Anarquismo Negro – por Ashanti Alston

Texto originalmente publicado no site do Geledes – Instituto da Mulher Negra.
Link original: http://www.geledes.org.br/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#axzz3JeArVauA

Anarquismo Negro – por Ashanti Alston[1]

ashanti

Tradução: Mariana Santos (Das Lutas)

Apoio: Caralâmpio Trillas

Muitos anarquistas clássicos consideravam o anarquismo como um corpo de verdades elementares que apenas precisavam ser reveladas ao mundo e acreditavam que as pessoas se tornariam anarquistas uma vez expostas à lógica irresistível da idéia. Esta é uma das razões pelas quais eles tendiam a ser tão didáticos.

Felizmente a prática vivida do movimento anarquista é muito mais rica do que isso. Poucos “convertem-se” de tal forma: é muito mais comum que as pessoas abracem o anarquismo lentamente, à medida que descobrem que é relevante para a sua experiência de vida e permeável a suas próprias percepções e preocupações.

A riqueza da tradição anarquista está justamente na longa história de encontros entre dissidentes não-anarquistas e o quadro anarquista que herdamos do final do Século XIX e início do Século XX. O anarquismo tem crescido através de tais encontros e agora enfrenta contradições sociais que antes eram marginais ao movimento. Por exemplo, há um século atrás, a luta contra o patriarcado era uma preocupação relativamente menor para a maioria dos anarquistas, mas hoje é amplamente aceita como uma parte integrante da nossa luta contra a dominação.

Foi somente nos últimos 10 ou 15 anos que os anarquistas na América do Norte começaram a explorar à sério o que significa desenvolver um anarquismo que tanto pode combater a supremacia branca como articular uma visão positiva da diversidade cultural e de intercâmbio cultural. Camaradas estão trabalhando duro para identificar os referenciais históricos de tal tarefa, como o nosso movimento deve mudar para abraçá-lo, e como um anarquismo verdadeiramente antirracista pode parecer.

O seguinte material, de Ashanti Alston, membro do conselho do IAS[2], explora algumas destas questões. Alston, que era membro do Partido dos Panteras Negras e do Exército Negro de Libertação, descreve o(s) seu(s) encontro(s) com o anarquismo (que começou quando ele foi preso por atividades relacionadas com o Exército Negro de Libertação). Ele toca em algumas das limitações das visões mais antigas do anarquismo, a relevância contemporânea do anarquismo para os negros, e alguns dos princípios necessários para construir um novo movimento revolucionário.

Esta é uma transcrição editada de uma palestra dada por Alston em 24 de outubro de 2003 no Hunter College, em Nova York. O evento foi organizado pelo Instituto de Estudos Anarquistas e co-patrocinado pelo Movimento Estudantil de Ação Libertadora, da Universidade de Cidade de Nova York ~ Chuck Morse

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Embora o Partido dos Panteras Negras fosse muito hierárquico, eu aprendi muito com a minha experiência na organização. Acima de tudo, nos Panteras me marcou a necessidade de aprender com as lutas de outros povos. Eu acho que tenho feito isso e essa é uma das razões pelas quais sou um anarquista hoje. Afinal, quando velhas estratégias não funcionam, precisamos olhar para outras formas de fazer as coisas, para ver se podemos nos descolar e avançar novamente. Nos Panteras, absorvemos muita coisa de nacionalistas, marxistas-leninistas, e de outros como eles, mas suas abordagens para a mudança social tinham problemas significativos e me aprofundei no anarquismo para ver se haviam outras maneiras de pensar sobre como fazer uma revolução.

Eu aprendi sobre anarquismo através de cartas e de literatura enviadas para mim, enquanto estava em várias prisões por todo o país. No começo eu não queria ler qualquer material que recebi – parecia que o anarquismo era apenas sobre o caos e todo mundo fazendo suas próprias coisas – e por muito tempo eu o ignorei. Mas houve momentos – quando eu estava na solitária – que não tinha mais nada para ler e, para fugir do tédio, finalmente comecei a meter a mão no tema (apesar de tudo o que eu tinha ouvido falar sobre o anarquismo até o momento). Fiquei realmente muito surpreso ao encontrar análises de lutas populares, culturas populares e formas de organizações populares – aquilo fez muito sentido para mim.

Estas análises me ajudaram a ver coisas importantes sobre a minha experiência nos Panteras que não estavam claras para mim antes. Por exemplo, eu pensei que havia um problema com a minha admiração por pessoas como Huey P. Newton, Bobby Seal, e Eldridge Cleaver e com o fato de que eu os tinha colocado em um pedestal. Afinal de contas, o que isso diz sobre você, se você permitir que alguém se estabeleça como seu líder e tome todas as suas decisões por você? O anarquismo me ajudou a ver que você, como um indivíduo, deve ser respeitado e que ninguém é suficientemente importante para pensar por você. Mesmo que nós achemos que Huey P. Newton ou Eldridge Cleaver são os piores revolucionários do mundo, eu deveria me ver como o pior revolucionário, exatamente como eles. Mesmo que eu fosse jovem, tenho um cérebro. Eu posso pensar. Eu posso tomar decisões.

Eu pensei em tudo isso enquanto estava na prisão e me vi dizendo: “Cara, nós realmente nos colocamos de uma forma que éramos obrigados a criar problemas e produzir cismas. Fomos obrigados a seguir programas sem pensar”. A história do Partido dos Panteras Negras, tão incrível como é, tem esses esqueletos. A menor pessoa no totem deveria ser um trabalhador e o que estava na parte superior era quem tinha o cérebro. Mas na prisão eu aprendi que eu poderia ter tomado algumas dessas decisões sozinho e que as pessoas ao meu redor poderiam ter tomado essas mesmas decisões. Embora eu tenha apreço por tudo o que os líderes do Partido dos Panteras Negras fizeram, eu comecei a ver que podemos fazer as coisas de forma diferente e, assim, extrair mais plenamente nossas próprias potencialidades e nos encaminharmos ainda mais para uma autodeterminação real. Embora não tenha sido fácil no início, insisti com o material anarquista e descobri que eu não poderia colocá-lo de lado, uma vez que começou a me dar vislumbres. Eu escrevi para pessoas em Detroit e no Canadá, que tinham me enviado a literatura, e pedi para que me enviassem mais.

