A Resistência é a Vida!, por Abdullan Ocalan

Foto da página Kurdish Female Fighters Y.P.J

Postado em Jornalismo B, em 26 de fevereiro de 2015

Texto de Abdullan Ocalan, militante curdo e preso político, no livro “Liberando la vida: la revolución de las mujeres”

Tradução: Lorena Castillo

A modernidade democrática: a era da revolução das mulheres

A liberdade da mulher desempenhará um papel estabilizador e igualador na formação da nova civilização e ocupará seu lugar em condições de respeito e igualdade. Para conseguir isso, temos que trabalhar no nível teórico, programático, de organização e implementação. A realidade da mulher é um fenômeno ainda mais concreto e analisável do que conceitos como “proletariado” e “nações oprimidas”. O grau de transformação possível da sociedade está determinado pelo grau de transformações que consigam as mulheres. Da mesma forma, o nível de liberdade e igualdade da mulher determina a liberdade e igualdade de todos os setores da sociedade. Por isso, o nível de democracia que alcance as mulheres é decisivo para o estabelecimento permanente da democratização e secularização. Para uma nação democrática, a liberdade da mulher tem uma grande importância, já que uma mulher livre constitui uma sociedade livre. A sociedade livre constitui por sua vez uma nação democrática. Por outra parte, a necessidade de mudar o papel do homem é de uma importância revolucionária.

O amanhecer de uma era de civilização democrática representa não somente o renascimento de todos os povos, se não também, de forma mais específica o auge da liberdade das mulheres. A mulher, que foi a deusa criativa da sociedade neolítica, sofreu perdas incessantes no decorrer das sociedades de classes. Inverter esta história acarretará inevitavelmente transformações sociais mais profundas. A mulher, renascida para a liberdade, se somará a liberdade e justiça no âmbito geral da sociedade, em todas as instituições, em todos seus níveis. Convencerá a todos que a paz, e não a guerra é mais valiosa e desejável. O triunfo da mulher é o triunfo da sociedade e do indivíduo em todos os níveis. O século XXI deve ser a era do despertar, a era da mulher livre e emancipada. Isto é mais importante ainda que libertação de classes ou de nação. A era da civilização democrática deve ser a era em que a mulher se alce e triunfe completamente.

É realista considerar nosso século como o século em que a vontade da mulher livre florescerá. Por isso é preciso estabelecer instituições permanentes para as mulheres e mantê-las quem sabe por século. Se necessitam partidos para a liberdade das mulheres. É vital também que se formem círculos ideológicos políticos e econômicos baseados na liberdade das mulheres.

As mulheres em geral, mas, mais especificamente as mulheres do Oriente Próximo, são a força mais enérgica e ativa da sociedade democrática, devido as características anteriormente descritas. A vitória definitiva da sociedade democrática só será possível com a mulher. Os povos e as mulheres são devastados pela sociedade de classes desde a era neolítica. Serão eles, como agentes fundamentais do progresso democrático, os que agora não só se vingaram da história, senão que também formaram a antítese necessária posicionando-se a esquerda da nascente sociedade democrática. As mulheres são verdadeiramente os agentes sociais mais confiáveis no caminho para uma sociedade igualitária e libertária. No Oriente Próximo, vai depender das mulheres e jovens assegurar a antítese necessária para a democratização da sociedade. O despertar da mulher e o fato de será força social líder neste cenário histórico, tem um valor de autentica antítese.

Devido às características de classes das civilizações, seu desenvolvimento está baseado pela dominação masculina. Isto é o que situa a mulher na posição de antítese. De fato, para superar a divisão de classes da sociedade e a superioridade masculina, sua posição adquire o valor de uma nova síntese. Por conseguinte, a posição de liderança dos movimentos de mulheres na democratização do Oriente Próximo possui características históricas que as constituem tanto como uma antítese (pelo fato de se desenvolverem no Oriente Próximo) e uma síntese (a nível global). Esta área de trabalho é a obra mais importante que jamais tinha feito. Acredito que deveria ter prioridade na liberdade das pátrias e a liberação do trabalho. Mas, se quero ser um lutador pela liberdade, não posso ignorar isso: a liberdade das mulheres é a revolução dentro da revolução.

A missão final fundamental da nova liderança é proporcionar o poder intelectual e a vontade necessária para conseguir os três aspectos cruciais para a conformação de um sistema de modernidade democrática, assim como ética desde um ponto de vista tanto econômico como ecológico. Para conseguir isso, devemos estabelecer um número suficiente de estruturas acadêmicas com uma qualidade adequada. Não é suficiente criticar o mundo acadêmico moderno, temos que desenvolver uma alternativa. Estas unidades acadêmicas alternativas deveriam ser criadas sobre as prioridades e necessidades de todos os campos sociais, tais como a economia e a tecnologia, ecologia e agricultura, políticas democráticas, segurança e defesa, cultura, história, ciência e filosofia, a religião e as artes. Sem um marco acadêmico forte os elementos da modernidade democrática não podem ser construídos. Os marcos acadêmicos e os elementos da modernidade democrática são igualmente importantes para alcançar êxito. A inter-relação é uma necessidade para alcançar êxito.

A luta pela liberdade (não só das mulheres, senão de todas as etnias e todos os setores da comunidade) é tão antiga quanto a história da escravidão e exploração da humanidade. O anseio pela liberdade é intrínseco à natureza humana.

Temos aprendido muito destas lutas, também da que estamos mantendo nos últimos quarenta anos. A sociedade democrática tem coexistido com diferentes sistemas de civilizações dominantes. A modernidade democrática, o sistema alternativo ao capitalismo moderno, é possível por meio de uma mudança radical da nossa mentalidade e as correspondentes mudanças, radicais e apropriadas, na nossa realidade material. Estas mudanças, devemos criar em conjunto.

Para terminar, eu gostaria de assinalar que a luta pela liberdade das mulheres deve ser levada a cabo através do estabelecimento de seus próprios Partidos Políticos, conseguindo um movimento popular de mulheres, construindo suas próprias organizações não governamentais e estruturas políticas democráticas. Tudo isso deve ser trabalhado ao mesmo tempo, simultaneamente. As melhores mulheres são capazes de escapar das garras da dominação masculina e da sociedade. As melhores serão capaz de viver e atuar de acordo como sua livre iniciativa e independência. Quanto mais as mulheres se empoderarem, mais reconstituirão sua personalidade e identidade em liberdade. Por conseguinte, apoiando a ira das mulheres, o movimento de conhecimento e liberdade é o maior aporte de companheirismo e prova de humanidade. Tenho plena confiança de que as mulheres, a margem de suas diferenças culturais e étnicas, todas as que têm sido excluídas do sistema, triunfarão. O século XXI será o século da libertação das mulheres.

Espero fazer minhas contribuições não só escrevendo, mas ajudando a colocar em prática estas mudanças.

Murray Bookchin: “Este Planeta Merece um Destino Melhor…”

Postado em Portal Anarquista, Ex-Colectivo Libertário de Évora, em 8 de fevereiro de 2015

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As ideias libertárias de Murray Bookchin ganharam recentemente uma nova actualidade aos serem adoptadas na organização dos territórios curdos no norte da Síria e reivindicadas pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão. São elas que animam e vivificam as milícias que ainda não há muitos dias libertaram Kobane e centenas de aldeias do avanço do chamado Estado Islâmico. Daí que exista também um renovado interesse por conhecer quer o libertário norte-americano M. Bookchin (1921-2006), quer as suas ideias assentes no municipalismo libertário. Em boa hora, António Cândido Franco traduziu para o ‘Portal Anarquista’ e para ‘A Batalha’, a parte final de um dos seus mais importantes livros, “The Ecology of Freedom”.

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A ECOLOGIA DA LIBERDADE – “EPÍLOGO”

Murray Bookchin publicou em 1984 The Ecology of Freedom, um dos seus livros mais densos e revolutivos, que, de forma enciclopédica tanto recorre ao domínio da biologia, da ecologia e da astrofísica como ao da história, da antropologia, do pensamento político e da filosofia. O livro constitui assim a súmula do pensamento de Bookchin e a peça mais significativa do ponto de vista daquilo que se chama ecologia social. A sua visão actualiza e desenvolve, como nenhuma outra, o pensamento libertário do século XIX, sobretudo o de Kropotkine, com o qual tem fundas afinidades, desde logo ao defender que nos organismos vivos a organização e a cooperação são muito mais essenciais do que a hierarquia e a dominação. O livro de 1984 pode com facilidade, pela originalidade das perspectivas e a vastidão dos saberes implicados, ombrear com as melhores obras teóricas do final do século XX e do início do século XXI. Ainda por traduzir em Portugal, apresentamos n’ A Batalha e no Portal Anarquista o epílogo do livro, que funciona em poucas páginas como um condensado das suas principais ideias e propósitos. [A.C.F.]

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bookchin008-2Neste livro tentei abalar em termos teóricos o mundo, como a seu modo tentaram no seu tempo os Digger, os Leveller, os Ranter. Intentei sacudi-lo com força e tentei analisar os traços mais significativos da sua evolução. Os meus esforços terão sido bem sucedidos se consegui demonstrar que a maldição da dominação impregnou quase todo o empreendimento humano depois do declínio da primeira sociedade orgânica. Quase nenhuma realização, no campo institucional, técnico, científico, ideológico, artístico, a própria racionalidade, se salvou desta praga. Distintamente da tendência, muito em moda hoje, de procurar a origem desta na luta doselvagem contra a natureza, encontrei-a eu no esforço sinistro da elite emergente em reduzir à escravatura os seres humanos. Sublinhei o papel potencialmente libertador da arte e da imaginação ao dar expressão ao que é autenticamente humano, utópico e livre na natureza humana.

Ao contrário de Marx e Freud, que identificaram “civilização” e “progresso” com auto-controle repressivo, defendi que a antropologia e a história dão uma imagem da humanidade em tudo adversa à de Hobbes. A mentalidade do sacrifício chegou com o conflito social e com a repressão que acompanham o aparecimento da hierarquia, não com a razão e a técnica. Os baixos-relevos egípcios e mesopotâmicos revelam um mundo no qual os seres humanos eram constrangidos a negarem não apenas os seus desejos e os seus impulsos mais humanos como ainda o mais elementar sentido da personalidade. Eva, a serpente e o fruto da árvore do conhecimento não foram a causa da dominação mas as suas vítimas. A sociedade, entendida como obra de laços maternos e logo de interdependência humana, está aí para nos recordar que o paraíso terrestre foi em muitos aspectos uma realidade concreta e que o verdadeiro “pecado original” corresponde à ideia gnóstica de “auto-transgressão”.

Não creio que se possa regressar ao Éden original, onde teve lugar esta violação. A história dá-nos uma esperança de solução para os problemas da hierarquia e da dominação. O conhecimento, a gnosis, quer dizer, conhecer e transcender o nosso primeiro acto de auto-transgressão, é o primeiro passo na terapia duma patologia pessoal de natureza repressiva. O pensamento sem a acção, a teoria sem a prática, significariam, porém, abdicar de qualquer responsabilidade social.

Viu-se no nosso tempo a dominação cobrir um tal âmbito colectivo que doravante parece estar fora do controle humano. Os milhares de bilhões de dólares gastos, depois da segunda guerra mundial, pelos vários Estados em meios de destruição e de controle – aquele armamento aterrador que figura em qualquer “orçamento de defesa” – são a expressão recente duma secular ansiedade de dominação que tomou por ora proporções demenciais. No confronto com esta monumental mobilização de matérias-primas, dinheiro, inteligência e trabalho humano, com fins exclusivamente destrutivos, os resultados obtidos em qualquer outro campo de acção empalidecem e quase se tornam irrelevantes. A arte, a ciência, a medicina, a literatura, a música ou a filantropia aparecem como meras migalhas caídas duma mesa sobre a qual, em sucessivos e sangrentos banquetes, se concentra a atenção dum sistema cuja fome de dominação não parece conhecer limite. É impossível não desconfiar dos actos de “generosidade” dum tal sistema, já que por detrás dos seus desígnios aparentemente meritórios – a tecnologia, a cibernética, os programas espaciais, o desenvolvimento agrícola, as inovações energéticas – se escondem motivações destrutivas e de sujeição da humanidade, através da violência, do medo e da ameaça.

1_2-216x300Este livro tentou dar um panorama da dominação a partir das suas origens numa oculta pré-história da hierarquia, que precedeu de muito a estratificação das classes económicas. A hierarquia esconde-se não só na pré-história da humanidade como ainda no mais profundo da nossa psique. Por esse motivo toda a riqueza da palavra liberdade parece ter sido traída no seio dos processos de socialização e no mais íntimo das nossas experiências. Esta traição vem ao de cima na forma como tratamos as crianças e as mulheres, nas relações interpessoais, na conduta física, nos pensamentos íntimos, na vida quotidiana e até no modo inconsciente com que organizamos a percepção da realidade. É uma traição que não se cumpre só nas instituições políticas e económicas mas no quarto, na cozinha, na escola, nos lugares de divertimento e nos centros de educação moral como as igrejas ou os círculos de terapia psíquica. A hierarquia e a dominação chegam até a presidir a movimentos de emancipação, como é o caso do marxismo nas suas formas mais vulgarizadas e convencionais, nas quais a organização autónoma das “massas” é vista com desconfiança e frequentemente denunciada como “desvio anárquico”.

A hierarquia desforra-se da nossa pretensão de termos superado a “animalidade”, atingindo a “liberdade” e a “individualidade”. Nos instrumentos que usamos para salvar vidas humanas, para criarmos belos objectos, que tornam mais aprazível o mundo que nos rodeia, há sempre qualquer coisa de desafinado que faz com que mesmo as nossas acções mais criativas acabem por ser percepcionadas como “triunfos”, tornando a “obra-prima” correlata à dominação. A grandeza da tradição dadaísta, a partir do gnosticismo ofita até à sua moderna expressão surrealista, é ter possibilitado, com a exaltação do direito à insubordinação, à imaginação, ao jogo, à fantasia, à inovação, à iconoclastia, ao prazer e à criatividade do não consciente, a ascensão e a consciência de tudo aquilo que a hierarquia nos ocultou. Fê-lo muito mais implacavelmente e lealmente do que os mais sofisticados jogos teóricos no campo hermenêutico, estruturalista e semiótico, tão em voga nas universidades da sociedade ocidental contemporânea.

Um mundo assim contaminado pela hierarquia, organizando-se do comando à obediência, exprime o seu espírito autoritário no modo como fomos habituados a ver-nos: como objectos a manobrar, coisas a usar. A nossa concepção de realidade, partindo desta imagem de nós próprios, alargou-se à imagem que temos da natureza “exterior”, assim se revelando que fomos encarando de forma cada vez mais mineral e inorgânica quer a nossa natureza quer a “exterior”. Simplificámos de forma tão perigosa a natureza, a sociedade e a personalidade, que comprometemos seriamente a integridade das formas complexas de vida, a riqueza das formas sociais e o ideal duma personalidade poliédrica.

Num tempo em que o mecanicismo materialista tem como concorrente um espiritualismo não menos mecânico, sublinhei a necessidade de prestar atenção à diversidade, visando alimentar uma noção de totalidade como princípio unificante duma ecologia da liberdade. Um tal acento é muito diverso daquilo que se acentua como “unitariedade”. Ao opor-me às tentativas correntes de dissolver a diversidade em denominadores comuns, materiais ou espirituais, exaltei a riqueza da variedade no desenvolvimento natural, social e pessoal. Propus uma interpretação, algo hegeliana, em que a história dum fenómeno – trate-se de subjectividade, de ciência ou de técnica – define esse fenómeno. Em cada um destes âmbitos, encontramos sempre vários graus e aspectos de compreensão, de intuição e de engenho, que devem ser sempre requeridos, caso se queira tomar a realidade nas suas várias graduações e aspectos. Ao invés, o pensamento ocidental procurou compreender a experiência e agir na realidade por meio dum único modo de subjectividade, de ciência e de técnica. Tendemos a fundar as nossas noções de realidade sobre bases reciprocamente exclusivas: económica num caso, técnica noutro, cultural noutro ainda. Destarte, linhas evolutivas fundamentais foram classificadas, da perspectiva dum limitado nível de desenvolvimento da evolução natural ou humana, como “basilares” ou “contingentes”, “estruturais” ou “supra-estruturais”.

municipalismo-libertarioTentei evidenciar que cada uma destas “linhas” ou de cada uma destas “super-estruturas” tinha a sua autenticidade e um direito histórico à sua identidade, sem dúvida interdependente com outras linhas evolutivas mas rica duma integridade só dela. O problema singular que mais me preocupou foi a interacção entre a evolução da dominação e a evolução da liberdade. Por liberdade não entendo só a diferença dos diferentes, mas também o alargamento das nossas noções de subjectividade, técnica, ciência e ética, com o reconhecimento da história delas e da capacidade de penetração que delas deriva a respeito dos vários estádios de desenvolvimento. Tentei mostrar não só como estes aspectos da liberdade formam um mosaico cada vez mais rico e completo, que apenas uma sensibilidade ecológica pode abalroar, mas também como esses aspectos interagem entre si, sem perderem, na multiforme variedade de tudo, a sua unidade. Não há uma “base” económica que reja a cultura, como não há uma “base” cultural que reja a economia. Na realidade, os próprios termos “base” e “supra-história” são estranhos à perspectiva que permeia este livro. Redutores e simplistas, estas palavras tendem a reflectir visões ingénuas duma realidade cuja riqueza desafia qualquer interpretação esquemática e estática.

