Fonte: Coletivo Libertário Évora
(O texto que hoje traduzimos foi publicado no órgão da FAI, Tierra y Libertad, de Fevereiro, colocado na internet, mas depois apagado. No entanto, já tinha sido publicado em diversos outros sites de língua castelhana. É um texto polémico cujo autor afirma que os anarquistas têm que deixar as análises do passado e olhar mais para a sociedade em que vivem, onde as próprias relações de poder se estão a alterar).
Andrea Papi
Para muitos, o mundo actual é pouco atractivo e para muitos outros está-se a tornar inabitável. Uma condição difusa que, por si mesma, deveria ser suficiente para empurrar as massas humanas insatisfeitas para uma alternativa de libertação social. O fracasso histórico do bolchevismo, entre outras coisas, deveria ter, pelo menos em teoria, favorecido a adesão aos movimentos anarquistas que, neste momento, estariam cheios de adeptos e de simpatizantes atraídos de uma forma irresistível. Em vez disso assistimos a um empobrecimento da presença militante, enquanto se registam adesões, nalguns casos consistentes, para comportamentos práticos e experiências que podem reconduzir ao sentido e à qualidade das propostas anarquistas (decisões colectivas através de formas de democracia directa, recusa das hierarquias, tensões igualitárias, cooperação e solidariedade partilhadas de forma mútua, etc.), em geral sem se reconhecerem e definirem como tais e muito longe do que era a militância em sentido clássico.
Noutras palavras, o anarquismo está a mudar a forma e o modo de ser fora dos canais ligados à experiência “oficialmente” codificada enquanto tal. Por isso, suponho que se está a produzir uma renovação espontânea, feita de um impulso libertário sincero e genuíno que o velho anarquismo não está na disposição de absorver ou integrar (ou porque não quer, ou porque não o entende, ou porque não é capaz, à parte de algum esporádico e raro caso). Não seria afastarmo-nos da realidade afirmar que nesta fase está a tomar forma e a manifestar-se autonomamente um “anarquismo de novo sabor”, já que o seu nascimento está desligado daquele que existe e é historicamente reconhecido.
Não há nada de mau nisto. Inclusive, em certos aspectos pode ser visto como algo de bom. O considerado “velho”, sobretudo pelo peso intrínseco da sua poderosa história, desde há décadas que aparece facilmente esclerótico e frequentemente imóvel, quando, na realidade, considerado na sua natureza específica de “movimento” deveria estar permanentemente “animado”, genuinamente capaz de se renovar sem ficar pesadamente ancorado a esquemas que se tornaram velhos e obsoletos. Se o “novo” (acrescento eu), com toda a sua multiplicidade de manifestações, antes ou depois não se relaciona com o “velho”, inovando-o cultural e experimentalmente, com muita dificuldade poderá conservar essa integridade libertária que o distingue, para ser (maldito seja!) absorvido por lógicas e visões que o reconduzirão ao maléfico “bando autoritário”, sempre à espreita.
Saber renovar-se quer dizer, antes de mais nada, adquirir a capacidade de actualizar a leitura da realidade, para captar os movimentos, as mutações, as mudanças. Depois há que saber colocar hipóteses para os experimentar, meios e métodos aptos para contestar de forma eficaz e inteligente o contexto despótico que exerce a dominação, para tentar superá-la ou eliminá-la: em suma, para conseguir acabar com ela, com o objectivo de viver relações sociais livres através de tensões libertadoras e libertárias. Parece-me claro que um tal percurso, que não se pode definir senão quando se põe em prática, deverá necessariamente ser expurgado de esquematismos e ideologismos que escondem o caminho, sabotando-o e, de facto, impedindo-o de ser percorrido.
Não temos que ter medo de abandonar os velhos esquemas que definem o percurso revolucionário, que propõem uma narração do conflito social que, de forma mais ou menos sabida, se apresenta como se fosse absoluta, quase sugerindo que não pode haver outra (a lógica dogmática da “única via possível”). E, nesta vertente, a adesão à “luta de emancipação” pode cair em atitudes cegas e religiosas.
