Os anarquistas e a geografia urbana (2): Reclus

Poster comemorativo para os jovens libertários (DD LL) da Catalunha, de 1937. "A anarquia é a mais alta expressão da ordem".

Poster comemorativo para os jovens libertários (DD LL) da Catalunha, de 1937.
“A anarquia é a mais alta expressão da ordem”.

Postado em Passa Palavra, em 30 de novembro de 2014

Com Élisée Reclus, aprende-se que a ação humana sobre o meio circundante, e a influência do meio sobre a ação humana, são fatores determinantes para o desenvolvimento das cidades. Que as cidades e suas relações recíprocas podem ser concebidas de outras formas que não aquelas pautadas pelas necessidades do Estado e das empresas. Por Manolo

Leia aqui a primeira parte do artigo.

2 Elisée Reclus, pioneiro da geografia urbana

Élisée Reclus (1830-1905) é um dos fundadores da geografia moderna, junto com Paul Vidal de la Blache, Carl Ritter, Jean Brunhes e Friedrich Ratzel. Tido como um dos principais geógrafos do seu tempo, chegou inclusive, graças à sua reputação, a contribuir para a solução de problemas diplomáticos internacionais [1]. Sua militância política e o forte acento social e histórico de sua geografia, entretanto, levaram os outros fundadores da geografia moderna – e seus discípulos – a dizer, textualmente, que sua obra “contém interessantes pontos de vista geográficos, mas que é sobretudo história e sociologia”.

2.1 Meio-espaço, meio-tempo, ação recíproca e as “leis” da geografia social

Élisée Reclus

A metodologia de Élisée Reclus é, num primeiro contato, estranha:

No estudo das características diversas do planeta, em suas reações mútuas de justaposição e influência, nas mudanças provocadas pela série das eras, o elemento de comparação que sempre teremos diante dos olhos será a sociedade humana. A história da Terra e aquela da humanidade em suas ações e reações continuadas, desde as origens conhecidas até os tempos que se preparam, serão o objeto de nosso estudo. Para resumir nosso pensamento, buscaremos seguir a evolução da humanidade em relação às formas terrestres e a evolução das formas terrestres em relação à humanidade (RECLUS, 2010a, p. 78-79)

Haveria em Reclus mais que relações, mas praticamente uma unidade entre sociedade e natureza, quase rompendo a distinção physis/nomos herdada há milênios da ontologia aristotélica? A dificuldade da empreitada ontológica era reconhecida pelo próprio Reclus:

É verdade, eu sabia de antemão que nenhuma pesquisa far-me-ia descobrir essa lei de um progresso humano cuja miragem sedutora agita-se incessantemente em nosso horizonte, e que foge de nós e dissipa-se para recriar-se uma vez mais […] Não, mas podemos ao menos, nessa avenida dos séculos que os achados dos arqueólogos prolongam constantemente naquilo que foi a noite do passado, reconhecer a íntima ligação que une a sucessão dos fatos humanos à ação das forças telúricas: é-nos permitido perseguir no tempo cada período da vida dos povos correspondendo à mudança dos meios, observar a ação combinada da Natureza e do próprio Homem, reagindo sobre a Terra que o formou. (RECLUS, 2010a, pp. 45-46)

Mais modestamente, o que Reclus propôs foi uma análise simultaneamente sincrônica e diacrônica do espaço: “Ao meio-espaço, caracterizado por milhares de fenômenos exteriores, deve-se ajuntar o meio-tempo, com suas transformações incessantes, suas repercussões sem fim” (RECLUS, 1905a, p. 110). Para Reclus, ao contrário de muitos deterministas seus contemporâneos, não havia qualquer primazia do meio natural sobre o homem:

…todas estas forças [naturais] variam de lugar em lugar e de época em época; é portanto em vão que os geógrafos têm ensaiado classificar numa ordem definitiva, a série de elementos do meio que influem sobre o desenvolvimento de um povo; os fenômenos múltiplos, entrecruzados da vida não se permitem enumerar numa ordem metódica. […] A história da humanidade, em seu conjunto e suas partes, não se pode assim explicar pela soma dos meios com “juros compostos” pela sucessão dos séculos; mas para entender a evolução que se realiza, também temos de apreciar em que medida os próprios meios evoluem pelo fato da transformação geral [da sociedade] e modificam sua ação em consequência. […] Há também os aspectos da natureza que, sem haver mudado em nada, não deixam de exercer uma ação completamente diferente por efeito da história geral [da sociedade] que modifica o valor relativo de todas as coisas. (RECLUS, 1905a, p. 112-114)

Meio-tempo, meio-espaço e ação combinada e recíproca da Natureza e do Homem – desfazendo, assim, qualquer fetiche naturalista ou de certo ecologismo vulgar hoje em moda – são conceitos-chave da geografia social, cujas três “leis” Reclus sintetizou:

A primeira categoria de eventos que o historiador constata mostra-nos como, por efeito de um desenvolvimento desigual entre os indivíduos e sociedades, todas as coletividades humanas, à exceção das tribos permanecidas no naturismo primitivo, se desdobram, por assim dizer, em classes ou castas, não somente diferentes, mas opostas em interesses e tendências, mesmo francamente inimigas em todos os períodos de crise. […] O segundo fato coletivo, consequência necessária do desdobramento dos corpos sociais, é que o equilíbrio rompido de indivíduo a indivíduo, de classe a classe, se equilibra constantemente em torno de seu eixo de repouso: a violação da justiça clama sempre por vingança. Daí as incessantes oscilações. […] Um terceiro grupo de fatos, ligando-se ao estudo do homem em todas as épocas e todos os países, atesta-nos que nenhuma evolução na existência dos povos pôde ser criada senão pelo esforço individual. É na pessoa humana, elemento primário da sociedade, que se deve buscar o choque impulsivo do meio, destinado a se traduzir em ações voluntárias para disseminar as ideias e participar das obras que edificarão o comportamento das nações. O equilíbrio das sociedades só é instável pela perturbação imposta aos indivíduos em sua franca expansão. A sociedade livre estabelece-se pela liberdade fornecida em seu completo desenvolvimento a cada pessoa humana, primeira célula fundamental, que, em seguida, agrega-se e associa-se como lhe apraz às outras células da mutável humanidade. […] A “luta de classes”, a busca do equilíbrio e a decisão soberana do indivíduo, tais são as três ordens de fatos que nos revela o estudo da geografia social e que, no caos das coisas, mostram-se assaz constantes para que se possa dar-lhes o nome de “leis”. (RECLUS, 1905a, pp. II-IV; 2010a, pp. 47-50)

2.2 A geografia urbana de Reclus

Aldeias normalmente espaçadas (de L'homme et la terre)

Muito à frente de seu tempo, e graças à influência de Piotr Kropotkin, Élisée Reclus foi um dos primeiros geógrafos a dedicar atenção especial às cidades – e entre os pioneiros da disciplina, foi o que mais analisou a questão.

Entre as obras de Élisée Reclus, a Nouvelle Géographie Universelle (19 volumes) fez muito sucesso na época de sua publicação (1876-1894). É uma descrição extremamente minuciosa e rigorosa do “estado do mundo” na época, riquíssima em dados demográficos, corográficos, econômicos, topográficos, cartográficos, geológicos etc. Nesta obra, Reclus divide internamente os países em zonas de influência (com bastante riqueza e detalhe), zonas de vegetação (com menor impacto na obra), a pertença étnica de sua população (onde isto se aplicava) e… a “rede urbana”, entre muitas aspas. Nesta obra Reclus não conceituou a rede, não estruturou abstratamente a hierarquia entre cidades; apenas identificou empiricamente fatos concretos que se repetiam e os descreveu o mais detalhadamente possível, sem extrair deles qualquer teoria geral.

Já em L’homme et la terre (1905-1908, 6 vols.) as intuições reclusianas sobre “rede urbana” chegam ao nível de uma primeira teoria sobre o assunto, especialmente no capítulo II do livro IV, intitulado ”Répartition des hommes” (Repartição dos homens). Este pequeno ensaio – 41 páginas no original francês (RÉCLUS, 1905b, pp. 335-376) – é repleto de ideias sobre questões como causas do êxodo rural na Europa; vantagens da convivência urbana; fatores de atração locacional na fundação de cidades; relação entre agricultura, clima e relevo na formação de cidades; método para estudo da “personalidade” e do “caráter” de uma cidade tal como se apresenta através da acumulação de obras, construções, aglomerações, bairros etc.; morfologia urbana; especulação imobiliária; usos militares da malha urbana; indústria e poluição; estética e monumentos urbanos; saneamento urbano; relação entre meios de transporte e suburbanização; cidades-jardim (Port Sunlight, Bourneville, Letchworth); superpopulação urbana, concentração urbana e sua perspectiva futura.

O ponto central deste ensaio é a teoria da localização urbana e hierarquização entre cidades. Se considerarmos o “panteão” da teoria da localização econômica como composto por Johann Heinrich von Thünen (1783-1850), Alfred Marshall (1842-1924), Alfred Weber (1868-1958), Walter Christaller (1893-1969) eAugust Lösch (1906-1945) e verificarmos certo grau de formalização matemática de suas teorias como elemento comum, faltou apenas isto para que Élisée Reclus fosse incluído neste rol. Toma-se aqui a liberdade de expor os pontos centrais da teoria da localização urbana e hierarquização entre cidades de Élisée Reclus numa só e longa citação:

Aldeias anormalmente espaçadas (de L'homme et la terre)

Se a Terra fosse completamente uniforme em seu relevo, na qualidade do solo e nas condições do clima, as cidades ocupariam uma posição geométrica, por assim dizer: a atração mútua, o instinto de sociedade, a facilidade das permutas as teriam feito nascer a distâncias iguais umas das outras. Tendo em vista uma região plana, sem obstáculos naturais, sem rio, sem porto, situada de uma maneira particularmente favorável, e não dividida em Estados políticos distintos, a maior cidade teria sido construída diretamente no centro do país; as cidades secundárias ter-se-iam distribuído a intervalos iguais sobre o território, espaçadas ritmicamente, e cada uma delas teria seu sistema planetário de cidades inferiores, tendo seu cortejo de vilarejos. A distância normal de uma jornada de marcha, tal deveria ser, sobre uma planície uniforme, o intervalo entre as diversas aglomerações urbanas; o número de léguas percorridas por um caminhante comum entre a aurora e o crepúsculo, sejam doze ou quinze correspondendo às horas do dia, constitui a etapa regular de uma cidade à outra. A domesticação dos animais, depois a invenção da roda, e, em seguida, das máquinas, modificaram, gradual ou bruscamente, as medidas primitivas: o passo da montaria, depois o giro do eixo da roda determinaram a distância normal entre as grandes reuniões de homens. Quanto aos vilarejos, sua distância média tem por medida o percurso que pode fazer o agricultor empurrando seu carrinho de mão carregado de feno ou de espigas. A água para o gado, o transporte fácil dos frutos do solo, eis o que regula a localização do estábulo, do celeiro e da cabana. Entre as regiões povoadas há muito tempo e ainda apresentando na distribuição urbana de seus habitantes as distâncias primitivas, encontramos, na aparente desordem das cidades, uma ordem de repartição que foi, evidentemente, outrora regulada pelo passo dos caminhantes. […] [P]odemos constatar a surpreendente regularidade com a qual se distribuíram as aglomerações urbanas antes que as explorações mineiras e industriais viessem perturbar o equilíbrio natural das populações. […] Entre a capital [Paris] e os centros administrativos de segunda ordem, fundaram-se, em intervalos sensivelmente iguais, cidades menores, mas ainda consideráveis, separadas por uma dupla etapa, de vinte e cinco a trinta “léguas”: Orléans, Tours, Poitiers, Angoulême. Enfim, a meio caminho de cada um desses centros de terceira ordem, formaram-se cidades modestas, indicando a etapa média: Etampes, Amboise, Châtellerault, Ruffec, Libourne. Assim, o viajante, atravessando a França, encontrava alternativamente uma cidade de simples repouso e uma cidade de completo reconforto: a primeira bastava ao pedestre, a segunda convinha ao cavaleiro. Em quase todas as estradas o ritmo das cidades produz-se do mesmo modo, cadência natural regulada pela marcha dos homens, dos cavalos e das carruagens.

Cidades europeias com pelo menos 100 mil habitantes (de L'homme et la terre)

As irregularidades da rede das etapas explicam-se todas pelas características do relevo, pelo curso dos rios, pelos mil contrastes da geografia. […] Todas as condições da natureza, agrícolas, geográficas, climáticas, influem para bem ou para mal no desenvolvimento das cidades. Cada vantagem aumenta sua força de atração, cada desvantagem a diminui. A grandeza dos grupos urbanos mede-se exatamente pela soma dos privilégios naturais, admitindo, evidentemente, que a ambiência histórica seja identicamente a mesma. Duas cidades, uma da África, a outra da Europa, encontrando-se em condições similares, serão contudo muito diferentes, porquanto a evolução da história circundante difere para cada uma delas: no entanto, haverá paralelismo em seus destinos. […] [D]ois centros urbanos próximos influenciam-se mutuamente, seja para desenvolver-se juntos quando seus interesses completam-se […], seja para prejudicar-se quando os privilégios são da mesma ordem […]. Depois das vantagens do clima e do solo, aquelas do sub-solo exercem, às vezes, uma influência decisiva. […] Cada conquista do homem cria pontos vitais em locais imprevistos […] Que mudança rápida na repartição das cidades quando o homem tornar-se senhor da aviação, da aeronáutica! (RECLUS, 2010, pp. 38-41, 46-48)

Modelos deste tipo são uma das três teorias fundamentais da geografia atual juntamente com a renda fundiária e a difusão – o que leva a considerar Reclus não apenas como um precursor em matéria de análise urbana, mas igual e claramente como um dos fundadores da geografia contemporânea (BOINO, 1999).