Se a história pré-capitalista mostra alguma coisa é o facto dramático dos homens e das mulheres terem feito sacrifícios invulgares, por vezes até o da própria vida, pela crença na virtude, na justiça e na liberdade – crença que não se explicam apenas por interesses materiais e de estatuto social. A extraordinária história dos judeus, uma história de perseguições quase ininterruptas durante cerca de dois mil anos, a dos irlandeses no último século, e a dos movimentos populares revolucionários, da Reforma até à Comuna de Paris, estão aí a testemunhar a força dos ideais religiosos, nacionais ou sociais, capazes de empurrarem centenas de milhões de pessoas para actos de incrível heroísmo. Dizer que na “base” esses homens e essas mulheres foram empurrados por “factores económicos” de que não tinham consciência, quer dizer, manobrados pela dialéctica “económica” da história, significa presumir que estes factores eram de facto dominantes, quando na verdade ainda está sequer por provar que, em alguns casos, eles tenham sequer existido. Ainda quando esses factores pareçam evidentes, a sua importância nos actos humanos é tudo menos óbvia. Quando John Ball ou Gerrard Winstanley descrevem a avidez da classe dominante do seu tempo, sente-se que a sua crítica é menos guiada por interesses materiais do que por ideais de justiça e de liberdade.

A aversão à injustiça fervia no coração dos oprimidos não tanto por causa duma condição social particularmente pesada mas por via dum flagrante contraste entre as regras morais relativas à justiça e a sua transgressão no dia-a-dia. A história do cristianismo está impregnada desta contradição, que explica o papel catalisador que ele tantas vezes representou na história humana, gerando movimentos milenaristas revolucionários. Só quando o capitalismo contaminou a história com a ideia de “escassez”, fazendo dum mesquinho espírito de competição o motor de qualquer avanço social, é que grande parte destes ideais de virtude, de justiça e de liberdade degeneraram em grosseiros interesses materiais. Até os primeiros movimentos a favor duma redistribuição aparecem menos como grandes movimentos de saque e mais como esforços de reabilitação dum modo de vida revoluto, uma ordem social tradicional em que os hábitos de partilha e de não acumulação eram as normas prevalecentes. Muitas vezes estes movimentos destruíram não só os registos legais que legitimavam a autoridade e a propriedade do escol como ainda os palácios, as herdades, as mobílias e até os celeiros que pareciam encarnar o poder.

A revolução francesa, como notou Hannah Arendt (On Revolution, Viking Press, New York, 1965, pp. 36-52), assinala uma inversão das finalidades na mudança social: da aspiração ética passa-se a uma consciência da “questão social” expressa em termos de necessidades materiais. Na realidade esta alteração de perspectiva só parece ter chegado mais tarde, porventura já no nosso século. Marx exultou com este novo “realismo” ou “materialismo economicista”, mas o resultado é que, espartilhados entre a “fetichização das necessidades” e o desejo de significado ético e comunitário, acabámos por nos tornar produtos esquizofrénicos dum mundo condenado à imobilidade da sensação de impotência pessoal e social. Inventámos uma mística das “leis históricas” e do “socialismo científico” que serve mais, como construção, para compensar os nossos frustrados impulsos comunitários e a nossa malograda necessidade de sentido ético do que para explicar o motivo pelo qual comunidade e ética estão tão assentes no real e tão longe como fins.

Se não há um único aspecto da realidade, seja económico ou outro, que por generalização possa explicar a evolução social, se não existem leis sociais que orientem a nossa aproximação mental aos fenómenos, em que base e com que coordenadas podemos então interpretar os comportamentos sociais? Em meu entender o quadro de maior significado em que decorre a aventura humana está na distinção entre autoritário e libertário. Não quero com isto dizer que estes termos exprimam um sentido teleológico da história, nem tão pouco que estão isentos de ambiguidade. Não somos por certo nós que afirmaremos ou negaremos que exista na história humana um ponto de chegada, que possa corresponder ao “absoluto” hegeliano, ao “comunismo” marxista… ou então à extinção definitiva. É pura figura de estilo dizer que a “verdadeira história” da humanidade só começará no momento em que a “questão social” ficar resolvida. Por outro lado a crença iluminista no progresso tecnológico é o sistema menos fiável de que dispomos. Hoje, no mais tecnicizado dos mundos, em que a própria ética foi acoplada ao qualificativo “instrumental”, estamos dispostos a reconhecer que até os nossos projectos mais cativantes, não obstante os atributos que ostentam, “conviviais”, “apropriados” ou outros, possam ser empregues para criar estratégias “alternativas” à violência.

Nunca é de mais sublinhar que as palavras “libertário” e “autoritário” não se referem só a formas institucionais, técnicas e científicas antagónicas, mas sobretudo a sensibilidades e valores, em suma a epistemologias opostas. A definição que dou do termo “libertário” aparece modelada pela definição que dou de ecossistema: unidade na diversidade, espontaneidade e relações de complementaridade, em que está ausente qualquer forma de hierarquia e dominação. Com o termo “autoritário” refiro-me à hierarquia e à subordinação nas suas várias formas sociais: gerontocracia, patriarcado, relações de classe, elites de vários tipos e por fim o Estado, incluídas as suas várias formas socialmente mais parasitárias: o capitalismo de Estado. Mas se não incluirmos aí também as formas contrárias de sensibilidade, ciência, técnica e ética e as contrárias formas de razão aí implícitas, as palavras “libertário” e “autoritário” reduzem-se a termos meramente institucionais. Devem-se pois explicitar ao máximo aquelas implicações, e de igual modo as do arco de qualquer outra experiência, caso se queira que o seu recíproco antagonismo tenha um sentido dinâmico e transformador.

Reconheça-se à razão, na tensão que a disputa entre o autoritário e o libertário, o direito a uma racionalidade libertária. Do ponto de vista filosófico insistimos talvez até de mais que uma racionalidade libertária deve fundar-se em cânones de verdade e de coerência, mas também de intuição e de contradição, que invalidam por inteiro as pretensões de verdade do pensamento formal e analítico. Dado que intuição e contradição podem servir fins autoritários, como se vê na filosofia fascista e no materialismo dialéctico estalinista, e que ao invés a razão analítica teve momentos que serviu a liberdade de pensamento, não temos, além dos nossos critérios éticos, nenhum guia seguro e exclusivo, que garanta frutos indiscutíveis de emancipação ao nosso pensar. As figuras de Buda e de Cristo tanto foram usadas com propósitos de autoritarismo ou de liberdade. O misticismo e o espiritualismo radicais tanto se mostraram anti-naturais e anti-humanos como ecológicos e milenaristas. Aquilo que é decisivo no ajuizar dos critérios da razão, ou para ser mais preciso no modelar duma nova aproximação à subjectividade, é a forma como é ou não é impulsionado um modelo ético biologicamente variado, baseado na fecundidade da vida e na qualidade da complementaridade, resultado dum mosaico de experiências sempre mais ricas e acima duma concepção piramidal e hierarquizada da experiência. Nem sequer é preciso renunciar aoOrganum de Aristóteles, que durante tantos séculos serviu de base aos princípios lógicos do pensamento ocidental, ou à teoria dos sistemas, com o seu conceito de causalidade circular. Devemos apenas modelar a razão, linear ou circular que seja, sobre uma ética pessoal e socialmente emancipadora. A razão, cuja demolição por Horkheimer e Adorno, suscitou tanto pessimismo entre os colegas deles, pode ser devolvida à ética libertária, uma ética aberta à riqueza da sensibilidade humana, enquanto encarnação da faculdade mesma de sentir a todos os níveis da evolução da orgânica social.

Há uma base sobre a qual é possível edificar esta ética libertária, uma área que dá uma direcção e um significado que não dependem nem dos caprichos da opinião e do gosto nem da fria eficácia instrumental. À parte os lugares-comuns sobre o povo, a raça ou as “inevitáveis leis dialécticas”, parece existir na natureza uma espécie de direcção latente, uma evolução da auto-organização, que dá lugar à subjectividade e cujo termo final parece ser a auto-reflexão característica dos seres humanos. Semelhante visão pode constituir um preconceito antropormófico, prestando-se a um relativismo arbitrário, muito parecido à razão subjectiva, ou instrumentalismo, criticada por Horkheimer. Todavia, até a pretensão filosófica dum princípio sem pressupostos é um pressuposto da mente. Ainda não se concluiu que a antiga crença de que há valores intrínsecos na evolução natural é mais discutível do que a imagem russeliana da vida e da consciência humana como puros produtos do acaso.

Será fantasia avançar a hipótese que o nosso ser seja só por si uma epistemologia e uma ontologia, quer dizer, uma filosofia do organismo capaz de responder às acusações de antropomorfismo? A forma não é menos essencial à natureza do movimento e à finalidade da função. Qualquer coisa que se escolha por natural implica como função seja a forma seja o movimento. Invocar o acaso puro como deus ex machina dum desenvolvimento estupendamente organizado, que se presta a uma demonstração sintética matemática, é usar o acidental como túmulo da explicação. Argumentando com perspicácia a favor duma aproximação teleológica, Hans Jonas perguntou-se se uma análise estritamente psico-química da estrutura do olho e do seu estímulo tinha sentido e se não era correlata ao acto de ver. Diz Hans Jonas (The phenomenon of life, Delta Books, Nova Iorque, 1966: p. 90; sublinhados meus): Sempre se encontrará a intencionalidade do organismo enquanto tal e a sua ânsia de vida: presente já em cada tendência vegetativa estes atributos ganham a primeira forma de consciência nos reflexos indistintos, na reactiva excitabilidade, dos organismos inferiores, consciência que se avoluma nos impulsos, nos esforços e na ânsia da vida animal, atingindo a máxima clareza na sensibilidade, na vontade e no pensar humanos. Reflexos, impulsos, consciência… todos são aspectos essenciais do lado teleológico da “matéria” (…). Em cada caso, a estrutura e o comportamento teleológicos dos organismos não configuram simplesmente um modo alternativo de os descrever: são, e prova-o a consciência orgânica de cada um deles, a manifestação exterior da natureza íntima da substância. O que carreia que não exista organismo sem teleologia, que não exista teleologia sem essa natureza íntima e que só a vida possa conhecer a vida.

Poder-se-á acrescentar que só se conhece a vida como resultado da vida. Esta não pode nunca, pela sua natureza mesma, ser dissociada da sua capacidade potencial de conhecer. Poder-se-iam juntar muitas outras sequências às considerações de Jonas sobre teleologia. Pode-se conceber por exemplo a teleologia como actualização duma potencialidade, mais precisamente como o resultado final da tendência imanente para a auto-realização, uma tensão que deixa espaço à casualidade e à incerteza. Neste sentido, a teleologia expressa a auto-organização dum fenómeno para ser aquilo que é, sem certeza à partida que assim será. O nosso conceito de teleologia não necessita de nascer em linha recta de nenhuma “férrea necessidade”, de nenhum auto-desenvolvimento linear e preciso, que “inevitavelmente” assegure a realização final dum fenómeno a partir do seu ponto de partida. Não obstante um fenómeno não poder auto-constituir-se por acaso, a casualidade pode impedir a auto-realização. O seu “telos” apresenta-se assim como consequência duma tensão vitoriosa e não como uma necessidade inevitável.

rojavaO mais cativante, porém, que está hoje acontecendo é o facto de ser a própria natureza a escrever a filosofia e a ética natural, não os lógicos, os positivistas, os sociobiologistas, os místicos ou os herdeiros do cientismo de Galileu. É cada vez mais óbvio que não estamos sozinhos no universo, nem mesmo no vazio do espaço. Graças a uma revolução muito recente na astrofísica, talvez só equiparável às descobertas de Copérnico e Kepler, o entendimento do cosmos exige um volta-face especulativo da mente e uma aproximação mais qualitativa aos fenómenos naturais. Torna-se dia a dia mais plausível que o universo inteiro seja o berço da vida e não apenas o nosso planeta ou planetas de condições idênticas. O “big-bang”, a grande explosão, cujos ecos distantes, atravessando mais de quinze mil milhões de anos, ainda hoje são perceptíveis pelos instrumentos dos astrofísicos, pode ser a prova, mais que incidente casual, de uma forma de “respiração” cósmica, cujas expansões e contracções se estendem por um tempo infinito. Se assim é, e situamo-nos no plano das meras conjecturas, estamos diante de processos cósmicos, mais do que ante um episódio singular, na formação do universo. Se estes processos exprimem uma forma sem fim de história universal, nós, que estamos irrevogavelmente fechados na era cósmica que nos é própria, não estaremos nunca em condições sérias de interpretar a realidade e o significado deles. Não é porém despropositado perguntar se é dum vasto e contínuo desenvolvimento do universo que se trata ou se dum género de respiração rítmica universal.

Tudo isto se passa no campo das conjecturas, dizíamos, conquanto a formação de todos os elementos do hidrogénio e do hélio, a sua combinação em pequenas moléculas e depois a sua auto-formação em grandes, e por fim a organização destas nos componentes da vida e da mente, seguem uma sequência que desafia a imagem russeliana duma humanidade como faúlha acidental num vácuo privado de sentido. Certos passos desta sequência põem fortemente em dúvida tais concepções em que a palavra “acaso” se torna um cauteloso substituto duma substancial inevitabilidade. Um universo disseminado por um pó composto de hidrogénio, carbono, azoto e oxigénio pareceria inevitavelmente destinado à formação de moléculas orgânicas. Os radio-astrónomos encontraram no espaço inter-estelar cianogénio, óxido de carbono, ácido cianídrico, formaldeído, ácido fórmico, álcool metílico, acetal e formato de metilo. A imagem clássica do espaço como vácuo está, em suma, ultrapassada e dá lugar à imagem dum espaço como lugar de incessante actividade química e genética, a favor duma surpreendente sequência de compostos orgânicos cada vez mais complexos.

Daqui até à auto-organização de moléculas que constituam formas rudimentares de vida o passo é curto. A análise dos meteoritos com pequenas inclusões carbonáceas evidenciou a existência de hidrocarbonetos aromáticos de cadeia longa, como ácidos gordos, aminoácidos e porfirinas, isto é, compostos de que é feita a clorofila. Num conjunto de experiências de laboratório, iniciadas pela conhecida “spark.gap” de Miller Urey, produziram-se aminoácidos simples fazendo passar descargas eléctricas através dum recipiente que continha gás presumivelmente idêntico, enquanto combinação, à atmosfera terrestre primitiva. Modificando o gás a partir de teorias sobre a atmosfera originária, outros investigadores conseguiram obter aminoácidos complexos, precursores do ADN.

Sempre de modo hipotético, mas com um impressionante número de provas, é agora possível imaginar como os microrganismos anaeróbios puderam desenvolver membranas simples e como, num crescendo de complexidade, emergiram formas distintas de vida capazes de processos metabólicos altamente desenvolvidos. Outras hipóteses, nas conjecturas sobre a formação das estruturas genéticas, revelam num modo ainda mais impressionante a gradativa continuidade entre inorgânico e orgânico. Tais conjecturas conduzem-nos à característica central da vida mesma: a capacidade que tem um complexo mosaico de macro moléculas orgânicas de se reproduzir e, o que é mais, de o fazer com mutações suficientemente significativas para permitir a evolução. Já em 1944, Erwin Schrodinger tinha fornecido uma definição da reprodução e da evolução orgânica. No livro What is life? Mind and matter (Cambridge University Press, Nova Iorque, 1944: 5) este ilustre físico observava que “a parte essencial da célula viva – o cromossoma – podia ser definido como um cristal aperiódico”. Este na verdade não se limita a crescer por adição, como um periódico, mas modifica-se de modo significativo, dando lugar a formas evolutivas novas, mutações que iniciam e desenvolvem dados hereditários.

Rojava011Graham Cairns-Smith avançou uma outra hipótese, uma das muitas que hoje são avançadas, que pode ajudar a esclarecer a natureza dos primitivos processos reprodutivos. O  ADN é demasiado instável quimicamente, sublinha Cairns-Smith, para poder ter sobrevivido às radiações e às altas temperaturas a que estava exposta na origem a superfície terrestre. Com uma analogia, Cairns-Smith equipara o ADN a um “nastro magnético: é muito eficiente se provido dum ambiente protector indicado, de matérias-primas adequadas e dum complexo sistema de registo”. Estes atavios, sustém ele, podem-se até encontrar no mundo inorgânico (Genes Made of Clay, “The new scientist”, 24 de Outubro de 1974, p. 276): Em conjunto com numerosas outras considerações, isto leva a pensar num processo de cristalização como mecanismo de reprodução, um qualquer defeito nos cristais torna-se o modelo de formação dos novos modelos. Certas argilas de mica parecem-me oferecer cruciais e  promissoras possibilidades.

A hipótese de Cairns-Smith sugere no mínimo que a vida, por vias próprias e seguindo a sua própria evolução genética, não se retraiu com os fenómenos do mundo inorgânico. Não quero com isto dizer que a biologia possa ser reduzida à física, tanto como a sociedade não pode ser reduzida à biologia. Aquilo que Cairns-Smith sugere é que, se certos cristais de argila podem ser os precursores das sucessivas e das mais avançadas formas de material hereditário orgânico, a natureza pode ser unificada por algumas tendências comuns. Tais tendências partilhariam uma idêntica origem na realidade do universo, ainda que funcionando de forma diferente e em diversos níveis de auto-organização.

