Anarcosindicalistas espanhóis pretendem julgamento do genocídio franquista cometido entre 1936 e 1977

Fonte: Coletivo Libertário Évora

Mulheres Republicanas raspadas pela repressão Franquista

Mulheres Republicanas raspadas pela repressão Franquista

Em Portugal isso nunca aconteceu. Nunca houve um julgamento do regime fascista. No Estado Espanhol, a CNT pretende levar para a frente o processo do franquismo e associou-se às  acções que estão a ser levadas a cabo, nos tribunais argentinos, por iniciativa de familiares de vítimas e associações que lutam contra o branqueamento do fascismo. Entre 1936 e 1977, a CNT contabiliza 50 mil fuzilados, 73 mil assassinados e 30 mil desaparecidos.

A Confederação Nacional do Trabalho apresentou recentemente  em Madrid a denúncia que juntou no passado mês de Dezembro ao processo que está a transitar nos tribunais argentinos e que pretende julgar o genocídio cometido pelo regime de Franco desde 1936 até 1977. Deste modo a CNT associa-se às acções empreendidas por parte de familiares de assassinados e desaparecidos, associações de recuperação da memória histórica e outras entidades interessadas.

A CNT pretende assim trazer para a luz do dia a repressão sofrida pela organização e pelo Movimento Libertário desde o golpe militar de 18 de Julho de 1936 até à lei da amnistia de 1977, uma lei que pretende passar em branco mais de 40 anos de um regime instaurado pela força e baseado na violência física e social. O seu máximo dirigente e executor, o general Francisco Franco, contou para isso com a colaboração de diferentes sectores militares, financeiros, políticos e eclesiásticos católicos, todos eles implicados na autoria e direcção do golpe.

Neste acto público participaram Alfonso Alvarez, secretário geral da CNT, José Ramon Palacios, presidente da Fundação Anselmo Lorenzo e Javier Antón, coordenador do Grupo de Trabalho da Memória Histórica –CNT. Além destes, prestaram o seu testemunho três sobreviventes da repressão franquista, Félix Padin, Antonio Amate e Aurora Tejerina,

Com esta acção a CNT pretende proclamar “publica e energicamente, face a um esquecimento cúmplice, o seu desejo e interesse em por a claro e divulgar o desastre que foi a instauração do franquismo, assim como os terríveis danos causados à organização confederal que foi o alvo principal da acção repressiva do regime durante décadas”.

Um balanço objectivo da repressão, passados já quase três quartos de séculos do golpe militar e após consulta à numerosa bibliografia especializada sobre a Guerra Civil espanhola, dá-nos a números dramáticos, alguns baseados inclusivamente em fontes oficiais do governo franquista: 50 mil fuzilados, 73.000 assassinados na retaguarda, 30.000 desaparecidos; 500.000 levados para campos de concentração, 300.000 presos e um número indeterminado de violações, raptos e roubo de crianças.

(com: Secretariado Permanente del Comité Confederal CNT-AITprensa@cnt.es )

(Estado espanhol) CNT contra a perseguição ao movimento anarquista

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

A CNT solidariza-se com todos os detidos na operação policial de 30 de Março

O Estado volta a recorrer à repressão e tenta, de novo, criminalizar a ideologia e os colectivos anarquistas. Para isso põe em marcha todo o seu poder mediático e judicial, tentando desta maneira instalar na sociedade um clima de medo e insegurança que justifique a aprovação e a aplicação de novas leis, cada vez mais repressivas e reaccionárias. Precisam de um inimigo e fabricam-no. Primeiro fazem as leis; depois procuram alegados culpados a quem elas se apliquem. Com isto pretendem esconder ao serviço de quem está toda a máquina do estado, que não é senão as grandes empresas e a banca.

Quando, apesar dos apelos à participação nos processos eleitorais, se mantêm ou aumenta a resposta na rua contra os cortes sociais e laborais e a perda de direitos, o estado necessita reforçar as suas ferramentas repressivas e de controlo social. E põem-nas em acção contra aqueles que o enfrentam.

As prisões e as buscas de hoje acontecem, precisamente, poucos dias depois de ser aprovada a nova Lei de Segurança Cidadã, mais conhecida como Lei Mordaça, à qual não só se opõem os movimentos sociais e sindicais mais combativos. Instituições tão pouco suspeitas de serem “anarquistas Terroristas” como ONG’s e outros movimentos sociais, a União Europeia ou a ONU também manifestaram o seu repúdio ou as suas reservas face a esta lei.

A relação entre os dois factos parece-nos nítida. As operações policiais acompanham a aprovação de uma lei tão controversa, jogando aqui o movimento e os colectivos anarquistas o papel de vitimas “à mão de semear”: como não se apresentam a eleições nem têm lugar fixo nas tertúlias televisivas, as suas denúncias ficam silenciadas pelo ensurdecedor ruído mediático. Ao mesmo tempo que a lei gera alarme social e procura uma base de apoio a política do quero e posso reprime qualquer reivindicação que ponha em perigo o seu controlo sobre a resposta social e sindical aos seus ataques-

 O único terrorismo real de que sofre a classe trabalhadora é o que se exerce a partir do poder: os despejos, o desemprego, o desmantelamento do sistema de saúde e de educação… Como gritamos nas ruas “violência é o dinheiro não chegar ao fim do mês”. Não podemos permitir que espezinhem os nossos direitos mais básicos. Antes prendiam manifestantes e grevistas. Hoje prendem anarquistas. Amanhã serás tu. E então já será tarde.

 Não à repressão. Não à prisão de quem luta.

Secretariado Permanente do Comité Confederal da CNT

http://www.cnt.es/noticias/cnt-en-contra-de-la-persecuci%C3%B3n-al-movimiento-anarquista

relacionado: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2015/03/30/novas-detencoes-de-anarquistas-no-estado-espanhol/

https://directa.cat/policia-espanyola-dete-28-persones-en-una-operacio-contra-collectius-anarquistes

https://www.diagonalperiodico.net/libertades/26261-26-detenciones-madrid-la-segunda-parte-la-operacion-pandora.html

Syntagma, Syriza: entre a praça e o palácio (entrevista com Stavros Stavrides)

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Stavros Stavrides, foto de Burkhard Lahrmann

 

Como relacionar Syriza e movimentos contra a crise, uma vez que a ocupação de Praça Syntagma em 2011 acabou porpor abaixo e reinventar a política?

Entrevista com Stavros Stavrides, ativista presente na ocupação da praça Syntagma e professor de arquitetura na Universidade Técnica de Atenas.

Fonte: El Diario.Es

Tradução para o Português (Coletivo Anarquia ou Barbárie com Google Tradutor)

Diz-se que a ocupação da Praça Syntagma, em Atenas era um efeito de 15M. Alguém na Puerta del Sol levou um cartaz dizendo: “Silêncio, que vão despertar os gregos” e eles tomaram as ruas. Em 25 de maio de 2011 os gregos levaram o recado a sério e ocuparam a praça Syntagma e centenas de locais em todo o país. 100.000 pessoas cercaram o Parlamento com um grande sinal em espanhol: “Estamos acordados. Que horas são? É hora de sair. ”

Houve movimentos sociais, mas sim (como em 15M) a sociedade em movimento. Stavros Stavrides, ativista e professor de arquitetura em Atenas, estava lá, viveu na experiência de profundidade Syntagma e já havia amplamente pensado nisso . Para ele, a ocupação da praça não era simplesmente uma forma coletiva de protesto ou reclamação, mas também “uma forma de recuperar nossas próprias vidas e de propor uma maneira diferente de compor vida social”. A reinvenção da democracia, espaço público e as relações sociais com base em idéias e igualdade prática, auto-ajuda, co-implicação, nenhuma delegação.