Mais especificamente, a rede urbana e a hierarquização entre cidades são dois conceitos fundamentais comumente associados a Walter Christaller e sua teoria das localidades centrais,criada em 1933 a partir da observação empírica da rede urbana da Alemanha meridional, ou a George Kinglsey Zipf e sua criação daregra da ordem-tamanho em 1935. Roberto Lobato Corrêa (CORRÊA, 1989, p. 20) aponta que muitas das ideias sobre a rede urbana e a hierarquização de cidades já estava presentes nas obras do economista franco-irlandês Richard Cantillon (1755), do filósofo saint-simoniano francês Jean Reynaud (1841) e do engenheiro francês Léon Lalanne (1863); como se vê, Élisée Reclus já ultrapassa o status de precursor e apresenta uma teoria muito refinada da rede urbana e da hierarquização entre cidades.

Aldeias agrícolas e industriais (de L'homme et la terre)

Além disso, quando comparada, por exemplo, com a teoria dos lugares centrais de Walter Christaller, a teoria da localização e hierarquização urbanas de Reclus mostra-se mais dinâmica, flexível e pragmática. Enquanto o modelo reclusiano de hierarquização urbana funda-se nodesenvolvimento tecnológico, no deslocamento humano (e no alargamento tecnológico do alcance deste deslocamento) e nas necessidades do trabalho, o modelo christalleriano está totalmente enraizado no consumo de bens centrais [2]; o modelo reclusiano, deste modo, é muito mais útil a um planejamento do espaço urbano feito por trabalhadores em função de suas próprias necessidades que o modelo christalleriano, perfeito para planejar o espaço na perspectiva do Estado e das empresas.

2.3 O resgate da obra de Reclus

Lançada ao esquecimento por décadas, a obra de Élisée Reclus foi resgatada entre os anos 1960 e 1970 por Yves Lacoste e David Harvey. Atualmente, Federico Ferretti e Phillipe Pelletier esforçam-se mais detidamente para fazer pontes entre a obra de Reclus e temas como colonialismo e estudos pós-coloniais, educação popular e geopolítica.

No Brasil, país objeto de monografia específica de Reclus (Reclus, 1900), até onde foi possível pesquisar nenhuma obra de Reclus havia sido publicada desde o início do século XX até 1985, quando sai publicada na coleção “Grandes Cientistas Sociais”, da editora Ática, uma coletânea de trechos da obra reclusiana.

Graças ao esforço pioneiro de Plínio Augusto Coelho, que traduz e publica escritos anarquistas desde 1989 através da editora Imaginário, capítulos da obra L’homme et la terre estão sendo traduzidos para o português e publicados na forma pequenos livros.

E o interesse por Reclus já chegou à academia brasileira: entre 6 e 10 de dezembro de 2011 realizou-se, na USP, o colóquio internacional “Élisée Reclus e a geografia do novo mundo”, cujas memórias estão disponíveis na internet (https://reclusmundusnovus.wordpress.com/memorias/). Tudo isto é plenamente justificado:

Apesar da utilização de metáforas biológicas, o texto de Reclus interessa pela visão dos processos, pela explicação teórica dada para a fundação das cidades, entre outras, como, por exemplo, a indicação de especuladores como agentes do desenvolvimento urbano. (VASCONCELOS, 2012, p. 65)

Élisée Reclus, 1903

Em tempos de efervescência das lutas sociais urbanas, a obra de Élisée Reclus – descontado, evidentemente, o evolucionismo quase pueril que a atravessa em dados momentos (RECLUS, 2002) – é extremamente útil para quem projeta o desenvolvimento territorial urbano por fora dos esquemas estatais e empresariais, em conjunto ou a partir dos movimentos sociais.

3 Conclusão: atualidade do pensamento anarquista sobre cidades

Em tempos de “crise do pensamento crítico” – que não é outra coisa além da crise do pensamento marxista (SOUZA, 2010, pp. 2-4), posto pelos fatos diante de seus próprios limites e pouco capaz de superar a si próprio como orienta seu próprio fundador – o que trazem os anarquistas de relevante para entender a questão urbana hoje?

Com Kropotkin, aprende-se que é impossível conceber qualquer luta social desgarrada do espaço que é seu palco e da história de lutas pregressas pelo uso e produção deste mesmo espaço. Que as cidades foram, desde tempos muito recuados, palco de lutas libertárias que deixaram traços e rastros no tempo e no espaço, capazes de elucidar o conteúdo e o sentido das lutas do presente. Que somente a ação direta dos explorados e oprimidos pode apresentar soluções viáveis e duradouras para a questão urbana.

Com Élisée Reclus, aprende-se que a ação humana sobre o meio circundante, e a influência do meio sobre a ação humana, são fatores determinantes para o desenvolvimento das cidades. Que as cidades e suas relações recíprocas podem ser concebidas de outras formas que não aquelas pautadas pelas necessidades do Estado e das empresas.

E que lições se tira disto?

Em primeiro lugar, a indissociabilidade entre espaço e política. A dimensão espacial, para os anarquistas, é tão importante quanto as dimensões social, política, histórica ou econômica, pois é seu substrato. Pensar a história, a política, a economia ou a sociedade sem o espaço, para os anarquistas, é pensar em abstrações dissociadas da realidade – o que, tendo em vista o horizonte político de uma sociedade sem Estado e sem patrões, construída a partir da iniciativa dos trabalhadores auto-organizados, é um perigo.

Barricada na Comuna de Paris. Por lutar nas barricadas da Comuna, Reclus passou o resto da vida no exílio.

Em segundo lugar, a centralidade da cidade e do espaço urbano para as lutas políticas. A cidade é tida pelos anarquistas como espaço fundamental da democracia, das relações face-a-face, da experiência vivida; não por acaso, propugnam novas formas de política e de produção econômica que emerjam do simples ao complexo, do indivíduo à sociedade, do local ao global. Em tempos de globalização corporativa, de sociedade de controle e de império, é um legado importantíssimo.

Em terceiro lugar, a compreensão da produção do espaço urbano pelas lutas sociais. Não há um só entre os anarquistas analisados neste artigo que reflita sobre o desenvolvimento das cidades e a produção do espaço urbano fora de um contexto de lutas sociais; pode-se dizer, assim, que para os anarquistas o espaço é produto das lutas pelo seu uso e produção.

Em quarto lugar, a ação direta como método para a solução da questão urbana. Vivemos um tempo de burocratização de movimentos sociais (PASSA PALAVRA, 22 ago. 2010) e de progressivo atrelamento de movimentos sociais a políticas governamentais (PASSA PALAVRA, 05 fev. 2012).

Um tempo de enredamento dos movimentos de luta por moradia em programas governamentais como o Minha Casa, Minha Vida (MANOLO, 01 abr. 2012; PASSA PALAVRA, 01 jun. 2014; 08 jun. 2014; 15 jun. 2014).

Um tempo de escolhas difíceis para os movimentos urbanos: manter a autonomia frente ao Estado e às empresas do setor imobiliário e construir as lutas num modelo autogestionário de ação direta, sem resultados fáceis e na contramão do consenso generalizado, ou avançar em conquistas pontuais, mas submetendo-se aos dispositivos políticos, sociais e econômicos de dominação do Estado e das empresas?

O paradigma anarquista de compreensão da questão urbana, se não apresenta soluções diretas e imediatas para estes reptos, problematiza e chacoalha respostas teóricas consolidadas a estes problemas práticos; o desvelar desta crítica ausente, aqui, faz-se mais necessária do que nunca.

NOTAS

[1] “Pesquisando no acervo do Conselho Municipal da cidade de Genebra, encontramos um documento contendo afirmações que chamaram logo a nossa atenção. O fundo cartográfico Reclus-Perron conservado em Genebra possui particularmente um mapa manuscrito que o explorador Henri Coudreau (1859-1899) fez para Elisée Reclus (1830-1905). Ele foi decisivo para a arbitragem do Conselho federal suíço que julgou, em primeiro de dezembro de 1900, o contestado franco-brasileiro sobre as fronteiras entre o Brasil e a Guiana, anexando ao Brasil um território de 260.000 quilômetros quadrados.” (FERRETTI, 2013, p. 2)

[2] “Há uma conexão definitiva entre o consumo de bens centrais e o desenvolvimento de lugares centrais. O desenvolvimento daqueles lugares centrais cujos habitantes vivem da venda de bens centrais torna-se mais pronunciado se muitos bens centrais forem consumidos que se poucos bens centrais forem consumidos. […] O consumo dos bens centrais depende da distribuição da população, e especialmente do grau de aglomeração do próprio lugar central. Ademais, o consumo de bens centrais depende primariamente da demanda por mercadorias, que é determinada pela estrutura profissional e social, assim como pela infraestrutura de renda ou riqueza da população. O consumo de diferentes tipos de bens centrais é determinado pela quantidade disponível, pela lei da oferta e da procura e, sobretudo, pelo preço das mercadorias no lugar central. Este preço é determinado por fatores tais como renda, juro, salários e taxas. Além disso, a demanda depende do tamanho e da formação geográfica da região complementar. Estes fatores determinam o alcance da mercadoria; as condições particulares de transporte também desempenham papel importante. Quando determinamos o montante de consumo e a alocação da oferta de bens centrais, de acordo com os fatores mencionados, a questão sobre os tamanhos, locações e número dos lugares centrais pode, ao menos genericamente, ser respondida”. (CHRISTALLER, 1966, pp. 27-28)

REFERÊNCIAS

BOINO, Paul. “Plaidoyer por une géographie reclusienne”. Réfractions, nº 4, mar. 1999. Disponível na internet: http://refractions.plusloin.org/spip.php?article349. Acesso em 10 mai. 2014.

CHRISTALLER, Walter. Central places in Southern Germany. Nova Jérsei: Prentice-Hall, 1966.

CORRÊA, Roberto Lobato. A rede urbana. São Paulo: Ática, 1989.

FERRETTI, Federico. “O fundo Reclus-Perron e a controvérsia franco-brasileira de 1900: um mapa inédito que decidiu as fronteiras do Brasil”. Terra Brasilis (nova série), nº 2, 2013. Disponível na internet:http://terrabrasilis.revues.org/744 . Acesso em 10 jun. 2014.

MANOLO. ”’Há muito espaço para crescer’ (3ª parte)”. Publicado em 01 abr. 2012. Disponível na internet:/2012/04/54173. Acesso em 18 mai. 2014.

PASSA PALAVRA. “Entre o fogo e a panela”. Publicado em 22 ago. 2010. Disponível na internet:/2010/08/27717. Acesso em 18 mai. 2014.

_____________. “Estado e movimentos sociais”. Publicado em 05 fev. 2012. Disponível na internet:/2012/02/52448. Acesso em 18 mai. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte I)”. Publicado em 01 jun. 2014 Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte II)”. Publicado em 08 jun. 2014. Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte III)”. Publicado em 15 jun. 2014. Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

RECLUS, Élisée. Estados Unidos do Brazil: geographia, etnographia, estatística. Rio de Janeiro: Garnier, 1900.

_____________. L’homme et la terre. Vol. 1. Paris: Librairie Universelle, 1905a.

_____________. L’homme et la terre. Vol. 5. Paris: Librairie Universelle, 1905b.

_____________. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2002.

_____________. Da ação humana na geografia física/Geografia comparada no espaço e no tempo. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2010a.

_____________. Renovação de uma cidade/repartição dos homens. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2010b.

SOUZA, Marcelo Lopes de. “Uma geografia marginal e sua atualidade: a linhagem libertária”. Texto apresentado durante o Primeiro Colóquio Território Autônomo (UFRJ, 26 e 27 de outubro de 2010). Disponível na internet: http://territorioautonomo.files.wordpress.com/2010/10/uma-geografia-marginal-e-sua-atualidade2.pdf . Acesso em 15 mai. 2014.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Dois séculos de pensamento sobre a cidade. 2ª ed. rev. atual. Salvador: EdUFBA/Editus, 2012.

Os anarquistas e a geografia urbana (1): Kropotkin

Fonte: Passa Palavra

Fonte: Passa Palavra

Fonte: Passa Palavra

O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade. Por Manolo

Embora seja possível traçar seus antecessores em diversos momentos da história, o movimento anarquista, tal como o compreendemos hoje, consolidou-se como expressão de um projeto político apenas nas quatro últimas décadas do século XIX, e a força, presença e relevância deste projeto político inicial influenciaram incontáveis organizações e iniciativas políticas até a década de 1930, quando eventos que culminaram na chegada ao poder político entre 1917 e 1939 de organizações políticas historicamente inimigas do anarquismo – que vão desde comunistas até fascistas, passando por organizações influenciadas pelo liberalismo, pelo conservadorismo, pelo nacionalismo e pelo fundamentalismo religioso – resultaram numa onda de perseguição política aos anarquistas cujo saldo foi o desmantelamento de suas organizações e a destruição de seus arquivos pessoais, além de prisões, exílios e assassinatos.

