Sobre cidades e comunidades anarquistas

Por Gilson Moura Henrique Junior

A relação entre anarquia e superação do estado é algo que compõe uma miríade de vertentes e opções. Dentre todas existem as que me parecem dominantes hoje e que compõe uma ópera de individualismo e misticismo, quase um elemento de constituição da elevação espiritual do ser anarquista, do indivíduo anarquista, e sua relação com o mundo.

A ideia de diferenciação do anarquista em relação aos demais ultrapassa os sinais pontuais presentes nas propagandas ideológicas que tratam quem não se alinha ao anarquismo como “zumbis” ou “escravos”, e segue a ideia de que ao se afastar do mundo se estabelece um “contra mundo” capaz de, por algum mistério inexplicável e jamais conscientemente estabelecendo um método de transformação, fazer com que todo mundo seja anarquista.

Essa ideia é presente em um sem número de publicações, páginas, fan pages e domina o lado virtual do mundo anarquista. É notório na virtualidade o método de propaganda ideológica que estabelece um projeto de agitação e propaganda da desqualificação da tecnologia, do mundo “normal”, das relações de poder e de todo um arcabouço de modos de vida e de pensamento como inferiores e limitados.

Se por um lado essa metodologia acerta na crítica à civilização, ela estabelece um projeto de contra hegemonia estéril que não constrói nenhuma metodologia prática de contra hegemonia concreta. Torna-se apenas um modo de vida que cria fantasias travestidas de práxis e que pouco oferecem de alternativas além do exemplo.

Essa crítica é fundamentalmente, e brilhantemente, trazida por Murray Bookchin e perfeitamente direcionada à ideia das zonas autônomas temporárias e da mistificação da retirada do mundo que cai como uma luva nas posturas anarquistas em voga.

Essa crítica é irmã da crítica ao fetiche da ferramenta estabelecido com sinal contrário contido na repulsa à tecnologia construída em torno do anarco primitivismo.

Ao estabelecer um sistema de crítica idealizada à tecnologia, no sentido de não estruturada numa lógica que analisa de forma refinada o processo tecnológico como inserido em contextos simbólicos e práticos que vão muito além da ferramenta em si, parte dos anarquistas abole o engenho como parte da transformação estrutural que buscam construir, ou seja, em última análise culpam a roda pela civilização.

Nesse meio tempo o mundo processa e estabelece parâmetros de debate e de exercício da dominação que exigem uma luta contra hegemônica para muito além da retirada do palco de parte dos atores.

Ou seja, não é que a comunidade de permacultura ou as zonas autônomas temporárias ou o louvor a um primitivismo idealizado cometam um erro universal em sua estrutura, apenas todos eles abdicam do enfrentamento cotidiano dos problemas das pessoas e das comunidades e do estabelecimento de parâmetros de pensamento e organização anarquistas no combate ao uso da tecnologia como ferramenta de dominação, do estabelecimento de paradigmas ecológicos nas organizações cotidianas, na estruturação de métodos usuais de refundação cultural a partir de elementos primários libertários, etc.

Um exemplo é a abdicação do uso de ferramentas de construção em permacultura como meios de influência em ocupações de terreno por sem tetos ou por ocupação de áreas rurais por sem-terra.

Além disso, as zonas autônomas temporárias, que é parte da influência dos movimentos Occupy mundo afora, tendem a serem elementos de fundamentação temporária de ações isoladas e não um elemento estruturado e metodologicamente estabelecido de ações de médio e longo prazo.

Tudo isso leva ao debate sobre a relação entre anarquistas e as cidades em um mundo onde a revolução urbana alcançou seu auge e estabeleceu um paradigma de ocupação urbana que supera pela primeira vez na história a população rural a partir de vinte e três de maio de 2007.

Se é correta a crítica às insustentáveis megalópoles e ao menos a busca por uma reforma urbana que as tenha como alvo para sua necessária descentralização redimensionamento, não é pela negação da urbe que teremos o processo necessário de refundação da ideia de concentração de pessoas.

Se é importante estabelecer um processo de paulatina redução das cidades ou migrações para cidades pequenas e medias, não se pode construir a partir disso a lógica de que pela ausência de alguns que tem meios de constituir esse processo, ele se resolve automaticamente.