E agora, três anos e meio após, ocorre a vitória do SYRIZA. Como interpretar a partir da perspectiva da Syntagma? Como pode pensar o relacionamento, agora na Grécia, talvez amanhã, em Espanha, entre os movimentos a partir de baixo e os governos que desafiam o neoliberalismo? Nós conversamos sobre isso com Stavros Stavrides. Sua obra teórica centra-se em movimentos urbanos e conflitos. E seu livro Para uma cidade de limiares, que investiga, entre outros, a experiência da ocupação de Praça Syntagma, foi publicado em 2015 na Espanha, a editora Akal.

***

1. Até o momento, o que é a realidade e vitalidade dos processos de auto-organização que eclodiram em 2011? Você ainda está vivo, e como o legado de Praça Syntagma?

Stavros Stavrides. O legado de Syntagma é uma realidade que nem sempre é visível no primeiro plano da vida social e política. Deve ser rastreada em várias iniciativas, de modo coladas às cotidiano das pessoas, tais como cozinhas coletivas em bairros, centros de saúde municipal autónomas ou que atendem quem foi deixado de fora da segurança social, a partilha de práticas, produtos e serviços sem intermediários, os movimentos contra os despejos em massa na Espanha, cooperativas que surgem uma após o outra, etc.

Syntagma tem contribuído para redes de ajuda mútua que sustentam a vida de muitas pessoas na Grécia e também geram novas relações sociais, além do individualismo. Há um legado, uma herança viva de Syntagma, que mudou a mentalidade social em muitas maneiras.

2. Como Syriza foi relacionada ao movimento de Syntagma?

Stavros Stavrides. É importante dizer que Syriza foi o único partido Esquerda que oficialmente não era contra Syntagma, como foi explicitamente KKE (comunistas stalinistas). Não houve uma posição única dentro do partido, mas muitos militantes do Syriza contribuíram para as actividades de Syntagma. Mesmo alguns deputados (não todos) simbolicamente se aproximaram da praça e dizendo “estamos com vocês e não com um parlamento sequestrado e longe da vontade das pessoas”. Syriza não era contra Syntagma, mas sim o contrário, mas também não é um resultado desses movimentos, como o Podemos pode ser capaz.

3. O que você quer dizer?

Stavros Stavrides. Syriza preexistiu ao Syntagma. Está ligado a uma longa tradição de partidos de esquerdas não-soviéticos na Grécia. Ela remonta a 1968, quando o Partido Comunista, ainda ilegal, se partiu em dois: a parte eurocomunista e o partido stalinista. Syriza é a evolução do Partido Comunista eurocomunista e compartilha mais ou menos sua tradição em termos de organização, a visão do Estado, a relação entre o partido e os movimentos, etc.

4. Mas, há alguns anos o seu âmbito eleitoral foi insignificante, 3 ou 4%. Que influência você acha que pode ter tido movimentos Syntagma na recente vitória do SYRIZA?

. Stavros Stavrides Não há uma conexão determinista, causa e efeito, entre os dois momentos, mas eu e um monte de outras pessoas gostamos de pensar que a Syntagma criou uma nova consciência na sociedade e contribuiu decisivamente para neutralizar um pouco do medo que atravessa hoje a Grécia e que aparece quando se questiona a “necessidade” de políticas de austeridade. O movimento na praça Syntagma foi destruída pela força e repressão, mas o espírito de resistência e rebeldia ao destino permaneceram e se espalhou para fora da praça. O SYRIZA não teria vencido a eleição se não tivesse sido esse espírito,se o medo não fosse desafiado.

5. Embora as pessoas na Syntagma não defendessem o voto como um meio de transformação …

Stavros Stavrides. Exato. O espírito da Syntagma foi baseado sobre a idéia de resistência popular e da redescoberta da democracia e democracia direta, com uma coordenação complexa e sem qualquer centralização, prenhe de uma pluralidade de iniciativas coletivas. Foi um movimento contra a democracia representativa.

Mas na ausência de vitória do movimento sobre as políticas de austeridade, Syriza apareceu para a população como a única opção para a mudança. A única organização que não era corrupta, não sujeitos à Troika, o que poderia garantir mudança democrática e medidas que contribuam para conter os fatores que destroem a vida social. O deslocamento de pessoas e o movimento em direção a votação foi uma conjuntura que deixava claras as condições de um deslocamento forçado.

Em qualquer caso, o Syriza não substitui os movimentos. E talvez, com Syriza no governo, seja gerado um ambiente em que os movimentos podem se desenvolver mais e melhor.

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Conversación en Atenas, Enrique Flores (4ojos.com/blog)

6. Que capacidade de afetar as políticas do SYRIZA reter as experiências de mobilização?

Stavros Stavrides. Basta esperar e ver. Ninguém pode ter certeza que vai acontecer. Syriza fez declarações muito positivas sobre algumas demandas importantes dos movimentos nas áreas de educação e saúde, com relação ao salário mínimo, etc. Há uma vontade explícita do SYRIZA para atender a essas demandas. Estas medidas não podem ser tomadas em dois dias, mas SYRIZA também conhecido por não desfrutar de um longo período de tolerância e deve agir imediatamente para mostrar que realmente acredita no que diz. Caso contrário, haverá novas erupções sociais. Mas agora estamos naquele período de esperar para ver.

7. O artigo “Depois Syntagma” , falou sobre isso na esquerda e abaixo, na Grécia teve duas idéias de democracia: uma idéia de democracia participativa (representado por SYRIZA) e uma idéia de democracia direta (representado por Syntagma ). Como você imagina que você pode ser a coexistência entre os dois?

Stavros Stavrides. Coexistência, não. Infelizmente, Syriza tem evoluído nos últimos tempos para um modelo de partido está fechado em torno de uma pequena cúpula. Ele tem sido verticalizado e “presidencializado” muito. É uma crítica feita até mesmo dentro do próprio partido. Eu não acho que SYRIZA pode ser cidadão e um transmissor direto que canalizará a participação das pessoas. Pode, no entanto, representar os eleitores, escolhendo políticas que canalizem demandas da sociedade.

A democracia direta joga em outro nível, redefinir a política como uma atividade não-especializado que atravessa todos os níveis da vida diária. É uma política do cotidiano.

Eu acho que agora nós podemos intervir em dois níveis: empurrar a democracia representativa além dos seus limites, através de formas radicais de democracia direta, mas considerando que a democracia representativa (com um jogo como SYRIZA no poder) pode abrir áreas mais propícias à liberdade e experimentos autônomos que prefiguram uma outra sociedade. Podemos reivindicar, por um lado, as medidas contra a corrupção ou a favor da transparência na gestão e desafiar ao mesmo tempo, os limites da representação, mediante conflitos e contra-exemplos, construindo formas de governo que vão além de autoridade pública. Jogar em ambos os níveis.

8. É o fim da austeridade, como dizem todos os lugares? O que pode um governo contra a lógica neoliberal do capitalismo contemporâneo?

Stavros Stavrides. Um governo que não se apresse procurando o proprietário,a burguesia, vamos ver. Podem haver mudanças sérias e importantes em direção a uma hora de questionamento geral do contexto neoliberal. As lutas de baixo podem influenciar o que faz um Estado. Um governo verdadeiramente progressista pode desempenhar um papel importante para reverter o equilíbrio de forças no seio da UE. Existem vários níveis de desempenho, não necessariamente contraditórios. Quer dizer, a renegociação da dívida é muito importante, mas também é preciso repensar e questionar os modelos dominantes de desenvolvimento e crescimento. De cima você pode influenciar as políticas neoliberais, mas acho que as mudanças necessárias que só podem ser produzidos a partir de baixo para sair do quadro neoliberal são.