Somente na década de 1960 o anarquismo retornou com força à cena política, perseguido e marginalizado (WOODCOCK, 2008). Por isto, optou-se neste artigo por chamar o movimento anarquista existente nos setenta anos compreendidos entre as décadas de 1860 e 1930 de primeira onda do anarquismo, para diferenciá-lo da retomada iniciada na década de 1960, cujos efeitos são sentidos até hoje.

Nesta primeira onda do movimento anarquista, houve dois militantes, geógrafos de profissão, que apresentaram versões alternativas e bastante funcionais a muitas das teorias atualmente empregues na compreensão do fenômeno citadino e no planejamento urbano [1]: Elisée Reclus e Piotr Kropotkin. Para ambos, “anarquismo e geografia são uma combinação lógica” (DUNBAR, 1989, p. 78), seja enquanto filosofia política, seja enquanto fundamento epistemológico.

Kropotkin e Reclus veem na livre associação dos indivíduos e na solidariedade duas forças motrizes do desenvolvimento social, econômico, político e geográfico; por isto mesmo, são críticos acerbos de tudo quanto possa obstaculizar estas duas forças: Estado, capital, exploração do homem pelo homem, colonialismo, imperialismo, tirania e autoritarismo são temas constantes de seus ataques.

Por caminhos teóricos ligeiramente diferentes, Kropotkin e Reclus chegam à conclusão de que as cidades são um lugar de encontros e um espaço fértil para atuação política, por terem sido os lugares onde surgiram os embriões da democracia moderna – embora vejam no governo representativo e no Estado, mesmo o mais democrático, entraves à solidariedade e à livre associação dos indivíduos. Por terem sido quase vizinhos em seu exílio suíço (1877-1881), Kropotkin e Reclus influenciaram-se mutuamente, um “polindo” o entendimento do outro através do diálogo: Reclus dando foco mais social e ecológico à geografia física de Kropotkin, e este último conferindo à geografia social e ecológica de Reclus caráter mais comunal e mais atento no fenômeno urbano (WARD, 2010, p. 209-210).

1 Piotr Kropotkin e a revolução urbana na Europa

1.1 Breve biografia

Piotr Kropotkin em 1864

Príncipe da dinastia ruríquida, senhora dos territórios da Rússia e Ucrânia entre 862 e 1610, Piotr Kropotkin (1843-1921) recusou o título aos 12 anos para tornar-se uma das figuras centrais do movimento anarquista no século XIX, e repreendia duramente os amigos que ainda o tratavam como se fosse nobre (BALDWIN, 1970, p. 13).

Quando jovem, na Rússia, esteve envolvido com atividades administrativas, militares e de corte; entre 1866 e 1872 dedicou-se a expedições científicas à Sibéria, tendo em seguida, numa viagem à Suíça, tido contato com o movimento operário, filiando-se à seção genebrina da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

Por influência de militantes da Federação do Jura suíço, ingressou no movimento anarquista, que não abandonou até sua morte. Voltou à Rússia ainda em 1872, e já em 1874 estava preso na fortaleza de Pedro e Paulo por sua atividade política com o Círculo Tchaikovsky. Tendo escapado das prisões russas em 1876, passou a viver no exílio, entre a França, Suíça e Inglaterra, sempre ativo no movimento anarquista então em pleno vigor.

Voltou à Rússia apenas em 1917 para colaborar com o processo revolucionário, mas a escalada dos bolcheviques ao poder através de um golpe de Estado fê-lo crítico acerbo desta forma de condução de um processo revolucionário – em conformidade com sua longa crítica a qualquer governo, mesmo revolucionário. Morto em 8 de fevereiro de 1921, seu funeral, em 13 de fevereiro, foi o último ato público de anarquistas durante a Revolução Russa; a Cheka, polícia política bolchevique, se encarregaria de aniquilá-los a partir de então.

1.2 As cidades medievais europeias como berço da democracia e do Estado modernos

Não cabe aqui fazer um inventário completo das ideias políticas e Kropotkin quando uma boa introdução ao assunto (WOODCOCK, 2002, pp. 207-250) ainda se encontra em catálogo editorial. Basta mencionar, introdutória e esquematicamente, que para Kropotkin tanto o feudalismo quanto o capitalismo criam escassez artificial e baseiam-se na força bruta e em privilégios; ele propôs um sistema político e econômico descentralizado, baseado no apoio mútuo e na cooperação voluntária, duas tendências que identificou como já presentes na vida social (KROPOTKIN, 2000, 2005, 2009, 2011).

Nuremberg, 1493

Interessam, para os fins deste artigo, sobretudo as ideias de Kropotkin sobre as cidades e sua inter-relação, ainda mais justificadas quando sua obra geográfica não tem sido objeto do mesmo revival que a de seu amigo Élisée Reclus. Será necessário, como pano de fundo desta subseção, criticar duas opiniões. A primeira, mais comum, diz que Kropotkin teria sido fundamentalmente um geógrafo físico. O geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2011, p. 10), após breve apresentação desta opinião, está também entre os que a criticam; não obstante a fama de Kropotkin como geógrafo físico ser merecida, por ter sido o primeiro a cartografar certas regiões do norte da Ásia (WARD, 2010, p. 214), ela espraia uma cortina de fumaça sobre sua não menos significante contribuição à geografia social presente em obras como Campos, fábricas e oficinas (KROPOTKIN, 1901) e A conquista do pão (KROPOTKIN, 2011), reconhecida por entusiastas de primeira hora como Lewis Mumford [2]. A segunda opinião, menos difundida, leva em conta a contribuição de Kropotkin à geografia social, mas quanto à questão urbana defende que “sua preocupação com a cidade é mais indireta” (VASCONCELOS, 2012, p. 71); a questão urbana, muito pelo contrário, está no cerne das preocupações de Kropotkin, quer no âmbito historiográfico, quer no âmbito geográfico, quer no âmbito político.

Kropotkin, geógrafo evolucionista e biólogo neolamarckista (ALSINO, 2012), e por isso mesmo muito atento ao desenvolvimento histórico da relação homem-meio, encontrou nas comunasurbanas europeias existentes entre os séculos X a XIV, herdeiras diretas das comunas rurais, tanto um antecessor cronológico das cidades modernas quanto uma base para a reflexão política de sua militância revolucionária.

As comunas urbanas e as primeiras cidades medievais eram, para Kropotkin, um modelo de resistência à tirania. Em várias passagens de sua obra (KROPOTKIN, 1901, 1955, 2000, 2005h, 2009, 2011) mostrou como estas comunas lutaram contra os senhores feudais, sendo em alguns momentos vitoriosas.

Para Kropotkin, as cidades medievais foram formadas por um lento e conflituoso desenvolvimento histórico, impulsionado por um conjunto de fatores em influência recíproca: a federação de vilarejos em prol da defesa comum contra inimigos externos (KROPOTKIN, 2009, p. 128); a restauração da paz interna em situações de desrespeito aos costumes, num embrião de função jurisdicional (idem, p. 120-131); o surgimento e consolidação das guildas e dos mercados (idem, p. ); a consolidação dos direitos fundamentais da posse comum da terra e daautojurisdição, que significava na prática autoadministração e autolegislação (idem, p. 133); e as conjurações, fraternidades e amizades, pactos políticos consolidados em cartas constitucionais, forjados na luta para “sacudir o jugo de seus senhores laicos e clericais” (idem, p. 132). O europeu medieval, para Kropotkin, seria “essencialmente federalista” (KROPOTKIN, 2000, p. 53), “preferia invariavelmente a paz à guerra” (KROPOTKIN, 2009, p. 128).

Representação da cidade livre de Aachen (Alemanha) na Idade Média

Em termos atuais, pode-se dizer que Kropotkin viu na história das cidades europeias medievais o espaço urbano como produto da associação de indivíduos em busca da libertação do jugo feudal e da dominação eclesial: “O principal objetivo da cidade medieval era o de garantir a liberdade, a autoadministração e a paz, e sua principal base, o trabalho” (KROPOTKIN, 2009, p. 142). Não apenas o espaço físico e o desenho urbano [3], como as instituições sociais criadas nestas cidades foram para ele resultados desta luta. A tese das cidades medievais como berço da democracia ocidental só veio a ser retomada – com as nuances hermenêuticas e idiossincráticas peculiares a cada autor – no início do século XX por Max Weber (2002, pp. 955-975) e Henri Pirenne (1927, 1969).

O final deste período de lutas libertárias teria sido determinado por um conjunto de fatores, também em influência recíproca, verificados por Kropotkin entre os séculos XIV e XVI. A partir da iniciativa de senhores feudais que, tendo acumulado mais riquezas que seus circunvizinhos, escolhiam como sede de seu domínio “um grupo de aldeias bem situadas e ainda sem a experiência da vida municipal livre” (KROPOTKIN, 2009, p. 168), surgiram as cidades nobres fortificadas, imitações tortas das cidades livres, às quais estes senhores feudais atraíam companheiros de armas (por distribuição de aldeias), mercadores (por privilégios ao comércio), juristas versados no direito romano e bispos. Estas cidades nobres, em constante conflito com as cidades livres, foram o embrião do Estado absolutista (idem, p. 169).

Soma-se a este fator a mudança da tática política da Igreja: ao invés da recalcitrante tentativa de criação de uma teocracia unificada, “bispos mais inteligentes e ambiciosos passaram a apoiar quem consideravam capazes de reconstituir o poder dos reis de Israel ou dos imperadores de Constantinopla” (idem, p. 169), espraiando-se assim entre os nobres como conselheiros, jurisconsultos e diplomatas.

Os camponeses ainda sob o jugo feudal, ao verem a incapacidade dos habitantes dos burgos para pôr fim às guerras entre cavaleiros, afiançavam sua liberdade agora àqueles nobres mais poderosos (idem, p. 169), cujas famílias – a família Kropotkin inclusive – no futuro seriam as mais poderosas dinastias absolutistas da Europa.

Havia também um fator interno, as “divisões que haviam surgido dentro das próprias cidades” (idem, p. 169): as famílias dos fundadores da cidade disputavam privilégios de comércio com as famílias de habitantes mais recentes; os citadinos, ou burgueses, não faziam questão de proteger as aldeias dos arredores, formadas por camponeses, a quem deixavam frequentemente sob o jugo de senhores feudais; mas para Kropotkin “o erro maior e mais fatal da maioria das cidades foi o de basear sua riqueza no comércio e na indústria, em detrimento da agricultura” (idem, p. 169), o que além de dificultar a integração com as aldeias circunvizinhas, fomentou o colonialismo e, como consequência, guerras coloniais consumidoras das riquezas citadinas [4].

Florença no Renascimento

Ao contrário do que se possa imaginar à primeira leitura, o retorno de Kropotkin às cidades medievais não era uma utopia regressiva, uma idealização do passado proposta como horizonte político, mas sim uma crítica historicista às utopias socialistas do século XIX: “não só as aspirações de nossos radicais modernos já eram realidade na Idade Média, assim como muito do que se chama hoje de utopia era comum naquela época” (KROPOTKIN, 2009, p. 157; HORNER, 1989, p. 142).

1.3 As cidades como palco privilegiado da luta de classes na Europa

A tese geográfico-política kropotkiniana, entretanto, não se encerra aí. As cidades europeias teriam sido palco desde o século XIV de uma luta encarniçada do “povo” contra os burgueses, senhores feudais, aristocratas e reis absolutistas pela defesa de suas liberdades e pelo uso comum da terra. Toda a história das revoluções europeias, para Kropotkin, explica-se por esta chave. A análise da Revolução Francesa feita por Kropotkin é exemplar neste sentido.

Para Kropotkin, a Revolução Francesa foi impulsionada não apenas pelos panfletos iluministas, mas pela decidida ação popular de libertação de obrigações feudais e de retomada de terras das mãos de senhores laicos e religiosos. Desabrochavam no seio das massas ideias “a respeito da descentralização política, do papel preponderante que o povo queria dar às suas municipalidades, às suas seções nas grandes cidades, e às assembleias de aldeia” (KROPOTKIN, 1955, vol. 1, p. 23). Ou ainda: “a revolta dos camponeses para a abolição dos direitos feudais e a reconquista das terras comunais tiradas às comunas aldeãs desde o século XVII pelos senhores laicos e eclesiásticos – eis a própria essência, a base da grande Revolução” (idem, p. 114). Ou então:

Em França, o movimento não foi somente um levante para conquistar a liberdade religiosa ou apenas a liberdade comercial e industrial para o indivíduo, ou ainda para constituir a autonomia municipal nas mãos de alguns burgueses. Foi, sobretudo, uma revolta dos camponeses: um movimento do povo para reentrar na posse da terra e a libertar das obrigações feudais que sobre ela pesavam; e além de haver nisso um poderoso elemento individualista – o desejo de possuir a terra individualmente – havia também o elemento comunista: o direito de toda nação à terra – direito que veremos altamente proclamado pelos pobres em 1793. (idem, pp. 116-117)

Tomada da Bastilha

A luta de classes eclodiu também nas cidades. Na França do século XVIII, a autoridade real demorara duzentos anos para construir uma estrutura institucional capaz de submeter a seu jugo as cidades anteriormente livres; tais instituições – conselhos municipais vitalícios, direitos feudais, síndicos, almotacéis, direitos eclesiais de intervenção nas instituições municipais, isenções tributárias a membros da Igreja Católica e aristocratas etc. – encontravam-se em franca decrepitude às vésperas da Revolução Francesa (idem, pp. 118-120). Assim que a notícia da queda da Bastilha circulou pela província, o povo sublevou-se, apoderando-se dos Paços dos Conselhos e elegendo “uma nova municipalidade”; esta foi a base da revolução comunalista posteriormente sancionada pela Assembleia Constituinte em 1789 e 1790 (idem, p. 121). O “povo”, territorializado a partir dos distritos (arrondissements) de Paris e de outras cidades grandes, “fez a revolução nas localidades, estabelece revolucionariamente uma nova administração municipal, distingue entre os impostos que aceita e os que recusa pagar, e dita o modo de repartição igualitária daqueles que pagaria ao Estado ou à Comuna” (idem, p. 130).

