pequenos livros.

E o interesse por Reclus já chegou à academia brasileira: entre 6 e 10 de dezembro de 2011 realizou-se, na USP, o colóquio internacional “Élisée Reclus e a geografia do novo mundo”, cujas memórias estão disponíveis na internet (https://reclusmundusnovus.wordpress.com/memorias/). Tudo isto é plenamente justificado:

Apesar da utilização de metáforas biológicas, o texto de Reclus interessa pela visão dos processos, pela explicação teórica dada para a fundação das cidades, entre outras, como, por exemplo, a indicação de especuladores como agentes do desenvolvimento urbano. (VASCONCELOS, 2012, p. 65)

Élisée Reclus, 1903

Em tempos de efervescência das lutas sociais urbanas, a obra de Élisée Reclus – descontado, evidentemente, o evolucionismo quase pueril que a atravessa em dados momentos (RECLUS, 2002) – é extremamente útil para quem projeta o desenvolvimento territorial urbano por fora dos esquemas estatais e empresariais, em conjunto ou a partir dos movimentos sociais.

3 Conclusão: atualidade do pensamento anarquista sobre cidades

Em tempos de “crise do pensamento crítico” – que não é outra coisa além da crise do pensamento marxista (SOUZA, 2010, pp. 2-4), posto pelos fatos diante de seus próprios limites e pouco capaz de superar a si próprio como orienta seu próprio fundador – o que trazem os anarquistas de relevante para entender a questão urbana hoje?

Com Kropotkin, aprende-se que é impossível conceber qualquer luta social desgarrada do espaço que é seu palco e da história de lutas pregressas pelo uso e produção deste mesmo espaço. Que as cidades foram, desde tempos muito recuados, palco de lutas libertárias que deixaram traços e rastros no tempo e no espaço, capazes de elucidar o conteúdo e o sentido das lutas do presente. Que somente a ação direta dos explorados e oprimidos pode apresentar soluções viáveis e duradouras para a questão urbana.

Com Élisée Reclus, aprende-se que a ação humana sobre o meio circundante, e a influência do meio sobre a ação humana, são fatores determinantes para o desenvolvimento das cidades. Que as cidades e suas relações recíprocas podem ser concebidas de outras formas que não aquelas pautadas pelas necessidades do Estado e das empresas.

E que lições se tira disto?

Em primeiro lugar, a indissociabilidade entre espaço e política. A dimensão espacial, para os anarquistas, é tão importante quanto as dimensões social, política, histórica ou econômica, pois é seu substrato. Pensar a história, a política, a economia ou a sociedade sem o espaço, para os anarquistas, é pensar em abstrações dissociadas da realidade – o que, tendo em vista o horizonte político de uma sociedade sem Estado e sem patrões, construída a partir da iniciativa dos trabalhadores auto-organizados, é um perigo.

Barricada na Comuna de Paris. Por lutar nas barricadas da Comuna, Reclus passou o resto da vida no exílio.

Em segundo lugar, a centralidade da cidade e do espaço urbano para as lutas políticas. A cidade é tida pelos anarquistas como espaço fundamental da democracia, das relações face-a-face, da experiência vivida; não por acaso, propugnam novas formas de política e de produção econômica que emerjam do simples ao complexo, do indivíduo à sociedade, do local ao global. Em tempos de globalização corporativa, de sociedade de controle e de império, é um legado importantíssimo.

Em terceiro lugar, a compreensão da produção do espaço urbano pelas lutas sociais. Não há um só entre os anarquistas analisados neste artigo que reflita sobre o desenvolvimento das cidades e a produção do espaço urbano fora de um contexto de lutas sociais; pode-se dizer, assim, que para os anarquistas o espaço é produto das lutas pelo seu uso e produção.

Em quarto lugar, a ação direta como método para a solução da questão urbana. Vivemos um tempo de burocratização de movimentos sociais (PASSA PALAVRA, 22 ago. 2010) e de progressivo atrelamento de movimentos sociais a políticas governamentais (PASSA PALAVRA, 05 fev. 2012).

Um tempo de enredamento dos movimentos de luta por moradia em programas governamentais como o Minha Casa, Minha Vida (MANOLO, 01 abr. 2012; PASSA PALAVRA, 01 jun. 2014; 08 jun. 2014; 15 jun. 2014).

Um tempo de escolhas difíceis para os movimentos urbanos: manter a autonomia frente ao Estado e às empresas do setor imobiliário e construir as lutas num modelo autogestionário de ação direta, sem resultados fáceis e na contramão do consenso generalizado, ou avançar em conquistas pontuais, mas submetendo-se aos dispositivos políticos, sociais e econômicos de dominação do Estado e das empresas?