9. Depois de três anos de muito fortes lutas sociais na Espanha, jogamos com uma série de limites. Por fora, as políticas de austeridade continuam devastadora. Internamente,, uma certa crise de imaginação política dos movimentos (como e para onde ir). E agora a atenção e desejo parece ter-se deslocado da praça para partir em assalto ao palácio. Você acha que os movimentos autônomos e processos de auto-organização tem limites intrínsecos?

Stavros Stavrides. Eu não estou em posição de oferecer respostas claras. Basta tentar pensar com você, e com colegas de todo o mundo, como podemos superar esta situação.

Eu acho que há as fronteiras que são históricas, não lógicas ou ontológicas. Nós não chegamos a uma espécie de limite absoluto para além do qual você tem que fazer as coisas de acordo com as formas de política tradicional, eu não penso assim. O estado é um elemento específico, historicamente datado, uma forma de organizar as relações sociais. Ele não é eterno, nem a única forma possível de organização social. Podemos ir além do modelo de estado.

Nesse sentido, a criatividade social implantada na Primavera Árabe, praças 15M ou Syntagma deve ser a nossa única guia. Então,por esse jugo, a política deve existir abrindo mais espaço para os processos debaixo. Se estes processos são subordinados à política de cima, então não é profunda e nem produz mudança real possível. Os vestígios deixados pelos movimentos das praças são apenas sementes que necessitam de tempo para germinar e dar frutos plantados. E nós temos que tomar cuidado e garantir o seu crescimento.

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Conversación en Atenas, Enrique Flores (4ojos.com/blog)

10. Diferentes autores, como Alain Badiou ou o Comité Invisible , acho que a única maneira de ir além do pêndulo entre neo-liberalismo e da democracia social é reabrir e reconsiderar a questão revolucionária, o problema da transformação radical da sociedade. O que você acha?

Stavros Stavrides. Eu concordo, mas se repensarmos a revolução fora do imaginário religioso e de vida após a morte, um acontecimento que divide a história da humanidade em um ”antes” em um “depois”. As sociedades não se transformam por um tipo de erupção vulcânica instantânea que consome o passado pra construir o futuro. O tempo para a mudança tem diferentes ritmos, diferentes níveis, nem sempre sincronizados.

Devemos preservar, claro, a ideia de ruptura, as alterações não são fluidas e suaves, mas tenho medo da idéia de mudança como algo extraordinário e estrelado por sujeitos extraordinários. Eu acredito mais na ideia Zapatista: os rebeldes são pessoas comuns. Nem heróis nem pessoas excepcionais, não há um “escolhido”, mas pessoas comuns que precisam se rebelar para uma vida digna.

Se repensarmos a revolução a partir de baixo, acho que a revolução é o já,ela já está e já está mostrando exemplos de que a sociedade desejada pode ser construída. Já é possível: nós sabemos o que a solidariedade e generosidade pode criar. A revolução não é uma mudança total e imediata, mas uma série de experiências em que são produzidas alterações. As erupções repentinas não são mais importantes do que o que acontece todos os dias abaixo do radar da mídia e, finalmente, gera as mudanças decisivas.

11. Um argentino amigo me perguntou se eu acreditava que o movimento de fundo do que aconteceu desde 2011 em Espanha foi o desejo de viver em um “capitalismo pacífica” ou a busca de novas formas de vida. O que você diz, em relação à Grécia?

Stavros Stavrides. Parece que o desejo de inventar novas formas de vida continua a ser um desejo minoritário, mas não tão pequeno como ele costumava ser. E isso não é mais uma questão de ideologia, mas de experiência. Os grupos de bairro reinventaram a solidariedade não porque eles são comunistas ou anarquistas, mas porque é a única maneira de viver com dignidade.

É claro que há muitas pessoas com o desejo de viver com as ilusões de antes (eu digo ilusões, porque o “capitalismo pacífica” nunca foi uma realidade para a maioria), mas também se abre uma oportunidade muito poderosa para influenciar o imaginário social. Porque hoje em dia modos de vida individualistas não podem se realizar, não conseguem se sustentar. As novas formas de vida são construídas lentamente, cheio de contradições e sem pureza, são construídas e influem cada vez mais em cada vez mais consciências.

Alvaro Diego e Pepe me ajudou a pensar sobre as perguntas, muito obrigado! Eugenia Michalopoulou ajudou com a tradução. Enrique Flores facilitou o contato e ilustrações.

Isso se traduziu em entrevista Inglês

As máscaras e o Black Bloc

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Fonte: Protopia

Por Black Bloc

Uma matéria sobre as origens do Black Bloc para desmistificar o caráter “porra-louca” que recebe de alguns camaradas, no mínimo, desinformados…

A história pré-Seattle

Aqueles que possuem autoridade, temem a máscara pelo seu poder em identificar, rotular e catalogar comprometido: em saber quem você é… nossas máscaras não servem para esconder ou ocultar a nossa identidade, mas para revelá-la… hoje nós devemos dar um rosto a essa resistência; colocando nossas máscaras mostramos a nossa união; e levantando as nossas vozes nas ruas, nós botamos pra fora toda a raiva contra os poderoso sem rosto…”

(Tirado de uma mensagem imprimida dentro das 9000 máscaras distribuídas no dia 18 de junho de 1999, carnaval anti-capitalista, que destruiu o distrito financeiro central de Londres.)


Nos protestos contra a OMC em Seattle ano passado, havia entre 100 e 300 anarquistas e outros vestidos de preto que literalmente demoliram as vitrines das odiosas corporações multinacionais. Desde então a tática do Black Bloc vem despertando o interesse e chamando a atenção de diferentes pessoas preocupadas com transformação social. Todos os setores da classe média alta, progressistas e liberais tem pregado moralmente a grande distância sobre como não existe vez para tal comportamento no movimento deles. Ao mesmo tempo, o Black Bloc em Seattle inspirou e renovou o interesse nas táticas militantes, as quais não aceitam autoridade e nem baixam a cabeça perante o seu poder. O Black Bloc N30, junto com muitos outros aspectos dos eventos de Seattle, tem inspirado também anarquistas radicais a parar de se esconder dentro de grupos ativistas liberais com pautas reformistas, e começar a Ter mais voz ativa nas suas exigências pela revolução e total transformação social. Além da rápida proliferação de organizações e publicações anarquistas, está clara a evidência do ressurgimento do anarquismo nos EUA, que pode ser vista nos Black Blocs maiores, os quais estavam presentes no dia 16 de abril em Washington DC, na Assembléia Nacional dos Republicanos e Democratas, neste verão. Pra bem ou pra mal, parece que no último ano, o Black Bloc virou uma tradição americana, e tudo começou com aqueles bravos garotos e garotas em Seattle…

Será?! De fato, 30 de novembro esteve longe de ser a primeira vez que um grande grupo de radicais vestidos de preto com máscaras pretas estiveram prontos para se empenhar na militância com solidariedade e anonimato. O Black Bloc como uma associação pra estratégia em protesto pode ter mais de 20 anos. Sua origem, de fato, vem dos Autônomos Europeus, um movimento social radical que não necessariamente se proclamou anarquista, mas muitas das suas táticas e idéias tem se tornado bem apreciadas e adotadas pelos auto-proclamados anarquistas.

Sobre autonomia

Autonomia, autônomos, ou autonomistas têm sido os nomes usados por vários movimentos populares de transformação social e contra-cultura na Itália, Alemanha, Dinamarca, Holanda e outras partes da Europa nas últimas três décadas. Todos esses diferentes movimentos têm procurado se opor radicalmente à autoridade, dominação e violência, onde quer que ela exista na vida cotidiana (quase todo lugar). Autonomia, neste caso, não significa um tipo de superioridade complexa regional, ou isolamento, como o nacionalismo, estatismo… e também não significa autonomia individual ás custas da maioria, como existe na base do capitalismo. O que os autônomos valorizam e desejam, é a liberdade para os indivíduos que escolheram outros com os quais possa dividir afinidades, e unir-se com eles para sobreviver e preencher todas as necessidades e desejos coletivamente, sem interferência da ganância, indivíduos violentos ou enormes burocracias desumanas.