Daí por diante, estabelecido o pano de fundo, a densa análise de Kropotkin, baseada em rigorosa pesquisa documental e arquivística [5], segue a mesma tônica. A Revolução Francesa é analisada em termos territoriais, e especificamente em sua expressão urbana. A luta dos habitantes das cidades contra as instituições feudais ressurgia, desta vez inaugurando na prática ocomunismo.

1.4 As cidades nos processos revolucionários

Mas é na passagem da sociedade capitalista para a sociedade anarquista – ou seja, durante a revolução – que Kropotkin apresenta vislumbres interessantes. Para ele, “a revolução social deve ser feita pela libertação das comunas, e (…) apenas as comunas, absolutamente independentes, libertas da tutela do Estado (…) poderão nos dar o meio necessário à revolução e o meio de realizá-la (…)” (KROPOTKIN, 2005a, p. 91). Pontuou, na esteira de suas análises histórico-geográficas posteriores ao período medieval, que a revolução das comunas não se tratava de simples retorno à comuna medieval, mas sim da construção de uma nova comuna que, devido à ciência e à tecnologia de então, seria “um fato absolutamente novo, situado em novas condições e que, sem dúvida, traria consequências totalmente diferentes” (idem, p. 91), e que “deve destruir o Estado e substituí-lo pela federação” (idem, p. 93). Neste processo, Kropotkin mostra atenção para as relações “cidade-província”, para que as cidades não fiquem desabastecidas (KROPOTKIN, 2011, p. 53). Tal como se verá adiante e com mais detalhe sobre Élisée Reclus, Kropotkin já intuía entre 1880 e 1882 aquilo que só na década de 1930 veio a ser chamado de rede urbana, dando-lhe o nome de federação de comunas e projetando-a no futuro a partir de tendências do presente:

Graças à infinita variedade das necessidades da indústria e do comércio, todos os lugares habitados já possuem vários centros aos quais se ligam, e, à medida que suas necessidades desenvolverem-se, ligar-se-ão a novos centros, que poderão prover às novas necessidades. (…) A comuna sentirá, portanto, necessidade de estabelecer outros contratos de aliança, entrar para outra federação. Membro de um grupo para aquisição de gêneros alimentícios, a comuna deverá tornar-se membro de um segundo grupo para obter outros objetos que lhe serão necessários (…). Tomai um atlas econômico de qualquer país e vereis que não existem fronteiras econômicas; as zonas de produção e de troca de diversos produtos penetram-se mutuamente, confundem-se, superpõem-se. Do mesmo modo, as federações de comunas, se seguissem seu livre desenvolvimento, viriam rápido confundir-se, cruzar-se, superpor-se e formar, assim, uma rede de maneira diversamente compacta, “una e indivisível”, daqueles agrupamentos estatistas, que são apenas justapostos como as varas em feixe em torno da machadinha do lictor. (…) [A] íntima ligação já existe entre as diversas localidades, graças aos centros de gravitação industrial e comercial, graças a um grande número destes centros, graças às incessantes relações (KROPOTKIN, 2005a, pp. 97-98).

A este nível territorial da federação de comunas soma-se outro, ligado aos interesses dos indivíduos, apto a formar “uma comuna de interesses cujos membros estão disseminados em mil cidades e vilarejos” (KROPOTKIN, 2005a, p. 99); trata-se das associações, cooperativas e todas as outras formas de sociedades livremente constituídas para a atividade humana – ou seja, aquilo que, usando um vocabulário contemporâneo, se chamaria sem equívoco de sociedade civil – verdadeira “tendência, o traço distintivo da segunda metade do século XIX” (idem, ibidem) que ocupava “a cada dia novos campos de ação, até aqueles que, outrora, eram considerados como uma atribuição especial do Estado” (idem, ibidem). A convergência entre ascomunas territoriais e as comunas de interesse formava o solo onde a propaganda feita pelas minorias revolucionárias, ao romper com preconceitos políticos arraigados no seio do povo, germinaria em ações revolucionárias cujos fins últimos são a abolição do Estado, dos privilégios e da exploração (KROPOTKIN, 2005 e, 2005f, 2005g).

Casas proletárias na Londres do século XIX

E a questão urbana, mais especificamente a questão da moradia, é um dos pontos, para Kropotkin, por onde pode-se começar a ação revolucionária. Plenamente consciente dos mecanismos de formação da renda fundiária urbana, Kropotkin deslegitimou-a, pois não somente as vantagens locacionais capazes de valorizar imóveis seriam resultado pura e simplesmente de um trabalho coletivo a que o proprietário do imóvel não deu causa e do qual se beneficia, como o próprio imóvel seria resultado de trabalho alheio indevidamente apropriado:

Finalmente – e é aqui sobretudo que a enormidade salta aos olhos – a casa deve o seu valor atual ao rendimento que o proprietário puder tirar dela. Ora, esse rendimento será devido à circunstância de a propriedade estar edificada em uma cidade calçada, iluminada a gás, em comunicação regular com outras cidades e reunindo no deu seio estabelecimentos de indústria, de comércio, de ciência, de arte; ao fato de esta cidade ser ornada de pontes, de cais, de monumentos, de arquitetura, oferecendo aos habitantes muitos confortos e muitos agrados desconhecidos nas aldeias; ao fato de que 20, 30 gerações têm trabalhado para a tornar habitável, saneá-la e embelezá-la.

O valor de uma casa em certos bairros de Paris é 1.000.000, não que nas suas paredes haja 1.000.000 em trabalho, mas porque está em Paris; porque desde séculos, os operários, os artistas, os pensadores, os sábios e os literatos têm contribuído para fazer Paris o que ela é hoje; um centro industrial, comercial, político, artístico e científico; porque tem um passado; porque as suas ruas são conhecidas graças à literatura, na província como no estrangeiro; porque é o produto de um trabalho de 18 séculos, de 50 gerações, de toda a nação francesa.

Quem, pois, tem o direito de se apropriar da mais ínfima parcela desse terreno ou da última das construções, sem cometer uma clamorosa injustiça?

Quem tem o direito de vender, seja a quem for, a menor parcela do patrimônio comum? (KROPOTKIN, 2011, pp 59-60)

Casas proletárias em Paris, 1912

A solução deste problema, para Kropotkin, é o alojamento gratuito, como proposta pós-revolucionária, e a expropriação das casas, como ação revolucionária imediata. Na verdade, Kropotkin não fez nada além de sistematizar e discutir a prática, já existente no século XIX:

Repugna-nos traçar nos seus menores detalhes planos de expropriação. […] Assim, esboçando o método segundo o qual a expropriação e a repartição das riquezas expropriadas “poderiam” fazer-se sem a intervenção do governo, não queremos senão responder aos que declaram a coisa impossível. […] O que somente nos importa é demonstrar que a expropriação “pode” fazer-se pela iniciativa popular e “não pode” fazer-se de outro modo.

É de prever que, desde os primeiros atos de expropriação, surgirão no bairro, na rua ou no agregado de casas, grupos de cidadãos de boa vontade, que virão oferecer os seus serviços para se informarem do número de apartamentos vazios, dos apartamentos atulhados de famílias numerosas, dos alojamentos insalubres e das casas que, demasiado espaçosas para os seus ocupantes, poderiam ser ocupadas por aqueles que não têm ar em seus casebres. Em alguns dias, esses voluntários espalharão pela rua, pelo bairro, listas completas de todos os apartamentos, salubres e insalubres, estreitos e largos, alojamentos infectos e moradias suntuosas.

Comunicarão livremente entre si as suas listas e em poucos dias terão estatísticas completas. […]

Então, sem esperar coisa alguma de ninguém, esses cidadãos irão provavelmente encontrar os seus camaradas que habitam espeluncas e lhes dirão muito simplesmente: “Desta vez, camaradas, é a Revolução a valer. Venham esta tarde a tal lugar. Todo o bairro lá estará, repartiremos os apartamentos de cinco peças que estão disponíveis. E logo que estiverdes “em casa”, será negócio feito. O povo armado responderá a quem quiser desalojar-nos. (KROPOTKIN, 2011, pp. 61-62)

De um só golpe, Kropotkin antecipou em quase cem anos – o texto é de 1892 – conceitos criados no contexto do movimento de reforma urbana, como o défice habitacional quantitativo e qualitativo, a retenção especulativa de imóveis, a discussão sobre a destinação dos imóveis vazios, a ocupação de imóveis cujos proprietários não lhes dão função social e o método de ação dos movimentos de luta por moradia. Não estamos tão longe dele quanto se poderia supor. Kropotkin influenciou diretamente, por exemplo, a campanha de ocupação de bases militares para moradia na Inglaterra, em 1946, e as ideias de John Turner sobre a autoconstrução em Lima (Peru) (WARD, 1996, pp. 67-73).

1.5 Um balanço

Como se vê, o pensamento político de Kropotkin não lida com conceitos e categorias abstratas ou idealizadas; enraíza-os num meio geográfico, territorializa-os. A relação homem-meio, sociedade-natureza, é vista por Kropotkin como um todo unitário, pleno de relações biunívocas e complexas.

O espaço, em Kropotkin, é produto também do desenvolvimento histórico, e a História se desenvolve no espaço. O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade.

Por isso, a questão urbana, em Kropotkin, pode ser vista como o conjunto dos fatores que obstaculizam o pleno desenvolvimento dos indivíduos e sua livre organização nas cidades, fatores estes que variam em cada momento histórico; o conhecimento destes fatores só pode se dar através da pesquisa histórica da produção e do uso do espaço de cada cidade e das lutas em torno desta produção e deste uso, na tentativa de produzir sínteses orientadoras da ação política.

Leia aqui a segunda parte deste artigo.

Notas

[1] Não por acaso Patrick Geddes, um dos fundadores do planejamento regional e urbano modernos, foi amigo e discípulo dos dois (DUNBAR, 1989, pp. 89-90; HALL, 2007, pp. 161-170).

[2] Lewis Mumford considerava Piotr Kropotkin “inteligência sociológica e econômica de primeira ordem, baseada na competência especializada […] como geógrafo, e na sua generosa paixão social como líder do anarquismo comunista” (MUMFORD, 1998, p. 658). Fez comentários entusiásticos a dois livros de Piotr Kropotkin em sua obra A cidade na história: sobre Campos, fábricas e oficinas, disse ser “recomendado especialmente a todos os que se interessam em planejar para áreas não-desenvolvidas” (idem, ibidem); sobre O apoio mútuo, disse ser “obra pioneira sobre a simbiose na sociologia; uma das primeiras tentativas para reformar a unilateral ênfase darwiniana nos aspectos mais predatórios da vida. Note-se o capítulo sobre Ajuda Mútua na Cidade Medieval” (idem, ibidem).

[3] “Geralmente a cidade era dividida em quatro partes, ou em cinco a sete setores que se irradiavam de um centro, e cada um deles correspondia mais ou menos a um certo comércio ou ofício que nele prevalecia, mas continha habitantes de diferentes posições sociais e ocupações – nobres, comerciantes, artesãos ou mesmo semisservos. Cada setor ou parte constituía um aglomerado bem independente. […] Portanto, a cidade medieval é uma dupla federação: de todos os domicílios unidos em pequenas associações territoriais – a rua, a paróquia, o setor – e de indivíduos ligados por juramento em corporações de ofício. A primeira foi resultante da origem na comunidade aldeã e a segunda, uma ramificação subsequente gerada por novas condições” (KROPOTKIN, 2009, p. 142).

[4] “Colônias foram fundadas pelos italianos no sudeste, pelas cidades alemãs no leste, pelas eslavas no extremo nordeste. Passaram a existir exércitos mercenários para as guerras coloniais, e logo também para a defesa local” (KROPOTKIN, 2009, p. 170).

[5] Num artigo escrito entre 1880 e 1882, Kropotkin explicitou o método que resultou na obra A grande revolução: “Quanto às insurreições, que precederam a revolução e sucederam-se durante o primeiro ano, o pouco que posso dizer disso, neste espaço restrito, é o resultado de um trabalho de conjunto, que realizei em 1877 e 1878, no Museu Britânico e na Biblioteca Nacional [da França], trabalho que ainda não terminei, e no qual me propunha expor as origens da revolução e de outros movimentos na Europa. Aqueles que quiserem lançar-se neste estudo deverão consultar (além das obras conhecidas […]) as memórias e as histórias locais […]. Entretanto, não devem contar com o fato de poder reconstituir, só com estes documentos, uma história completa das insurreições, que precederam a revolução. Para fazê-lo, só há um meio: dirigir-se aos arquivos, onde, apesar da destruição dos documentos feudais, ordenada pela Convenção, acabar-se-á, com certeza, por encontrar fatos muito importantes” (KROPOTKIN, 2005f, nota 27).