No entanto, nada do que eu recebi tratava de pessoas negras ou latinas. Talvez houvesse discussões ocasionais sobre a Revolução Mexicana, mas nada falava de nós, aqui, nos Estados Unidos. Houve uma ênfase esmagadora sobre aqueles que se tornaram os anarquistas fundadores – Bakunin, Kropotkin, e alguns outros – mas estes valores europeus, que abordavam as lutas europeias, realmente não dialogavam comigo.

Eu tentei descobrir como isso se aplicava a mim. Comecei a olhar para a História Negra de novo, para a História Africana, e as histórias e lutas das outras pessoas de cor. Eu encontrei muitos exemplos de práticas anarquistas nas sociedades não europeias, desde os tempos mais antigos até o presente. Isso foi muito importante para mim: eu precisava saber que não eram apenas os europeus que poderiam funcionar de uma forma antiautoritária, mas que todos nós podemos.

Fui encorajado por coisas que eu encontrei na África – não tanto pelas antigas formas que chamamos de tribos – mas por lutas modernas que ocorreram no Zimbabwe, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ainda que fossem liderados por organizações vanguardistas, eu vi que as pessoas estavam construindo comunidades democráticas radicais na base. Pela primeira vez, nesses contextos coloniais, os povos africanos estavam criando o que era chamado pelos angolanos de “poder popular”. Este poder popular tomou uma forma muito antiautoritária: as pessoas não estavam só conduzindo suas vidas, mas também as transformando enquanto lutavam contra qualquer poder estrangeiro que os oprimia. No entanto, em cada uma dessas lutas de libertação, novas estruturas repressivas foram impostas logo que as pessoas chegavam próximo à libertação: a liderança estava obcecada com idéias de governança, em estabelecer um exército permanente, em controlar as pessoas depois que os opressores forem expulsos. Uma vez que a tão apregoada vitória foi conseguida, o povo – que havia lutado durante anos contra os seus opressores  – foi desarmado e, em vez de existir um poder popular real, um novo partido foi instalado no comando do Estado. Assim, não houve reais revoluções ou a verdadeira libertação em Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e Zimbabwe, porque eles simplesmente substituíram um opressor estrangeiro por um opressor nativo.

Então, aqui estou eu, nos Estados Unidos, lutando pela libertação negra e me perguntando: como é que podemos evitar situações como essa? O anarquismo me deu uma maneira de responder a esta questão, insistindo que nós ponhamos no lugar, como fazemos em nossa luta agora, as estruturas de tomada de decisões e de fazer coisas que continuamente tragam mais pessoas para o processo, e não apenas deixar a maioria das pessoas “iluminadas” tomarem decisões por todos os outros. O próprio povo tem que criar estruturas em que articulem sua própria voz e em que tomem suas próprias decisões. Eu não recebi isso de outras ideologias: eu recebi isso do anarquismo.

Também comecei a ver, na prática, que as estruturas anarquistas de tomada de decisão são possíveis. Por exemplo, nos protestos contra a Convenção Nacional Republicana, em agosto de 2000, eu vi os grupos normalmente excluídos – pessoas de cor, mulheres e gays – participarem ativamente de todos os aspectos da mobilização. Nós não permitimos que pequenos grupos tomassem decisões por outros e, apesar de as pessoas terem diferenças, elas eram vistas como boas e benéficas. Era novo para mim, depois da minha experiência nos Panteras, estar em uma situação onde as pessoas não estão tentando disputar o mesmo lugar e realmente abraçam a tentativa de resolver nossos interesses por vezes contraditórios. Isso me deu algumas idéias sobre como o anarquismo pode ser aplicado.

Também me fez pensar: se pode ser aplicado para os diversos grupos no protesto contra a Convenção, poderia eu, como um ativista negro, aplicar essas coisas na comunidade negra?

Algumas de nossas idéias sobre quem somos como povo bloqueiam nossas lutas. Por exemplo, a comunidade negra é muitas vezes considerada um grupo monolítico, mas na verdade é uma comunidade de comunidades com muitos interesses diferentes. Penso em ser negro não tanto como uma categoria étnica, mas como uma força de oposição ou como pedra de toque para ver as coisas de forma diferente. A cultura negra sempre foi opositora e tudo isso é a busca de caminhos para criativamente resistir à opressão aqui, no país mais racista do mundo. Então, quando eu falo de um Anarquismo Negro, não está tão ligado à cor da minha pele, mas quem eu sou como pessoa, como alguém que pode resistir, quem pode enxergar de uma forma diferente quando eu estou bloqueado e, assim, viver de forma diferente.

O que é importante para mim sobre o anarquismo é a sua insistência de que você nunca deve ficar preso em velhas e obsoletas abordagens e sempre deve tentar encontrar novas maneiras de ver as coisas, de sentir e de se organizar. No meu caso, eu apliquei pela primeira vez o anarquismo no início de 1990 em um coletivo que criamos para rodar o jornal dos Panteras Negras novamente. Eu ainda era um anarquista “no armário” neste momento. Eu ainda não estava pronto para sair e me declarar um anarquista, porque eu já sabia o que as pessoas iriam dizer e como eles iriam olhar para mim. Quem eles veriam quando digo “anarquista”? Eles veriam os anarquistas brancos, com todos aqueles cabelos engraçados, etc. e dizer “como diabos é que você vai se envolver com isso?”