Os primeiros assim chamados autônomos foram aqueles indivíduos envolvidos no movimento Autonomia Italiana, que começou no quente verão de 1969, uma época de intensa inquietação social. Através da década de 70, um grande movimento pela transformação social total era formado na Itália pelos grupos autônomos de operários, mulheres e estudantes. Capitalistas, sindicatos e a burocracia estatistas do Partido Comunista não tinham nada a ver com esse movimento, e de fato, deu duro para reprimí-lo e pará-lo.

Ainda, a estrutura do poder estava, frequentemente, prejudicada em como lidar com a recusa completa, de vários setores da população, a obedecer as ordens das autoridades. Apesar da rápida proliferação da ação direta, greves moratórias, ocupações de massa, batalhas urbanas, ocupações de universidades e outras ações radicais popularmente apoiadas durante a década de 70, o movimento dos Italianos “acalmou-se”. Isto era em parte, devido aos ataques violentos, prisões e assassinatos de radicais pela polícia e pelo governo centralizador do Partido Comunista. Ao mesmo tempo, a reação à esta escala de violência estatal era, frequentemente, a escolha do terrorismo pelos grupos de guerrilha urbana radical.

O terrorismo de auto-defesa, muitas vezes serviu para afastar as pessoas do movimento público de transformação social. Alguns escolheram se tornar mais militantes e reservados enquanto outros abandonaram a política, para viver uma aparente pacífica vida de obediência à autoridade.

Construindo o poder de enfrentamento revolucionário – A cultura dos autônomos

Apesar do potencial revolucionário do Autonomia Italiana de 70 ter sucumbido, sua agitação, confiança e “atrevimento” serviram de inspiração para os jovens da Alemanha Ocidental de 1980. Inspirados também pelo movimento squatter de Amsterdam e as organizações jovens na Suíça, Alemanha e outras cidades maiores, começaram a formar a sua própria cultura autônoma com grupos sociais baseados na resistência radical e formas de vida alternativas.

A direção e a composição da organização radical na Alemanha Ocidental de 1980 era em parte determinado pelo domínio da recessão econômica e os caminho que ela seguiu. Por causa das conecções bem-estabelecidas entre os industriais e o governo alemão, os efeitos da recessão não foram tão sentidos pelos blue collar workers, mas pelos jovens que acharam impossível assegurar trabalho e moradia, e, que antes haviam se mudado da casa do pais e se tornaram economicamente e socialmente “independentes”. Consequentemente, os motivos para a mobilização da juventude autônoma incluíram abalar o conformismo da sociedade rural alemã e da família nuclear, sérias deficiências domésticas, alto desemprego –bem como o status ilegal de aborto e planos governamentais para a expansão massiva do poder nuclear.

Como resultado da recessão econômica e visitas aos subúrbios, no fim de 1970, enormes regiões prediais residenciais, em diferentes cidades interioranas alemãs, especialmente na Alemanha Ocidental, foram abandonadas pelos empreendedores e as agências do governo. Ocupar esses prédios era uma opção viável para os jovens empobrecidos que procuravam independência da casa da família nuclear. Comunidades squatters cresceram na vizinhança de Kreusberg, em Berlim; os squats de Haffenstrasse, em Hamburgo; e em outros pontos de concentração. A pedra angular dessas comunidades era a vida em comum, e a criação de centros sociais radicais: infoshops, livrarias, cafeterias, lugares de encontro, bares, galerias de arte, e outros espaços multivalentes, onde as raízes políticas artísticas e culturais são desenvolvidas como uma alternativa para a vida da família nuclear, utopias de TV, e “cultura” pop de massa. Desses espaços sociais seguros, cresceram maiores iniciativas radicais para lutar contra o poder nuclear, ou centralizador; destruir a sociedade patriarcal e os papéis de gênero; mostrar solidariedade com os oprimidos do mundo atacando corporações multinacionais européias ou instituições financeiras como o Banco Mundial; e depois da reunificação alemã, lutar contra o crescente neo-nazismo.

Iniciativas semelhantes para uma vida alternativa como resistência estavam acontecendo nos anos 80 ( e em alguns lugares, bem antes) na Holanda, Dinamarca, e qualquer lugar da Europa Setentrional. Eventualmente, todas essas vivências norte-européias em grupos sociais descentralizados, os quais estavam dedicados a criar uma sociedade não-coercitiva e anti-hierárquica, tornaram-se rotulados como Autônomas. Com o tempo, as idéias e táticas autonomistas também migraram através da reunida Cortina de Ferro européia. Eu, pessoalmente, tenho visitado centros sociais autônomos radicais na Inaglaterra, Espanha, Itália, Croácia, Eslovênia e República Tcheca.

Repressão linha dura, resistência militante e o Black Bloc

Desde o começo, a Alemanha Ocidental não encarou bem os jovens autônomos, quer quando eles estavam ocupando usinas nucleares ou prédios desabitados. No inverno de 1980, o governo da cidade de Berlim decidiu reprimir duramente os milhares de jovens squatters pela cidade: eles decidiram incriminá-los, atacá-los e despejá-los nas ruas geladas do inverno. Essa foi uma ação muito mais chocante e diferente na Alemanha, do que seria nos EUA, e teve como resultado o repúdio e condenação da polícia e do governo pela opinião pública.

De 1980 em diante, houve um ciclo crescente de prisões em massa, batalhas urbanas, e novas ocupações em Berlim e no resto da Alemanha. Os autônomos não estavam assustados, e cada despejo era respondido como novas ocupações. Quando os squatters de Freiburg foram presos, passeatas e manifestações os apoiaram, e, condenaram a política de despejo da polícia estatal, em quase todas as grandes cidades do país. Naquele dia, em Berlim, posteriormente chamado “sexta-feira negra”, 15000 a 20000 pessoas tomaram as ruas e destruíram uma área de consumo da classe média alta.

Esse era o caldeirão fervente de opressão e resistência, do qual o Black Bloc surgiu…

Em 1981, o governo alemão começou a legalizar certo squats, numa tentativa de dividir a contra-cultura e marginalizar os segmentos mais radicais. Mas, essas táticas eram lentas demais para pacificar o movimento popular radical –especialmente, desde 1980-81 não só se havia visto tamanha brutalidade como os squatters, mas além disso, a maior mobilização policial da Alemanha desde o III Reich, com o objetivo de atacar manifestantes não-violentos na “livre república de Wendland”, um acampamento de 5000 ativistas que bloquevam a construção da usina Gorlebein de lixo nuclear. Mesmo anteriormente, ardentes pacifistas haviam sido radicalizados pela experiência da violenta repressão policial contra diversos squats e ocupações.

Em resposta à violenta repressão estatal, os ativistas desenvolveram a tática do Black Bloc: eles foram protestar e marchar, usando capacetes pretos de motoqueiros, máscaras de ski, e vestindo-se de preto (ou, para os mais preparados, estofamento de espuma e botas com ponta de aço, carregando seus próprios escudos). No Black Bloc, os autônomos e outros radicais poderiam se defender ou desviar, mais eficientemente, dos ataques policiais; sem serem reconhecidos como indivíduos, evitando prisões e batidas posteriores. E, como todos rapidamente perceberam, ter um grupo grande de pessoas, todas vestidas com a mesma cor de roupa, com os rostos cobertos, não só ajuda a escapar da polícia, mas também deixa mais fácil a tarefa dos sabotadores em destruir vitrines, bancos, e muitos outros símbolos materiais do poder do capitali$mo e do Estado. Nesse sentido, o Black Bloc é uma forma de militância que alivia a problemática entre desobediência civil não-violenta e, sabotagem e “terrorismo” guerrilheiro.