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A Sociedade Contra O Estado, por Pierre Clastres

"Methods of sieging and attacking"/"Métodos de cerco e ataque" Theodore de Bry, Séc. XVI

“Methods of sieging and attacking”/”Métodos de cerco e ataque” Theodore de Bry, Séc. XVI

POSTADO EM Arte e Anarquia

As sociedades primitivas são sociedades sem Estado: esse julgamento de fato, em si mesmo correto, na verdade dissimula uma opinião, um juízo de valor, que prejudica então a possibilidade de constituir uma antropologia política como ciência rigorosa. O fato que se enuncia é que as sociedades primitivas estão privadas de alguma coisa – o Estado – que lhes é, tal como a qualquer outra sociedade – a nossa, por exemplo – necessária. Essas sociedades são, portanto, incompletas. Não são exatamente verdadeiras sociedades – não são policiadas -, e subsistem na experiência talvez dolorosa de uma falta – falta do Estado – que elas tentariam, sempre em vão, suprir. De um modo mais ou menos confuso, é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade sem o Estado, o Estado é o destino de toda sociedade. Descobre-se nessa abordagem uma fixação etnocentrista tanto mais sólida quanto é ela, o mais das vezes, inconsciente. A referência imediata, espontânea ‘é, se não aquilo que melhor se conhece, pelo menos o mais familiar. Cada um de nós traz efetivamente em si, interiorizada como a fé do crente, essa certeza de que a sociedade existe para o Estado. Como conceber então a própria existência das sociedades primitivas, a não ser como espécies à margem da história universal, sobrevivências anacrônicas de uma fase distante e, em todos os lugares há muito ultrapassada? Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, a convicção complementar de que a história tem um sentido único, de que toda sociedade está condenada a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria, conduzem à civilização “Todos os povos policiados foram selvagens”, escreve Raynal. Mas o registro de uma evolução evidente de forma alguma fundamenta uma doutrina que, relacionando arbitrariamente o estado de civilização com a civilização do Estado, designa este último como termo necessário atribuído a toda sociedade. Pode-se então indagar o que manteve os últimos povos ainda selvagens.

Por trás das formulações modernas, o velho evolucionismo permanece, na verdade, intacto. Mais delicado para se dissimular na linguagem da antropologia, e não mais na da filosofia, ele aflora contudo ao nível das categorias que pretendem ser científicas. Já se percebeu que, quase sempre, as sociedades arcaicas são determinadas de maneira negativa, sob o critério da falta: sociedades sem Estado, sociedades sem escrita, sociedades sem história. Mostra-se como sendo da mesma ordem a determinação dessas Sociedades no plano econômico: sociedades de economia de subsistência. Se, com isso, quisermos significar que as sociedades primitivas desconhecem a economia de mercado onde são escoados os excedentes da produção, nada afirmamos de modo estrito, e contentamo-nos em destacar mais uma falta, sempre com referência ao nosso próprio mundo: essas sociedades que não possuem Estado, escrita, história, também não dispõem de mercado. Todavia, pode objetar o bom senso, para que serve um mercado, se não há excedentes? Ora a idéia de economia de subsistência contém em si mesma a afirmação de que, se as sociedades primitivas não produzem excedentes, é porque são incapazes de fazê-lo, inteiramente ocupadas que estariam em produzir o mínimo necessário à sobrevivência, à subsistência. Imagem antiga, sempre eficaz, da miséria dos selvagens. E, a fim de explicar essa incapacidade das sociedades primitivas de sair da estagnação de viver o dia-a-dia, dessa alienação permanente na busca de alimentos, invocam-se o subequipamento técnico, a inferioridade tecnológica.

O que ocorre na realidade? Se entendermos por técnica o conjunto dos processos de que se munem os homens, não para assegurarem o domínio absoluto da natureza (isso só vale para o nosso mundo em seu insano projeto cartesiano cujas conseqüências ecológicas mal começamos a medir), mas para garantir um domínio do meio natural adaptado e relativo às suas necessidades, então não mais podemos falar em inferioridade técnica das sociedades primitivas: elas demonstram uma capacidade de satisfazer suas necessidades pelo menos igual àquela de que se orgulha a sociedade industrial e técnica. Isso equivale a dizer que todo grupo humano chega a exercer, pela força, o mínimo necessário de dominação sobre o meio que ocupa. Até agora não se tem conhecimento de nenhuma sociedade que se haja estabelecido, salvo por meio de coação e violência exterior, sobre um espaço natural impossível de dominar: ou ela desaparece ou muda de território. O que surpreende nos esquimós e nos australianos é justamente a riqueza, a imaginação e o refinamento da atividade técnica, o poder de invenção e de eficácia demonstrada pelas ferramentas utilizadas por esses povos. Basta fazer uma visita aos museus etnográficos: o rigor de fabricação dos instrumentos da vida cotidiana faz praticamente de cada modesto utensílio uma obra de arte. Não existe portanto hierarquia no campo da técnica, nem tecnologia superior ou inferior; só se pode medir um equipamento tecnológico pela sua capacidade de satisfazer, num determinado meio, as necessidades da sociedade. E, sob esse ponto de vista, não parece de forma alguma que as sociedades primitivas se mostraram incapazes de se proporcionar os meios de realizar esse fim. Essa potência de inovação técnica testemunhada pelas sociedades primitivas desdobra-se sem dúvida no tempo. Nada é fornecido de uma só vez, há sempre o paciente trabalho de observação e de pesquisa, a longa sucessão de ensaios, erros, fracassos e êxitos. Os historiadores da pré-história nos dão notícia de quantos milênios foram necessários para que os homens do paleolítico substituíssem os grosseiros bifaces pelas admiráveis lâminas do solutreano. Segundo outro ponto de vista, observa-se que a descoberta da agricultura e a domesticação das plantas são quase contemporâneas na América e no velho Mundo. E impõe-se constatar que os ameríndios em nada se mostram inferiores, muito pelo contrário, no que se refere à arte de selecionar e diferençar, múltiplas variedades de plantas foram úteis.

Detenhamo-nos por um momento no funesto interesse que levou os índios a quererem instrumentos metálicos. Com efeito, ele está diretamente relacionado com a questão da economia nas sociedades primitivas, mas não da maneira que se poderia acreditar. Essas sociedades estariam, segundo se afirma, condenadas à economia de subsistência em razão da inferioridade tecnológica. Como acabamos de ver, esse argumento não tem fundamento em direito nem em fato. Nem em direito, porque não existe escala abstrata pela qual se possam medir as “intensidades” tecnológicas: o equipamento técnico de uma sociedade não é diretamente comparável àquele de uma sociedade diferente, e de nada serve opor o fuzil ao arco. Nem em fato, uma vez que a arqueologia, a etnografia, a botânica etc. nos demonstram precisamente a potência de rentabilidade e de eficácia das tecnologias selvagens. Por conseguinte, se as sociedades primitivas repousam numa economia de subsistência, não é por lhes faltar uma habilidade técnica. A verdadeira pergunta que se deve formular é a seguinte: a economia dessas sociedades é realmente uma economia de subsistência? Precisando o sentido das expressões: se por economia de subsistência não nos contentamos em entender economia sem mercado e sem excedentes – o que seria um simples truísmo, o puro registro da diferença – então com efeito se afirma que esse tipo de economia permite à sociedade que ele funda tão somente subsistir; afirma-se que essa sociedade mobiliza permanentemente a totalidade de suas forças produtivas para fornecer a seus membros o mínimo necessário à subsistência.

Existe aí um preconceito tenaz, curiosamente co-extensivo à idéia contraditória e não menos corrente de que o selvagem é preguiçoso. Se em nossa linguagem popular diz-se “trabalhar como um negro”, na América do Sul, por outro lado, diz-se “vagabundo como um índio”. Então, das duas uma: ou o homem das sociedades primitivas, americanas e outras, vive em economia de subsistência e passa quase todo o seu tempo à procura de alimento, ou não vive em economia de subsistência e pode portanto se proporcionar lazeres prolongados fumando em sua rede. Isso chocou claramente os primeiros observadores europeus dos índios do Brasil. Grande era a sua reprovação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam se empetecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regarem com suor as suas áreas cultivadas. Tratava-se, portanto, de povos que ignoravam deliberadamente que é preciso ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Isso era demais, e não durou muito: rapidamente se puseram os índios para trabalhar, e eles começaram a morrer. Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidental desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é necessário trabalhar. Os índios, efetivamente, só dedicavam pouco tempo àquilo a que damos o nome de trabalho. E apesar disso não morriam de fome. As crônicas da época são unânimes em descrever a bela aparência dos adultos, a boa saúde das numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos alimentares. Por conseguinte, a economia de subsistência das tribos indígenas não implicava de forma alguma a angustiosa busca, em tempo integral, de alimento. Uma economia de subsistência é, pois, compatível com uma considerável limitação do tempo dedicado às atividades produtivas. Era o que se verificava com as tribos sul americanas de agricultores, como os Tupi-Guarani, cuja ociosidade irritava igualmente os franceses e os portugueses. A vida econômica desses índios baseava-se sobretudo na agricultura, e, acessoriamente, na caça, na pesca e na coleta. Uma mesma área de cultivo era utilizada por um período ininterrupto de quatro a seis anos. Em seguida, era abandonada, por esgotar-se o solo ou, mais provavelmente, em virtude da invasão do espaço destacado por uma vegetação parasitária de difícil eliminação. O grosso do trabalho, efetuado pelos homens, consistia em arrotear, por meio de um machado de pedra e com auxílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa, realizada no fim da estação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo o resto do processo agrícola – plantar, mondar, colher -, em conformidade com a divisão sexual do trabalho, era executado pelas mulheres. Donde a seguinte conclusão feliz: os homens, isto é, a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em cada quatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradas não como trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu gosto apaixonado pela guerra.

Ora, esses dados maciços, qualitativos, impressionistas, encontram uma brilhante confirmação em pesquisas recentes – algumas em curso – de caráter rigorosamente demonstrativo, já que medem o tempo de trabalho nas sociedades com economia de subsistência. Quer se trate de caçadores-nômades do deserto do Kalahari ou de agricultores sedentários ameríndios, os números obtidos revelam uma divisão média do tempo diário de trabalho inferior a quatro horas por dia. Jacques Lizot, que vive há muitos anos entre os índios Yanomami da Amazônia venezuelana, estabeleceu, cronometricamente, que a duração média do tempo, que os adultos dedicam todos os dias ao trabalho, incluídas todas as atividades, mal ultrapassa três horas. Não chegamos, pessoalmente, a realizar cálculos desse gênero entre os Guayaki, caçadores nômades da floresta paraguaia. Mas pode-se assegurar que os índios – homens e mulheres – passavam pelo menos a metade do dia em quase completa ociosidade, uma vez que a caça e a coleta se efetuavam, e não todos os dias, entre, mais ou menos, 6 e 11 horas da manhã. É provável que estudos desse gênero, levados a efeito entre as últimas populações primitivas, resultassem – consideradas as diferenças ecológicas – em resultados muito parecidos.

Estamos portanto bem longe da miserabilidade que envolve a idéia de economia de subsistência. Não só o homem das sociedades primitivas não está de forma alguma sujeito a essa existência animal que seja a busca permanente para assegurar a existência, como é ao preço de um tempo de atividade notavelmente curto que ele alcança – e até ultrapassa -. esse resultado. Isso significa que as sociedades primitivas dispõem, se assim o desejarem, de todo o tempo necessário para aumentar a produção dos bens materiais. O bom senso questiona: por que razão os homens dessas sociedades quereriam trabalhar e produzir mais, quando três ou quatro horas diárias de atividade são suficientes para garantir as necessidades do grupo? De que lhes serviria isso? Qual seria a utilidade dos excedentes assim acumulados? Qual seria o destino desses excedentes? É sempre pela força que os homens trabalham além das suas necessidades. E exatamente essa força está ausente do mundo primitivo: a ausência dessa força externa define inclusive a natureza das sociedades primitivas. Podemos admitir, a partir de agora, para qualificar a organização econômica dessas sociedades, a expressão economia de subsistência, desde que não a entendamos no sentido da necessidade de um defeito, de uma incapacidade inerentes a esse tipo de sociedade e a sua tecnologia, mas, ao contrário, no sentido da recusa de um excesso inútil da vontade de restringir a atividade produtiva à satisfação das necessidades. E nada mais. Tanto mais que, para examinar as coisas mais de perto, há efetivamente produção de excedentes nas sociedades primitivas: a quantidade de plantas cultivadas produzidas (mandioca, milho, fumo, algodão etc.) sempre ultrapassa o que é necessário ao consumo do grupo, estando essa produção suplementar, evidentemente incluída no tempo normal de trabalho. Esse excesso, obtido sem sobre-trabalho, é consumido, consumado, com finalidades propriamente políticas, por ocasião de festas, convites, visita de estrangeiros etc. A vantagem de um machado de metal sobre um machado de pedra é evidente demais para que nela nos detenhamos: podemos, no mesmo tempo, realizar com o primeiro talvez dez vezes mais trabalho que com o segundo; ou então executar o mesmo trabalho num tempo dez vezes menor. E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais curto. Mas foi exatamente o contrário que se verificou, pois, com os machados metálicos, irromperam no mundo primitivo dos índios a violência, a força, o poder, impostos aos selvagens pelos civilizados recém-chegados.