É preciso lidar com as megalópoles a partir de suas periferias e da ausência de direitos e estrutura nelas. A base material da vida das periferias é inclusive parte do problema ambiental das megalópoles e não deve ser combatida apenas por sua negação.

Negar a megalópole não empondera e nem retira da miséria ou da falta de moradia os milhões de pobres nelas. Migrar pra comunidades livres das neuroses das megalópoles não resolve o impacto mobilidade urbana predatória na vida do mundo todo.

É fundamental estabelecer um processo de integração entre a ideia da sustentabilidade da permacultura com a resolução do problema do deficit de moradia nas mega, grandes e médias cidades.

É fundamental conceber as zonas autônomas temporárias como ferramenta de combate à lógica urbana de desocupação das praças, das ruas, do estabelecimento de zonas livres de pobres, da elitização dos espaços e da gentificação.

É fundamental estabelecer um processo que interligue as críticas à civilização como formas concretas de rediscussão dos parâmetros civilizatórios a partir da integração da perspectiva ameríndia, aborígene, africana e de outras etnias na concepção de vida, família, cidade, natureza e espaço público.

Pra isso é fundamental antes de mais nada sairmos da idealização hegeliana que acomete as ideias anarquistas a partir de um sem número de crossover teóricos que bebem no anarco individualismo e geram uma confusão dos diabos no estabelecimento de práticas anarquistas.

É fundamental produzir um acúmulo de práxis e teoria que rediscuta que transporte queremos nas cidades, que educação queremos nas cidades, que relação entre homem e natureza queremos nas cidades.

Em um mundo onde a dita natureza está se tornando mitologia, ser parte da expansão da ocupação humana em seu interior não me parece outra coisa senão o caminho da expansão das fronteiras do desenvolvimento produtivista travestida de douração de pílula naturista.

Em um mundo mais urbano que rural o fundamental é menos o isolamento idealizado espiritualista que nega a cidade e mais a integração nas inúmeras cidades, de todos os tamanhos, de perspectivas transformadoras de seu dia a dia. Ou seja, é prioritário refundar as cidades e a ideologia hegemônica nelas.

Para combater a carrocracia é fundamental o exercício da pressão para a ampliação de transporte público por trilhos movido a energia renovável e do uso de bicicletas.

É fundamental estabelecer parâmetros ecológicos para a construção de moradia que resolva o deficit habitacional.

É fundamental reler a cidade, entendendo que favela é cidade, periferia é cidade. É central discutir a descentralização habitacional, de decisões sobre energia e consumo, de debates sobre mobilidade urbana, de decisões sobre alimentação.

Para combater a concentração urbana é fundamental debater a descentralização urbana, da distribuição de alimentos; é preciso debater as distâncias entre a produção e o consumo; é preciso discutir o consumo e a relação com a tecnologia; é fundamental debater ciência, economia, cultura; É preciso nos livrar da hierarquização de direitos estabelecidos na distribuição econômica da população na geografia das cidades.

Como fazer isso se nos isolamos em comunidades ou estabelecemos uma ideia pirotécnica de anarquia como estilo de vida?

Enquanto construímos uma ideia de ecologia que rima como alienação pequeno-burguesa, outros coletivos se constituem como ferramentas concretas de enfrentamento ao estado e à institucionalidade e não construímos uma face ecológica para este combate.

Por que em vez de nos isolarmos uns dos outros não estabelecemos pontes que integrem o debate sobre a cidade ao debate contra hegemônico mantido por esses coletivos?

As cidades não serão enfrentadas ou reformadas com a ausência dos anarquistas nos debates e nas práticas de sua transformação.

Ao nos colocarmos como eco-anarquistas distanciados dos debates das periferias das grandes cidades construímos de tudo um pouco, menos o necessário meio de enfrentamento ecológico que pode levar à transformação do mundo.

Pra mudar o mundo é preciso menos negá-lo e mais mudá-lo.

Ideias e movimentos de organização anarquista hoje – Um papo sobre municipalismo libertário.