Realizações do Black Bloc e da resistência Autônoma

Black Blocs, militância autônoma e resistência popular ào Estado-polícia e à Nova Ordem Mundial se espalharam entre os europeus nos anos 80. Apesar dos radicais holandeses não se intitularem autônomos desde o começo (até 1986), os ativistas contraculturais holandeses dividiram táticas, organizaram estruturas e militâncias com os auto-proclamados Autônomos. O movimento squatter da Holanda realmente começou em 1968, e por volta de 1981, mais de 1000 casas e apartamentos foram ocupadas em Amsterdam, e havia por volta de 15000 squats no resto do país. Restaurantes, bares, cafés e centros de informação ocupados eram lugar comum, e os organizados squatters (costumeiramente chamado kraakers) tinham seu próprio conselho para planejar a direção do movimento e sua própria estação de rádio.

Contudo, alguns autônomos holandeses se recusaram a usar máscaras de ski enquanto estavam no Black Bloc, isso não quer dizer que o movimento deixou de ser militante. Um livro sobre o movimento squatter holandês mostra que “ desde o início havia existido uma ‘brigada de capacetes pretos’, a qual parecia Ter entrado numa batalha”.

Batalhas nos despejos dos squats de Amsterdam, frequentemente, mostravam a construção de enormes barricadas e, encurralados squatters arremessando mobília e outros projéteis, de vários tamanhos e formatos, pelas janelas, visando abater a polícia. Nos anos iniciais, existiam certos limites para o uso da violência, a qual os squatters usariam para retaliar os ataques policiais. De qualquer maneira, em 1985, quando um squatter chamado Hans Kok morreu sob custódia policial, ao ser preso durante um brutal despejo e evacuação, os limites foram superados. Seguindo as notícias de sua morte, uma noite de ávida destruição reinou em Amsterdam, e mesmo carros da polícia foram queimados em frente de vários distritos. Um squatter disse: “todos tinham a idéia, agora nós usaremos dos últimos meios, apenas antes das armas mesmo: Molotovs…todos caminhavam com Molotovs em seus bolsos, todos tinham garrafas cheias com gasolina…era o novo método de ação direta”. Apesar da morte de Hans Kok e da resposta á altura terem tido um efeito negativo sobre o movimento, a nova estratégia se mostrou útil em alguns meios ativistas. Em 1985, o grupo holandês Ação Anti-racista (RARA), fez uma campanha bem-sucedida forçando a rede de supermercados holandeses MARKO a sair da África do Sul: a campanha foi realizada através de numerosos bombardeios, extremamente caros e danosos para eles, nas lojas e escritórios da MARKO.

Na Alemanha, em 1986, crescentes ataques policiais e tentativas de despejo, contra um complexo de casas ocupadas em Hamburgo, chamada Haffenstrasse, foram recebidas pela contra-ofensiva marcha de 10000 pessoas, entre elas, no mínimo, 1500 do Black Bloc, carregando uma faixa enorme que dizia: “Construa o poder de enfrentamento revolucionário!”. No fim da passeata, o Black Bloc foi capaz de, vitoriosamente, levar á cabo uma batalha de rua, na qual a polícia bateu em retirada. No dia seguinte, 13 lojas de departamentos foram queimadas, causando um prejuízo de $10 milhõe$ de dólare$.

Naquele mesmo ano, o desastre de Chernobyl trouxe uma nova onda de manifestações contra a construção de novas usinas nucleares na Alemanha. Um relato dessas manifestações anti-nuclear mostrou: “essas cenas lembram uma ‘guerra civil’; capacetes, Autônomos e anarquistas armados com estilingues, Molotovs e maçaricos colidiram brutalmente com a polícia, a qual usou canhões d’água, helicópteros e gás CS (oficialmente banido para uso em civis)”.

Em junho de 1987, quando Ronald Reagan foi à Berlim, cerca de 50000 pessoas se manifestaram contra a Guerra Fria, incluindo 3000 pessoas do Black Bloc. Um par de meses depois, os ataques policiai à Haffenstrasse se intensificaram novamente. Em novembro de 1987, moradores e milhares de outros autônomos fortificaram o complexo, construíram barricadas nas ruas e lutaram contra a polícia cerca de 24 horas. No fim, a cidade decidiu legalizar as residências ocupadas.

Mais de 10 anos antes de Seattle e o protesto contra a OMC, os Autônomos mobilizaram um evento semelhante com um grande grupo de resistentes. Em setembro de 1988, o Banco Mundial e o FMI se encontraram em Berlim. Os Autônomos se valeram deste encontro como foco para a resistência mundial contra o capitali$mo corporativo globalizante e, contra a destruição governamental de bases autônomas e comunitárias. Milhares de ativistas de toda a Europa e EUA foram mobilizados, e 80000 manifestantes foram “encontrar” os banqueiros (no mínimo, 30000 a mais que Seattle). A polícia, completamente superada em número, e a segurança privada do evento tentaram manter a “ordem” banindo todos os manifestantes e atacando brutalmente qualquer assembléia pública, mas as revoltas ainda estraçalharam os centros consumistas de classe média (já era tradição).

Black Blocs pré-Seattle

Em novembro de 1999, a tática do Black Bloc parecia nova para muitos americanos porque, em parte, as ações e as idéias do movimento Autônomo europeu eram obscurecidas ou ignoradas pela mídia americana e quase nem foram divulgadas. Contudo, a ignorância pelo Black Bloc também provém do fato que muitos americanos recebem notícias de acontecimentos regionais de uma mídia manipuladora, a qual ignora quaisquer acontecimento que não servem para os seus propósitos, apresentando qualquer evento que tom o lugar como um espétaculo singular, desconectado do passado e do futuro, a ser esquecido em pouco tempo, mesmo se aconteceu recentemenete.

Radicais nos EUA nunca foram totalmente ignorantes a respeito das idéias e ações dos Autônomos europeus, e o desenvolvimento da subcultura punk/hardcore, dos anos 80, nos EUA, se espelhou na cultura Autônoma. Desde o começo de 1990, anarquistas e outros radicais nos EUA, estavam usando máscaras nas passeatas e protestos, criando laços de solidariedade entre os manifestantes e o anonimato perante as autoridades. Enquanto durava a Guerra do Golfo, um protesto nas ruas de Washington D.C. incluiu o Black Bloc, que quebrou as vidraças do prédio do Banco Mundial. Naquele mesmo ano, no Columbus Day, em São Francisco, um Black Bloc apareceu para mostrar à resistência militante, o contínuo genocídio da dominação norte-americana pelos europeus. Pessoalmente, o maior Black Bloc que eu já vi foi no M4M (millions for Mumia), na Filadélfia, em abril de 1999.

Eu diria que havia, no mínimo, 1500 vestidos de preto, mascarados e carregando faixas como: “Vegans por Mumia”. Apesar de não ter acontecido nenhuma batalha de rua e, particularmente, nenhuma destruição de propriedade privada, alguns garotos entraram em um estacionamento, ao longo da passeata, e subiram no teto, agitando a bandeira negra.

O futuro global da máscara preta

O símbolo do militante autônomo mascarado se espalhou pelo terceiro mundo. Ao mesmo tempo que o NAFTA, política econômica destrutiva neoliberal foi declarado no dia 1 de janeiro de 1994, a revolta guerrilheira explodiu em Chiapas, um estado do sul do México. O levante procurava criar espaços, para o desenvolvimento de uma organização social autônoma entre a marginalizada população indígena. A ala armada dessa luta pela autonomia comunitária e a democracia direta sem coerção ou hierarquia, tem sido e continua sendo, os Zapatistas, homens e mulheres que sam máscaras negras sempre que aparecem em público. Muitos autônomos e anarquistas têm os visitado e tentado ajudá-los com conhecimento, dinheiro, materiais, e criando solidariedade e atenção internacional para a situação em Chiapas.