Reside aqui, do meu ponto de vista, o aspecto essencial: a substância e a sua propriedade são inseparáveis da vida. A concepção bergsoniana da biosfera como factor da redução da entropia, num  universo que se presume avançar para a perda de energia e para a desordem crescente, parece atribuir à vida uma razão cósmica para existir. Caso as formas de vida tenham esta função, isso não sugere de todo que a vida tenha sido projectada do exterior por um demiurgo sobrenatural. Sugere antes que a “matéria”, ou substância, tem propriedades auto-organizativas, não menos válidas que a massa e o movimento que a física newtoniana lhe atribui.

Ao modo dos atributos tradicionais da “matéria”, não faltam dados para tornar plausíveis estas novas propriedades. No mínimo a ciência deve ser aquilo que na realidade a natureza é; e a vida na natureza, para usar a terminologia bergsoniana, é uma força que age em sentido contrário à segunda lei da termodinâmica, isto é, como factor de redução entrópica. A auto-organização da substância em formas cada vez mais complexas – e do mesmo modo da forma em correlação com a função e da função com a auto-organização – implica uma incessante actividade para chegar à estabilidade. Pode-se pois supor que a estabilidade, assim como a complexidade, seja um “objectivo” da substância, que a complexidade, e não apenas a inércia, favoreça a estabilidade e que, enfim, a complexidade seja a característica fundamental da evolução orgânica e duma interpretação ecológica das inter-relações bióticas. Todos estas noções são modos de compreender a natureza, não divagações místicas. São elementos probatórios e são-no muito mais do que os preconceitos teóricos que ainda hoje se opõem à ideia de que o universo tenha um significado, um significado moral, atrever-me-ei a dizer.

Parece claro que não nos podemos mais contentar com uma matéria “morta” e passiva que fortuitamente se junta em substância viva. O universo dá testemunho duma substância que está em constante tensão e se desenvolve, e não apenas se movimenta, uma substância cujo atributo dinâmico e criativo é a sua incessante capacidade auto-organizativa em formas sempre mais complexas. A fecundidade natural deriva antes de mais do crescimento, não da deslocação no espaço. Não podemos retirar às formas a sua situação central neste processo de crescimento e de desenvolvimento, nem podemos inferiorizar a função da forma que lhe é correlata. Aquele universo ordenado que torna a ciência um projecto possível e que dá sentido ao uso duma concisa linguagem lógico-matemática supõe esta correlação de forma e função. Nesta perspectiva, a matemática serve não apenas como “língua” da ciência mas também como seu logos. Este logos é sobretudo um projecto possível, já que toma em mãos um motivo que é inerente à natureza, “objecto” da indagação científica.

Uma vez superado o degrau do comportamento meramente instrumental nos embates da “linguagem” das ciências, podemos encontrar outros atributos para aquela substância que chamamos vida. Concebida como uma substância que infinitamente se conserva e se desenvolve, metabolismo incessante, a vida mostra também uma outra característica: a simbiose. Dados recentes confirmam a hipótese do naturalismo cooperante de Pedro Kropotkine não é só aplicável às relações dentro duma mesma espécie e entre espécies, mas ainda dentro das formas celulares complexas e entre elas. Há mais duma década observava já William Trager (Symbiosis, Van Nostrand Reinhold Co., Nova Iorque, 1970: VII): O conflito existente na natureza entre organismos diversos foi largamente divulgado e popularizado pelas expressões “luta pela vida” e “sobrevivência do mais forte”. Poucos se dão conta, porém, que a cooperação entre organismos diferentes – a simbiose – é igualmente  importante e que “o mais forte” pode ser aquele que mais ajuda o outro a sobreviver.

Consciente ou não, esta definição do “mais forte” não é só uma mera conjectura científica dum ilustre biólogo; é também um juízo ético idêntico ao que Kropotkine extraía do seu trabalho de naturalista e do seu ideal de anarquista. Trager sublinha que a integração “quase perfeita” dos “microrganismos simbióticos na economia do hospedeiro (…) levou à hipótese de que certos organismos intracelulares pudessem ter sido na origem microrganismos independentes.” Na verdade os cloroplastas, que desempenham a fotossíntese nas plantas de células eucarióticas, são estruturas definidas que se replicam por divisão, têm um ADN característico, semelhante ao das bactérias cocoformes, sintetizam as suas próprias proteínas e estão envolvidas por uma dupla membrana.

O mesmo se pode dizer das mitocôndrias, “centrais eléctricas” das células eucarióticas. As primeiras investigações neste campo remontam à década de 60 do século XX e foram desenvolvidas com muito entusiasmo por Lynn Margulis (Symbiosis in cell evolution, W. H. Freeman and Co., San Francisco, 1981) em numerosos artigos e livros sobre a evolução celular. Como se percebe a célula eucariótica é a unidade morfológica elementar de todas as formas complexas de vida vegetal e animal. Também os fungos apresentam esta estrutura celular provida de núcleo. As células eucarióticas são aeróbias e incluem várias subclasses claramente definidas. Ao invés, as células procarióticas não têm núcleo, são anaeróbias, menos especializadas e, segundo Margulis, são os antecedentes evolutivos das eucarióticas. As procarióticas são a única forma de vida que podia sobreviver e prosperar na atmosfera terrestre primitiva, onde apenas existia uma quantidade mínima de oxigénio.

Margulis conjecturou e largamente demonstrou que as células eucarióticas consistem numa adaptação simbiótica funcional de procarióticas tornados interdependentes umas com as outras.  Os flagelados eucarióticos tornaram-se espiras anaeróbias; as mitocôndrias fizeram-se bactérias capazes de respiração e de fermentação e os cloroplastídeos deram lugar às algas verde azuis recentemente classificadas como cianobactérias. Esta teoria, amplamente aceite hoje entre os biólogos, retém que os antepassados fagócitos das eucarióticas tinham absorvido, sem os digerir, espiras, protomitocôndrias (que Margulis sugere possam ter invadido os seus hospedeiros) e, no caso das células da fotossíntese, cianobactérias e clorobactérias de forma arredondada. As diversas formas aeróbias de vida teriam assim tido origem num processo simbiótico que integrou uma variedade de microrganismos naquele que pode ser definido como um organismo colónia: a célula eucariótica. O mutualismo cooperante, não predatório, aparece assim como o princípio guia para a evolução das formas da vida aeróbia altamente complexa que hoje conhecemos.

A perspectiva de que a vida e todos os seus atributos estão latentes na substância enquanto tal e de que a evolução biológica esteja profundamente radicada na simbiose e no mutualismo indica como é importante redireccionar a nossa noção de “matéria” como substância activa. Observava Manfred Eigen (Molecular self organization and the early stages of evolution, inQuartely review of biophysis, vol. IV, n.º 2/3, p. 202) que a auto-organização molecular sugere que a evolução “se apresenta como evento inevitável dada a presença duma certa matéria com específicas propriedades auto-catalíticas e dum fluxo limitado de energia livre, isto é, de energia solar, necessária para compensar a produção fixa de entropia.” Com efeito esta actividade auto-organizativa vai além da emergência e da evolução da vida e diz respeito àqueles factores aparentemente inorgânicos que produziram e mantêm “um ambiente bioticamente favorável ao desenvolvimento de formas de vida cada vez mais complexas”. Como sublinha Margulis, sintetizando a hipótese Gaia, elaborada por ela e por James E. Lovelock, não é mais sustentável que a vida haja sido constrangida a adaptar-se a um ambiente independente, geológica e meteorologicamente determinado. Este dualismo entre mundo vivente e não vivente – baseado em mutações casuais e pontuais das formas de vida, que por sua vez determinam quais as espécies que se salvam e as condenadas – aparece substituído pela noção mais estimulante que a vida, como diz Margulis, “produz grande parte do seu ambiente”. E ainda: “certas propriedades da atmosfera, da terra e da hidrosfera são controladas para e pela biosfera.”

Comparando planetas sem vida como Marte ou Vénus com a Terra, Margulis nota que a alta concentração de oxigénio na nossa atmosfera é anómala quando confrontada com o anidrido carbónico dos outros planetas. Demais “a concentração de oxigénio na atmosfera terrestre permanece constante, não obstante a presença de azoto, metano, hidrogénio e outros reagentes potenciais”. Na realidade a vida tem um papel activo na manutenção das moléculas de oxigénio livre na atmosfera. O mesmo se pode dizer para a alcalinidade e do nível moderado de temperatura da superfície terrestre. Diz Margulis (op. cit., pp.348-49): As anomalias da atmosfera terrestre são outra coisa que casualidade. As temperaturas das regiões tropicais e das temperadas divergem dos valores que teríamos por interpolação entre os valores correspondentes de Marte e Vénus e os desvios que têm lugar na maior parte dos organismos. O oxigénio mantém-se em cerca de vinte por cento, a temperatura média dos estratos inferiores da atmosfera é de cerca de 22 graus centígrados e o pH apenas acima de 8. Estas anomalias a escala planetária conservaram-se por longo tempo. A estranha composição química da atmosfera terrestre manteve-se por milhões de anos, apesar do tempo de permanência dos gases reagentes se medirem apenas em meses ou anos. Margulis conclui assim: É altamente improvável que o acaso possa explicar o facto da temperatura, o pH e a concentração de elementos nutritivos hajam sido por grande espaço  de tempo os adequados à vida. Ainda mais improvável, se pensarmos que os principais perturbadores dos gases atmosféricos são os organismos, antes de mais os micróbios. Ao invés, parece mais provável o investimento de energia, por parte dos viventes, numa actividade de conservação destas condições.

Em suma, até a Síntese Moderna, para usar a terminologia empregue por Julian Huxley para definir o modelo neo-darwinista de evolução orgânica introduzido nos anos 40, foi posta em discussão pela sua perspectiva limitada e talvez demasiado mecânica. A imagem dum ritmo evolutivo lento, saído da interacção de pequenas variações seleccionadas pela sua adequação ao ambiente, não se afigura sustentável, como parecia ser, a partir das descobertas fósseis disponíveis. A evolução aparece hoje mais esporádica, muitas vezes intervalada por longos períodos de estagnação. Espécies altamente especializadas tendem a modificar-se ou a desaparecer por causa dos reduzidos nichos ecológicos em que podem sobreviver, enquanto espécies menos especializadas se transformam mais lentamente e desaparecem com menos frequência, graças aos ambientes mais variados em que conseguem sobreviver. Esta hipótese, dita “hipótese de efeito”, adiantada por Elisabeth Vrba (citada por Robert Lewin, “Evolutionary theory under fire”, Science, vol. 210, 1980, p. 885), sugere que a evolução seja mais uma tendência imanente e não tanto o produto de forças selectivas externas. As mutações acasalam mais um mosaico voluntário do que pequenas e casuais modificações na estrutura e nas funções das formas de vida. Como alguém observou, enquanto a selecção das espécies atribui a força evolutiva às condições do ambiente, a “hipótese de efeito” endereça essa forças a parâmetros internos que determinam os níveis de especialização e de extinção.

A ideia de pequenas e graduais mutações casuais, uma teoria que concorda com a concepção vitoriana de transformações evolutivas estritamente fortuitas, pode ser posta em causa apenas por razões de base genética. Não só um gene mas um cromossoma, em mutáveis combinações entre si, podem ser modificados quimicamente e mecanicamente. As transformações genéticas podem ir de “simples” mutações pontuais a novas sistematizações de cromossomas muitos mais consistentes. Demais parece evidente, sobretudo no seguimento de resultados experimentais, serem possíveis trocas de mutações morfológicas geneticamente determinadas. Pequenas modificações genéticas podem dar lugar a transformações morfológicas, relevantes ou irrelevantes, e o mesmo vale para as grandes mutações genéticas.

A observação de Trager de que a espécie “mais adequada” pode ainda ser “aquela que mais ajuda uma outra viver” é uma fórmula excelente para refazer o quadro da evolução natural, vulgarmente pintado como drama insensato de sangrenta competição visando a sobrevivência. Existe uma rica literatura, que, remontando ao fim do século XIX, sublinha o papel desempenhado pela cooperação intra e entre específica na capacidade de sobrevivência das formas de vida no planeta. O famoso Apoio mútuo de Kropotkine sintetizou o conhecimento então disponível e juntou a palavra mutualismo  ao vocabulário biológico. Os primeiros capítulos desse livro resumem trabalhos contemporâneos de Kropotkine, as suas pesquisas na Ásia oriental e ainda uma montanha de dados novos sobre insectos, crustáceos, pássaros, as associações para caça dos “mamíferos carnívoros”, as sociedades de roedores, e outras sequências idênticas. O material é em grande parte intra-específico, mesmo que os biólogos mutualistas de há um século não tivessem ainda evidenciado os sistemas de apoio específico que nós sabemos hoje existirem numa quantidade muito maior do que Kropotkine podia imaginar. Buchner escreveu em 1953 um volume inteiramente dedicado à endo-simbiose dos animais com microrganismos vegetais; Henry, por sua fez,  no meado da década de 60 actualizou o estudo desta questão nos dois volumes de Symbiosis. As provas que este último apresenta sobre esse modo particular de mutualismo que é a simbiose inter-específica são, dizendo pouco, massivas. Ainda mais do que Apoio mútuo de Kropotkine, o trabalho de Henry documenta as relações mutualistas a partir da relação inter-específica entre rhizobium e legumes, passando pelas associações vegetais, pelo comportamento simbiótico entre animais, para chegar ao grande mecanismo homeostático de escala planetária ao nível das relações bioquímicas.

A adaptação raramente tem um significado biológico como pura sobrevivência e adequação ao meio das espécies. Se ficar por este nível de superfície, torna-se apenas uma empresa de adaptação individual que não consegue explicar a necessidade dos sistemas vitais de apoio que todas as espécies têm, seja por sistema autotrófico ou heterotrófico. A teoria evolutiva tradicional tende a abstrair uma espécie do seu ecossistema, isolando-a e considerando a sua sobrevivência de modo muito abstracto. Por exemplo, a interacção de mútuo apoio entre os organismos de fotossíntese e os herbívoros, longe de ser a forma mais simples de acção predatória ou de heterotrofia, é ao invés indispensável até para a fertilidade do solo, graças aos dejectos animais, à disseminação das sementes, à reciclagem dos cadáveres num ecossistema que se enriquece a cada momento. Mesmo os grandes carnívoros, predadores dos herbívoros, têm uma função vital, de controle demográfico selectivo, eliminando os animais doentes ou velhos, para os quais a vida estaria destinada a ser sobretudo sofrimento.

Paradoxalmente se desvalorizamos o significado do verdadeiro sofrimento e da crueldade reduzindo-o a dor e a acção predatória, do mesmo modo desvalorizamos o significado da hierarquia e da dominação roubando-lhes o sentido social e reduzindo-as a relações transitórias entre indivíduos mais ou menos violentos no seio duma específica comunidade gregária animal. O medo, a dor e a morte que um matilha de lobos dá a uma velha rena doente dão testemunho não da crueldade da natureza mas antes dum modo de morrer adequado à renovação orgânica e à estabilidade ecológica. O sofrimento e a crueldade pertencem ao mundo da angústia pessoal, da dor inutilmente infligida, da degradação moral de quem atormenta a vítima. Estas noções não são aplicáveis à eliminação dum organismo que já não pode funcionar a um nível que torna a vida tolerável. É perverso associar qualquer dor a sofrimento, qualquer acção predatória com crueldade. Sofrer a angústia da fome, os traumas psicológicos, a insegurança, o abandono, a solidão, a morte na guerra, as doenças incuráveis, nada disto pode ser comparado com a breve dor duma morte quase insciente dum acto predatório. As aflições da natureza são raramente tão cruéis como os sofrimentos sistemáticos e organizados infligidos pela sociedade humana aos seres vivos, animais ou homens, de perfeita saúde, sofrimento que só a mente humana pode conceber.

daf_in_kobaneNem a dor, nem a crueldade, nem a agressão, nem a competição explicam de forma satisfatória o aparecimento e o desenvolvimento da vida. Para uma melhor explicação devíamos tomar em consideração o mutualismo e um conceito de “adaptação” que reforce os sistemas de mútuo apoio e que responsabilize o mais adaptado. Se estamos dispostos a reconhecer a natureza auto-organizativa da vida, o papel decisivo do mutualismo e a sua dinâmica evolutiva impõem-nos a redefinição de “adaptação” em termos de ecossistema. E se estamos dispostos a ver a vida como um fenómeno que pode modelar e conservar aquele mesmo “ambiente” que se considera como fonte selectiva da sua evolução, uma pergunta crucial se impõe: faz sentido continuar a falar de “selecção natural” como força motriz da evolução biológica? Não precisaremos antes de falar em “interacção natural” para darmos conta de forma plena do papel da vida no criar e no orientar as forças que explicam a sua evolução? A biologia contemporânea dá-nos um quadro de interdependências muito mais importante na modelação das formas de vida do que tudo aquilo que um Darwin, um Huxley ou os autores da Síntese Moderna poderiam ter previsto. A vida é necessária não apenas em termos de auto-conservação mas até por causa da sua auto-formação. “Gaia” e a subjectividade são mais que efeitos da vida: são os seus atributos integrais. A grandeza duma autêntica sensibilidade ecológica, bem diferente do “ambientalismo” superficial hoje dominante, é que ela nos dá a possibilidade de generalizar de modo radical as inter-relações mutualistas, fazendo da variedade em que assenta o fundamento da estabilidade. A sensibilidade ecológica dá-nos uma perspectiva coerente que explica a realidade no sentido pleno do termo, dando-lhe uma explicitação ética.