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Por Gilson Moura Henrique Junior

Para discutir teoricamente sobre organização e prática anarquista, é de bom tom ter em mente que, em relação aos movimentos e organizações de cunho socialista, o movimento anarquista parte de pontos organizativos, digamos assim, menos sólidos. Esta ausência de solidez não parte de diferenças qualitativas entre métodos de organização e sim da capilaridade relacionada ao socialismo e ao anarquismo. Esta diferença na penetração das ideias anarquistas em relação às socialistas não tem outra raiz senão a história de cada movimento: a perseguição a anarquistas, desde o fim do século XIX até os primeiros vinte anos do século XX; a cooptação que o movimento socialista levou a cabo junto aos movimentos anarquistas após a revolução russa de 1917; as duas severas ditaduras que reprimiram todo o espectro de esquerda, mas atingiram em cheio o movimento anarquista, que também era combatido pela esquerda, a partir de grupos alinhados ao partido comunista, que perseguia com ferocidade tudo o que fugisse da órbita soviética, como se viu na guerra civil espanhola.

Levando tudo isso em conta, temos diante de nós, nos últimos vinte anos, uma retomada do processo de organização anarquista e uma busca de protagonismo dessa vertente ideológica, que tem encontrado vasto sucesso e campo de atuação na juventude brasileira. Esse sucesso, no entanto, esbarra nas fragilidades organizativas do anarquismo, o que é típico nas organizações mais horizontais e cuja ausência de centralidade e centralismo exige menos unidade que a imposição das organizações socialistas de linha marxista-leninista. Uma dessas fragilidades é a dificuldade de formação, especialmente uma formação unitária, que leve em conta o maior grupo possível de pensadores anarquistas – e são muitos – de modo a ampliar a percepção da anarquia para além da ideia romântica de rebeldia momentânea, que acaba não refletindo sobre o que é preciso transformar, no presente, em cada indivíduo, para além da aparência externa e da simbologia anarquista utilizada.

Essa dificuldade de formação é combatida com muita competência por portais como o Protopia, que fornece um amplo número de textos dos mais diversos pensadores e que auxilia assim aos neófitos a entenderem mais da anarquia. Outros espaços são a Anarcopedia e o Instituto de Teoria e História Anarquista, que atuam divulgando ideias, base teórica e a história do movimento.

Essa fragilidade, embora seja um ônus, é parte dos riscos da horizontalidade e que precisa ser visto dessa forma. Assim como na ecologia a diversidade é mãe dileta da manutenção das espécies, na anarquia a diversidade, pluralidade e ausência de centralismo é mãe dileta da liberdade e da manutenção da ideologia em curso.

Diante desas colocações, a ideia de organização anarquista que perpassa pra quem observa de fora é extremamente diversificada e propõe uma gama de soluções para os dilemas da luta de classes que lidam com os mais diversos autores e propostas, na maior parte atuam como ferramenta de organização periférica, onde os partidos não atuam e formando focos de rebelião nas localidades onde os partidos passeiam apenas com o discurso de fomento eleitoral e com menos participação concreta na organização da população para um enfrentamento organizado ao estado. Essa fórmula de organização propõe o fortalecimento da organização de base, que consolide uma alternativa ao viés eleitoralista que acaba por, na hora H, trair o discurso de construção da revolução em nome da construção de aparatos.

Essa ideia de ação anarquista propõe uma solução viável e em curso de alternativa concreta à lógica partidária e que fomenta a organização popular, a questão é o passo adiante da tomada de poder e de empoderamento pelos coletivos organizados nas periferias. Que passo se dá para a ocupação dos espaços que o estado não ocupa?

Óbvio que seria muita arrogância propor de fora soluções às uma gama de coletivos organizados e com problemas práticos in loco, porém sugerir não dói. E a sugestão é que se integre as ações locais com a formação de conselhos coletivos de empoderamento local para a transformação de bairros em focos de comunas. A partir disso a constituição de um lastro de poder local criando uma rede coletiva horizontal que confronte o estado em nome da revolução no modo de vida dos bairros e ruas dentro do município.