Voltando a Alemanha, os Autônomos passam por tempos difíceis. Dizem por aí que os squatters anteriores tomavam conta de, no mínimo, 165 grandes apartamentos na Alemanha Ocidental, mas até 1997, sobraram apenas 3 apartamentos. Legalizar alguns squats enquanto brutalmente despejavam outros, funcionou como política eficiente para o Estado-polícia. Muitas pessoas que vivem em squats legalizados estão impedidos de virar o jogo, encorajando e expressando solidariedade com estratégias praticadas por outros squatters, e essa marginalização deixa mais fácil a derrota squatter, nas batalhas urbanas, pelas crescentes forças policiais.

O ressurgimento do neo-nazismo, no que um dia foi Alemanha Ocidental, e em outras áreas do país significou maiores problemas para os Autônomos alemães. Eles enfrentam a violência e o assassinato de ataques neo-nazistas, onde essas gangues policiam as ruas como uma “tropa contra punks e imigrantes”.

A maior parte do tempo e esforço dos Autônomos, vai para a organização de ações e grupos anti-fascistas, mas isso também significa negligenciar as tarefas para o desenvolvimento de alternativas para uma sociedade anti-autoritária, um dos objetivos originais dos Autônomos. “Antifa” ou grupos anti-fascistas levam os Autônomos a confrontos ainda mais violentos com a polícia alemã, que basicamente apoia os grupos neo-nazistas e sua ideologia nacionalista, racista –isso quando oficiais da polícia não estão diretamente ligados a grupos fascistas.

Rumores dizem que muitos militantes na Europa Sententrional, onde o Black Bloc têm sido uma estratégia de manifestação comum, têm desistido ao mesmo tempo que paravam de atingir seu objetivo. O poder de repressão estatal tem desenvolvido e usado forças tecnológicas, legais e físicas ainda maiores para isolar, observar, perseguir e localizar os envolvidos com os Black Blocs. Um processo semelhante está acontecendo nos EUA, com o ressurgimento das táticas ao estilo COINTELPRO, tendo como alvo os radicais que se opõe ao império estatal americano de capitali$mo globalizante.

Mesmo que o Black Bloc continue como estratégia, ou seja abandonado, certamente, serviu ao seu propósito. Em certas épocas e lugares, o Black Bloc efetivamente, levou as pessoas a agir em solidariedade coletiva contra a violência do capitalismo e do Estado. É importante que nós não fiquemos presos à nostalgia como um ritual ou uma tradição ultrapassada, nem rejeitar tudo porque, ás vezes, parece inapropriado. Em vez disso, devíamos continuar lutando pragmaticamente (e teoricamente), para preencher nossa necessidades e desejos individuais através de várias táticas e objetivos, quando elas forem apropriadas ao momento específico. “Disfarçar-se” como um Black Bloc tem sua hora e seu lugar, assim como as outras estratégias que se confrontam com ela…


Marx e o Anarquismo

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Rudolf rocker

Fonte: Notícias y Anarquia

I

Há alguns anos, pouco depois da morte de Friedich Engels, o senhor Eduardo Bernstein, um dos membros mais ilustres da comunidade marxista, assombrou seus companheiros com algumas descobertas notáveis. Bernstein manifestou publicamente suas dúvidas em relação à exatidão da interpretação materialista da história, da teoria marxista da mais-valia e da concentração do capital; até atacou o método dialético, chegando à conclusão de que não era possível falar de um socialismo crítico. Homem prudente, Bernstein guardou para si suas descobertas até a morte do velho Engels, e só então as tornou públicas diante do espanto dos sacerdotes marxistas. Mas nem sequer essa prudência pôde salvá-lo, pois o atacaram por todos os lados. Kautsky escreveu um livro contra o herege, e o pobre Eduardo viu-se obrigado a declarar no congresso de Hannover que era um frágil pecador mortal e que se submetia à decisão da maioria científica.

Contudo, Bernstein não tinha revelado nada novo. As razões que opunha contra os fundamentos da doutrina marxista já existiam quando ele ainda era apóstolo fiel da igreja marxista. Esses argumentos tinham sido retirados da literatura anarquista, e o único importante era o fato de que um dos social-democratas mais conhecidos se valesse deles pela primeira vez. Nenhuma pessoa sensata negará que a crítica de Bernstein tenha causado uma impressão inesquecível no campo marxista: Bernstein tinha tocado nos pontos mais importantes da economia metafísica de Karl Marx, e não é estranho que os respeitáveis representantes do marxismo ortodoxo tenham se agitado.

Não teria sido tão grave tudo isso se não mediasse outro inconveniente pior que o anterior. Desde cerca de um século os marxistas não param de pregar que Marx e Engels foram os descobridores do chamado socialismo científico; inventando-se uma distinção artificial entre os socialistas intitulados utópicos e o socialismo científico dos marxistas, diferença que existe apenas na imaginação destes últimos. Nos países germânicos, a literatura socialista foi monopolizada pelas teorias marxistas, e todo socialdemocrata as considera como produtos puros e absolutamente originais das descobertas científicas de Marx e Engels.

Mas também essa ilusão foi quebrada: as pesquisas históricas modernas estabeleceram de uma maneira irrefutável que o socialismo científico não é mais que uma consequência dos antigos socialistas ingleses e franceses, e que Marx e Engels conheceram perfeitamente a arte de roubar as ideias alheias. Depois das revoluções de 1848, iniciando-se na Europa uma reação terrível, a Santa Aliança tornou a estender suas redes em todos os países com o propósito de afogar o pensamento socialista, que tão riquíssima literatura produzira na França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Itália. Tal literatura foi quase totalmente esquecida durante essa época de obscurantismo que começou depois de 1848. Muitas das obras mais importantes foram destruídas até que se reduzisse seu número a poucos exemplares que acharam um lar em algum lugar tranquilo de certas grandes bibliotecas públicas ou de algumas pessoas privadas. Só nos fins do século XIX e começo do século XX essa literatura foi novamente descoberta e hoje causam admiração as ideias fecundas que se encontram nos velhos escritos das escolas posteriores a Fourier e Saint-Simon, nas obras de Considerant, Demasi, Mey e muitos outros. E nessa literatura se achou, ainda, a origem do chamado socialismo científico. Nosso velho amigo W. Tcherkesoff foi o primeiro a oferecer um conjunto sistemático de todos esses fatos; demonstrou que Marx e Engels não são os inventores dessas teorias que durante tanto tempo foram consideradas seu patrimônio intelectual (1); até chegou a provar que alguns dos mais famosos trabalhos marxistas, como por exemplo o “Manifesto Comunista”, não são, na verdade, outra coisa que traduções livres do francês, feitas por Marx e Engels. E Tcherkesoff obteve o triunfo de que suas afirmações a respeito do Manifesto Comunista fossem reconhecida pelo “Avanti”, o órgão central da socialdemocracia italiana (2) depois de ter tido o autor a oportunidade de comparar o Manifesto Comunista com o Manifesto da Democracia de Vitor Considerant, que apareceu cinco anos antes que opúsculo de Marx e Engels.

O “manifesto Comunista” é considerado uma das primeiras obras do socialismo científico e o conteúdo desse trabalho foi tirado dos escritos de um “utopista”, pois o marxismo inclui a Fourier entre os socialistas utópicos. É esta uma das ironias mais cruéis que se pode imaginar e não constitui, seguramente, um fator favorável para legitimar o valor científico do marxismo. Víctor Considerante foi um dos primeiros escritores socialistas que Marx conheceu; já o menciona na época em que ainda não era socialista. Em 1842, a “AlgemeineZeitung” atacou a “RheinischeZeitung” da qual era redator-chefe Marx, criticando-lhe por ser simpatizante do comunismo. Marx respondeu então com um editorial (3), em que declarava o seguinte:

“Obras como as de Leroux, Considerant e, especialmente, o livro perspicaz de Proudhon não podem ser criticados com algumas observações superficiais, é preciso estudá-las atenciosamente antes de lançar críticas.”