Houve uma divisão neste coletivo: de um lado havia companheiros mais velhos que estavam tentando reinventar a roda e, por outro, eu e alguns outros que diziam: “Vamos ver o que podemos aprender com a experiência vinda dos Panteras e construir em cima dela e melhorá-la. Nós não podemos fazer as coisas da mesma maneira”. Enfatizamos a importância de uma perspectiva antissexista – uma velha questão dentro dos Panteras – mas do outro lado estava algo do tipo “eu não quero ouvir todas essas coisas feministas”. E nós dissemos: “Tudo bem se você não quer ouvir isso, mas queremos que as pessoas jovens ouçam, para que eles saibam sobre algumas das coisas que não funcionaram nos Panteras, para que eles saibam que nós tivemos algumas contradições internas que não poderíamos superar”. Nós tentamos forçar a questão, mas se tornou uma batalha e as discussões tornaram-se tão difíceis que uma separação ocorreu. Neste ponto, deixei o coletivo e comecei a trabalhar com grupos anarquistas e antiautoritários, que foram realmente os únicos a tentarem lidar de forma consistente com essas dinâmicas até o momento.

Uma das lições mais importantes que eu também aprendi com o anarquismo é que você precisa olhar para as coisas radicais que já fazemos e tentar incentivá-las. É por isso que eu acho que há muito potencial para o anarquismo na comunidade negra: muito do que já fazemos é anarquista e não envolve o Estado, a polícia ou os políticos. Nós tomamos conta um do outro, nós nos importamos com os filhos uns dos outros, nós vamos para o mercado uns para os outros, encontramos maneiras de proteger nossas comunidades. Até mesmo igrejas ainda fazem as coisas de uma forma muito comunal, até certo ponto. Eu aprendi que existem maneiras de ser radical sem ficar distribuindo literatura e dizendo às pessoas: “Aqui está o retrato da situação, se você enxergar isso, vai seguir automaticamente a nossa organização e se juntará à revolução”. Por exemplo, a participação é um tema muito importante para o anarquismo e também é muito importante na comunidade negra. Considere o jazz: é um dos melhores exemplos de uma prática radical existente porque ele assume uma conexão participativa entre o individual e o coletivo e permite a expressão de quem você é, dentro de um ambiente coletivo, com base no gozo e no prazer da música em si. Nossas comunidades podem ser da mesma forma. Podemos reunir todos os tipos de perspectivas de fazer música, de fazer revolução.

Como podemos nutrir cada ato de liberdade? Seja com as pessoas no trabalho ou as pessoas que passam o tempo na esquina, como podemos planejar e trabalhar juntos? Precisamos aprender com as diferentes lutas ao redor do mundo que não são baseadas em vanguardas. Há exemplos na Bolívia. Há os zapatistas. Há grupos no Senegal construindo centros sociais. Você realmente tem que olhar para as pessoas que estão tentando viver e não necessariamente tentando chegar com as idéias mais avançadas. Precisamos tirar a ênfase do abstrato e focar no que está acontecendo na base.

Como podemos construir com todas estas diferentes vertentes? Como podemos construir com os Rastas? Como podemos construir com as pessoas da Costa Oeste que ainda estão lutando contra o governo, por conta da mineração em terras indígenas? Como podemos construir com todos esses povos para começar a criar uma visão da América que seja para todos nós?

Pensamento de oposição e os riscos de ser oposição são necessários. Eu acho isso é muito importante neste momento e uma das razões pelas quais eu acho que o anarquismo tem muito potencial para nos ajudar a seguir em frente. E isso não é um pedido para aderirmos dogmaticamente aos fundadores da tradição, mas para estarmos abertos a tudo o que aumenta a nossa participação democrática, a nossa criatividade e nossa felicidade.

Acabamos de ter uma Conferência Anarquista de Pessoas de Cor em Detroit, de 03 a 05 de outubro. Cento e trinta pessoas vieram de todo o país. Foi ótimo para vermos nós mesmos e bem como o interesse das pessoas de cor de todo o Estados Unidos em busca de formas marginais de se pensar. Vimos que poderíamos nos tornar aquela voz em nossas comunidades, que diz: “Espere, talvez nós não precisemos nos organizar assim. Espere, a maneira que você está tratando as pessoas dentro da organização é opressiva. Espere, qual é a sua visão? Gostaria de ouvir a minha?”. Há uma necessidade para esses tipos de vozes dentro de nossas diversas comunidades. Não apenas as nossas comunidades de cor, mas em toda comunidade há uma necessidade de parar o avanço dos planos pré-fabricados e confiar que as pessoas podem descobrir coletivamente o que fazer com este mundo. Eu acho que nós temos a oportunidade de deixar de lado o que nós pensamos que seria a resposta e lutarmos juntos para explorar diferentes visões do futuro. Podemos trabalhar nisso. E não há uma resposta: temos de trabalhar com isso à medida que avançamos.

Embora queiramos lutar, vai ser muito difícil por causa dos problemas que herdamos deste império. Por exemplo, eu vi algumas lutas muito duras, emocionadas, em protestos contra a Convenção Nacional Republicana. Mas as pessoas se mantiveram bloqueadas, mesmo quem começou a chorar no processo. Não vamos superar algumas das nossas dinâmicas internas que nos mantiveram divididos, a menos que estejamos dispostos a passar por algumas lutas realmente difíceis. Esta é uma das outras razões pelas quais eu digo que não há uma resposta: só temos que passar por isso.

Nossas lutas aqui nos Estados Unidos afetam todos no mundo. As pessoas nas classes subalternas vão desempenhar um papel fundamental e a maneira como nos relacionamos com elas vai ser muito importante. Muitos de nós somos privilegiados o suficiente para ser capaz de evitar alguns dos desafios mais difíceis e vamos ter de abrir mão de parte desse privilégio, a fim de construir um novo movimento. O potencial está lá. Nós ainda podemos ganhar – e redefinir o que significa vencer – mas temos a oportunidade de promover uma visão mais rica da liberdade do que já tinha antes. Temos que estar dispostos a tentar.