Desde a longínqua idade helénica até ao primeiro Renascimento a “natureza” foi vista sobretudo como bússola de orientação ética, graças à qual o pensamento humano encontra o seu sentido e a sua coerência. A natureza não humana não era externa à natureza humana e à sociedade. Ao invés, a mente era apenas uma parcela dum logos cósmico que fornecia critérios objectivos para os conceitos pessoais e sociais de bem e de mal, justo e injusto, belo e feio, amor e ódio e, em suma, para todo um conjunto de valores, graças aos quais era possível caminhar em direcção da virtude e duma existência feliz. As palavras dike e andike – justiça e injustiça – compunham a cosmologia dos filósofos gregos da natureza. Sobraram até hoje traços desses valores em numerosa terminologia da moderna linguagem das ciências da natureza, por exemplo em palavras como “atracção” ou “repulsa”.

O erro da cosmologia antiga não reside na sua orientação ética mas na sua aproximação dualista à natureza. Por causa da maior importância atribuída à especulação sobre a experimentação, a antiga cosmologia cometeu o seu maior erro ao tentar ligar uma natureza fecunda auto-organizada com uma força vital alheia ao mundo natural. A dike de Parménides é, como o élan vital de Bergson, um substituto das propriedades auto-organizantes da natureza, não é uma força interna à natureza, uma força que explique a ordem do mundo. Até nas cosmologias monísticas que procuram juntar eticamente a humanidade e a natureza existe um dualismo latente, um deus ex machina que corrige os desníveis, seja num universo desequilibrado, seja numa sociedade insensata. A verdade tem uma coroa invisível, é uma espécie de verdade de Deus ou do Espírito, já que do mesmo modo que não se confia no desenvolvimento espontâneo da natureza também se espera que o Estado, como herança da “civilização”, funcione.

Estes arcaísmos, com as suas vagas teologias e as suas teleologias rigidamente elaboradas, foram justamente avaliados como armadilhas socialmente reaccionárias. Contaminaram as obras de Aristóteles e de Hegel, como magnetizaram as mentes escolásticas medievais. Mas os erros da antiga filosofia da natureza não residem tanto na tentativa de colher uma ética da natureza mas antes no espírito de dominação que desde o princípio a envenenaram, com a imposição dum “arbítrio” sobrenatural, quase sempre autoritário, que avaliava e corrigia os desequilíbrios ou injustiças que tinham lugar na natureza. Por isto os deuses antigos estavam sempre presentes, por muito racionais que estas primeiras cosmologias pudessem querer ser. Mereciam eles, os deuses, ser exorcismados para que se pudesse construir um contínuo mais significativo e democrático entre natureza e humanidade. Tragicamente, o pensamento do Renascimento tardio não foi mais democrático do que o pensamento anterior; nem Galileu na ciência, nem Descartes na filosofia conseguiram de modo satisfatório esta operação cirúrgica. Eles e os seus herdeiros separaram a natureza da mente, recriando outras divindades, sob a forma de preconceitos científicos e epistemológicos, não menos infectados pela dominação do que a tradição anterior que haviam demolido.

Encontramo-nos hoje ante a possibilidade da natureza – não como dike, justitia, Deus, Espírito ou mesmo élan vital – mostrar eticamente os seus próprios termos. O mutualismo é um bem em si, em virtude da sua função de estímulo à evolução da variedade natural. Não temos necessidade de nenhuma dike nem de nenhum cânone de “objectividade científica” para afirmar a esperança natural e social da vida e do seu papel. Do mesmo modo, a liberdade é um bem em si: a sua reivindicação funda-se naquela que Hans Jonas chamou com finura a “íntima natureza” das formas de vida, a sua “identidade orgânica”, a “aventura da forma”. O esforço visível de auto-identificação que qualquer ser vivo, no decurso da sua continuidade metabólica, para se conservar, põe em prática revela, até nos mais rudimentares organismos, um sentido de identidade e de actividade selectiva que Jonas apropriadamente viu como provas duma “liberdade embrionária”.

Enfim, a crescente complexidade e variedade que, através do curso da evolução, transforma as partículas subatómicas naquelas formas conscientes e auto-reflexivas que chamamos seres humanas, não pode senão levar-nos a reflectir sobre a existência dum telos, entendido este em sentido largo, e sobre uma subjectividade latente na substância que por fim dá lugar à mente e à inteligência. Na reactividade da substância, na sensibilidade dos microrganismos menos desenvolvidos, na formação dos nervos, dos gânglios, da espinal medula, no desenvolvimento estratificado do cérebro, percebe-se uma evolução da mente tão irresistivelmente coerente que a tentação de a definir, ao modo de Manfred Eigen, como “inevitável” é grande. É difícil acreditar que a casualidade pura possa explicar a capacidade que as formas de vida têm para responder neurologicamente aos estímulos, de desenvolver sistemas nervosos altamente organizados, de prever, ainda que de forma confusa, os resultados do seu comportamento e por fim  de conceptualizar de forma clara e simbólica esta antecipação. Uma verdadeira história da mente deveria começar com os atributos da substância, talvez logo nos obscuros esforços dos cristais mais simples para se perpetuarem, na evolução do ADN de fontes químicas ignoradas até ao momento em que manifesta a seu modo aquele princípio de replicação já presente no mundo inorgânico, e na diferenciação de moléculas orgânicas vivas ou não vivas como resultado daquelas características intrínsecas de auto-organização que definimos como propriedade da vida.

O estudo da natureza – deixando de lado todos os preconceitos das epistemologias antigas – mostra uma modelação autónoma da evolução, uma “semente”, por assim dizer, implicitamente ética. O mutualismo, a liberdade e a subjectividade não são valores exclusivamente humanos; estão presentes, ao menos de forma embrionária, nos mais amplos processos cósmicos e orgânicos, que não necessitam de ser movidos por nenhuma divindade aristotélica e não precisam de ser revivificados por nenhum espírito hegeliano. Se a ecologia social conseguir perspectivar de forma coerentemente unitiva o mutualismo, a liberdade e a subjectividade como aspectos duma sociedade cooperativa, livre de dominação e orientada pela reflexão e pela razão, conseguirá então remover as taras que envenenaram desde o início a ética naturalista e dar uma voz ética comum à natureza e à humanidade. Não teremos mais necessidade do dualismo cartesiano ou do mais recente dualismo neo-kantiano que deixa muda a natureza e isola a mente do vasto mundo que a rodeia. Desgastar a comunidade, paralisar a espontaneidade, que, no coração mesmo da realidade auto-organizada, se move em direcção a uma crescente complexidade e racionalidade, limitar a liberdade, tudo isto significa negar a “semente” da natureza, negar a nossa hereditariedade nos processos evolutivos, negar a nossa função no mundo da vida. Se não formos bem sucedidos na criação duma sociedade ecológica e na articulação duma ética ecológica, ficará em jogo, não entrando sequer em linha de conta com as péssimas consequências para o ambiente, nada menos do que a nossa legitimidade ética.

O mutualismo, a auto-organização, a liberdade e a subjectividade, sustentados pelos princípios ecológicos de unidade na diversidade, de espontaneidade e de relações não hierárquicas, são assim fins em si mesmos. À parte a responsabilidade ecológica que estes fins delegam na nossa espécie enquanto voz auto-reflexiva da natureza, eles definem-nos literalmente. A natureza não existe para nosso uso, ela limita-se a legitimar a nossa existência ecológica e a nossa unidade. Como a noção de ser, estes princípios de ecologia social não têm necessidade de explicações, apenas de verificações. São elementos dumaontologia ética, não regras dum jogo que possam ser mudadas para adequar exigências pessoais.

Uma sociedade que nega o núcleo essencial desta ontologia levanta o problema da sua realidade mesma como entidade significativa e racional. A “civilização” deixou-nos em herança uma concepção de alteridade como “polarização” e “desafio” e da essência orgânica, visando a identificação pessoal, como “guerra” permanente. Tais concepções arriscam-se a minar por inteiro a legitimidade ecológica da humanidade e a realidade da sociedade como dimensão potencialmente catalisadora do mundo que nos rodeia. Bombardeados por falsas percepções duma natureza em constante oposição à humanidade, redefinimos de tal modo a nossa essência humana que a guerra passou a ser o preço da paz, o controle o preço da consciência, a dominação o preço da liberdade, o antagonismo o preço da reconciliação. Num tal contexto auto-destrutivo, estamos a construir um Valhalla que por certo se tornará uma mina para as labaredas devoradoras de Ragnarok.

Não obstante, dos conceitos de alteridade e de essência da vida, pode tirar-se um sistema filosófico e social completamente distinto. Se tivermos uma ampla visão ecológica da natureza e concebermos um mundo benigno que a vida plasmou no curso da evolução, podemos então formular uma ética da complementaridade que se alimenta da diversidade em lugar duma ética que tutela a essência individual por meio duma alteridade ameaçadora e invasora. Na verdade a essência da vida pode ser vista como expressão de equilíbrio mais do que como mera resistência à entropia e ao fim de qualquer actividade. A própria entropia pode ser vista como uma das características dum mais vasto metabolismo cósmico, de que a vida é só a dimensão anabólica mais visível. Um tal metabolismo geral pode ser visto como resultante da integração, da comunidade e do apoio mútuo, sem que por isso se diminua a identidade individual e a espontaneidade singular.

Destarte duas alternativas estão neste momento frente a frente. Podemos tentar apaziguar o espírito guerreiro de Odin, pacificando-o a ele e à sua corte, abrindo o Valhalla ao vento da reflexão e da ponderação. Tentaremos então remendar os esfarrapados pactos que outrora sustinham precariamente em conjunto o mundo e passar com eles a melhores e mais benévolas situações. Podemos até esperar que Odin se convença a arrumar a lança, a guardar a armadura e a prestar ouvidos às doces vozes que aconselham o diálogo e a compreensão. Em alternativa os nossos esforços podem dar lugar a uma reviravolta radical: arruinar Odin, de cuja senilidade testemunha uma sociedade abortada. Abandonaremos então os mitos contratuais que “harmonizam” um mundo intrinsecamente dividido, esses mitos mantidos de pé pela épica nórdica com o exílio e as cadeias. O nosso desafio será então criar um novo mundo e uma nova sensibilidade, a partir duma base de reflexão pessoal e duma ética de que somos herdeiros enquanto resultado do incessante movimento evolutivo em direcção à consciência. Temos a possibilidade de nos legitimar como expressão acabada da mente no mundo da natureza, como racionalidade que favorece a diversidade natural e integra os processos naturais com sucesso, uma certeza e uma direcção que são porém incompletos na natureza não humana.

A “civilização” tal como a conhecemos hoje é mais muda do aquela natureza em nome da qual ela, a civilização, pretende falar e mais cega do que aquelas forças elementares que pretende controlar. Esta “civilização” vive mergulhada no ódio ao mundo que a rodeia e no ódio por si. As suas cidades estão feridas, esventradas, as terras degradadas, a água e o ar envenenados; a sua mesquinha cobiça é uma acusação diária à sua imoralidade odiosa. Um mundo assim empobrecido é talvez irrecuperável, ao menos no quadro das suas actuais estruturas institucionais e éticas. Se o fogo de Ragnarok purificou o mundo nórdico, o apocalipse nuclear que ameaça engolir o planeta poderá deixá-lo irremediavelmente inútil para a vida, cadáver testemunhando um fracasso cósmico. Este planeta merece um destino melhor do que aquele que parece esperá-lo no futuro – já que a sua história, incluída a humana, se não mais houvesse, foi rica de promessas, de esperanças, de criatividade.

MURRAY BOOKCHIN

[tradução de A. Cândido Franco]

[Curdistão – Argentina] Entrevista com militante internacionalista

Fontes: RedLatinaSinFonteiras
Original de PERFIL, aqui.
Tradução por Arthur Dantas, do Coletivo Anarquia ou Barbárie.

Por Diego Rojas, 15/02/2015

De volta: María Alvarez viveu sua própria experiência no frente. A sua foi uma experiência que incluiu somar seu conhecimento nos campos de refugiados yazidis.

De volta: María Alvarez viveu sua própria experiência no frente. A sua foi uma experiência que incluiu somar seu conhecimento nos campos de refugiados yazidis.

A experiência da entrevistada em uma das regiões mais conflituosas do planeta. Na luta do Curdistão, não só há questões étnicas e religiosas: também há o papel fundamental das mulheres nessa sociedade.

ISIS (Estado Islâmico) foi derrotado. A notícia percorreu o mundo no final de janeiro deste ano. Os grupos armados do grupo terrorista que querem impor o califado islâmico em todos os lugares – e que tem predileções por degolamentos e execuções de jornalistas e de reféns estrangeiros, além de uma forte opção pela opressão da mulher – tiveram que abandonar Kobanê após dois anos de combate. Os vencedores foram os combatentes organizados nas milícias do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PPK).

Entre as mulheres armadas com Kalashnikovs, combatentes do sexo masculino disparando contra os islamitas, no interior da infra-estrutura de uma cidade destruída pelos bombardeios, uma mulher argentina chegou ali para ajudar com os deveres médicos como uma brigadista.

Nas trincheiras: María Álvarez, profissional da saúde e militante da Convergência Socialista, partiu para o Oriente Médio com a finalidade de chegar à região curda em novembro de 2014.

“Meu plano inicial era entrar pelo Iraque – conta Álvarez ao PERFIL. Viajei à Turquia e me dirigi à fronteira com o Iraque, mas ali negaram meu passaporte porque havia uma situação de guerra. Me informaram que não poderia passar na qualidade de turista ou algo assim. Fiquei, assim, na Turquia ajudando vários campos de refugiados curdos”.
Nos dois anos de combates na região produzidos pelo avanço do ISIS, milhares de refugiados cruzaram a fronteira escapando dos terroristas. ISIS, por seu lado, deixou um total de 20 mil mortos e seqüestrou 3500 mulheres e crianças que foram vendidas em outras regiões sob seu controle.

Médica de guerra: “Em várias cidades colaborei com assistência médica aos refugiados –continua Álvarez. Em Cizre trabalhei em um campo de refugiados yazidis. Nessa cidade havia uma situação de guerra civil em aberto: os curdos consideram que vivem sob ocupação por parte do exército turco e por isso organizaram auto-defesas populares casa por casa, aonde desde as avós até as crianças estão armados e mantém barricadas em todas as quadras. Estavam produzindo um processo similar ao de Rojava, mas na Turquia, um país que é membro da OTAN e por isso não iriam permitir isso tão facilmente”.

— O que é Rojava? – pergunta PERFIL.

— Em 2012, em meio à guerra civil na Síria, o povo curdo declarou sua autonomia através de um levantamento. O exército de Assad retirou-se e assim formaram um governo autônomo baseado em assembléias populares. Isso ocorreu na região de Rojava, que tem três cantões, um chamado Kobane.
O autogoverno também definiu a criação de auto defesas, de homens e mulheres. O papel das mulheres é notável: elas estão na vanguarda não só para defender a revolução com milícias armadas, mas por estarmos à frente de todas as organizações que foram criadas para o auto-governo. Por lei, deve haver duas pessoas para cada posição: se há um presidente tem de ter uma presidenta. Se há um ministro tem que ter uma ministra. Eles estabeleceram uma espécie de Constituição nessas províncias, chamado Contrato Social, onde as mulheres impuseram a criminalização da violência contra as mulheres. É proibido o casamento infantil, a mutilação genital feminina, a poligamia, o dote para a noiva para se casar. Um cargo público não consegue aceder homens acusados de violência contra as mulheres.
Estabeleceram a separação da religião dos organismos de governo. E para defender este processo decidiram resistir ao assédio do ISIS. Os terroristas tinham avançado porque o exército sírio abandonou as regiões sem combatê-los. Retiraram-se deixando os bancos com milhões de dólares. A única resistência armada ao ISIS foi em Kobanê, armado apenas com Kalashnikovs contra esta gente armada pelas monarquias da região, por parte da CIA e Mossad. A mobilização dos curdos na Turquia fez com que iniciassem os bombardeios às posições do ISIS e, assim, avançaram as milícias expulsando-os. Por fim, as milícias curdas derrotaram o ISIS.

Como continuou sua travessia para chegar a Kobane?