Pensar e agir “em grande”
Na verdade, tudo mudou e continua a mudar, e o anarquismo, se for autêntico, não pode ser entendido como fixo ou parado. Como tudo o que está vivo e em movimento, não pode ser visto como se fosse imóvel: como um corpo que cresce tem continuamente constantes alterações de desenvolvimento. Mesmo em relação aos primeiros momentos em que foi concebido e pensado, realizado nos limites do possível, mudou também profundamente o contexto planetário circundante, como mudaram também os estímulos, o tipo de observações e o imaginário, tudo aquilo que em conjunto define uma visão do mundo. Como todas as visões do mundo pode transformar-se e dilatar-se mantendo intacta a sua substância. Tendo bem presente esta dinâmica, julgo que não deve ser entendido como uma ideologia, ainda que alguns o façam, por vezes, talvez na ilusão de fixarem uma globalidade que, de facto, não é sua.
A velha narrativa em que nos forjámos fala-nos, por exemplo, de insurreição revolucionária para tomar o poder e impor a ditadura do proletariado (como sustentava o marxismo-leninismo) ou para destruir o Estado (como sempre defenderam os anarquistas). Nos dois casos ter-se-ia que tomar os “Palácios do Poder”, num caso para se apossar deles, no outro para destrui-los e eliminar todas as formas de autoritarismo político. Hoje já não há nenhum “Palácio” a conquistar, enquanto que, pelas condições em que nos obrigam a viver, estamos permanentemente imersos num nível de confronto que pode inclusivamente desembocar em lógicas de guerra, sem inimigos nem lugares claramente identificados. Claro que algumas vezes vai-se conseguir vencer alguma escaramuça com as forças da polícia, mas como o verdadeiro poder já não está onde se encontrava dantes e gerou outras formas de poder enormemente sofisticadas, isso não resolve nada.
A velha narrativa dizia-nos que tudo gira em torno da luta irreconciliável entre a burguesia e o proletariado, um confronto permanente entre patrões e explorados intrínseco à estrutura sobre a qual se construiu a sociedade capitalista, vista quase como a ultima forma estrutural da história. Uma visão rígida, que não chega para perceber as dinâmicas da actual liquidez social (para dizê-lo como Bauman), nem a complexidade das redes globais que está a envolver o mundo no seu conjunto. A nova servidão e os novos escravos são massas humanas submissas que representam uma realidade muito mais complexa e articulada do que a working class da memória marxiana, enquanto que a rede global de especulação que alimenta e favorece a oligarquia financeira, capaz de sujeitar a economia produtiva à própria avidez, é algo muito mais complexo e estruturado do que a velha burguesia capitalista de antigamente. O mundo está a enredar-se em algo muito mais ilusório e multiforme do que o conflito dialéctico linear colocado como hipótese nessa altura.
Já não temos que nos confrontar simplesmente com generais, reis, chefes de governo, patrões e todas essas figuras que sempre personificaram o poder enquanto mando e vontade de imposição. Não me interpretem mal; todas essas figuras estão ainda presentes por todo o lado, mas já não representam o vértice da concentração de poder de que depende o destino do mundo. O despotismo, base fundamental da qualidade das relações, continua a crescer, mas tem sofrido mutações que alteram a qualidade das formas e dos métodos de imposição. Atravessamos um passo prepotente e significativo do “mando” para a “coerção objectiva”, como fundamento da capacidade de dominar.
Por tudo isto, não podemos continuar a desgastar-nos numa extenuante guerra de oposição, que se queria revolucionária, na ilusão perpétua de derrubar as estruturas caducas de poderes cada vez menos poderosos, nalguns casos, mesmo em extinção. Devemos, pelo contrário, começar a pensar e a agir “em grande” (entendendo grande em termos cósmicos), escolhendo e inaugurando de forma séria uma rota dedicada sobretudo a construir e a experimentar, de todas as formas criativas possíveis, o novo e diferente que acreditamos poderem concretizar a libertação e a liberdade desejadas, deixando de nos apresentarmos como se estivéssemos numa guerra permanente contra imagens fantoche, que só servem como espantalhos do poder para nos ter entretidos com “tarefas” destinadas ao nosso aniquilamento.