Como um Pantera, e como alguém que passou à clandestinidade enquanto guerrilha urbana, pus a minha vida no limite. Eu assisti meus companheiros morrerem e passei a maior parte da minha vida adulta na prisão. Mas eu ainda acredito que podemos vencer. A luta é muito difícil e quando você cruza esse limite, você corre o risco de ir para a cadeia, ficar gravemente ferido, morto, e assistir seus companheiros ficando gravemente feridos e mortos. Isso não é uma imagem bonita, mas isso é o que acontece quando você luta contra um opressor enraizado. Estamos lutando e isso vai tornar tudo mais difícil para eles, mas a luta também vai ser difícil para nós.

É por isso que temos de encontrar maneiras de amar e apoiar uns aos outros através de tempos difíceis. É mais do que apenas acreditar que podemos vencer: precisamos ter estruturas consolidadas que possam nos ajudar a caminhar, quando sentirmos que não podemos dar mais nenhum passo. Acho que podemos mudar novamente se pudermos descobrir algumas dessas coisas. Este sistema tem que cair. Isso nos fere a cada dia e não podemos desistir. Temos que chegar lá. Temos que encontrar novas maneiras.

O anarquismo, se significa alguma coisa, significa estar aberto para o que quer que for preciso em nosso pensamento, em nossa vivência e nas nossas relações –  para vivermos plenamente e vencermos. De certa forma, eu acho que são a mesma coisa: viver a vida ao máximo é ganhar. É claro que vamos e devemos entrar em conflito com os nossos opressores e precisamos encontrar boas maneiras de fazê-lo. Lembre-se daqueles das classes subalternas, que são os mais afetados por isso. Eles podem ter diferentes perspectivas sobre como essa luta deve ser feita. Se nós não podemos encontrar caminhos para nos encontrarmos cara-a-cara afim de resolvermos essa situação, velhos fantasmas reaparecerão e nós voltaremos à mesma velha situação em que estivemos antes.

Vocês todos podem fazer isso. Você tem a visão. Você tem a criatividade. Não permitam que ninguém bloqueie isso.

 

De Perspectivas sobre a teoria anarquista, Primavera 2004 – Volume 8, número 1
http://www.anarchist- studies.org/publications/perspectives

FONTE: http://www.anarchist- studies.org/article/articleview/70/1/8/

Instituto de Estudos Anarquistas: http://www.anarchist- studies.org/

[1] In. “Perspectivas sobre a teoria anarquista”, boletim semestral do Instituto de Estudos Anarquistas, Primavera 2004 – Volume 8, Número 1

[2] Institute for Anarchist Studies

20 de Novembro – DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA

Sugar Children, 1996 (Vik Muniz) Imagem do site http://dacc.univasf.edu.br/obrasanteriores.html

Sugar Children/Crianças de Açúcar, 1996 (Vik Muniz)
Imagem do site http://dacc.univasf.edu.br/obrasanteriores.html
OBS: Nesta obra, Vik problematiza a contradição entre uma infância “doce”, da qual toda criança teria direito, e a escravização de crianças negras na produção de açúcar.

Hoje é o DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA então postamos aqui o link do texto “Consciência Negra como construção social e a ilusão da consciência humana” de Gabriela Moura, postado por BlogueirasNegras.org.
Texto: http://blogueirasnegras.org/2014/11/18/consciencia-negra-como-construcao-social-e-a-ilusao-da-consciencia-humana/
E, para fechar, alguns vídeo-clips:

 

O que é Fascismo, o que come, onde mora?

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Por Gilson Moura Henrique Junior

Segundo a Wikipédia:

Fascismo é uma forma de radicalismo político autoritário nacionalista que ganhou destaque no início do século XX na Europa. Os fascistas procuravam unificar sua nação através de um Estado totalitário que promove a vigilância, um estado forte, a mobilização em massa da comunidade nacional, confiando em um partido de vanguarda para iniciar uma revolução e organizar a nação em princípios fascistas. Hostil à democracia liberal, ao socialismo e ao comunismo, apesar de semelhanças com os últimos dois. Os movimentos fascistas compartilham certas características comuns, incluindo a veneração ao Estado, a devoção a um líder forte e uma ênfase em ultranacionalismo, etnocentrismo e militarismo. O fascismo vê a violência política, a guerra, e o imperialismo como meios para alcançar o rejuvenescimento nacional e afirma que as nações e raças consideradas superiores devem obter espaço deslocando ou eliminando aquelas consideradas fracas ou inferiores, como no caso da prática fascista modelada pelo nazismo”.

Ou seja, fascismo é um processo de radicalização da centralização do estado, é uma ampliação aguda do estado central e das identidades em um determinado estado-nação, ideologização das diferenças étnicas, ampliação ao máximo de um governo autoritário, a ponto de alguns autores incluírem-no sob a categoria de totalitarismo, profundo anticomunismo e extrema violência contra opositores. Acrescente a isso uma percepção orgânica da sociedade em simbiose com o estado, ou seja, estado e sociedade tornam-se um mesmo organismo vivo, cuja concepção de condição saudável é o tratamento da dissidência e de elementos dissonantes do ideal de pureza social como infecção, ou seja, passíveis de serem eliminados, “curados” ou “reeducados”, o que volta e meia são sinônimos na prática.

Por que discutir e definir o que é fascismo?

Porque o uso comum do termo mistura na qualificação de fascista todo tipo de elementos, dos mais autoritários aos menos confundindo ao fim e ao cabo a categorização chamando do PSTU ao Bolsonaro de fascistas, o que leva a uma confusão dos diabos pra terminologia e no fim, para a própria luta antifascista.