— Dos campos de refugiados na Turquia, onde estava, fui guiada por membros da resistência curda. Uma noite, após planejarmos tudo, subimos em uma van com vários curdos e uma sueca. Andávamos sem luzes por estradas onde não passavam carros. Em um ponto paramos e tivemos que continuar a pé. Nós andamos à noite através de campos abertos e territórios cercados. Também cruzamos uma vala que os turcos fizeram para impedir a chegada de refugiados.
Assim chegamos a Kobane. Lá eu servi como assistente de saúde aos feridos provenientes da frente de combate, nos hospitais que foram armados pelas milícias. O hospital trabalhava com uma equipe de médicos e enfermeiros. Lá se recuperaram vários feridos em combate, de gravidades várias. O médico-chefe do hospital era um jovem com idade inferior a 40 anos que atendia com uma arma na cintura o tempo todo.
Enquanto isso, a luta persistiu e bombas caíam sobre Kobane. Houve momentos dramáticos com os feridos, tive que realizar amputações, de milicianos feridos lutando diretamente com o ISIS. O cenário era dramático. Os terroristas tinham literalmente destruído a cidade. A infra-estrutura de Kobane tinha sido arrasada.

Qual o rumo político do processo?

— O PKK converteu-se em um verdadeiro partido de massas. Abandonou o marxismo-leninismo e tem uma definição socialista difusa, autonomista, semi-anarquista. São os dirigentes do processo. Conheci comandantes das milícias que vieram de vários lugares do Curdistão.

1k__Cumpa_internacionalista___autodefensa_de_las_mujeres_kurdas– Álvarez faz uma pausa e mostra uma fotografia. Está junto à três mulheres vestidas de fajina. Estas três garotas tinham o grau de comandantes.

– A da esquerda era uma curda de origem turca, a do meio de origem iraniana e a terceira da região da Síria. A comandante que nasceu na Turquia morreu em combate contra o ISIS. As mulheres combateram ombro a ombro com os homens.

O Retorno: Maria Àlvarez retornou ao país em meados de janeiro. Dias depois, os curdos foram às colinas que circundam Kobanê e bandos armados do ISIS fugiram. Kobanê, o bastião em disputa, foi recuperado pelos milicianos curdos e mulheres que haviam derrotado os terroristas mais brutais da era contemporânea. Milhares caíram e a cidade foi destruída, mas mostrou-se que o temido ISIS não era uma entidade invencível. E também enfatizou que a luta das milícias irregulares mistas, impulsionada pela vontade de resistir e, dependendo da continuidade de um projeto político de transformação, podem vencer. Os últimos relatos indicam que os corpos dos membros do ISIS que não eram vítimas dos combates com as forças curdas, indicando divisões e execuções ulterinas. No futuro imediato, ISIS não será um perigo para os curdos, que devem se cuidar em relação às decisões que serão tomadas pelos governos da Turquia e da Síria, que vêem o processo em Rojava como um potencial perigo político.

Para celebrar o triunfo, centenas de bandeiras curdas amarelas, vermelhas e verdes foram hasteadas em toda a região de Kobanê e outras, em Rojava, e mais adiante, em todo o Curdistão.

Há um processo aberto na região curda, uma experiência social e política inédita em marcha e uma moral elevada em todos seus protagonistas devido às virtudes que insuflou nos espíritos dos que sentiram o sabor do triunfo.

 

Notas adicionais à reportagem: “Los problemas étnicos são também ideológicos” –http://www.perfil.com/mobile/?nota=/contenidos/2015/02/15/noticia_0066.html
Por Diego Rojas

Gran Ozcan é membro do Comitê de Solidariedade na América Latina com o Curdistão e conversou com PERFIL sobre o processo político que se desenvolve nessa região do Oriente Médio.

O PKK é um partido étnico?

— Abdullah Öcalan, o líder do PKK preso na Turquia desde 1999, sempre disse que os problemas étnicos são problemas ideológicos. A questão étnica é um sintoma dos problemas do sistema. Por isso, a luta nacional dos curdos é também uma luta anti-sistema. Öcalan propõe que a questão da independência não pode ser regida por um Estado nacional. A proposta do PKK está centralizada pelo assim chamado confederalismo democrático, que é uma solução antiestatal. Para Öcalan, quando se toma o controle do Estado, o Estado toma controle dele. Por isso tem que desfazer-se do Estado.

Os marxistas têm como sujeito a classe obreira, O que acha o PKK?

— A centralidade não está colocada na classe trabalhadora, mas [para o PKK] a categoria principal são as mulheres. A mulher é o setor mais explorado. A classe trabalhadora só pode libertar-se uma vez que a mulher tenha se libertado na sociedade. Os curdos em Rojava estão se organizando com essas premissas. As mulheres têm suas próprias milícias. Todo posto político é composto por duas pessoas, por um homem e uma mulher. É uma revolução porque está mudando o sistema econômico e político. O planejamento é uma revolução antiestatal socialista no Oriente Médio e acreditamos que ela se iniciará pelo socialismo no Curdistão.

Qual é a situação atual em Rojava?

— Quando o ISIS atacava Kobanê, os turcos mantiveram objetivamente o ISIS. Faz alguns dias que chegou a notícia de que deixaram cair armas para o ISIS de aviões na região síria. Turquia está mantendo-os abertamente. São os inimigos do povo curdo e do processo político que protagonizam. Não por acaso Öcalan foi entregue à Turquia pela CIA e o Mossad. O desenvolvimento dos curdos é uma ameaça para seus interesses na região.

http://www.perfil.com/mobile/?nota=/contenidos/2015/02/15/noticia_0065.html
Saiba mais:

Os curdos são uma etnia que vive no território chamado Curdistão, que se encontra no território de quatro nações com maiorias étnicas diferentes da curda: Turquia, Síria, Irã e Iraque.
Após a invasão dos EUA ao Iraque, se destacou uma zona autônoma curda cujo líder é Masud Barzani, de tendência pró-estadounidense. Foi eleito como presidente do Curdistão iraquiano.
O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) é uma organização fundada por Abdullah Ocalan, de grande influência na região curda da Turquia e da Síria. Ocalán cumpre uma pena de prisão perpétua na Turquia.
O confederalismo democrático é a forma política do PKK, que apregoa um socialismo antiestatal. Seu sujeito central são as mulheres. O PKK tem milícias masculinas e femininas e advoga por um sistema de decisões tomadas em assembleias populares. Este projeto abarca a região autônoma curda de Rojava, na região síria, aonde derrotaram o ISIS.

Links relacionados:

https://www.facebook.com/nicolas.rio.37?fref=nf&pnref=story
https://www.facebook.com/marialvarezdelanus?pnref=story
http://www.perfil.com/mobile/?nota=%2Fcontenidos%2F2015%2F02%2F15%2Fnoticia_0067.html

Pontes entre O Anarquismo e O Confederalismo Democrático

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Fonte: Kurdish Question, em 19 de Fevereiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Texto original por Bruno Lima Rocha

Introdução: discutindo o modelo de partido e sua missão   

Desde o início do cerco a Kobane pelo Daesh (ISIS), a esquerda curda, e, especificamente, o modelo de organização social em Rojava tem sido estudado e seguido por várias organizações, ativistas, redes e estudiosos comprometidos. Decidi colaborar com KurdishQuestion.com para produzir uma série de artigos curtos para expor (e provar) as semelhanças entre a tradição ocidental (e não ocidental também) anarquista e o Confederalismo democrático. Enquanto uma das minhas áreas centrais de estudo é a teoria política (e teoria política radical), decidi ajudar na elaboração dos paralelos entre os dois caminhos e familiarizando-os um ao outro. Espero que isso ajude e todas as críticas são bem vindas. 

Apresentação

O modelo de partido anarquista apresentado nesta série não é uma inovação em si mesmo para a teoria política e teoria política radical, e nem mesmo para a tradição de esquerda. Se os estudos sobre o tema são bastante desconhecidos (ou parecem ser novos ou inexistente), se este formato de organização política não se tornou um objeto de estudo (ou reconhecido como o modelo de partido para a auto-gestão e de democracia direta), isto ocorre devido à correlação de forças dentro do mainstream acadêmico, às derrotas sofridas pelos anarquistas classistas desde 1939 e também por causa da ausência de debates no seio da comunidade de esquerda, o espectro acadêmico e da mídia mainstream. Este modelo aproxima os militantes dentro de uma organização política especifica que adere a um corpo ideológico-doutrinário (também conhecido como partido de quadros). Porque não é uma proposta de massa, que tem o formato de ter a associação composta por quadros políticos, sem filiação aberta e cujo grau de compromisso aumenta à medida que eles entram mais para os círculos concêntricos (ver Bakunin). Tal modalidade adquiriu definições na história, tais como: organicismo, plataformismo, especifismo; todos estes são sinônimo da definição do partido anarquista (federação específica).

Introdução ao Papel do Partido

O modelo da matriz de esquerda libertária e a perspectiva apresentada nesta série, representa uma possível aplicação de um campo de intenções, motivações normativas e interesses estratégicos na América Latina em geral, e no Brasil, em particular. Mas, presumimos, que, desde que nos conhecermos melhor, as possibilidades de desenvolvimento político será reforçada a partir da experiência real na região oeste do Curdistão e o debate interno sobre o pensamento no contexto do PKK. É muito interessante entender que a missão desse partido não é ser parte de um poder institucional do Estado-Nação, mas ajudar na construção de uma sociedade baseada em legítimos direitos (individuais e coletivos), a auto-gestão, e da democracia direta e radical, e o mais longe possível do industrialismo e de uma economia centrada no mercado. A hipótese formulada dentro da perspectiva de uma verdadeira democracia social é a ação da minoria política como uma unidade para acumulação de força e radicalização democrática a longo prazo. Se nós compararmos este simples pressuposto e definição, podemos observar muitas semelhanças entre essa perspectiva e um escrito do companheiro Abdullah Ocallan em 2011:

“Enquanto isso, os Estados-nação se tornaram sérios obstáculos para qualquer desenvolvimento social. Confederalismo Democrático é o paradigma contrastante das pessoas oprimidas. Confederalismo Democrática é um paradigma social não-estatal. Ele não é controlado por um Estado. ” (Do website PKK em Inglês)

É óbvio que ninguém deve criticar este modelo de partido para não competir por posições institucionais dentro de um modelo de Estado-nação, quando sua missão está longe disso. Parto do princípio que determinadas condições prévias estão sempre presentes. Todo “modelo de partido” inclui em sua formatação de condições e regras pelo qual este partido/organização política vai seguir e o caminho que esta instituição (legal ou ilegal) está disposta a tomar de acordo com seus objetivos de médio e longo prazo. A fim de ser teoricamente coerente, é necessário apresentar modelos que podem ser testados, mas, acima de tudo, modelos que possam ser aplicáveis de acordo com as hipóteses sugeridas.

Eu discuto a organização política militante específica que adere a um corpo ideológico e doutrinário. Por outro lado, porque não é uma organização de massas que se estrutura dentro de quadros, sem filiação aberta e cujo nível de comprometimento ocorre dentro de círculos concêntricos, aumentando o nível de compromisso de acordo com o poder de votar e ser votado para os papéis principais atribuídos na estrutura interna. Essa concepção não pode ser mal compreendida ou interpretada equivocadamente. Ou, ninguém deve entender isso como uma espécie de “partido único de boas intenções”, mas como uma concepção estratégica que garanta que os quadros e estruturas partidárias serão colocados a serviço e dever de ajudar a construir novas instituições políticas com base em uma sociedade horizontal e igualitária. O fracasso do modelo de partido na URSS ou outras variações com base na liderança autoritária, centrada no Estado e no industrialismo provam que todo o pensamento de esquerda deve fazer uma grande autocrítica e reconhecer que as condições materiais devem amadurecer juntamente com as condições morais, ecológicas e fraternais. Apenas uma estrutura partidária dedicada a esta causa pode manter uma luta de longo prazo, alimentando projetos sociais, como o fez nas lutas de massa sindicais da América Latina no início do século 20, e como é hoje em dia com a União das Comunidades do Curdistão ( KCK) ou TeV-DEM especificamente em Rojava.

Denominações desta tradição dentro do anarquismo

Vou terminar este primeiro artigo curto lembrando a definição do modelo de partido anarquista. Apesar de não ser exclusivo, este tipo de organização é geralmente considerado como típico da ideologia anarquista: um modelo federal e não-massivo. Ao menos que ele não seja um modelo de partido de vanguarda como os partidos leninistas clássicos, os quadros do partido devem ser aqueles que reforçam a luta de massas e que serão tomadas por todas as comunidades, permitindo que elas tomem o seu próprio destino por e através de assembleias populares. Esta filiação partidária ocorre por meio de círculos concêntricos e com a preparação de militantes que possuem várias funções. Este tipo de modelo adquiriu definições ao longo de sua história, e todos eles também podem ser identificados com a definição do modelo de partido anarquista. Este modelo adquiriu definições específicas ao longo de sua história, como organicismo, plataformismo, especifismo.

Fui muito feliz em descobrir que estas duas tradições aparentemente distantes estão realmente tão próximas umas das outras. Essa proximidade pode ser facilmente detectada em uma simples leitura dos documentos, tanto do PKK quanto destas tradições anarquistas. A tradição e as experiências no Curdistão lideradas pelo PKK podem alimentar as tradições anarquistas de todo o mundo e vice-versa. Esta perspectiva é animadora e é a principal motivação por trás da razão para esta série de artigos curtos.

Bruno Lima Rocha é Doutor e Mestre em Ciência Política e professor de Estudos e Geopolítica Internacional em 3 universidades no Sul do Brasil.

site: www.estrategiaeanalise.com.br
e-mail: strategicanalysis@riseup.net
facebook: blimarocha@gmail.com

A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

ethos

Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.

As Comunas e Conselhos de Rojava – Janet Biehl

Fonte: Resistência Curda

kobani

As Comunas e Conselhos de Rojava

No Sábado, 6 de Dezembro, a Delegação Acadêmica para Rojava reuniu-se em Qamislo com dois representantes de Tev-dem, o movimento por uma Sociedade Democrática. Abdulkerim Omar e Çınar Salih primeiramente nos deram uma contextualização do pensamento de Rojava sobre Estado e Democracia. Então, eles explicaram a estrutura da democracia auto-governada – as comunas e o sistema de conselhos – e ouviram nossas perguntas. Falando por meio de tradutores, Salih foi quem mais falou.

Nós construímos nossa democracia para que pessoas de várias nacionalidades vivam juntas. Nós somos novos, e cometemos erros, e nós estamos tentando impedir o Daesh [i.e Estado Islâmico]de entrar em Rojava. Outras delegações vieram aqui, mas nos agrada receber vocês aqui. Seu projeto está nos dando esperanças. Ainda não conquistamos a liberdade, mas aprendemos a lutar.

O sistema que estamos vivendo existe há cinco mil anos. Diferentes estágios da história têm dado-o diferentes nomes, mas em seu núcleo tem se mantido o mesmo, e seu pilar principal é o Estado. Isto precisa ser bem compreendido. Nos últimos cem anos as pessoas têm lutado contra o Estado, e elas conseguiram atingir independência historicamente, mas elas não atingiram a liberdade, porque elas não se emanciparam do Estado. Seu conceito de liberdade se encontra dentro dos limites do Estado.

O atual sistema de Estados-Nacionais abriu os portões para a grande crise que estamos vendo. Os Curdos também tiveram um papel nessa região – como nossos amigos arqueólogos descobriram, eles deixaram uma marca na história e na cultura. Nós entendemos enquanto Curdos que nossos problemas não serão resolvidos criando num novo Estado-Nacional. Como podemos superar esse caos com o mínimo de derramamento de sangue possível? Como arrumar uma solução apesar da existência das fronteiras de Estado?

Ao invés de independência de Estado, nós preferimos autonomia. A solução tem de ser mais profunda. O sistema de Estados Nacionais criou grandes prejuízos, então, as pessoas pensam que Árabes, Curdos e Turcos não se dão bem. Esta ideia tem sido reforçada pelo sistema de Estados Nacionais. Foi fixado nos cérebros das pessoas, com péssimas consequências. Isto excluiu condições de coexistência e cooperação entre os povos. Nós estamos lutando para nos livrar desses prejuízos e criar condições para a vida em comum.

Nós acreditamos que o sistema equivale à destruição sistemática das mulheres, e que a autonomia democrática equivale à liberação das mulheres. Por isto nossa revolução de Rojava é uma revolução das mulheres. Em Rojava não existe nenhum lugar na vida no qual as mulheres não tomem papel ativo. Uma das nossas maiores conquistas tem sido quebrar esse dogma predominante no Oriente Médio de que as mulheres são fracas e dependentes [lacking, usado como adjetivo no original], como é expressado de maneiras diferentes como nas leis da Sharia. Mas este é apenas um dos resultados da nossa revolução. Nós acreditamos que uma revolução que não abre caminhos para a libertação das mulheres não é uma revolução. Houveram revoluções na Líbia, Egito e Tunísia – houveram novos governos –, mas o mesmo status para as mulheres persistiu.

Nosso sistema se baseia nas Comunas, constituídas por vizinhanças de 300 pessoas. As Comunas têm co-presidentes, e há co-presidentes em todos os níveis, da Comuna à Administração do Canton*. Em cada Comuna há cinco ou seis comitês. As Comunas trabalham em duas funções. Primeira, elas resolvem problemas rápido e com antecedência – por exemplo, um problema técnico ou um problema social. Alguns trabalhos podem ser feitos em cinco minutos, mas você o banda para o Estado, e fica preso na burocracia. Assim, nós conseguimos resolver problemas rápido. A segunda função é política. Se nós falamos democracia verdadeira, decisões não podem ser tomadas de cima para baixo, elas tem que ser tomadas na base e então subirem os degraus. Há também Conselhos de Distrito [District Councils] e Conselhos Municipais [City Councils], até o Canton. O princípio é “poucos problemas, muitas soluções”.