As sociedades primitivas são, como escreve Lizot ao propósito dos Yanomami, sociedades de recusa do trabalho: “O desprezo dos Yanomami pelo trabalho e o seu desinteresse por um progresso tecnológico autônomo é certo”1 Primeiras sociedades do lazer, primeiras sociedades da abundância, na justa e feliz expressão de Marshall Sahlins. Se o projeto de constituir uma antropologia econômica das sociedades primitivas como disciplina autônoma tem um sentido, este não pode advir da simples consideração da vida econômica dessas sociedades: permanecemos numa etnologia da descrição, na descrição de uma dimensão não-autônoma da vida social primitiva. É muito antes, quando essa dimensão do “fato social total” se constitui como esfera autônoma, que a idéia de uma antropologia econômica parece fundamentada: quando desaparece a recusa ao trabalho, quando o sentido do lazer é substituído pelo gosto da acumulação, quando, em síntese, surge no corpo social essa força externa que evocamos antes, essa força sem a qual os selvagens não renunciariam ao lazer e que destrói a sociedade como sociedade primitiva; essa força é a potência de sujeitar, é a capacidade de coerção, é o poder político. Mas, em conseqüência disso, a antropologia deixa desde então de ser econômica, e perde de alguma forma o seu objeto no próprio instante em que crê agarrá-lo, e a economia torna-se política. Para o homem das sociedades primitivas, a atividade de produção é exatamente medida, delimitada pelas necessidades que têm de ser satisfeitas, estando implícito que se trata essencialmente das necessidades energéticas: a produção é projetada sobre a reconstituição do estoque de energia gasto. Em outros termos, é a vida como natureza que – com exceção dos bens consumidos socialmente por ocasião das festas – fundamenta e determina a quantidade de tempo dedicado a reproduzi-la. Isso equivale a dizer que, uma vez assegurada a satisfação global das necessidades energéticas, nada poderia estimular a sociedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, a alienar o seu tempo num trabalho sem finalidade, enquanto esse tempo é disponível para a ociosidade, o jogo, a guerra ou a festa. Quais as condições em que se podem transformar essa relação entre o homem primitivo e a atividade de produção? Sob que condições essa atividade se atribui uma finalidade diferente da satisfação das necessidades energéticas? Temos aí levantada a questão da origem do trabalho como trabalho alienado.

Na sociedade primitiva, sociedade essencialmente igualitária, os homens são senhores de sua atividade, senhores da circulação dos produtos dessa atividade: eles só agem para si próprios, mesmo se a lei de troca dos bens só mediatiza a relação direta do homem com o seu produto. Tudo se desarruma, por conseguinte, quando a atividade de produção se afasta do seu objetivo inicial quando em vez de produzir apenas para si mesmo, o homem primitivo produz também para os outros, sem troca e sem reciprocidade. Só então é que podemos falar em trabalho: quando a regra igualitária de troca deixa de constituir o “código civil” da sociedade, quando a atividade de produção visa a satisfazer as necessidades dos outros, quando a regra de troca é substituída pelo terror da dívida. Na verdade, é exatamente aí que se inscreve a diferença entre o selvagem amazônico e o índio do império inca. O primeiro produz, em suma, para viver, enquanto o segundo trabalha, de mais a mais, para fazer com que outros vivam – os que não trabalham, os senhores que lhe dizem: cumpre que tu pagues o que nos deves; impõe-se que tu eternamente saldes a dívida que conosco contraíste.

Quando, na sociedade primitiva, o econômico se deixa identificar como campo autônomo e definido, quando a atividade de produção se transforma em trabalho alienado, contabilizado e imposto por aqueles que vão tirar proveito dos frutos desse trabalho, é sinal de que a sociedade não é mais primitiva, tornou-se uma sociedade dividida em dominantes e dominados, em senhores e súditos, e de que parou de exorcizar aquilo que está destinado a matá-la: o poder e o respeito ao poder. A principal divisão da sociedade, aquela que serve de base a todas as outras, inclusive sem dúvida a divisão do trabalho, é a nova disposição vertical entre a base e o cume, é o grande corte político entre detentores da força, seja ela guerreira ou religiosa, e sujeitados a essa força. A relação política do poder precede e fundamenta a relação econômica de exploração. Antes de ser econômica, a alienação é política, o poder antecede o trabalho, o econômico é uma derivação do político, a emergência do Estado determina o aparecimento das classes.

Inacabamento, incompletude, falta: não é absolutamente desse lado que se revela a natureza das sociedades primitivas. Ela impõe-se bem mais como positividade, como domínio do meio ambiente natural e do projeto social, como vontade livre de não deixar escapar para fora de seu ser nada que possa alterá-lo, corrompê-lo e dissolvê-lo. É a isso que nos devemos prender com firmeza: as sociedades primitivas não são os embriões retardatários das sociedades ulteriores, dos corpos sociais de decolagem “normal” interrompida por alguma estranha doença; elas não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que conduz diretamente ao termo inscrito de antemão, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social. (Se a história é essa lógica, como podem ainda existir sociedades primitivas?) Tudo isso se traduz, no plano da vida econômica, pela recusa das sociedades primitivas em se deixarem tragar pelo trabalho e pela produção, através da decisão de limitar os estoques às necessidades sociopolíticas, da impossibilidade intrínseca da concorrência – de que serviria, numa sociedade primitiva, ser rico entre os pobres? – em suma, pela proibição, não formulada ainda que dita, da desigualdade.

O que é que determina que numa sociedade primitiva a economia não seja política? Isso se dá, como se vê, devido ao fato da economia nela não funcionar de maneira autônoma. Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, as sociedades primitivas são sociedades sem economia por recusarem a economia. Mas deve-se então classificar também como ausência a existência do político nessas sociedades? É preciso admitir que, por se tratar de sociedades “sem lei e sem rei ” o campo político lhes falta? E não tornaríamos dessa forma a cair na rotina clássica de um etnocentrismo para o qual a falta assinala em todos os níveis as diferentes sociedades?

Abordemos pois a questão do político nas sociedades primitivas. Não se trata simplesmente de um problema “interessante”, de um tema reservado apenas à reflexão dos especialistas, pois a etnologia ganha as dimensões de uma teoria geral (a construir) da sociedade. A extrema diversidade dos tipos de organização social, a abundância, no tempo e no espaço, de sociedades dessemelhantes, não impedem entretanto a possibilidade de uma ordem na descontinuidade, a possibilidade de uma redução dessa multiplicidade infinita de diferenças. Redução maciça, uma vez que a história só nos oferece, de fato, dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao outro, duas macro-classes, cada uma das quais reúne em si sociedades que, além de suas diferenças, têm em comum alguma coisa de fundamental. Existem por um lado as sociedades primitivas ou sociedades sem Estado; e, por outro lado, as sociedades com Estado. É a presença ou a ausência da formação estatal (suscetível de assumir múltiplas formas) que fornece a toda sociedade o seu elo lógico, que traça uma linha de irreversível descontinuidade entre as sociedades. O aparecimento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre selvagens e civilizados, e traçou uma indelével linha de separação além da qual tudo mudou, pois o Tempo se torna História. Tem-se freqüentemente descoberto – e com razão – no movimento da história mundial duas acelerações decisivas do seu ritmo. O motor da primeira foi o que se denomina a revolução neolítica (domesticação dos animais, agricultura, descoberta das artes da tecelagem e da cerâmica, sedentarização conseqüente dos grupos humanos etc.). Estamos ainda vivendo, e cada vez mais (se nos é lícita a expressão) no prolongamento da segunda aceleração, a revolução industrial do século XIX.

Evidentemente não há dúvida de que a linha de separação neolítica alterou de modo considerável as condições de existência material dos povos outrora paleolíticos. Mas essa transformação teria sido tão radical a ponto de afetar em sua mais extrema profundidade a essência das sociedades? Pode-se falar em um funcionamento diferente dos sistemas sociais, conforme sejam eles pré-neolíticos ou pós-neolíticos? A experiência etnográfica indica antes o contrário. A passagem do nomadismo à sedentarização seria a conseqüência mais rica da revolução neolítica, no sentido de que permitiu, pela concentração de uma população estabilizada, a formação das cidades e, mais adiante, dos aparelhos de Estado. Mas determina-se que, ao fazer isso, todo “complexo” tecnocultural desprovido de agricultura está necessariamente fadado ao nomadismo. Eis o que é etnograficamente inexato: uma economia de caça, pesca e coleta não exige obrigatoriamente um modo de vida nômade. Vários exemplos, tanto na América como em outros lugares, o atestam: a ausência de agricultura é compatível com o sedentarismo. Isso permitiria supor, então, que, se certos povos não chegaram a possuir agricultura, no momento em que ela era ecologicamente possível, não foi por incapacidade, atraso tecnológico, inferioridade cultural, porém, mais simplesmente, porque dela não tinham necessidade.

A história pós-colombiana da América apresenta o caso de populações de agricultores sedentários que, sob o efeito de uma revolução técnica (conquista do cavalo e, acessoriamente, das armas de fogo), preferiram abandonar a agricultura para se dedicarem de maneira quase exclusiva à caça, cujo rendimento era multiplicado pela mobilidade dez vezes maior proporcionada pelo cavalo. A partir do momento em que se tornaram eqüestres, as tribos das planícies da América do Norte ou as do Chaco, na América do Sul, intensificaram e estenderam os seus deslocamentos: contudo, estamos aí bem longe do nomadismo em que recaem geralmente os bandos de caçadores-coletores (como os Guayaki do Paraguai), e o abandono da agricultura não se traduziu, para os grupos em questão, pela dispersão demográfica, nem pela transformação da organização social anterior. Que nos é ensinado por esse movimento de maioria de sociedades que passaram da caça à agricultura e pelo movimento inverso, de algumas outras, que, partindo da agricultura, chegaram à caça? É que isso parece efetivar-se sem que ocorra qualquer mudança na natureza da sociedade; que esta permanece idêntica a si mesma enquanto se transformam apenas as suas condições de existência material; que a revolução neolítica, se por um lado afetou consideravelmente, e sem dúvida facilitou, a vida material dos grupos humanos de então, por outro lado não acarreta de maneira automática uma perturbação da ordem social. Em outros termos, e no que tange às sociedades primitivas, a mudança no plano do que o marxismo chama a infra-estrutura econômica não determina de modo algum o seu reflexo conseqüente a superestrutura política, já que esta surge independente da sua base material. O continente americano ilustra claramente a autonomia respectiva da economia e da sociedade. Grupos de caçadores-pescadores-coletores, nômades ou não, apresentam as mesmas propriedades sociopolíticas que os seus vizinhos agricultores sedentários: “infraestruturas” diferentes, “superestrutura” idêntica. Inversamente, as sociedades mesoamericanas – sociedades imperiais, sociedades com Estado – eram tributárias de uma agricultura que, mais intensiva que alhures, não ficava muito longe, do ponto de vista de seu nível técnico, da agricultura das tribos “selvagens” da Floresta Tropical: “infraestrutura” idêntica, “superestruturas” diferentes, uma vez que, num dos casos, se trata de sociedades sem Estado, e, no outro, de Estados acabados.

É então a ruptura política – e não a mudança econômica – que é decisiva. A verdadeira revolução, na proto-história da humanidade, não é a do neolítico, uma vez que ela pode muito bem deixar intacta a antiga organização social, mas a revolução política: é essa aparição misteriosa, irreversível, mortal para as sociedades primitivas, que conhecemos sob o nome de Estado. E caso haja desejo de conservar os conceitos marxistas de infra-estrutura e de superestrutura, então talvez seja necessário reconhecer que a infra-estrutura é o político e que a superestrutura é o econômico. Somente uma convulsão estrutural, abissal pode transformar, destruindo-a como tal, a sociedade primitiva: aquilo que faz surgir em seu seio, ou do exterior, aquilo cuja ausência mesma define essa sociedade, a autoridade da hierarquia, a relação de poder, a dominação dos homens, o Estado. Seria vão procurar sua origem numa hipotética modificação das relações de produção na sociedade primitiva, modificação que, dividindo pouco a pouco a sociedade em ricos e pobres, exploradores e explorados, conduziria mecanicamente à instauração de um órgão de exercício do poder dos primeiros sobre os segundos, ao aparecimento do Estado.

Hipotética, essa modificação da base econômica é ainda mais impossível. Para que, numa dada sociedade, o regime de produção se transforme no sentido de uma maior imensidade de trabalho que visa a uma produção acrescida de bens, é necessário ou que os homens dessa sociedade desejem essa transformação de seu gênero de vida tradicional, ou que, mesmo não a desejando, eles se vejam obrigados por uma violência externa. No segundo caso, nada advém da própria sociedade, que sofre a agressão de uma força externa em beneficio da qual o regime de produção vai modificar-se: trabalhar e produzir mais para satisfazer as necessidades dos novos senhores do poder. A opressão política determina, chama, permite a exploração. Mas a evocação de uma tal “encenação” não serve de nada, uma vez que ela coloca uma origem externa, contingente, imediata, da violência estatal, e não a lenta realização das condições internas, socioeconômicas, de seu aparecimento. O Estado, dizem, é o instrumento que permite à classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classes dominadas. Que seja. Para que haja o aparecimento do Estado, é necessário pois, que exista antes divisão da sociedade em classes sociais antagônicas, ligadas entre si por relação de exploração. Por conseguinte, a estrutura da sociedade – a divisão em classes – deveria preceder a emergência da máquina estatal. Observemos de passagem a fragilidade dessa concepção puramente instrumental do Estado. Se a sociedade é organizada por opressores capazes de explorar os oprimidos, é que essa capacidade de impor a alienação repousa sobre o uso de uma força, isto é, sobre o que faz da própria substância do Estado “monopólio da violência física legítima”. A que necessidade responderia desde então a existência de um Estado, uma vez que sua essência – a violência – é imanente à divisão da sociedade, já que é, nesse sentido, dada antecipadamente na opressão exercida por um grupo social sobre os outros? Ele não seria senão o inútil órgão de uma função preenchida antes e alhures.