Se tudo é fascismo, nada é.

Da mesma forma misturar Stalinismo e comunismo com nazismo e fascismo é uma bela e estúpida desconstrução da nomenclatura em nome da generalização vulgar. Pode funcionar como ofensa, mas funciona melhor como desserviço.

As definições não precisam ser exatas neste caso por uma questão de apego à terminologia, mas por uma questão de gravidade do combate ao inimigo. Ao definirmos todos como fascistas esvaziamos o peso histórico e político do real fascismo.

Há uma diferença concreta entre o militonto idiota que segue lobão pedindo impeachment de Dilma e do militante do PSTU que age com autoritarismo silenciando a dissidência pro militante nazifascista que agride negros, gays e tudo o que ele considera inferior.

Há tanta diferença quanto entre o Alckmin mandando a PM bater e o que faria Bolsonaro, um fascista concreto, se comandasse a polícia. Se Alckmin é daninho e muito autoritário, o que Bolsonaro representa em comparação com o autoritário Alckmin precisa de multiplicação por mil pra ser compreendido. Se Cabral, Alckmin, Dilma e Aécio são autoritários, como via de regra todo estado é e todo governador ou presidente são, o fascismo é isso multiplicado por cem mil.

Imagine um quadro horroroso de morte de indígenas, negros, gays, mulheres, dissidentes? Tipo, sei lá, a ditadura militar Brasileira ou Pinochet? Imaginou? Pois é Mussolini e Hitler foram piores.

O que prega o fascismo é pior do que prega o pior de nossos exemplos autoritários à mão. E o fascismo usa essa confusão pra se imiscuir entre a direita mais moderada, dita democrática, e forçar seu crescimento pela banalização.

O fascismo usa a banalização do termo “fascista” pra transformar todos em idênticos a ele, e se todos são fascistas, ninguém é.

Claro que na sanha, no sangue, chamar o PM calhorda de fascista é do jogo, mas não é bom usar em divergências políticas com elementos de fora do campo fascista e até de fora do campo da direita clássica.

A não ser que ditador tenha virado elogio, transformar ditadura em fascismo esvazia o peso histórico do fascismo.

A Comuna de Paris (Kropotkin)

775px-Disderi_3Piotr Kropotkin

Fonte: Protopia

No dia 18 de março de 1871, o povo de Paris levantou-se contra o governo que desprezava e detestava e declarou que Paris era agora uma cidade independente, livre e dona do seu destino.

Essa derrubada do poder central aconteceu sem a costumeira encenação teatral que normalmente acompanha as revoluções. Não houve tiros e o sangue não chegou a correr sobre as barricadas. Quando o povo armado saiu às ruas, os governantes fugiram, as tropas abandonaram a cidade e os funcionários civis refugiaram-se apressadamente em Versalhes, levando tudo o que podiam. O governo se evaporou como uma poça de sangue estagnado em meio à brisa da primavera e no dia 19 de março Paris se viu livre da sujeira que a havia maculado, sem que tivesse corrido quase nenhuma gota de sangue de seus filhos. Entretanto essa mudança assim obtida deu início a uma nova era na longa série de revoluções pelas quais os povos começavam a trocar a servidão pela liberdade. Sob o nome de “Comuna de Paris”, nasceu uma nova idéia que havia de se tornar o ponto de partida para revoluções futuras.

Como acontece sempre, essa idéia não tivera origem no cérebro de um individuo isolado, nem era fruto das reflexões de um filosofo. Ela surgiu do espírito coletivo, nasceu no coração de toda a comunidade. Mas a princípio era algo vago e muitos daqueles que agiram e deram suas vidas para defendê-la não a viam com os mesmos olhos com que hoje a vemos. Eles não percebiam o alcance da revolução que haviam criado ou as possibilidades do novo conceito que acabavam de pôr em prática. Só depois é que começaram lentamente a entender suas conseqüências. Só mais tarde, quando começaram a refletir sobre o novo conceito é que ele se tornou mais claro e preciso e a beleza, justiça e importância dos resultados obtidos puderam ser avaliados.

Durante os cinco ou seis anos anteriores à Comuna, o socialismo ganhara novo alento graças ao rápido desenvolvimento da Associação Internacional de Operários. Em suas filiais regionais ou durante os congressos que realizava, os trabalhadores da Europa se encontravam e trocavam idéias sobre a questão social, algo que nunca tinham feito antes. Entre aqueles que percebiam que a revolução social era inevitável e que se preparavam ativamente para vivê-la, surgiu um problema que deveria ser resolvido antes de qualquer outro: O atual desenvolvimento da indústria forçará a eclosão de uma grande revolução econômica; essa revolução abolira a propriedade privada, fazendo com que todo o capital reunido pelas gerações pregressas passe a ser um bem comum a todos.

Após essas mudanças no sistema econômico, qual seria a melhor forma de organização política? “Não poderá ser uma agremiação apenas nacional respondeu a Associação Internacional mas deve estender se além das fronteiras artificiais e de todos os limites naturais.” Logo essa idéia grandiosa apossou-se do coração e do cérebro dos homens e, embora venha sendo perseguida desde então pelos esforços conjuntos de reacionários dos mais variados tipos, permanece viva ainda hoje. E quando as vozes dos povos em revolta tiverem removido os obstáculos que impedem o seu progresso, ela ressurgira mais forte do que nunca… Mas ainda faltava descobrir quais deveriam ser os elementos que iriam compor essa gigantesca associação. A essa pergunta, foram dadas duas respostas que expressavam duas correntes distintas. Uma falava em estado popular; outra, em anarquia.

Os socialistas alemães defendiam a idéia de que o estado deveria apossar-se de todos os recursos e riquezas acumuladas, distribuindo-as entre as associações de operários e mais, que estes deveriam tomar a si as atividades de produção e comércio e, de uma maneira geral, todas as atividades da sociedade.