Então, para que o governo não fique pairando no ar, nós tentamos preencher sua base. Existem perguntas sobre como esse sistema realmente se organiza. Então, vocês podem fazer perguntas.

Q: É um conceito muito interessante, e provavelmente existem tensões e desafios dentro desse sistema. Um é a tensão entre decisões de baixo e necessidades imediatas em nível de todo Canton. Por exemplo, provavelmente vocês têm de decidir de maneira centralizada que vocês precisam construir um moinho para fazer farinha. Ou vocês precisam decidir construir uma refinaria. Estrategicamente, estas coisas altamente importantes. Por outro lado, vocês têm este sistema de baixo para cima vindo das Comunas. Não é útil estabelecer infraestruturas semelhantes e muitas Comunas ou muitas Cidades. Então, vocês precisam de algum tipo de coordenação entre as Comunas e os Conselhos Municipais. Quem os coordena?

Nós também estamos discutindo estes problemas – não existe uma fórmula pronta para aplicar. Falando em números pode ajudar. Qamişlo possui seis distritos diferentes. Cada distrito tem 18 Comunas, e cada Comuna é composta por 300 pessoas.

Agora, cada Comuna possui 2 co-presidentes. E cada Comuna possuem comitês diferentes. Os dois co-presidentes eleitos de cada Comuna se juntam para constituir o Conselho Popular daquele Distrito.

Então, cada um desses Conselhos Populares do Distrito elegem dois co-presidentes. Então, dos 6 distritos de Qamişlo, 12 pessoas constituem o Conselho Popular Municipal. Mas apenas 12 pessoas não podem constituir o conselho – ele deveria ter 200. Então, somado a estas 12 pessoas, as outras são diretamente eleitas. Mesmo que você não esteja num comitê, ou tenha sido eleito numa Comuna, você pode colocar seu nome e potencialmente ser eleito.

O Canto de Cizîre consiste em 12 cidades. Delegados do Conselho Popular do Canton são alocados de acordo com a população. Qamişlo é a maior cidade, então possui mais delegados que outras – possui 20. Eles determinam isso pelo número da população. Os co-presidentes já fazem parte deste grande Conselho; então Qamişlo possui mais 18. Cada Conselho Popular Municipal elege quem irá para o Conselho Popular do Canton. No final você possui um Conselho Popular em nível de todo o Canton. É como um parlamento, mas os laços entre Comunas e Conselhos não cortados.

Q: Cada Comuna vota em delegados que vão para os níveis superiores?

Sim.

Q: Qamişlo possui mais delegados – Quem decide quantos delegados cada cidade possui?

É baseado na população.

Q: De acordo com qual censo?

O que estiver em vigor. Agora, o Conselho Popular do Canton não existe ainda. O censo está sendo feito agora. Mas todas as Comunas nas cidades estão trabalhando nele. Este conselho nem possui um nome ainda – pode ser chamado de parlamento.

Cada Comuna possui comitês, como, digamos, um comitê de saúde, e há comitês similares em níveis acima. Assim é que asseguram que o comitê de saúde da administração do canton tenha conexão direta com as necessidades da Comuna.

Q: Qual é o papel do Tev-Dem?

Tev-Dem coordena e mobiliza pessoas na base e carrega a conexão para o parlamento. Isto garante a conexão da democracia direta ao governo. Ele mobiliza e coordena, mas também senta no parlamento, onde representa os interesses do povo. É uma dupla identidade.

Q: Os Conselhos das Mulheres existem paralemamente aos Conselhos Populares, nos quais as mulheres possuem 40% de representação. Isto existe em todos os níveis, e em todos existe o poder de veto sobre questões das mulheres?

Sim. Os Conselhos das Mulheres existem em todos os níveis, a Comuna, o Distrito, a Cidade e o Canton. Os Conselhos das Mulheres não decidem sobre assuntos gerais – é para isto que existem os Conselhos Populares. Eles discutem questões que são especificamente sobre as mulheres. Se há disputa social, como conflitos interpessoais. Um comitê tenta resolver um problema entre pessoas. O Conselho das Mulheres também possui um comitê como esse. Então, se elas verem neste comitê um problema que importe às mulheres, como uma disputa sobre violência doméstica, e elas discordem do Conselho Popular, e dizem não, o não do Conselho das Mulheres será aceito. Elas têm poder de veto sobre questões referentes às mulheres.

Q: É sempre claro o que são questões das mulheres?

Nós seguimos uma base de caso a caso. Não há fórmula pronta. Sempre que o Conselho das Mulheres veta alguma coisa, esse veto é aceito. Se um problema não pode ser resolvido nos baixos níveis, esses problemas são levados à corte. Mas essas questões, como todas as questões em Rojava, são resolvidas localmente se possível.

*A tradutora referiu utilizar o termo original em inglês da unidade territorial para antecipar possível confusões, mas por analogia com o sistema político brasileiro, o Canton parece equivaler a um Estado Federativo.

Tradução: Mariana Miotto

Fonte: http://kurdishquestion.com/index.php/kurdistan/west-kurdistan/rojava-s-communes-and-councils.html

O Processo Revolucionário em Rojava

Ativista curdo pede solidariedade e apoio para o processo revolucionário de Rojava

Por Roberta Fofonka/Sul21

POSTADO EM Sul21, 27 de Janeiro de 2015

Samir Oliveira

Os curdos são a mais numerosa etnia do mundo sem Estado: são mais de 26 milhões de pessoas que vivem em regiões da Turquia, da Síria, do Iraque e do Irã. Desde 2012, com a intensificação da guerra civil na Síria, os curdos da região têm se organizado para defender seus territórios das forças do governo de Bashar al-Assad e dos terroristas do Estado Islâmico (também conhecido como ISIS).

Em 2013, os curdos da Síria anunciaram a organização de três regiões administrativas no norte do país, chamadas de “cantões”: Afrin, Jazira e Kobani. Separados geograficamente em meio a um território conflagrada pela guerra, os cantões formam a região de Rojava – palavra que, em curdo, significa “oeste”.

 Rojava possui uma população de cerca de 3 milhões de pessoas, espalhadas por doze cidades. Enquanto se organizam para lutar contra o Estado Islâmico e unificar os cantões, os curdos estão criando uma própria forma de organização social, política e econômica na região, baseada no confederalismo democrático, com premissas anti-Estado e anticapitalistas inspiradas no programa político do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) – organização criada na década de 1970 e considerada “terrorista” pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pela Turquia, país onde seu principal líder, Abdullah Öcalan, encontra-se em prisão perpétua desde a década de 1990.

Nesta entrevista ao Sul21, o ativista curdo Giran Ozcan fala sobre o processo revolucionário em Rojava e dá mais detalhes sobre a situação na região. Giran edita o site Kurdish Question e esteve em Porto Alegre nesta semana para falar sobre o assunto com organizações de esquerda.

Na entrevista, ele fala ainda sobre o funcionamento das forças de combate de Rojava, que estão divididas basicamente em das brigadas: as Unidades de Proteção do Povo (YPG) e as Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ) – esta última, composta e comandada por mulheres curdas.

“O desafio é tornar Rojava, os cantões e o povo curdo reconhecidos pela comunidade internacional”

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Como está a situação agora em Rojava?
Giran Ozcan –
A luta na Síria começou há quatro anos e há quase três anos os curdos anunciaram que vão se autogovernar em três cantões. Depois deste anúncio, o Estado Islâmico (ISIS) começou a atacar os curdos. Embora isto só esteja sendo divulgado pela mídia desde Kobani região de Rojava na Síria, que está cercada pelo Estado Islâmico], ISIS e os curdos estão lutando há quase três anos na Síria. Atualmente, depois de capturar armamento pesado dos exércitos iraquiano e sírio, eles novamente atacaram os curdos, há cerca de quatro meses, em Kobani. Enquanto os exércitos da Síria e do Iraque estão fugindo do Estado Islâmico em várias regiões, os curdos estão resistindo, lutando e fazendo eles recuarem. É isso que vem ocorrendo em Rojava nos últimos meses. Hoje, mesmo após o ISIS atacar Kobani com todas as suas forças, a cidade não caiu. Os curdos estão mostrando ao mundo que são capazes de se autogovernar e de se defender. Estão oferecendo uma alternativa à região. A luta ainda está ocorrendo em Kobani, o ISIS ainda não foi completamente derrotado, mas já foi expulso da cidade. Nos outros dois cantões o autogoverno continua sendo implementado e desenvolvido. O desafio é tornar Rojava, os cantões e o povo curdo reconhecidos pela comunidade internacional.

Sul21 – Quem está controlando Kobani hoje?
Ozcan –
Hoje Kobani é controlada pelos combatentes curdos do YPG. Cerca de 98% da cidade está sob controle do YPG. Há dois dias, eles conquistaram a colina de Minstenur. Atualmente, o ISIS está apenas na periferia da cidade.

Sul21 – O Estado Islâmico é a principal ameaça para Rojava e a causa curda atualmente?
Ozcan – ISIS é ameaça que está batendo diretamente na porta. Mas Rojava está enfrentando um embargo de todos os lados, porque é um sistema alternativo aos imperialistas e às forças regionais. Por isso, o povo em Rojava está tentando se autossustentar, porque não recebendo ajuda de ninguém. Economicamente, estão tentando criar um novo sistema. Então existem duas ameaças: obviamente o Estado Islâmico e o embargo internacional.

“Os cantões são governados pelo povo através das assembleias populares”

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Como foi possível que o Estado Islâmico crescesse tanto na região?
Ozcan –
O ISIS está lá há pelo menos seis anos. Antes de o ISIS crescer, o governo central do Iraque se aproximava do Irã e se distanciava dos Estados Unidos. Barzani (presidente do Governo Regional Curdo no Iraque) falava em declarar independência e o regime de Assad (presidente da Síria) estava fortalecido. Todos se encaminhavam contra o Ocidente na região. De repente, do nada, o Estado Islâmico começa a ganhar tanta força que o governo iraquiano precisou se aproximar dos Estados Unidos novamente. Barzani parou de falar em independência e a guerra se intensificou na Síria. Se analisarmos objetivamente, quem se beneficiou do crescimento do Estado Islâmico foram os Estados Unidos. Não podemos provar que os Estados Unidos fortaleceram o ISIS, mas o empoderamento deles definitivamente beneficiou os planos dos Estados Unidos para a região.

Sul21 – Como é a relação entre a luta que ocorre entre os curdos e o Estado Islâmico e o regime de Assad, que governa a Síria?
Ozcan –
Os curdos querem que o regime sírio reconheça sua autonomia. Eles querem que o regime respeite a vontade do povo. Até então, Assad nunca havia concedido cidadania aos curdos. Centenas de milhares de curdos não podiam ir à escola, comprar terras ou ter empregos formais. Atualmente a situação está equilibrada: os curdos querem seus direitos reconhecidos e não vão atacar o regime sírio, mas não vão hesitar em defender o que já foi conquistado.

Sul21 – O governo sírio não está combatendo o Estado Islâmico também?
Ozcan –
Está, em certas regiões. Mas os principais opositores do ISIS são os curdos. Embora eles digam a todos que estão lutando contra o governo e tentando estabelecer um Estado islâmico, os principais antagonistas que eles enfrentam são os curdos.

“As mulheres participam da vida política e possuem seu próprio exército, que está lutando contra o Estado Islâmico”

Sul21 – E os revolucionários sírios que lutam contra o regime não estão do lado de vocês, combatendo também o Estado Islâmico?
Ozcan –
Não podemos mais falar em apenas uma FSA (Exército Livre da Síria), porque se trata de uma coalizão muito ampla — o ISIS inclusive fazia parte do grupo anteriormente. É uma plataforma da luta contra Assad, mas é uma coalizão revolucionária? Isso está aberto ao debate. Há muitos extremistas islâmicos na FSA, mas também há revolucionários. Eles não se identificam mais como FSA, porque a coalizão ficou tão ampla que não pode mais ser chamada de coalizão. Em Kobani há grupos da FSA lutando junto com os curdos, mas em outros cantões há grupos da FSA lutando contra nós.

Foto: Reprodução

Sul21 – Quais são as forças políticas que comandam Rojava?
Ozcan –
O PYD é um partido político curdo que já existia junto ao sistema sírio e está se aliando à ideologia do PKK e de Öcalan. Essa é a organização com mais apoio popular em Rojava. Mas as pessoas têm seu próprio sistema, suas assembleias populares, onde o partido político não está presente. O chamado Movimento Democrático do Povo realiza as assembleias locais e comanda os cantões, que não são governados pelo PYD. Os cantões são governados pelo povo através das assembleias populares. Há uma co-presidência para cada cantão, composta por um homem e uma mulher. Rojava é um grande processo revolucionário porque, na cultura daquela região, a mulher não possuía participação política. A ideologia do PKK foi gradualmente mudando isso. Agora, as mulheres participam da vida política e possuem seu próprio exército, que está lutando contra o Estado Islâmico. Trata-se de uma das maiores revoluções sociais da região.

Sul21 – Como os governos dos cantões são escolhidos?
Ozcan –
Através de eleições. As primeiras ocorreram há seis meses. Não é um sistema representativo, é uma democracia direta. A qualquer momento o povo pode retirar do poder quem eles elegeram. O Poder Executivo é mais um coordenador do processo, porque existem assembleias populares em cada comunidade. As decisões locais são tomadas pelas pessoas que moram nas comunidades. Em cada comunidade existem três assembleias: a local, a de jovens e a de mulheres. É um outro modelo, não haverá eleições a cada quatro anos. Sempre e quando o povo precisar, o governo permanecerá ou será mudado.

“Não existe nenhum outro lugar no Oriente Médio onde cristãos e muçulmanos estejam governando juntos”

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Não existe um governo central dos três cantões?
Ozcan –
Atualmente, cada cantão é separado. Não existe coordenação entre eles. Quando falamos sobre Rojava, estamos falando sobre os três cantões, mas não existe um representante de Rojava. Isso se deve a problemas práticos, já que os três cantões estão fisicamente distantes e separados, e também porque o projeto político ainda está sendo discutido. Ainda está aberto ao debate a forma como essa coordenação central será construída.

Sul21 – Como os três cantões se comunicam e realizam trocas entre si?
Ozcan –
A região inteira é uma zona de guerra, então há limitações práticas para isso. Estão sendo criadas academias econômicas para se discutir o tipo de economia que será criada quando os cantões se unificarem. Uma das nossas funções na América Latina é entender melhor as experiências econômicas da região, com cooperativas e economias comunitárias criadas ao longo da história de processos revolucionários no continente.

Sul21 – Quando falamos sobre Rojava, sobre quantas pessoas e cidades estamos falando?
Ozcan –
Estamos falando sobre algo entre 2,5 milhões e 3 milhões de pessoas e cerca de 12 cidades. Não são cidades muito grandes, porque as administrações dos cantões são diferentes do mapa político da Síria. Por exemplo, de acordo com a Síria, a cidade de Kobani pertence a Aleppo, mas para os curdos, é uma cidade livre. A maior cidade é Qamislo.

“O sucesso de um projeto anticapitalista, especialmente no Oriente Médio, é uma grande ameaça ao sistema”

Sul21 – Qamislo é a capital de Rojava?
Ozcan –
A ideologia do confederalismo democrático não prevê a existência de uma capital. Eles não precisam de uma capital, que é um instrumento de um Estado – e eles querem evitar isso.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Como está sendo a implantação do confederalismo democrático em Rojava?
Ozcan –
É tudo muito novo, então não posso dizer que não estejam ocorrendo problemas. Mas pela primeira vez estamos implantando o confederalismo democrático como um sistema prático. O povo está muito animado, porque estamos resolvendo os problemas da causa curda, mas também estão resolvendo o problema da exploração, do governo, do socialismo e da vida social. É uma revolução em muitas dimensões e aspectos. Muitos olhos pairam sobre Rojava agora, porque não existe nenhum outro lugar no Oriente Médio onde cristãos e muçulmanos estejam governando juntos. Os cristãos podem governar a si próprios se eles quiserem, esse direito está garantido na Constituição de Rojava. Os cristãos têm seu próprio mecanismo de auto-defesa. É um sistema secular, por isso está atraindo tanta atenção.

Sul21 – Como o processo revolucionário está resolvendo as necessidades imediatas do povo, principalmente no que diz respeito a saúde e educação?
Ozcan –
As assembleias populares estão criando academias. É um sistema muito novo, então tudo está tendo que ser autogestionado. As pessoas precisam fazer tudo e construir seu próprio sistema de forma coletiva. Escolas primárias, secundárias e até mesmo universidades estão sendo criadas pelo povo. O problema principal em relação a Rojava é que, por ser uma alternativa ao sistema, o sistema não a apoia. É por isso que tudo precisa ser feito de dentro para fora.

Sul21 – É um modelo anticapitalista também.
Ozcan –
A economia está sendo organizada através de cooperativas. Em Rojava, o princípio básico é: “o que pertence ao povo sempre pertencerá ao povo e será compartilhado pelo povo”. Há muita oliva e petróleo na região, por isso que muitas companhias internacionais querem saber qual é a política econômica do PKK. O PKK diz que nenhuma companhia pode se aproximar da região com a ambição de lucrar, porque o partido é contra monopólios e privatizações. Os recursos da região serão compartilhados pelo povo. Se obtivermos sucesso, será um modelo para o mundo inteiro. O sucesso de um projeto anticapitalista, especialmente no Oriente Médio, é uma grande ameaça ao sistema.