Articular o aparecimento da máquina estatal com a transformação da estrutura social leva somente a recuar o problema desse aparecimento. É então necessário perguntar por que se produz, no seio de uma sociedade primitiva, isto é, de uma sociedade não-dividida, a nova divisão dos homens em dominantes e dominados. Qual é o motor dessa transformação maior que culminaria na instalação do Estado? Sua emergência sancionaria a legitimidade de uma propriedade privada previamente surgida, e o Estado seria o representante e o protetor dos proprietários. Muito bem. Mas por que se teria o surgimento da propriedade privada num tipo de sociedade que ignora, por recusá-la, a propriedade? Por que alguns desejaram proclamar um dia: isto é meu, e como os outros deixaram que se estabelecesse assim o germe daquilo que a sociedade primitiva ignora, a autoridade, a opressão, o Estado? O que hoje se sabe das sociedades primitivas não permite mais procurar no nível econômico a origem do político. Não é nesse solo que se enraíza a árvore genealógica do Estado. Nada existe, no funcionamento econômico de uma sociedade primitiva, de uma sociedade sem Estado, que permita a introdução da diferença entre mais ricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranho desejo de fazer, possuir, parecer mais que seu vizinho. A capacidade, igual entre todos, de satisfazer as necessidades materiais, e a troca de bens e serviços, que impede constantemente o acúmulo privado dos bens, tornam simplesmente impossível a eclosão de um tal desejo, desejo de posse que é de fato desejo de poder. A sociedade primitiva, primeira sociedade de abundância, não deixa nenhum espaço para o desejo de superabundância.

As sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque, nelas, o Estado é impossível. E entretanto todos os povos civilizados foram primeiramente selvagens: o que fez com que o Estado deixasse de ser impossível? Por que os povos cessaram de ser selvagens? Que formidável acontecimento, que revolução permitiram o surgimento da figura do Déspota, daquele que comanda os que obedecem? De onde provém o poder político? Mistério, talvez provisório, da origem.

Se parece ainda possível determinar as condições de aparecimento do Estado, podemos em troca precisar as condições de seu não-aparecimento, e os textos que foram aqui reunidos tentam cercar o espaço do político nas sociedades sem Estado. Sem fé, sem lei sem rei: o que no século XVI o Ocidente dizia dos índios pode estender-se sem dificuldade a toda sociedade primitiva. Este pode ser mesmo o critério de distinção: uma sociedade é primitiva se nela falta o rei, como fonte legítima da lei, isto é, a máquina estatal. Inversamente, toda sociedade não-primitiva é uma sociedade de Estado: pouco importa o regime socioeconômico em vigor. É por isso que podemos reagrupar numa mesma classe os grandes despotismos arcaicos – reis, imperadores da China ou dos Andes, faraós – as monarquias mais recentes – O Estado sou eu – ou os sistemas sociais contemporâneos, quer o capitalismo seja liberal corno na Europa ocidental, ou de Estado como alhures… Portanto, a tribo não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado. O que significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar urna ordem. O chefe não é um comandante, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder, e a figura (mal denominada) do “chefe” selvagem não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. Certamente não é da chefia primitiva que se pode deduzir o aparelho estatal em geral.

Em que o chefe da tribo não prefigura o chefe de Estado? Em que uma tal antecipação do Estado é impossível no mundo dos selvagens? Essa descontinuidade radical – que torna impensável uma passagem progressiva da chefia primitiva à máquina estatal – se funda naturalmente nessa relação de exclusão que coloca o poder político no exterior da chefia. O que se deve imaginar é um chefe sem poder, uma instituição, a chefia, estranha à sua essência, a autoridade. As funções do chefe, tal como foram analisadas acima, mostram perfeitamente que não se trata de funções de autoridade. Essencialmente encarregado de eliminar conflitos que podem surgir entre indivíduos, famílias e linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, do prestÍgio que lhe reconhece à sociedade. Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra: não para arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é um juiz e não pode se permitir tomar partido por um ou por outro, mas para, armado apenas de sua eloqüência, tentar persuadir as pessoas da necessidade de se apaziguar, de renunciar às injúrias, de imitar os ancestrais que sempre viveram no bom entendimento. Empreendimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois a palavra do chefe não tem força de lei. Se o esforço de persuasão fracassa, então o conflito corre o risco de se resolver pela violência e o prestígio do chefe pode muito bem não sobreviver a isso, uma vez que ele deu provas de sua impotência em realizar o que se espera dele.

Em função de que a tribo estima que tal homem é digno de ser um chefe? No fim das contas, somente em função de sua competência “técnica”: dons oratórios, habilidade como caçador, capacidade de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma a sociedade deixa o chefe ir além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se transformar em autoridade política. O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma – verdadeiro lugar do poder – que exerce como tal sua autoridade sobre o chefe. É por isso que é impossível para o chefe alterar essa relação em seu proveito, colocar a sociedade a seu próprio serviço, exercer sobre a tribo o que denominamos poder: a sociedade nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota. Grande vigilância. de certo modo, a que a tribo submete o chefe, prisioneiro em um espaço do qual ela não o deixa sair. É possível que um chefe deseje ser chefe? Que ele queira substituir o serviço e o interesse do grupo pela realização do seu próprio desejo? Que a satisfação do seu interesse pessoal ultrapasse a submissão ao projeto coletivo? Em virtude do estreito controle a que a sociedade – por sua natureza de sociedade primitiva e não, é claro, por cuidado consciente e deliberado de vigilância – submete, como todo o resto, a prática do líder, raros são os casos de chefes colocados em situação de transgredir a lei primitiva: tu não és mais que os outros. Raros certamente, mas não inexistentes: acontece às vezes que um chefe queira bancar o chefe, e não por cálculo maquiavélico, mas antes porque definitivamente ele não tem escolha, não pode fazer de outro modo. Expliquemonos. Em regra geral, um chefe não tenta (ele nem mesmo sonha) subverter a relação normal (conforme às normas) que mantém com seu grupo, subversão que, de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relação normal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro de uma tribo Abipione do Chaco argentino, a definiu perfeitamente na resposta que deu a um oficial espanhol que queria convencê-lo ~ levar sua tribo a uma guerra que ela não desejava: “Os Abipiones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade e não de acordo com a do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado e não temido por eles” E, não duvidemos, a maior parte dos chefes indígenas teria sustentado o mesmo discurso.

Existem entretanto exceções quase sempre ligadas à guerra. Sabemos com efeito que a preparação e a condução de uma expedição militar são as únicas circunstâncias em que o chefe pode exercer um mínimo de autoridade, fundada somente, repitamo-lo, em sua competência técnica de guerrear. Uma vez as coisas terminadas, e qualquer que seja o resultado do combate, o chefe guerreiro volta a ser um chefe sem poder, e em nenhuma hipótese o prestígio decorrente da vitória se transforma em autoridade. Tudo se passa precisamente sobre essa separação mantida pela sociedade entre poder e prestígio, entre a glória de um guerreiro vencedor e o comando que lhe é proibido exercer. A fonte mais apta para saciar a sede de prestígio de um guerreiro é a guerra. Ao mesmo tempo, um chefe cujo prestígio está ligado à guerra não pode conservá-lo e reforçá-lo senão na guerra: é uma espécie de fuga impulsiva para a frente que o faz querer organizar sem cessar expedições guerreiras das quais ele conta retirar os benefícios (simbólicos) aferentes à vitória. Enquanto seu desejo de guerra corresponder à vontade geral da tribo, em particular dos jovens para os quais a guerra é também o principal meio de adquirir prestígio, e enquanto a vontade do chefe não ultrapassar a da sociedade, as relações habituais entre o segundo e o primeiro manter-se-ão inalteradas. Mas o risco de uma ultrapassagem do desejo da sociedade pelo desejo do seu chefe, o risco para ele de ir além do que deve, de sair do estreito limite determinado à sua função, é permanente. O chefe às vezes aceita corrê-lo, tenta impor à tribo seu projeto individual tenta substituir o interesse coletivo por seu interesse pessoal. Alterando a relação normal que determina o líder como meio a serviço de um fim socialmente definido, ele tenta fazer da sociedade o meio de realizar um fim puramente privado: a tribo a serviço do chefe, e não mais o chefe a serviço da tribo. Se isso funcionasse, então teríamos aí a terra natal do poder político, como coerção e violência, teríamos a primeira encarnação da figura mínima do Estado. Mas isso nunca funciona.

No belíssimo relato dos vinte anos que passou entre os Yanomami,2 Helena Valero fala longamente de seu primeiro marido, o líder guerreiro Fousiwe. Sua história ilustra perfeitamente o destino da chefia selvagem quando ela é, por força das coisas, levada a transgredir a lei da sociedade primitiva que, verdadeiro lugar do poder, recusa cedê-lo, recusa delegá-lo. Fousiwe foi então reconhecido como “chefe” por sua tribo em virtude do prestígio que adquiriu como organizador e condutor de ataques vitoriosos contra os grupos inimigos. Ele dirige conseqüentemente guerras desejadas por sua tribo, coloca à disposição de seu grupo sua competência técnica de homem de guerra, sua coragem, seu dinamismo, e é o instrumento eficaz de sua sociedade. Mas a infelicidade do guerreiro selvagem é que o prestígio adquirido na guerra se perde rapidamente, se não se renovam constantemente as fontes. A tribo, para a qual o chefe é apenas “um instrumento apto a realizar sua vontade”, esquece facilmente as vitórias passadas do chefe. Para ele, nada é definitivamente adquirido e, se ele quer devolver às pessoas a memória tão facilmente perdida de seu prestígio e de sua glória, não é apenas exaltando suas antigas façanhas que o conseguirá, mas antes suscitando a ocasião de novos feitos bélicos. Um guerreiro não tem escolha: ele está condenado a desejar a guerra. É exatamente aí que se dá o limite do consenso que o reconhece como chefe. Se seu desejo de guerra coincide com o desejo de guerra da sociedade, esta continua a segui-lo. Mas se o desejo de guerra do chefe tenta se estabelecer sobre uma sociedade animada pelo desejo de paz – com feito, nenhuma sociedade deseja sempre guerrear -, então a relação entre o chefe e a tribo se modifica, o líder tenta utilizar a sociedade como instrumento de seu objetivo individual, como meio de sua meta pessoal. Ora, não o esqueçamos, o chefe primitivo é um chefe sem poder: como poderia ele impor a lei de seu desejo a uma sociedade que o recusa? Ele é ao mesmo tempo prisioneiro de seu desejo de prestígio e de sua impotência em realizá-lo. O que pode então ocorrer? O guerreiro está destinado a solidão, a esse combate duvidoso que só o conduz à morte. Tal foi o destino do guerreiro sul-americano Fouiswe. Por ter querido impor aos seus uma guerra que eles não desejavam, foi abandonado por sua tribo. Só restava lutar sozinho nessa guerra, e ele morreu crivado de flechas. A morte é o destino do guerreiro, pois a sociedade primitiva é tal que não permite que a vontade de poder substitua o desejo de prestígio. Ou, em outros termos, na sociedade primitiva, o chefe, como possibilidade de vontade de poder, está antecipadamente condenado à morte. O poder político isolado é impossível na sociedade primitiva; nela não há lugar, não há vazio que o Estado pudesse preencher. Menos trágica em sua conclusão, mas muito semelhante no seu desenvolvimento é a história de um outro líder indígena, infinitamente mais célebre que o obscuro guerreiro amazônico, uma vez que se trata do famoso chefe apache Gerônimo. A leitura de suas Memórias3 , se bem que bastante futilmente recolhidas, se revela muito instrutiva. Gerônimo não passava de um jovem guerreiro como os outros quando os soldados mexicanos atacaram o acampamento de sua tribo e massacraram mulheres e crianças. A família de Gerônimo foi inteiramente exterminada. As diversas tribos Apache se aliaram para se vingar dos assassinos e Gerônimo foi encarregado de conduzir o combate. Sucesso completo para os Apache, que eliminaram a guarnição mexicana. O prestígio guerreiro de Gerônimo, principal artífice da vitória, foi imenso. E, desde esse momento, as coisas mudaram, alguma coisa se passou em Gerônimo, alguma coisa sucedeu. Pois se, para os Apache, satisfeitos com uma vitória que realizou perfeitamente seu desejo de vingança, o caso estava de alguma forma acabado, para Gerônimo, os rumores eram outros: ele queria continuar a se vingar dos mexicanos e considerou insuficiente a sangrenta derrota imposta aos soldados. Mas ele não pôde, é claro, atacar sozinho as aldeias mexicanas. Tentou pois, convencer os seus a fazer uma nova expedição. Inutilmente. A sociedade Apache, uma vez realizado o objetivo coletivo – a vingança – aspirava ao repouso. O objetivo de Gerônimo foi, portanto, um objetivo individual para cuja realização ele pretendeu arrastar a tribo. Ele quis fazer da tribo o instrumento de seu desejo, ao passo que antes ele foi, em função de sua competência como guerreiro, o instrumento da tribo. Evidentemente, os Apache jamais quiseram seguir Gerônimo, da mesma forma que os Yanomami se recusaram a seguir Fousiwe. Quando muito o chefe Apache conseguia (por vezes, ao preço de mentiras) convencer alguns jovens ávidos de glória e de saque. Para uma dessas expedições, o exército de Gerônimo, heróico e ridículo compunha-se de dois homens! Os Apache, que, em função das circunstâncias, aceitavam a liderança de Gerônimo em virtude da sua habilidade de combatente, sistematicamente lhe davam as costas quando ele queria fazer sua guerra pessoal. Gerônimo foi o último grande chefe de guerra norte-americano, que passou trinta anos de sua vida querendo “bancar o chefe” e não conseguiu…

A propriedade essencial (quer dizer, que toca a essência) da sociedade primitiva é exercer um poder absoluto e completo sobre tudo que a compõe, é interditar a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos internos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social nos limites e na direção desejados pela sociedade. A tribo manifesta, entre outras (e pela violência se for necessário), sua vontade de preservar essa ordem social primitiva, interditando a emergência de um poder político individual, central e separado. Sociedade à qual nada escapa, que nada deixa sair de si mesma, pois todas as saídas estão fechadas. Sociedade que, por conseguinte, deveria eternamente se reproduzir sem que nada de substancial a afete através do tempo. Há contudo um campo que, parece, escapa, ao menos em parte, ao controle da sociedade: é um “fluxo” ao qual ela só parece poder impor uma “codificação” imperfeita. Trata-se do domínio demográfico, domínio regido por regras culturais, mas também por leis naturais, espaço de desdobramento de uma vida enraizada tanto no social quanto no biológico, lugar de uma “máquina” que funciona talvez segundo uma mecânica própria e que estaria, em seguida, fora de alcance da empresa social.