A isso os socialistas latinos, que tinham atrás de si uma grande experiência revolucionária, responderam dizendo que seria um milagre se tal estado pudesse um dia existir, mas que, se isso chegasse a acontecer, certamente ele acabaria por se tornar a pior das ditaduras. Esse ideal de criar um Estado todo poderoso e bom é apenas uma cópia de algo que existiu no passado, diziam, e confrontavam-no com a idéia de um novo ideal, a anarquia, isto é, a abolição total do estado, um sistema em que todas as formas de organização social, da mais simples à mais complexa, fossem obtidas através de federações livres, reunindo grupos populares de produtores e consumidores.

Até mesmo os socialistas mais liberais admitiram que a anarquia sem dúvida representava um tipo de organização bem superior àquela pretendida pelo estado popular. Mas, diziam eles, o ideal anarquista é algo tão distante, que não podemos perder tempo com ele agora.

Ao mesmo tempo, a verdade é que a teoria anarquista necessitava de uma forma de expressão que fosse clara e concisa, uma fórmula ao mesmo tempo simples e pratica, em que pudesse demonstrar suas origens e incorporar suas concepções, onde provasse que era apoiada por uma tendência que já existia antes entre o povo. Uma federação de associações operárias e grupos de consumidores que não levasse em conta as fronteiras e se mantivesse independente em relação aos estados já existentes ‘parecia urna idéia demasiado vaga: e mais, era fácil perceber que ela não poderia satisfazer totalmente a infinita variedade de exigências humanas. Era preciso encontrar uma fórmula mais simples, mais facilmente compreensível, que tivesse uma base firme e bem enraizada na vida real.

Se o problema se resumisse apenas a encontrar a melhor forma de elaborar urna teoria, poderíamos dizer que as teorias, como teorias, não são assim tão importantes. Mas enquanto uma nova idéia não encontra uma forma de expressão clara e precisa, a partir de fatos concretos, tais como eles existem na realidade, ela não conseguirá apoderar-se da mente dos homens. Nenhum homem se animará a mergulhar no desconhecido se não for animado por idéias positivas e claramente formuladas que lhe sirvam, por assim dizer, como um trampolim quando chegar o momento.

Quanto a esse momento, será preciso que a própria vida o indique.

Durante cinco longos meses, Paris esteve cercada pelos alemães. Durante cinco meses, ela precisou lançar mão de seus próprios ‘recursos vitais e de toda a força moral de que dispunha. Teve então idéia de sua capacidade de resistência e percebeu o que ela significava. Percebeu também que o bando de tagarelas que havia tomado o poder não tinha a menor idéia sobre como organizar a defesa da cidade ou sobre como promover seu desenvolvimento interno. Viu um governo que se opunha a todas as manifestações de inteligência daquela metrópole poderosa. Entendeu, finalmente, que qualquer governo é impotente para proteger-se das grandes catástrofes é incapaz de preparar o caminho para a evolução. Durante o cerco, a cidade vira seus defensores, os operários, sofrendo as mais terríveis privações enquanto os ociosos se regalavam em meio a um luxo insolente e, graças aos esforços do governo central, presenciara o fracasso de todas as tentativas de acabar com essa situação escandalosa. E cada vez que o povo demonstrava sinais de um desejo de libertar-se, o governo colocava novos grilhões na corrente. Essas experiências fizeram com que se chegasse naturalmente à conclusão de que Paris precisava libertar-se, tornar-se uma comunidade independente, capaz de satisfazer sozinha todas as aspirações de seus cidadãos.

Mas a Comuna de Paris não podia ser mais do que uma primeira tentativa. Iniciada ao término de uma grande guerra, espremida entre dois exércitos prontos a dar as mãos para esmagá-la, ela não se atreveu a enveredar pelo caminho da revolução econômica. Não iniciou um processo de expropriação do capital ou de organização do trabalho. Não soube ao menos avaliar os recursos da cidade. Também não conseguiu romper com a tradição de um governo representativo, nem procurou realizar dentro da comuna, o mesmo tipo de organização que, partindo do simples, chegas- se ao mais complexo, e que fora instaurada externamente pela proclamação da independência da cidade e a livre associação das federações.

E no entanto, o certo é que se a Comuna de Paris tivesse durado mais alguns meses, ela teria sido inevitavelmente levada pelas circunstâncias em direção a essas duas revoluções.

Não esqueçamos que a classe média francesa gastou quatro anos (de 1789 a 1793) em ações revolucionárias, antes que conseguisse transformar a monarquia limitada numa república. Deveríamos pois surpreender-nos ao ver que o povo de Paris não conseguiu ultrapassar de um salto a distância que separa uma comuna anarquista de um governo de espoliadores? Além disso, não devemos esquecer que a próxima revolução que, pelo menos na França e na Espanha deverá ser comunista, vai retomar o trabalho da Comuna de Paris no ponto que foi interrompido pelos massacres da soldadesca de Versalhes.

A Comuna foi enfim derrotada e sabemos muito bem como a classe média se vingou do susto que o povo lhe havia pregado ao tentar soltar as cordas que seus senhores mantinham em torno dos seus pescoços. Isso veio provar que a sociedade moderna é, na verdade, composta por duas classes: de um lado, o homem que trabalha e cede mais da metade daqui- lo que produz aos que detêm o monopólio da propriedade e que, no entanto, parece indiferente aos males que os patrões podem fazer-lhe; de outro, o ocioso, o espoliador que odeia o seu escravo e que está sempre pronto a matá-lo, como se ele fosse uma caça qualquer, um homem animado pelos mais selvagens instintos sempre que vê ameaçada a sua propriedade.

Depois de ter cercado o povo de Paris e fechado todas as vias de saída, o governo soltou sobre eles um bando de soldados embrutecidos pelo vinho e pela vida na caserna, homens que haviam sido publicamente instruídos para “acabar logo com os lobos e suas crias”.