“Devido à censura da mídia, ninguém sabia que o PKK tem mulheres combatendo e liderando suas fileiras há mais de 35 anos”

Sul21 – E o que acontece com a iniciativa privada que existe na região, com os comércios e empresas das cidades?
Ozcan –
Por causa do preconceito de Assad contra o povo curdo, não havia muito comércio e capital privado sendo investido na região. Agora isso é uma coisa boa, porque, caso contrário, ocorreria uma oposição interna na região ao processo revolucionário. Isso não está ocorrendo porque o povo de Rojava mora em vilas, são trabalhadores, não é uma região dividia em classes. Essa era a natureza da região, mesmo antes da revolução, então a transição não está sendo difícil.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Para uma revolução ser bem sucedida, o povo precisa apoiá-la. A região de Rojava não possuía uma classe média ou uma burguesia capazes de opor resistência?
Ozcan –
Para o confederalismo democrático, as academias são muito importantes. O povo precisa estar a par do que está acontecendo, do tipo de revolução que está ocorrendo e das ameaças do sistema. O PKK foi criado em 1978. Depois que Öcalan teve que deixar a Turquia, ele foi para Rojava, em 1979. Ele viveu no Curdistão sírio por 20 anos, então o povo curdo da Síria conhece muito bem suas ideias. Milhares de jovens de Rojava se juntaram ao PKK nos anos 1980 e 1990. Milhares morreram na luta contra a Turquia. O povo de Rojava conhece muito bem a ideologia do PKK.

Sul21 – Como é a relação entre Rojava e o Governo Regional Curdo do Iraque?
Ozcan –
Não muito boa, porque Barzani e o Governo Regional Curdo são um satélite completamente dependente do Ocidente. Rojava é uma revolução contra o sistema e Barzani é parte do sistema. Ao fim e ao cabo, talvez a maior revolução de Rojava seja contra Barzani, porque ele é a parte do sistema que mais se aproxima de Rojava, é o principal representante do sistema na região. Muita gente compreendeu que a Turquia estava conduzindo um embargo contra Rojava, mas ninguém entendeu porque Barzani estava reforçando esse embargo contra o povo curdo. Ele queria sufocar a revolução também, por isso que reforçou o embargo nas fronteiras que o Governo Regional Curdo possui com Rojava.

“A resistência em Kobani contra o Estado Islâmico foi liderada por uma mulher”

Sul21 – Isso pode estar enfraquecendo a popularidade de Barzani junto aos curdos?
Ozcan –
Definitivamente, porque o Ocidente quer que Barzani seja uma alternativa a Öcalan e ao PKK. Após atacarem Kobani, o Estado Islâmico atacou Sinjar, onde os curdos Yazidi vivem. Eles não são muçulmanos, são curdos que pertencem a uma religião muito típica e antiga. Quando eles foram atacados, as forças de Barzani, os Peshmergas, fugiram, deixando os Yazidi sozinhos e desarmados. Por isso cerca de 3 mil mulheres Yazidi foram capturadas pelo ISIS e estão sendo vendidas como escravas sexuais. É por isso que o povo curdo está muito crítico em relação a Barzani. Se o PKK não tivesse descido das montanhas e defendido os Yazidis em Sinjar, teria havido um massacre massivo. Em todas as cidades governadas por Barzani que estão sob sítio do ISIS, quem está combatendo não são os Peshmergas, mas a guerrilha do PKK. O mundo inteiro está vendo as guerrilhas assumirem a luta e os Peshmergas recuarem, isso está abalando muito a popularidade de Barzani.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – É possível haver uma mudança política no comando do Governo Regional do Curdistão e um aliado do PKK assumir o poder?
Giran – O partido-irmão do PKK no Governo Regional do Curdistão foi banido das eleições. Nas últimas eleições, Barzani fez 38% dos votos. Agora existe o movimento Gorran, que é uma nova força política de oposição e está com 29% das intenções de voto. Então há espaço para mudança no Governo Regional do Curdistão.

Sul21 – O que isso iria significar para Rojava?
Giran –
Significaria que pelo menos uma certa parte do Curdistão estaria livre. Embora o Governo Regional do Curdistão possua uma autonomia “de facto” desde a década de 1990, ninguém enxerga a região como uma parte livre do Curdistão, porque ela está completamente dependente do Ocidente. Os curdos estão dizendo agora que Rojava é o primeiro território livre do Curdistão. A próxima eleição no Governo Regional do Curdistão será somente em três anos, mas acredito que muita coisa vá mudar até lá. No momento os curdos estão numa posição defensiva, lutando contra o Estado Islâmico, então não estão falando muito sobre mudanças políticas. Mas as guerrilhas do PKK estão nas cidades do Governo Regional do Curdistão. Antes, para ir lá, eles teriam que lutar com os Peshmergas, e ninguém quer ver os curdos lutando uns contra os outros. Agora o povo está vendo as guerrilhas todos os dias. As coisas irão mudar nas próximas eleições, o governo já não pode mais banir o PKK de participar no processo.

“A luta não está sendo conduzida dentro de uma lógica militarista, mas, sim, de autodefesa”

Sul21 – Como se deu o surgimento das brigadas comandadas e compostas por mulheres em Rojava?
Giran –
O movimento de libertação das mulheres está contemplado na ideologia do PKK. Devido à censura da mídia, ninguém sabia que o PKK tem mulheres combatendo e liderando suas fileiras há mais de 35 anos. Desde a criação do PKK, no primeiro congresso do partido, as mulheres estavam presentes. Nos anos 1980, nas primeiras guerrilhas do PKK, havia brigadas femininas. Öcalan sempre dizia que nenhuma sociedade pode ser livre enquanto as mulheres não forem livres. Para ele, o nível de liberdade de uma sociedade pode ser medido pelo nível de liberdade das mulheres. Por isso que a revolução em Rojava é uma revolução de mulheres. Embora as YPJ tenham sido criadas há apenas três anos, elas vêm de uma história de 35 anos. A principal comandante de Kobani era uma mulher, Narin Afrin. A resistência em Kobani contra o Estado Islâmico foi liderada por uma mulher. As pessoas costumam dizer que o Oriente Médio é uma região muito conservadora, mas, no centro do Oriente Médio, mulheres estão na linha de frente da vanguarda por libertação. E a maioria delas são muçulmanas, que é a religião predominante entre os curdos.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Isso contraria o estereótipo que se costuma ter no Ocidente quanto às mulheres muçulmanas, como se a opressão de gênero e o islamismo fossem duas coisas intrinsecamente ligadas.
Giran –
Há muitas leituras diferentes do Islã, a do ISIS é apenas uma delas e tem suas raízes no wahhabismo. Através do PKK, o povo curdo passou a ter um entendimento completamente diferente a respeito das mulheres. Não é uma característica curda, mas uma característica do socialismo defendido pelo PKK, que foi rompendo com as opressões em relação às mulheres naquela região.

Sul21 – O militarismo costuma ser um fenômeno bastante machista. Como as mulheres estão desconstruindo isso em Rojava?
Giran –
Nos anos 1980, acredito que qualquer mulher militante do PKK teria muitos relatos para fazer a respeito das dificuldades em enfrentar o machismo em uma organização predominantemente masculina. Öcalan escreveu um livro sobre a necessidade de se romper com o machismo, porque viu que mesmo na sua organização isso era um problema. Atualmente, em grande medida isso já foi superado. A luta não está sendo conduzida dentro de uma lógica militarista, mas, sim, de autodefesa. E as mulheres são uma parte desta autodefesa.

“O governo turco deixa suas fronteiras abertas para o Estado Islâmico e fecha as portas para a solidariedade revolucionária em relação a Rojava”

Sul21 – Como está a solidariedade internacional em relação a Rojava?
Giran –
Há dois períodos: antes e depois da conquista de Kobani. Antes de Kobani a mídia ocidental não falava sobre Rojava, porque a resistência foi inacreditável. O Estado Islâmico tomou Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, em 24 horas. Mas não conseguiram conquistar Kobani, uma cidade com 200 mil habitantes e não mais do que 5 mil combatentes. Depois disso, houve um despertar internacional em relação ao que ocorre em Rojava, as pessoas estão debatendo o sistema político que está sendo criado lá. Esperamos que as pessoas se solidarizem e acompanhem esse experimento socialista e revolucionário que está ocorrendo em Rojava. Ainda é um experimento. Somente com a ajuda e a solidariedade das pessoas ao redor do mundo, especialmente na América Latina, esse experimento poderá ser bem sucedido.



Sul21 – O que esse processo revolucionário significa para a esquerda, de uma forma geral?
Giran –
Embora o capitalismo esteja afundando em uma grande crise, a esquerda ainda não foi capaz de mostrar um modelo concreto ao mundo. Agora temos um experimento em Rojava ao qual podemos nos espelhar e dizer ao mundo: “É assim que queremos que as pessoas vivam”. Cabe a nós, pessoas de esquerda e revolucionárias, mostrar ao mundo que o modelo desenvolvido em Rojava pode ser bem sucedido e que o socialismo pode ser tão bom na prática quanto é na teoria. Acredito que a esquerda não irá perder essa oportunidade.

Sul21 – Como Rojava está se abrindo para o mundo neste momento? Organizações e pessoas estrangeiras podem ir para lá?
Giran –
O governo turco deixa suas fronteiras abertas para o Estado Islâmico e fecha as portas para a solidariedade revolucionária em relação a Rojava. Muitos europeus já se juntaram ao YPG, vários latino-americanos também já se juntaram a Rojava. Há maneiras de garantir contatos, o PYD tem escritórios na Europa. Rojava espera pela visita das pessoas, porque tem algo a mostrar ao mundo.

“A mídia ocidental não demonstra a realidade da revolução, não fala sobre seu caráter anticapitalista”

Sul21 – Qual o papel das potências ocidentais em relação ao que ocorre em Rojava?
Giran –
O Ocidente está dizendo que aceitará Rojava se for igual ao Governo Regional do Curdistão. Se Rojava for mais aberta ao Ocidente e às grandes corporações, receberá apoio das potências ocidentais. É por isso que o povo não está esperando que esse apoio venha.

Sul21 – Como tu vês a cobertura da mídia sobre Rojava?
Giran – Há diferentes abordagens. É claro que a revolução quer ser conhecida e vista pelo mundo, mas ela quer ser mostrada pelo que realmente é. A gente vê fotos de mulheres combatendo em Rojava, mas não sabemos por que elas estão lutando. Não vemos na mídia tradicional a informação de que o PKK é uma organização socialista, de que a economia em Rojava é baseada em cooperativas.

Novas Posições Estratégicas, Filosóficas e Políticas do Movimento de Libertação Curdo – por Abdullah Öcalan

Fragmento textual retirado de “Guerra e Paz no Curdistão – Perspectivas para uma Solução Política da Questão Curda“, por Abdullah Öcalan.

Apelidado de Apo, ele é líder independentista curdo, fundador e secretário-geral do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK – Partiya Karkêren Kurdistan), criado em 1978.

Texto completo no site freedom-for-ocalan.

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“Não é possível detalhar aqui de uma maneira aprofundada todos os elementos estratégicos, ideológicos, filosóficos e políticos que animam o movimento. Os principais fundamentos, no entanto, podem ser resumidos da seguinte maneira:

• A abordagem filosófica, política e ideológica do renovado PKK encontra sua expressão mais adequada através do conceito de “socialismo democrático”.

• O PKK não procura alcançar a criação de um novo estado- nação curdo a partir do direito de autodeterminação de povos. Este direito se entende como a base para o estabelecimento de democracias de base, sem a necessidade de procurar novas fronteiras políticas. É a tarefa do PKK convencer o povo curdo desta sua convicção. O mesmo é válido para o diálogo com os países hegemônicos que influenciam o Curdistão. Esta convicção é a base para a solução dos conflitos existentes.

• Os países atualmente existentes nesta região necessitam sujeitar-se a profundas reformas democráticas. No entanto, a abolição imediata do estado não é uma opção viável, o que não significa que o estado atual deve ser aceito tal qual. A estrutura estatal clássica e sua concepção despótica do poder são inaceitáveis. O estado institucional deve ser sujeito a mudanças democráticas. Ao final deste processo, o estado deve constituir uma instituição política mais modesta, com objetivo de regular funções no campo da segurança e na provisão de serviços sociais. Esta concepção de Estado não tem nada em comum com o caráter autoritário do estado clássico, mas seria concebido como uma autoridade social.

• O movimento curdo pela libertação procura para o Curdistão um sistema de auto-organização democrática em forma de confederação. O Confederalismo Democrático deve ser entendida como um modelo de coordenação de uma nação democrática. Tal sistema proporcionaria os marcos dentro dos quais toda comunidade, grupo confessional, coletivo específico de gênero e/ou grupo étnico minoritário, entre outros, poderia organizar-se de maneira autônoma. O mesmo proporcionaria também os meios de organização para qualquer nação e cultura democráticas. O processo de democratização no Curdistão não se limita, no entanto, a uma questão de forma, mas abrange um amplo projeto social visando a soberania econômica, social e política de todas as partes da sociedade, assim como a criação dos órgãos e instituições necessárias e a elaboração dos instrumentos que possam garantir e possibilitar à sociedade um autogoverno e um controle democrático. É um processo de longo e contínuo. As eleições não são o único meio neste contexto. Ao contrário, este é um processo político dinâmico que necessita intervenções diretas da parte do soberano, o povo. Assim, a população deve estar diretamente envolvida em cada processo decisório da sociedade. Este modelo é construído sobre a autogestão de comunidades locais e é organizado em conselhos abertos, conselhos de município, parlamentos locais e congressos gerais. Os próprios cidadãos são os atores de um autogoverno deste gênero. O principio de uma autogestão confederal não apresenta restrições. Tal sistema poderia até atravessar fronteiras para assim criar estruturas democráticas multinacionais. No seio de um sistema democrático de confederação, somente hierarquias horizontais favoreceriam o processo decisório no nível comunitário.

• O modelo detalhado acima pode ser descrito como um governo democrático de autogestão, onde os direitos ‘soberanos’ do estado seriam limitados. Um tal modelo permite uma implementação mais adequada de valores básicos como liberdade e igualdade em comparação com os modelos administrativos tradicionais. Este novo modelo não é limitado ao caso da Turquia, muito pelo contrário, ele é igualmente aplicável em outras partes do Curdistão. Ele é adequado para a construção de estruturas administrativas confederais em toda região de assentamentos curdos na Síria, Turquia, Iraque e Irã. Deste modo, a construção de estruturas confederais na totalidade do Curdistão é possibilitada, sem que isto signifique um questionamento de fronteiras políticas já existentes.

• Um dos fatores que resultaram na queda do real socialismo foi a maneira como os países socialistas utilizaram seu poder interna e externamente, assim como sua concepção errônea da importância da questão do gênero. Mulher e poder parecem, segundo esta ideologia, conceitos quase contraditórios. A questão dos direitos da mulher foi relativamente renegada por regimes socialistas; afirmava-se que esta questão seria resolvida automaticamente uma vez solucionados os problemas econômicos e outros problemas sociais. As mulheres, porém, podem ser consideradas como uma classe ou uma nação oprimida: um gênero oprimido. Enquanto a liberdade e os direitos da mulher não forem discutidos em um contexto histórico e social, enquanto uma teoria adequada não for formulada, tampouco existirá prática adequada. Em vista disso, a liberdade e os direitos da mulher devem constituir uma parte estratégica da luta pela liberdade e democracia no Curdistão.

• Hoje em dia, a democratização da política constitui o desafio mais urgente. Uma política democrática, no entanto, somente poderia existir a partir de partidos democráticos. Enquanto não houverem partidos e instituições afiliadas a partidos cujos interesses vão além da simples execução de ordens ditadas pelo estado, uma democratização do estado sera impossível. Na Turquia, os partidos não passam de ferramentas para a divulgação de propaganda política por parte do estado. Sua transformação em partidos íntegros e engajados exclusivamente com o bem-estar social, assim como o desenvolvimento jurídico adequado neste contexto, constituiriam um avanço importante no sentido de uma verdadeira reforma política. A fundação de partidos políticos exibindo a palavra Curdistão em seu nome é considerada ainda hoje um ato criminoso. Partidos independentes sofrem inúmeras obstruções da parte do estado. Coalizões e partidos relacionados ao Curdistão servem à democratização e não advogam separatismo ou violência.

• Existe a disseminação de um espirito subserviente tanto no nivel individual como institucional, o que representa um grande obstáculo à democratização. A única maneira de superar este sentimento é através da conscientização da sociedade. Cada cidadão deve ser convidado a engajar-se ativamente na causa democrática. Para o povo curdo, isto significa apoiar a construção de estruturas democráticas no Curdistão e em toda região abrigando comunidades curdas, com o objetivo de fomentar a participação ativa na vida política de cada comunidade. Da mesma maneira, minorias residentes no Curdistão devem ser convidadas a participar de tais projetos. O desenvolvimento de estruturas democráticas autóctones assim como a abordagem prática de tais estruturas devem ser tratados como prioridade máxima. As mesmas devem ainda ser vistas como necessárias em regiões onde os direitos básicos de uma democracia não são respeitados, como é o caso do Oriente Médio.