O socialismo francês exerceu uma enorme influência sobre o desenvolvimento intelectual de Marx; mas de todos os escritores socialistas da França é P. J. Proudhon quem mais poderosamente influiu em seu espírito. Até é evidente que o livro de Proudhon “O que é a propriedade?” induziu Marx a abraçar o socialismo. As observações críticas de Proudhon sobre a economia nacional e as diversas tendências socialistas mostraram para Marx um mundo novo e foi principalmente a teoria da mais-valia, tal como foi desenvolvida pelo genial socialista francês, o que maior impressão causou na mente de Marx. A origem da doutrina da mais-valia, essa grandiosa “descoberta científica”, de que tanto se orgulham nossos marxistas, a encontramos nos escritos de Proudhon. Graças a ele, Marx chegou a conhecer essa teoria, que modificou mais tarde mediante o estudo dos socialistas ingleses Bray e Thompson.

Marx até reconheceu publicamente o grande significado científico de Proudhon, e num livro especial, hoje completamente desaparecido do mercado, chama à sua obra, “O que é a propriedade?” de “o primeiro manifesto científico do proletariado francês”. Essa obra não tornou a ser editada pelos marxistas, nem foi traduzida a outro idioma, apesar de que os representantes oficiais do marxismo fizeram os maiores esforços para difundir em todas as línguas os escritos de seu mestre. Esse livro foi esquecido, se sabe o porquê: sua reimpressão revelaria ao mundo a colossal contradição e a insignificância de tudo que foi escrito por Marx mais tarde sobre o eminente teórico do anarquismo.

Marx não somente tinha sido influenciado pelas ideias econômicas de Proudhon, mas também se sentiu influído pelas teorias anárquicas do grande socialista francês, e em um de seus trabalhos daquele período, combate o estado da mesma forma que o fez Proudhon.

II

Todos aqueles que tenham estudado atentamente a evolução socialista de Marx devem reconhecer que a obra de Proudhon “O que é a propriedade?” foi a que o converteu ao socialismo. Os que não conhecem de perto os detalhes dessa evolução e aqueles que não tiveram oportunidade de ler os primeiros trabalhos socialistas de Marx e Engels, julgaram estranham e inverossímil esta afirmação. Porque em seus trabalhos posteriores Marx fala de Proudhon com deboche e desprezo, e são precisamente estes escritos os que a socialdemocracia voltou a publicar e reimprimir constantemente.

Deste modo, tomou forma pouco a pouco a opinião de que Marx foi, desde o princípio, o adversário teórico de Proudhon e que jamais existiu entre ambos ligação alguma. E verdadeiramente, quando se lê o que o primeiro deles escreveu a respeito do segundo em seu conhecido livro “Miséria da Filosofia”, no “Manifesto Comunista” e na necrologia que publicou no “Sozialdemokrat” de Berlim, pouco depois da morte de Proudhon, não é possível ter outra opinião.

Em “Miséria da Filosofia” ataca Proudhon da pior maneira, valendo-se de todos os recursos para demonstrar que as ideias dele carecem de valor e que não tem nenhuma importância nem como socialista, nem como crítico da economia política.

“O sr.Proudhon – diz – tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Na França, tem o direito de ser mau economista porque passa por ser um bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser mau filósofo, porque passa por ser um dos melhores economistas franceses. Nós na nossa qualidade de alemão e economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra este duplo erro. (4).

E Marx vai ainda mais longe: acusa Proudhon, sem oferecer nenhuma prova, de ter plagiado suas ideias do economista inglês Bray. Escreve:

“acreditamos ter aí encontrado a chave das obras passadas, presentes e futuras do sr.Proudhon.”

É interessante observar como Marx, que tantas vezes utilizava ideias alheias e cujo “Manifesto Comunista” não é na realidade nada além de uma cópia do “Manifesto da Democracia” de Victor Considerant, denuncia a outrem como plagiadores.

Mas prossigamos. No “Manifesto Comunista”, Marx aponta Proudhon como representante burguês e conservador (6). E na necrologia que escreveu no “Sozialdemokrat” (1865), lemos as seguintes palavras:

“Em uma história, rigorosamente científica da economia política, esse livro (se refere a ‘O que é a propriedade?”) apenas mereceria ser mencionado. Porque semelhantes obras sensacionais desempenham nas ciências exatamente o mesmo papel que na literatura romanesca.”

E nesse mesmo artigo necrológico reitera Marx sua afirmação de que Proudhon carece de todo valor como socialista e como economista, opinião que já emitira em “Miséria da Filosofia”.

É fácil compreender que semelhantes afirmações, que Marx lançava contra Proudhon, tinham que divulgar a crença, aliás, a convicção, de que entre ele e o grande escritor francês não existiu nunca o menor parentesco. Na Alemanha, Proudhon é quase totalmente desconhecido. As edições germânicas de suas obras, feitas em torno do ano 1840, estão esgotadas. O único livro seu que voltou a ser publicado em alemão é “O que é a propriedade?” e ainda esta edição se difundiu num círculo restrito. Esta circunstância explica o fato de que Marx tenha conseguido apagar os rastros de sua primeira evolução como socialista. Que seu conceito de Proudhon era bem diferente a princípio, tivemos a oportunidade de ver mais acima e as conclusões que seguem corroborarão nossa tese.

Sendo redator chefe da “RheinischeZeitung”, um dos principais jornais da democracia alemã, Marx chegou a conhecer os escritores socialistas mais importantes da França, embora ele mesmo não fosse ainda socialista. Já mencionamos uma citação sua que alude a Victor Considerant, PierraLeroux e Proudhon, e não resta dúvida de que exerceu, sem dúvida alguma, a maior influência no desenvolvimento socialista de Marx; assim, no período mencionado, chama o genial Proudhon de “o mais consequente e sagaz dos escritores socialistas” (7). Em 1843, a “RheinischeZeitung” foi suprimida pela censura prussiana: Marx partiu para o exterior, e durante esse período evoluiu para o socialismo. Tal evolução se percebe muito bem em suas cartas ao conhecido escritor Arnold Ruge, e melhor ainda em sua obra “A Sagrada Família, ou crítica da crítica”, que publicou conjuntamente com Friedich Engels. O livro apareceu em 1845 e tinha por objetivo polemizar contra a nova tendência do pensador alemão Bruno Bauer (8). Além de questões filosóficas, essa obra se ocupa também de economia política e de socialismo e são precisamente essas partes as que nos interessam aqui.

De todos os trabalhos que publicaram Marx e Engels, é “A Sagrada Família” o único texto que não foi traduzido a outros idiomas e do qual os socialistas alemães não fizeram outra edição. É verdade que Franz Mehrin, herdeiro literário de Marx e Engels, publicou por encargo do Partido Socialista alemão, “A Sagrada Família” junto com outros escritos correspondentes ao primeiro de atuação socialista dos autores, mas isso se fez sessenta anos depois de ter saído a primeira edição, e, por outro lado, a reedição estava destinada aos especialistas, pois seu custo era excessivo para um trabalhador. Fora isso, Proudhon é tão escassamente conhecido na Alemanha, que muitos poucos terão sido os que perceberam a funda discrepância que há entre os primeiros juízos que Marx emitiu sobre ele e os que sustentou mais tarde.

E, entretanto, este livro demonstra claramente o processo evolutivo do socialismo de Marx e a influência poderosa que nele exerceu Proudhon. Tudo o que os marxistas atribuíram depois a seu mestre, Marx o reconhecia, Na obra “Sagrada Família”, como méritos de Proudhon.