Depois dessa orgia louca, dos corpos empilhados após esse extermínio em massa, veio a vingança mesquinha, o chicote, os ferros, os golpes e insultos dos carcereiros, a quase morte pela fome, enfim todos os requintes da crueldade. Poderá o povo esquecer esses fatos?

Derrubada mas não vencida, a Comuna renasceu. Já não é mais um sonho dos vencidos, acariciando na imaginação a bela imagem da esperança. Não! A comuna se tornou hoje o objetivo visível e definido da revolução que ruge sob os nossos pes. A idéia penetrou fundo entre as massas, que a recebe com gritos de entusiasmo. Contamos com a geração atual para fazer com que a revolução aconteça dentro da comuna, para pôr um fim ao ignóbil sistema de exploração nas mãos da classe média, para livrar o povo da tutela do Estado e iniciar uma nova era de liberdade, igualdade, solidariedade.

Dez anos nos separam do dia em que o povo de Paris derrubou o traidor que subira ao poder no crepúsculo do Império; por que será que as massas oprimidas do mundo civilizado ainda hoje sentem uma irresistível atração pelo movimento de 1871? Por que a idéia representada pela Comuna de Paris ainda fascina os operários de todos os países? A resposta é fácil. A revolução de 1871 foi, antes de mais nada, uma revolução popular, feita pelo próprio povo, surgindo espontaneamente da massa e nela encontrando seus defensores, seus heróis e seus mártires. E exatamente por ser tão “baixa”, a classe média jamais pode perdoá-la. E ao mesmo tempo, o que a tornava tão popular era seu caráter de revolução social, uma idéia certamente um tanto vaga, talvez inconsciente, mas ainda assim um esforço no sentido de obter enfim, depois de séculos de luta, a verdadeira liberdade, a verdadeira igualdade para todos os homens. Era o levante das camadas mais baixas buscando a conquista dos seus direitos.

Muitas foram as tentativas feitas para mudar o verdadeiro significado dessa revolução, representando-a como um simples esforço para retomar a independência de Paris e desse modo constituir um pequenino Estado dentro da França. Mas nada pode ser mais falso. Paris não procurou se isolar da França, nem muito menos conquistá-la pela força das armas; a ela não agradaria a idéia de permanecer encerrada dentro de suas próprias fronteiras, como uma monja num convento: o que a inspirava não era o espírito limitado do claustro. Se ousara reclamar sua independência, se tentara evitar a interferência do poder central em seus assuntos, foi porque vira nessa independência uma forma de elaborar com tranqüilidade as bases da futura organização política e de provocar uma revolução social dentro de seus próprios limites. Uma revolução que teria alterado completamente todo o sistema de produção e troca, dando-lhe como base a justiça; que teria modificado totalmente as relações humanas colocando-as em pé de igualdade; que teria renovado a nossa moral social baseando-se na igualdade e na solidariedade. Para o povo de Paris, a independência da cidade era apenas um meio, seu objetivo maior era a revolução social.

E esse objetivo poderia ter sido atingi-lo se a revolução de 18 de março tivesse seguido seu curso natural, se o povo de Paris não tivesse sido trucidado pelos assassinos de Versalhes. A verdadeira preocupação do povo de Paris, desde os primeiros dias de sua independência, foi encontrar uma idéia precisa e clara, algo que pudesse ser facilmente entendido por todos e que resumisse em poucas palavras o que era necessário para que a revolução se tornasse uma realidade.

Mas uma grande idéia não pode germinar num só dia, por mais rápida que seja a elaboração e a difusão de idéias durante os períodos revolucionários. Ela precisa sempre de um determinado tempo para que possa desenvolver-se, para que penetre na massa, transformando-se finalmente em ação e a Comuna de Paris não lhe deu tempo suficiente. Ela fracassou principalmente porque, como já observamos antes, há dez anos atrás o socialismo passava por um período de transição. O comunismo autoritário e semi-religioso de 1848 já não conseguia conquistar as mentes mais práticas e mais livres da nossa época. O coletivismo que tentará juntar o sistema de salários com a propriedade privada era incompreensível, despido de atrativos e cheio de falhas que dificultavam a sua aplicação na prática. O comunismo livre ou anarquista recém começava a tomar forma no cérebro dos operários e ainda não tinha coragem de provocar as críticas daqueles que defendiam o governo. Estavam todos indecisos. Os próprios socialistas, sem um objetivo definido em vista, não se atreviam a lançar-se sobre a propriedade privada; eles se iludiam com a desculpa que já impedira a ação de muitos outros em épocas anteriores: “Precisamos ter primeiro a certeza de que venceremos e só depois será possível ver o que pode ser feito”.

Certeza na vitória! Como se houvesse alguma forma de criar uma comuna livre sem acabar com a propriedade privada. Como se fosse possível vencer o inimigo quando as massas não estão diretamente interessadas na vitória da revolução, percebendo que ela poderá trazer bem estar moral, material e intelectual para todos! Eles tentaram consolidar a Comuna e só depois tratar da revolução social sem perceber que a única forma correta de agir seria consolidar a Comuna através da revolução social.

O mesmo aconteceu com respeito ao conceito de governo. Ao proclamar a Comuna livre, o povo de Paris proclamara também um princípio básico do anarquismo, ou seja, a derrubada do estado. Mas como o conceito de anarquismo recém começava a surgir, não tardou para que fosse contido, e logo o velho princípio da autoridade ressurgiu e o povo se outorgou um Conselho nos moldes dos conselhos municipais já existentes.

Entretanto, se admitimos que a existência de um governo central que regule as relações entre as comunas e algo totalmente desnecessário, por que deveríamos admitir que necessitamos dele para regular as relações mútuas dos vários grupos que constituem a comuna? E se deixamos que as próprias comunas diretamente interessadas decidam sobre as questões que interessam várias cidades ao mesmo tempo, por que recusar esse direito aos vários grupos que compõem cada comuna? Assim como nos parece desnecessária a existência de um governo fora da comuna, deveríamos também perceber a inutilidade de um governo dentro dela.