• A política depende da existência de meios de comunicação independentes. Na ausência destes, as estruturas estatais não logram desenvolver uma sensibilidade às questões democráticas. O livre acesso à informação é não somente um direito individual, mas uma questão social essencial. Mídias independentes representam um mandato social. Sua comunicação com o publico deve ser caracterizada por um equilíbrio democrático.

• Instituições feudais como tribos e seitas, resquícios da Idade Média, também representam obstáculos à democratização. Tais instituições parasitárias devem ser instigadas a integrar-se na luta por uma mudança democrática.

• O direito à educação na língua nativa deve ser garantido. Mesmo se as autoridades não desenvolvem tal educação, elas não devem impedir esforços civis visando criar instituições especializadas no ensino da língua e cultura curdas. Além disso, o sistema de saúde deve ser garantido tanto pelo estado como pela sociedade civil.

• Um modelo social ecológico é por essência um modelo socialista. Um equilíbrio ecológico somente será possível durante a fase de transição entre uma sociedade alienada baseada no despotismo e uma sociedade socialista. Seria ilusão acreditar que a preservação do meio ambiente é compatível com o sistema capitalista. Pelo contrário, o sistema capitalista contribui ávidamente para a devastação do meio ambiente. A proteção do meio ambiente deve ser levada em consideração seriamente durante o processo de mudança social.

• A solução para a questão curda deve ser tentada em conjunto com um processo de democratização de todos os países que exercem seu poder sobre o Curdistão de maneira hegemônica. Este processo, porém, não é limitado a tais países, mas deve estender-se por todo o Oriente Médio. A paz no Curdistão está intimamente ligada à democracia no Oriente Médio. Um Curdistão livre somente é concebível como um Curdistão democrático.

• A liberdade individual de expressão e de decisão é imperativa. Nenhum país, nenhum estado, nenhuma sociedade tem o direito de restringir tais liberdades, independentemente das razões alegadas. Sem liberdade individual, a liberdade social não poderá existir, assim como a liberdade pessoal é impossível se a sociedade não for livre.

• Uma redistribuição justa de recursos econômicos que se encontram atualmente nas mãos do estado é igualmente de extrema importância para o processo de liberação social. Abundância econômica não deve transformar-se em uma ferramenta do poder do estado com o objetivo de facilitar o exercício deste poder sobre a população. Riquezas econômicas não são propriedade do estado mas da sociedade.

• Uma economia próxima à população deve ser baseada nesta redistribuição; ela deve ainda ser baseada em benefícios em lugar de visar exclusivamente a acumulação de lucros e o aumento da circulação monetária. Atualmente, as estruturas econômicas locais deterioram tanto a sociedade quanto o meio ambiente. Uma das principais razões da decadência da sociedade é o efeito dos mercados financeiros locais. A produção artificial de bens, a procura interminável por novos mercados de consumo e a cobiça sem limites por lucros cada vez maiores são responsáveis pela diferença cada vez mais abismal entre pobres e ricos, acrescentando diariamente indivíduos ao batalhão dos que vivem abaixo do nível de pobreza e mesmo dos que morrem de fome. Uma política  econômica deste tipo não pode mais ser tolerada. Este é então o maior desafio para a política socialista: implementar uma política econômica alternativa que não vise unicamente o lucro mas sim uma distribuição justa dos recursos e a satisfação das necessidades básicas naturais para todos.

• Embora a tradição curda valorize altamente a família, esta última segue sendo uma entidade onde a liberdade não é garantida. Carência de recursos financeiros assim como o difícil acesso à educação e aos serviços de saúde não deixam espaço para o desenvolvimento da unidade familiar. A situação de crianças e mulheres é desastrosa. Assassinatos “de honra” de mulheres da família ilustram este desastre. Mulheres podem virar o alvo de uma noção de honra arcaica que reflete a decadência da sociedade como tal. A frustração masculina em relação as condições existentes é dirigida contra o suposto membro “frágil” da família: a mulher. A família como instituição social está em crise. A solução desta crise familiar, assim como de outras crises detalhadas acima, se encontra no contexto de uma democratização completa.”
Abdullah Öcalan

Erdoğán e Barzani buscam enganar a imprensa

Turkey Kurds

Os Estados Unidos têm pressionado a Turquia, país membro da OTAN, durante semanas para que faça mais por Kobane

Por Michael Rubin 
6 de novembro de 2014

Fonte: Diário Siglo XXI 

Tradução: Coletivo Anarquia ou Barbárie

Os peshmerga curdos iraquianos atravessaram a Turquia a caminho de Kobane, o cantão curdo-sírio atualmente sitiado pelo Estado Islâmico. O The New York Times informa que os “Líderes curdos sírios de Kobane afirmam que pequenos grupos de guerrilheiros não são suficientes para reverter a situação atual”, mas a Turquia tem o benefício da dúvida, e continua:

Os Estados Unidos têm pressionado a Turquia, país membro da OTAN, durante semanas para que faça mais. Mas a Turquia tem se esforçado em solicitar que a intervenção americana busque depor o presidente sírio Bashar al-Assad, manifestando grandes reservas quanto à ajuda às minorias curdas da Síria e Iraque, alinhadas com as suas próprias populações curdas descontentes. Os grupos que combatem pelo município de Kobane entendem a política por trás da recente decisão turca de lhes ajudar a repelir o Estado Islâmico. Os analistas apontam que a minimização desse descontentamento na Turquia seja importante.”

Tais matérias interpretam mal a dinâmica curda ou os reais interesses do presidente turco, Erdoğán. Quando Erdoğán pensa a Síria, o inimigo número um a bater é Assad, o número dois são os curdos sírios e, apenas num distante terceiro lugar, o Estado Islâmico. Durante os últimos meses, Erdoğán esperava que o Estado Islâmico fizesse o trabalho sujo por ele, derrotando os curdos sírios. Entretanto, duas coisas aconteceram: as Unidades Populares da resistência em Kobane (YPG e YPJ) não apenas não se renderam como também poderiam até ter revertido a situação; e os Estados Unidos decidiram ignorar a proibição de cooperar com tais Unidades e as abasteceu, na prática, armando pela primeira vez o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Erdoğán jogou suas cartas, e os EUA, por fim, viu a luz no fim do túnel. Ao permitir que os curdos cruzem sua fronteira – mesmo como um gesto simbólico – a intenção de Erdoğán não é exatamente ver uma vitória dos curdos, mas sim impedir que os EUA voltem a colaborar com o PKK.

Erdoğán não é o único a se mostrar hostil aos curdos sírios. O presidente do Curdistão iraquiano, Massoud Barzani, também. Barzani desfaz-se em elogios ao nacionalismo curdo, porém os antecedentes pesam. Barzani almeja, antes de tudo, aumentar seu poder pessoal. É totalmente a favor do nacionalismo curdo desde que seja ele quem mande. Contudo, preferiria ver o fracasso da empreitada curda ao se ver substituído por um rival. Em 1996, por exemplo, ele arriscou tudo o que os curdos haviam conquistado até então, ao chamar a Erbil ( capital do Curdistão iraquiano) a Guarda Republicana do então Presidente Saddam Hussein para que este o apoiasse em seu enfrentamento ao líder curdo rival, Jalal Talabani. Atenção: apenas oito anos após o regime de Saddam ter utilizado seu arsenal de armas químicas contra os curdos.

Barzani considera os curdos sírios como rivais políticos, tendo em vista que estes pendem mais para o lado do líder do PKK, Abdullah Öcalan, do que ao seu. Em visita ao Curdistão sírio no início deste ano, Barzani bloqueou ativamente a ajuda humanitária requerida pelos curdos sírios. Toneladas de medicamentos doadas em solidariedade aos curdos de país vizinho foram “esquecidas” em seus armazéns. Todavia, a salvação dos yazidis de Shingal por parte das Unidades Populares – depois que os próprios peshmerga de Barzani tinham fugido – não fez senão destacar ainda mais a relevância das Unidades Populares aos olhos dos curdos. Em outras palavras, se o Estado Islâmico cortasse as asas das Unidades Populares, Barzani não derramaria sequer uma lágrima.

O envio de um contingente simbólico de peshmergas curdos a Kobane é simplesmente o plano de contingencia de Erdoğán e de Barzani. Para as Unidades não faz nenhuma diferença, e a sua defesa de Kobane apenas tem aumentado sua fama. Adicionar os peshmerga iraquianos à mistura não vai mudar os rumos do combate, mas permitirá que Erdoğán e Barzani reivindiquem a vitória dos curdos sírios caso as Unidades consigam realizar tal façanha. Basicamente, Erdoğán e Barzani esperam se beneficiar da ação das Unidades Populares e compartilhar sua glória.

Os EUA podem querer derrotar o Estado Islâmico, mas não devemos ter dúvidas: o Estado Islâmico não teria chegado até aqui se não fosse pela cumplicidade da Turquia e, mais especificamente, do próprio Erdoğán. Seria um erro fatal dos legisladores estadunidenses, ao tratar de Kobane, supor que o resto da região compartilha do nosso programa. Isso não significa que não podemos ter aliados de conveniência, mas não devemos vê-los como algo que não são.

Ideias e movimentos de organização anarquista hoje – Um papo sobre municipalismo libertário.

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Por Gilson Moura Henrique Junior

Para discutir teoricamente sobre organização e prática anarquista, é de bom tom ter em mente que, em relação aos movimentos e organizações de cunho socialista, o movimento anarquista parte de pontos organizativos, digamos assim, menos sólidos. Esta ausência de solidez não parte de diferenças qualitativas entre métodos de organização e sim da capilaridade relacionada ao socialismo e ao anarquismo. Esta diferença na penetração das ideias anarquistas em relação às socialistas não tem outra raiz senão a história de cada movimento: a perseguição a anarquistas, desde o fim do século XIX até os primeiros vinte anos do século XX; a cooptação que o movimento socialista levou a cabo junto aos movimentos anarquistas após a revolução russa de 1917; as duas severas ditaduras que reprimiram todo o espectro de esquerda, mas atingiram em cheio o movimento anarquista, que também era combatido pela esquerda, a partir de grupos alinhados ao partido comunista, que perseguia com ferocidade tudo o que fugisse da órbita soviética, como se viu na guerra civil espanhola.

Levando tudo isso em conta, temos diante de nós, nos últimos vinte anos, uma retomada do processo de organização anarquista e uma busca de protagonismo dessa vertente ideológica, que tem encontrado vasto sucesso e campo de atuação na juventude brasileira. Esse sucesso, no entanto, esbarra nas fragilidades organizativas do anarquismo, o que é típico nas organizações mais horizontais e cuja ausência de centralidade e centralismo exige menos unidade que a imposição das organizações socialistas de linha marxista-leninista. Uma dessas fragilidades é a dificuldade de formação, especialmente uma formação unitária, que leve em conta o maior grupo possível de pensadores anarquistas – e são muitos – de modo a ampliar a percepção da anarquia para além da ideia romântica de rebeldia momentânea, que acaba não refletindo sobre o que é preciso transformar, no presente, em cada indivíduo, para além da aparência externa e da simbologia anarquista utilizada.

Essa dificuldade de formação é combatida com muita competência por portais como o Protopia, que fornece um amplo número de textos dos mais diversos pensadores e que auxilia assim aos neófitos a entenderem mais da anarquia. Outros espaços são a Anarcopedia e o Instituto de Teoria e História Anarquista, que atuam divulgando ideias, base teórica e a história do movimento.

Essa fragilidade, embora seja um ônus, é parte dos riscos da horizontalidade e que precisa ser visto dessa forma. Assim como na ecologia a diversidade é mãe dileta da manutenção das espécies, na anarquia a diversidade, pluralidade e ausência de centralismo é mãe dileta da liberdade e da manutenção da ideologia em curso.

Diante desas colocações, a ideia de organização anarquista que perpassa pra quem observa de fora é extremamente diversificada e propõe uma gama de soluções para os dilemas da luta de classes que lidam com os mais diversos autores e propostas, na maior parte atuam como ferramenta de organização periférica, onde os partidos não atuam e formando focos de rebelião nas localidades onde os partidos passeiam apenas com o discurso de fomento eleitoral e com menos participação concreta na organização da população para um enfrentamento organizado ao estado. Essa fórmula de organização propõe o fortalecimento da organização de base, que consolide uma alternativa ao viés eleitoralista que acaba por, na hora H, trair o discurso de construção da revolução em nome da construção de aparatos.

Essa ideia de ação anarquista propõe uma solução viável e em curso de alternativa concreta à lógica partidária e que fomenta a organização popular, a questão é o passo adiante da tomada de poder e de empoderamento pelos coletivos organizados nas periferias. Que passo se dá para a ocupação dos espaços que o estado não ocupa?

Óbvio que seria muita arrogância propor de fora soluções às uma gama de coletivos organizados e com problemas práticos in loco, porém sugerir não dói. E a sugestão é que se integre as ações locais com a formação de conselhos coletivos de empoderamento local para a transformação de bairros em focos de comunas. A partir disso a constituição de um lastro de poder local criando uma rede coletiva horizontal que confronte o estado em nome da revolução no modo de vida dos bairros e ruas dentro do município.

Claro que isso tem em mente uma objetificação ideal da ação de coletivos inteiros e que não tem como medir os dramas diários de cada coletivo organizado nas periferias do país afora para compreender as dinâmicas internas que se se fazem presentes, os problemas e os enfrentamentos ao estado, especialmente em favelas, onde ele se mostra em uma face mais dura do que os intelectuais de classe média, entre os quais e me incluo pela casse e não pelo intelecto, cogitam compreender para além da formulação empática.

Só que é fundamental perceber o avanço da ocupação de espaço por coletivos anarcos ou autonomistas onde não se vê o discurso partidário, ocupadíssimo em conquistar CAS, DCEs, Grêmios, e não muito em organizar meios de enfrentamento político onde o estado não vai, e nem quem o busca ocupar para “fazer a revolução”, e tentar a partir disso auxiliar à construção de redes de transformação social que construam ferramentas revolucionárias de combate ao racismo ambiental, à criminalização da pobreza, ao racismo etnocida de estado, a partir do empoderamento simbólico e concreto dos moradores de periferia que a partir de suas associações (Não necessariamente associações formais) podem formar conselhos locais de percepção e resolução de problemas, que utilizem menos o aparato do estado e mais o cotidiano das ruas e vielas para tensionar o estado rumo à construção de alternativas de desenvolvimento local não paroquiais.

Essa ideia não se prende apenas nas periferias, as usa pela percepção de ocupação destes espaços pro coletivos autonomistas e anarquistas, e parte da ideia de Municipalismo Libertário criada por Murray Bookchin. E a proposta é incitar o debate sobre as táticas propostas por este pensador no cotidiano das cidades, atuando de forma a construir meios de reduzir o poder central do estado e combatê-lo rua a rua, bairro a bairro, cidade a cidade.

É fundamental entendermos também que essa proposta foi posta em prática no cotidiano do autor Murray Bookchin e hoje é praticada na Turquia pelos partidários do PKK e atual Curdistão Sírio pelo PYD (com o apoio do PKK), o que nos fornece meios práticos de percepção de suas implicações práticas, tão caras aos críticos.

A cidade independente de Kobane, membro do cantão de Rojava, que equivale ao Curdistão Sírio, é alvo tanto dos fundamentalistas islâmicos do Estado Islâmico (ISIS em Inglês) e das potências da OTAN, quanto dos islamistas moderados turcos do AKP, partido do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que ao negar a entrada de combatentes curdos ligados ao PKK pelas fronteiras turcas, permitindo apenas a entrada dos pershmerga do Curdistão Iraquiano, que não praticam o confederalismo democrático, buscam enfraquecer o crescimento da atuação do PKK em território turco, abatendo o bastião da prática libertária me Rojava.

foto-2-eduardinhoEsse exemplo dá uma ideia de quão perigosa é a ideia de uma confederação de cantões ou cidades livres, o quão é perigosa a ideia de bairros, ruas, favelas, livres e organizadas em conselho se pondo a enfrentar o estado a partir de conselhos de jovens, mulheres, velhos, de artesãos, de donas de casa, que se propõem a construir soluções práticas para enfrentar a ditadura do estado, que promete a paz, mas fornece uma paz sem voz, garantida no medo das unidades de polícia pacificadora (UPP) e na garantia de lei e ordem (GLO) com as digitais das forças armadas, as mesmas forças armadas que prenderem, mataram, torturaram marxistas na década de 1970, e mataram indígenas, camponeses e quilombolas, que jamais receberam tanto holofote quanto os membros das organizações comunistas e socialistas (muitos hoje no poder mantendo as ocupações militares e as unidades de “pacificação”).

É por isso que entendemos que uma boa sugestão é a percepção dos meios pelos quais se organizaram os curdos e propõe Murray Bookchin como meio de agir de forma revolucionária na construção cotidiana adaptando as experiências propostas pelo anarquista estadunidense e postas em práticas pelos curdos à realidade brasileira, atuando de um jeito onde se construam ferramentas concretas de superação do estado e das formas de organização hierárquicas, fornecendo alternativas concretas pra resolução de problemas cotidianos sem a intermediação de líderes paroquiais e de vereadores, desta forma fortalecendo a percepção do poder popular e empoderando os envolvidos na sua construção.