Claro que isso tem em mente uma objetificação ideal da ação de coletivos inteiros e que não tem como medir os dramas diários de cada coletivo organizado nas periferias do país afora para compreender as dinâmicas internas que se se fazem presentes, os problemas e os enfrentamentos ao estado, especialmente em favelas, onde ele se mostra em uma face mais dura do que os intelectuais de classe média, entre os quais e me incluo pela casse e não pelo intelecto, cogitam compreender para além da formulação empática.

Só que é fundamental perceber o avanço da ocupação de espaço por coletivos anarcos ou autonomistas onde não se vê o discurso partidário, ocupadíssimo em conquistar CAS, DCEs, Grêmios, e não muito em organizar meios de enfrentamento político onde o estado não vai, e nem quem o busca ocupar para “fazer a revolução”, e tentar a partir disso auxiliar à construção de redes de transformação social que construam ferramentas revolucionárias de combate ao racismo ambiental, à criminalização da pobreza, ao racismo etnocida de estado, a partir do empoderamento simbólico e concreto dos moradores de periferia que a partir de suas associações (Não necessariamente associações formais) podem formar conselhos locais de percepção e resolução de problemas, que utilizem menos o aparato do estado e mais o cotidiano das ruas e vielas para tensionar o estado rumo à construção de alternativas de desenvolvimento local não paroquiais.

Essa ideia não se prende apenas nas periferias, as usa pela percepção de ocupação destes espaços pro coletivos autonomistas e anarquistas, e parte da ideia de Municipalismo Libertário criada por Murray Bookchin. E a proposta é incitar o debate sobre as táticas propostas por este pensador no cotidiano das cidades, atuando de forma a construir meios de reduzir o poder central do estado e combatê-lo rua a rua, bairro a bairro, cidade a cidade.

É fundamental entendermos também que essa proposta foi posta em prática no cotidiano do autor Murray Bookchin e hoje é praticada na Turquia pelos partidários do PKK e atual Curdistão Sírio pelo PYD (com o apoio do PKK), o que nos fornece meios práticos de percepção de suas implicações práticas, tão caras aos críticos.

A cidade independente de Kobane, membro do cantão de Rojava, que equivale ao Curdistão Sírio, é alvo tanto dos fundamentalistas islâmicos do Estado Islâmico (ISIS em Inglês) e das potências da OTAN, quanto dos islamistas moderados turcos do AKP, partido do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que ao negar a entrada de combatentes curdos ligados ao PKK pelas fronteiras turcas, permitindo apenas a entrada dos pershmerga do Curdistão Iraquiano, que não praticam o confederalismo democrático, buscam enfraquecer o crescimento da atuação do PKK em território turco, abatendo o bastião da prática libertária me Rojava.

foto-2-eduardinhoEsse exemplo dá uma ideia de quão perigosa é a ideia de uma confederação de cantões ou cidades livres, o quão é perigosa a ideia de bairros, ruas, favelas, livres e organizadas em conselho se pondo a enfrentar o estado a partir de conselhos de jovens, mulheres, velhos, de artesãos, de donas de casa, que se propõem a construir soluções práticas para enfrentar a ditadura do estado, que promete a paz, mas fornece uma paz sem voz, garantida no medo das unidades de polícia pacificadora (UPP) e na garantia de lei e ordem (GLO) com as digitais das forças armadas, as mesmas forças armadas que prenderem, mataram, torturaram marxistas na década de 1970, e mataram indígenas, camponeses e quilombolas, que jamais receberam tanto holofote quanto os membros das organizações comunistas e socialistas (muitos hoje no poder mantendo as ocupações militares e as unidades de “pacificação”).

É por isso que entendemos que uma boa sugestão é a percepção dos meios pelos quais se organizaram os curdos e propõe Murray Bookchin como meio de agir de forma revolucionária na construção cotidiana adaptando as experiências propostas pelo anarquista estadunidense e postas em práticas pelos curdos à realidade brasileira, atuando de um jeito onde se construam ferramentas concretas de superação do estado e das formas de organização hierárquicas, fornecendo alternativas concretas pra resolução de problemas cotidianos sem a intermediação de líderes paroquiais e de vereadores, desta forma fortalecendo a percepção do poder popular e empoderando os envolvidos na sua construção.