Mas em 1871, o povo de Paris, que já derrubou tantos governos, recém fazia a sua primeira tentativa de revolta contra o próprio sistema: conseqüentemente, deixaram-se levar pela admiração fetichista que os governos inspiravam então e criaram o seu próprio governo.

O resultado todos conhecem. Paris enviou seus filhos mais dedicados para a Câmara Municipal. Lá, perdidos entre pilhas de velhos documentos, obrigados a legislar quando o instinto lhes dizia que deveriam estar agindo entre a massa, obrigados a discutir quando era necessário agir, a acomodar-se quando a melhor política teria sido lutar e, finalmente, perdendo a inspiração que só é renovada pelo contato continuo com as massas, eles se viram reduzidos à impotência. Paralisados pela distância que os separava do povo – o centro e coração da revolução – eles próprios acabaram paralisando a iniciativa popular.

Assim, a Comuna de Paris, fruto de um período de transição, nascida sob a mira das armas prussianas, estava destinada a desaparecer. Mas pelo seu caráter eminentemente popular. ela deu origem a uma nova série de revoluções e pelas idéias que lançou tornou-se a precursora de todas as revoluções sociais. O povo aprendeu a lição e, quando surgirem mais uma vez na França os protestos das comunas revoltadas, ele já não esperara que o governo tome atitudes revolucionárias. Quando tiverem se libertado dos parasitas que os devoram, tomarão posse de toda a riqueza social disponível de acordo com os princípios do comunismo anarquista. E quando tiverem abolido totalmente a propriedade privada, o governo e o estado, irão se organizar livremente, de acordo com as necessidades indicadas pela própria vida. Rompendo as correntes, derrubando seus ídolos, a humanidade marchará em direção a um futuro melhor, desconhecendo senhores e escravos e venerando ainda os mártires que pagaram com seu sofrimento e o seu sangue naquelas primeiras tentativas de emancipação que iluminaram a nossa marcha pela conquista da liberdade.

Filme: O Fantasma da Liberdade, de Luis Buñuel (1974)

Texto de Juliana Fausto, retirado do site CONTRACAMPO, Revista de Cinema, fonte aqui.

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Fantôme, Fantasma. Do grego phântasma, aparição, visão, sonho. Essa é a primeira palavra do título do penúltimo filme de Luis Buñuel, O Fantasma da Liberdade. Já se disse que esse fantasma estaria fazendo referência lá à primeira sentença do “Manifesto Comunista”: “Um fantasma ronda a Europa – o fantasma do comunismo”. Mas parece que ainda podemos ir mais fundo no sentido se nos detivermos um pouco sobre a palavra ‘fantasma’. Aparição. Visão. Sonho. Todos esses sentidos sendo atrelados à liberdade. Porque o que vivemos hoje em sociedade está longe de ser uma experiência de liberdade, mas como o diretor apontou, estamos de tal modo presos às nossas “jaulas psíquicas a ponto de as preferirmos à liberdade, uma experiência e aspiração que tampouco entendemos ou desejamos”. E o que Buñuel pretende é justamente mostrar a arbitrariedade voluntariosa que preenche a vida cotidiana; a maneira como, clamando não possuirmos nenhum mestre a nos mandar, nos tornamos escravos de nossos desejos, escravos cegos de nós mesmos.

A liberdade só pode ser experimentada por nós pois, como aparição, visão ou sonho. E é sobre isso o Fantasma…. Assim como o espectro do comunismo assombrava a Europa lá pelos idos de 1850, o intento de Buñuel aqui foi o de soltar o fantasma da liberdade, levá-lo para as ruas, para o meio da sociedade do desejo burguesa que sempre foi seu alvo preferido.

O Fantasma da Liberdade é composto por esquetes que não tem muita ligação uns com os outros a não ser o fato de que todos denunciam as prisões a que estamos atados, prisões estas que se manifestam como convenções sociais. Um dos episódios mostra uma família sentada à mesa conversando; muito normal, se não fossem assentos sanitários ao invés de cadeiras o que se percebe ao redor dela. Quando sentem fome, vão até um quarto fechado, o que seria um banheiro, e lá fazem suas refeições. Antes do surrealismo, em O Fantasma da Liberdade, há uma “doce subversão”, palavras do próprio Buñuel. Basta lembrarmos que na Idade Média, por exemplo, existia realmente uma cadeira com um orifício no meio do assento, embaixo da qual se posicionava estrategicamente um penico, de modo que aqueles que participassem de um banquete pudessem, digamos, se aliviar sem que precisassem deixar a mesa.

Em seu Meu Último Suspiro Buñuel conta que com o surrealismo “…eu entrei em contato com um sistema moral coerente que, até onde eu posso ver, não possui falhas. Era uma moralidade agressiva baseada na rejeição completa de todos os valores existentes.” Tal qual um filósofo cínico, um Diógenes, vemos Luís Buñuel transitar pelo espaço social pondo em xeque tudo o que se toma comumente por dado. Se, segundo conta a tradição, aquele teria falsificado moedas – talvez o primeiro caso de falsificação de dinheiro da história – para mostrar que seu valor, longe de ser absoluto, é mera convenção, este com seu O Fantasma da Liberdade falsifica a realidade para mostrar que a maior parte dos valores sociais, se não todos, também são mera convenção – convenção esta que acaba por nos manter cada vez mais presos.

Para conclusão deixamos aqui o mesmo olhar confuso da avestruz no fim do filme, ao fitar – fito estrangeiro, que percebe a sociedade humana como outro de si – o espetáculo um tanto bizarro que se passa.

Juliana Fausto