O paradigma anarquista de compreensão da questão urbana, se não apresenta soluções diretas e imediatas para estes reptos, problematiza e chacoalha respostas teóricas consolidadas a estes problemas práticos; o desvelar desta crítica ausente, aqui, faz-se mais necessária do que nunca.

NOTAS

[1] “Pesquisando no acervo do Conselho Municipal da cidade de Genebra, encontramos um documento contendo afirmações que chamaram logo a nossa atenção. O fundo cartográfico Reclus-Perron conservado em Genebra possui particularmente um mapa manuscrito que o explorador Henri Coudreau (1859-1899) fez para Elisée Reclus (1830-1905). Ele foi decisivo para a arbitragem do Conselho federal suíço que julgou, em primeiro de dezembro de 1900, o contestado franco-brasileiro sobre as fronteiras entre o Brasil e a Guiana, anexando ao Brasil um território de 260.000 quilômetros quadrados.” (FERRETTI, 2013, p. 2)

[2] “Há uma conexão definitiva entre o consumo de bens centrais e o desenvolvimento de lugares centrais. O desenvolvimento daqueles lugares centrais cujos habitantes vivem da venda de bens centrais torna-se mais pronunciado se muitos bens centrais forem consumidos que se poucos bens centrais forem consumidos. […] O consumo dos bens centrais depende da distribuição da população, e especialmente do grau de aglomeração do próprio lugar central. Ademais, o consumo de bens centrais depende primariamente da demanda por mercadorias, que é determinada pela estrutura profissional e social, assim como pela infraestrutura de renda ou riqueza da população. O consumo de diferentes tipos de bens centrais é determinado pela quantidade disponível, pela lei da oferta e da procura e, sobretudo, pelo preço das mercadorias no lugar central. Este preço é determinado por fatores tais como renda, juro, salários e taxas. Além disso, a demanda depende do tamanho e da formação geográfica da região complementar. Estes fatores determinam o alcance da mercadoria; as condições particulares de transporte também desempenham papel importante. Quando determinamos o montante de consumo e a alocação da oferta de bens centrais, de acordo com os fatores mencionados, a questão sobre os tamanhos, locações e número dos lugares centrais pode, ao menos genericamente, ser respondida”. (CHRISTALLER, 1966, pp. 27-28)

REFERÊNCIAS

BOINO, Paul. “Plaidoyer por une géographie reclusienne”. Réfractions, nº 4, mar. 1999. Disponível na internet: http://refractions.plusloin.org/spip.php?article349. Acesso em 10 mai. 2014.

CHRISTALLER, Walter. Central places in Southern Germany. Nova Jérsei: Prentice-Hall, 1966.

CORRÊA, Roberto Lobato. A rede urbana. São Paulo: Ática, 1989.

FERRETTI, Federico. “O fundo Reclus-Perron e a controvérsia franco-brasileira de 1900: um mapa inédito que decidiu as fronteiras do Brasil”. Terra Brasilis (nova série), nº 2, 2013. Disponível na internet:http://terrabrasilis.revues.org/744 . Acesso em 10 jun. 2014.

MANOLO. ”’Há muito espaço para crescer’ (3ª parte)”. Publicado em 01 abr. 2012. Disponível na internet:/2012/04/54173. Acesso em 18 mai. 2014.

PASSA PALAVRA. “Entre o fogo e a panela”. Publicado em 22 ago. 2010. Disponível na internet:/2010/08/27717. Acesso em 18 mai. 2014.

_____________. “Estado e movimentos sociais”. Publicado em 05 fev. 2012. Disponível na internet:/2012/02/52448. Acesso em 18 mai. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte I)”. Publicado em 01 jun. 2014 Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte II)”. Publicado em 08 jun. 2014. Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte III)”. Publicado em 15 jun. 2014. Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

RECLUS, Élisée. Estados Unidos do Brazil: geographia, etnographia, estatística. Rio de Janeiro: Garnier, 1900.

_____________. L’homme et la terre. Vol. 1. Paris: Librairie Universelle, 1905a.

_____________. L’homme et la terre. Vol. 5. Paris: Librairie Universelle, 1905b.

_____________. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2002.

_____________. Da ação humana na geografia física/Geografia comparada no espaço e no tempo. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2010a.

_____________. Renovação de uma cidade/repartição dos homens. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2010b.

SOUZA, Marcelo Lopes de. “Uma geografia marginal e sua atualidade: a linhagem libertária”. Texto apresentado durante o Primeiro Colóquio Território Autônomo (UFRJ, 26 e 27 de outubro de 2010). Disponível na internet: http://territorioautonomo.files.wordpress.com/2010/10/uma-geografia-marginal-e-sua-atualidade2.pdf . Acesso em 15 mai. 2014.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Dois séculos de pensamento sobre a cidade. 2ª ed. rev. atual. Salvador: EdUFBA/Editus, 2012.