Sem sonhar em substituir um determinismo econômico por um determinismo demográfico, em inscrever nas causas – o crescimento demográfico – a necessidade dos efeitos – transformação da organização social – é entretanto necessário constatar, sobretudo na América, o peso sociológico do número da população, a capacidade que possui o aumento das densidades de abalar – não dissemos destruir a sociedade primitiva. Com efeito é bastante provável que uma condição fundamental da existência da sociedade primitiva consista numa fraqueza relativa de seu porte demográfico. As coisas só podem funcionar segundo o modelo primitivo se a população é pouco numerosa. Ou, em outros termos, para que uma sociedade seja primitiva, é necessário que ela seja pequena em número. E, de fato, o que se constata no mundo dos selvagens é um extraordinário esfacelamento das “nações”, tribos, sociedades em grupos locais que tratam cuidadosamente de conservar sua autonomia no seio do conjunto do qual fazem parte, com o risco de concluir alianças provisórias com seus vizinhos “compatriotas”, se as circunstâncias – guerreiras em particular – o exigem. Essa atomização do universo tribal é certamente um meio eficaz de impedir a constituição de conjuntos sóciopolíticos que integram os grupos locais, e, mais além um meio de proibir a emergência do Estado que, em sua essência, é unificador.

Ora, é perturbador constatar que os Tupi-Guarani parecem, na época que a Europa os descobre, afastar-se sensivelmente do modelo primitivo habitual, e em dois pomos essenciais: a taxa de densidade demográfica de suas tribos ou grupos locais ultrapassa claramente a das populações vizinhas; por outro lado, o porte dos grupos locais não tem medida comum com o das unidades sociopolíticas da Floresta Tropical. Evidentemente, as aldeias tupinambá, por exemplo, que reuniam vários milhares de habitantes, não eram cidades; mas deixavam igualmente de pertencer ao horizonte “clássico” da dimensão demográfica das sociedades vizinhas. Sobre essa base de expansão demográfica e de concentração da população se destaca – fato também inabitual na América dos selvagens, ao menos na dos impérios – a tendência evidente das chefias em obter um poder desconhecido alhures. Os chefes tupi-guarani não eram certamente déspotas, mas não eram mais de modo algum chefes sem poder. Não cabe aqui empreender a longa e complexa tarefa de analisar a chefia entre os Tupi-Guarani. Baste-nos simplesmente revelar, num extremo da sociedade, se é possível dizer, o crescimento demográfico, e, no outro, a lenta emergência do poder político. Sem dúvida não cabe à etnologia (ou ao menos a ela sozinha) responder às questões das causas da expansão demográfica numa sociedade primitiva. Em compensação, incumbe a essa disciplina a articulação do demográfico e do político, a análise da força que o primeiro exerce sobre o segundo através do sociológico.

Não cessamos, ao longo deste texto, de proclamar a impossibilidade interna do poder político separado numa sociedade primitiva, a impossibilidade de uma gênese do Estado a partir do interior da sociedade primitiva. E eis que, ao que parece, evocamos nós mesmos, contraditoriamente, os Tupi-Guarani como um caso de sociedade primitiva onde começava a surgir o que poderia ter podido se tornar o Estado. Incontestavelmente se desenvolvia, nessas sociedades, um processo, sem dúvida, em curso já há muito tempo, de constituição de uma chefia cujo poder político não era negligenciável. a ponto mesmo de os cronistas franceses e portugueses da época não hesitarem em atribuir aos grandes chefes de federações de tribos os títulos de “reis de província” ou “régulos. Esse processo de transformação profunda da sociedade tupi-guarani teve uma interrupção brutal com a chegada dos europeus. Quererá isso dizer que, se o descobrimento do Novo Mundo tivesse sido adiado de um século por exemplo, uma formação estatal seria imposta às tribos indígenas do litoral brasileiro? Sempre é fácil, e arriscado, reconstruir uma história hipotética que nada viria desmentir. Mas, no presente caso, pensamos poder responder com firmeza pela negativa: não foi a chegada dos ocidentais que cortou a emergência possível do Estado entre os Tupi-Guarani, e sim um sobressalto da própria sociedade enquanto sociedade primitiva, um sobressalto, uma sublevação de alguma forma dirigida, se não explicitamente contra as chefias, ao menos, por seus efeitos, destruidor do poder dos chefes. Queremos falar desse estranho fenômeno que, desde os últimos decênios do século XV, agitava as tribos tupi-guarani a predicação inflamada de alguns homens que, de grupo em grupo, concitavam os índios a tudo abandonar para se lançarem na procura da Terra sem Mal, do paraíso terrestre.

Chefia e linguagem estão, na sociedade primitiva, intrinsecamente ligadas; a palavra é o único poder concedido ao chefe: mais do que isso a palavra é para ele um dever. Mas há uma outra palavra, um outro discurso, articulado não pelos chefes, mas por esses homens que, nos séculos XV e XVI, arrastavam atrás de si milhares de índios em loucas migrações em busca da pátria dos deuses: é o discurso dos karai, é a palavra profética, palavra virulenta eminentemente subversiva que chama os índios a empreender o que se deve reconhecer como a destruição da sociedade. O apelo dos profetas pra o abandono da terra má, isto é, da sociedade tal como ela era, para alcançar a Terra sem Mal, a sociedade da felicidade divina, implicava a condenação à morte da estrutura da sociedade e do seu sistema de normas. Ora, a essa sociedade se impunha cada vez mais fortemente a marca da autoridade dos chefes, o peso de seu poder político nascente. Talvez então possamos dizer que, se os profetas, surgidos no coração da sociedade, proclamavam mau o mundo em que os homens viviam, é porque eles revelavam a infelicidade, o mal, nessa morte lenta à qual a emergência do poder condenava num prazo mais ou menos longo, a sociedade tupi-guarani, como sociedade primitiva, como sociedade sem Estado. Habitados pelo sentimento de que o amigo mundo selvagem tremia em seu fundamento, perseguidos pelo pressentimento de uma catástrofe sócio-cósmica, os profetas decidiram que era preciso mudar o mundo, abandonar o dos homens e ganhar o dos deuses.

Palavra profética ainda viva, como o testemunham os textos “Profetas na selva” e “Do Um sem o Múltiplo”. Os 3 ou 4 mil índios Guarani que subsistem miseravelmente nas florestas do Paraguai gozam ainda da riqueza incomparável que os karai lhes oferecem. Estes não são mais – duvidamos – condutores de tribos, como seus ancestrais do século XVI, não é mais possível a procura da Terra sem Mal. Mas a falta de ação parece ter permitido uma embriaguez do pensamento, um aprofundamento sempre mais tenso da reflexão sobre a infelicidade da condição humana. E esse pensamento selvagem que quase cega por tanta luz, nos diz que o lugar de nascimento do Mal, da fonte da infelicidade, é o Um.

Talvez seja preciso dizer um pouco mais e se perguntar o que o sábio guarani designa sob o nome de Um. Os temas favoritos do pensamento guarani contemporâneo são os mesmos que inquietavam, há mais de quatro séculos, aqueles a quem já se chamava karai, os profetas. Por que o mundo é mau? O que podemos fazer para escapar ao mal? Questões que ao cabo de gerações esses índios não cessam de se colocar: os karai de agora se obstinam pateticamente em repetir o discurso dos profetas de outros tempos. Estes sabiam, pois, que o Um é o mal; eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoas os seguiam na procura do Bem, na busca do não-Um. Temos, portanto, entre os Tupi-Guarani do tempo do Descobrimento, de um lado uma prática – a migração religiosa – inexplicável se não vemos nela a recusa da via em que a chefia engajava a sociedade, a recusa do poder político isolado, a recusa do Estado; do outro, um discurso profético que identifica o Um como a raiz do Mal e afirma a possibilidade de escapar-lhe. Em que condições é possível pensar o Um? É preciso que, de algum modo, sua presença, odiada ou desejada, seja visível. É por isso que o Um é o Estado. O profetismo tupi-guarani é a tentativa heróica de uma sociedade primitiva para abolir a infelicidade na recusa radical do Um como essência universal do Estado. Essa leitura “política” de uma constatação metafísica deveria então incitar a colocar uma questão, talvez sacrílega: não se poderia submeter a semelhante leitura toda a metafísica do Um? Que acontece ao Um como Bem, como objeto preferencial, que, desde sua aurora, a metafísica ocidental impõe ao desejo do homem? Detenhamo-nos nesta perturbadora evidência: o pensamento dos profetas selvagens e aquele dos gregos antigos pensam a mesma coisa, o Um; mas o índio Guarani diz que o Um é o Mal, ao passo que Heráclito diz que ele é o Bem. Em que condições é possível pensar o Um como Bem? Voltemos, para concluir, ao mundo exemplar dos Tupi-Guarani. Eis uma sociedade primitiva que, atravessada, ameaçada pela irresistível ascensão dos chefes, suscita em si mesma e libera forças, capazes, mesmo ao preço de um quase-suicídio coletivo, de fazer fracassar a dinâmica da chefia, de impedir o movimento que poderia levar à transformação dos chefes em reis portadores de leis. De um lado os chefes; do outro, e contra eles os profetas: tal é, traçado segundo suas linhas essenciais, o quadro da sociedade tupi-guarani no final do século XV. E a “máquina” profética funcionava perfeitamente bem, uma vez que os karai eram capazes de se fazer seguir por massas surpreendentes de índios fanatizados, diríamos hoje, pela palavra desses homens, a ponto de acompanhá-los até na morte.

O que quer isso dizer? Os profetas, armados apenas de seus logos, podiam determinar uma “mobilização” dos índios, podiam realizar esta coisa impossível na sociedade primitiva: unificar na migração religiosa a diversidade múltipla das tribos. Eles conseguiram realizar, de um só golpe, o “programa” dos chefes! Armadilha da história? Fatalidade que apesar de tudo consagra a própria sociedade primitiva à dependência? Não se sabe. Mas, em todo o mais poder do que os segundos detinham. Então talvez seja preciso retificar a idéia da palavra como oposto da violência. Se o chefe selvagem é obrigado a um dever de palavra inocente, a sociedade primitiva pode também, evidentemente em condições determinadas, se voltar para a escuta de uma outra palavra, esquecendo que essa palavra é dita como um comando: é a palavra profética. No discurso dos profetas jaz talvez em germe o discurso do poder, e sob os traços exaltados do condutor de homens que diz o desejo dos homens se dissimula talvez a figura silenciosa do Déspota.

Palavra profética, poder dessa palavra: teríamos nela o lugar originário do poder, o começo do Estado no Verbo? Profetas conquistadores das almas antes de serem senhores dos homens? Talvez. Mas, mesmo na experiência extrema do profetismo (porque sem dúvida a sociedade tupi-guarani tinha atingido, por razões demográficas ou outras, os limites extremos que determinam uma sociedade como sociedade primitiva), o que os selvagens nos mostram é o esforço permanente para impedir os chefes de serem chefes e a recusa da unificação; é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dos povos que têm um história é, diz-se, a história da luta de classes. A história dos povos sem história é, dir-se-á como ao menos tanta verdade, a história da sua luta contra o Estado.

Notas

1 Jaques Lizot, “Economie ou sociéte? Quelques thêmes à propos de l’étude d’une communauté d’Amérindiens.”Journal de Ia Sociiti des Amiricanistes, n. 9, 1973, pp 137-75.

2 Ettore Biocca, Yanoama (Paris: Pkm, [9(9)’

3 Mimoires de Géronimo (Paris: Maspero, 197:1.).

Título Original: Lê Societé contre I’Etat

Tradução: Theo Santiago

Data Publicação Original: 1974

Capítulo da obra:

A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.