Vejamos o que diz a este respeito na página 36:

“Todo o desenvolvimento da economia nacional considera a propriedade privada como hipótese inevitável; esta hipótese constitui para ela um fator incontestável que nem sequer trata de investigar e ao qual só se refere acidentalmente, segundo a ingênua expressão de Say(9). Proudhon se propôs a analisar de um modo crítico a base da economia nacional, a propriedade privada, e foi a sua a primeira investigação enérgica, considerável científica ao mesmo tempo. Nisso consiste o notável progresso científico que realizou, progresso que evoluiu a economia nacional, criando a possibilidade de fazer dela uma verdadeira ciência. ‘O que é a propriedade?’ de Proudhon tem para a economia a mesma importância que a obra de Say ‘O que é o terceiro estado?’ teve para a política moderna.”

É interessante comparar estas palavras de Marx com as que escreveu depois sobre o grande teórico anarquista. No “A Sagrada Família” diz que “O que é a propriedade?” foi a primeira análise científica da propriedade privada e que deu a possibilidade de fazer da economia nacional uma verdadeira ciência; mas em sua conhecida necrologia, publicada no “Sozialdemokrat”, o mesmo Marx assegura que em uma história rigorosamente científica da economia essa obra apenas merece ser mencionada.

Onde está a causa de semelhante contradição? Esta é a pergunta que os representantes do chamado socialismo científico não esclareceram ainda. Na verdade, não há senão uma resposta: Marx queria ocultar a fonte na qual tinha bebido. Todos os que tenham estudado a questão e não se sintam arrastados pelo fanatismo partidário terão que reconhecer que esta explicação não é instável.

Sigamos escutando o que manifesta Marx sobre a importância histórica de Proudhon. Na página 52 do mesmo livro lemos:

“Proudhon não somente escreve a favor do proletariado, mais também é ele um proletário, um operário; sua obra é um manifesto científico do proletariado francês.”

Aqui, como se vê, Marx expressa em termos precisos que Proudhon é um expoente do socialismo proletariado e que sua obra constitui um manifesto científico do proletariado francês. Em troca, no Manifesto Comunista assegura que Proudhon encarna o socialismo burguês e conservador. Cabe maior contradição? Em quem temos que acreditar, no Marx de “A Sagrada Família” ou no autor do Manifesto Comunista? E a que se deve a divergência? É uma pergunta que nos propomos novamente e como é natural, a resposta também é a mesma: Marx queria ocultar ao mundo tudo o que devia a Proudhon e para isso qualquer meio era viável. Não pode ter outra explicação para esse fenômeno: os meios que Marx empregou mais tarde em sua luta contra Bakunin evidenciam que não era muito delicado na escolha deles.

Como Marx tinha sido influenciado pelas ideias de Proudhon e até por suas ideias anarquistas demonstram seus escritos políticos daquele período; por exemplo o artigo que publicou no “Vorwaerts” de Paris.

O “Vorwaerts” era um jornal que era publicado na capital francesa durante 1844-1845, sob a direção de Enrique Bernstein. Sua tendência era, em princípio, liberal apenas. Porém mais tarde, pois da desaparição dos “Anais Germano-Franceses”, Bernstein travou relação com os antígos colaboradores desta última publicação, os quais o conquistaram para a causa socialista. Desde então o “Vorwaerts” se converteu em um órgão oficial de socialismo e numerosos colaboradores da extinta publicação de A. Ruge, entre eles Bakunin, Marx, Engels, Enrique Heine, Georg Herwergh etc., contribuíram para ele com seus trabalhos.

No número 63 desse jornal (7 de agosto de 1844), Marx publicou um trabalho polêmico, “Glosas críticas Marginais ao artigo O rei da Prússia e reforma social”. Nele estuda a natureza do Estado e demonstra a incapacidade absoluta desse organismo para reduzir a miséria social e para suprimir o pauperismo. As ideias que o autor desenvolve nesse artigo são ideias puramente anarquistas e estão em perfeita concordância com os conceitos que Proudhon, Bakunin e outros teóricos do anarquismo estabeleceram a esse respeito. Pelo seguinte fragmento do estudo de Marx poderão julgar os leitores:

“O estado é incapaz de suprimir a miséria social e anular a pobreza. E ainda quando se preocupa com este problema, se é que se decide a fazer algo, não dispõe de outros recursos que a beneficência pública e as medidas de caráter administrativo e frequentemente nem sequer isso”.

“Nenhum estado pode proceder de outra forma; porque para suprimir a miséria deveria suprimir-se a si mesmo, posto que a causa do mal reside na essência, na própria natureza do estado, e não é uma forma determinada dele como supõe muita gente radical e revolucionária que aspira a modificar essa forma por outra melhor”.

“É um gravíssimo erro acreditar que a miséria e os terríveis males do pauperismo podem ser curados mediante uma forma qualquer do estado. Se o estado reconhece a existência de certos males sociais, trata de explicá-los, tanto como leis naturais contra as quais nada pode fazer o homem, como resultados da vida privada, na qual não pode meter-se, ou também como defeitos da administração pública. Por isso na Inglaterra a miséria é considerada uma consequência de uma lei natural, segundo a qual os homens aumentam em proporção maior os meios de vida. Outros afirmam que a má vontade dos homens é a causa de sua pobreza: o rei da Prússia, Federico Guillermo I, vê a causa deles com os corações pouco cristãos dos ricos; e a Convenção, o parlamento revolucionário francês, sustenta que os males sociais são consequência do espírito contrarrevolucionário que demonstram os proprietários. Por conseguinte, na Inglaterra se castiga os pobres, o rei da Prússia lembra aos ricos seus deveres cristãos e a Convenção francesa corta as cabeças dos proprietários.”

“Ademais, todos os estados procuram a causa da miséria nos defeitos fortuitos ou intencionais da Administração, e portanto acham possível reduzir o mal mediante reformas administrativas. Mas o estado não possui o poder de salvar a contradição existente entre a boa vontade da administração e sua capacidade real; porque si assim fosse, teria que anular-se a si mesmo, já que ele se baseia nessa contradição que reina entre a vida pública e a privada, entre os interesses gerais e os particulares. Por isso a administração se encontra limitada por uma função exclusivamente formal e negativa, pois onde principia a vida civil termina o poder da administração. O estado não pode impedir jamais as consequências que se desenvolvem logicamente por causa do caráter antissocial da vida civil, da propriedade privada, do comércio, da indústria e do despojo mútuo dos diferentes grupos sociais. A baixeza e a escravidão da sociedade burguesa constituem o fundamento natural do estado moderno. A existência do estado e a da escravidão não podem ser separadas. Do mesmo modo como o antigo estado e a escravidão antiga – contradições clássicas e francas -, estão intimamente vinculadas entre si, assim também o estado moderno e o atual mundo de mercadores – contradição cristã e hipócrita – estão fortemente ligados um ao outro”.

Esta interpretação essencialmente anarquista da natureza do estado, parece tão estranha se se lembra das doutrinas posteriores de Marx, é uma prova evidente da origem anárquica de sua primeira evolução socialista. No mencionado artigo se refletem os conceitos da crítica do estado feita por Proudhon, crítica que teve sua primeira expressão em seu famoso livro “O que é a propriedade?”. Esta obra imortal exerceu a influência mais decisiva na evolução do comunista alemão, apesar de ele ter se esforçado para, de todos os modos – e não foram estes os mais nobres – para negar as primeiras fases de sua atuação como socialista. Naturalmente, os marxistas apoiaram nisto o seu mestre e desta maneira desenvolve-se pouco a pouco o falso conceito histórico acerca do caráter das primeiras relações entre Marx e Proudhon.

Principalmente na Alemanha, sendo este último quase desconhecido, puderam circular as mais estranhas afirmações nesse sentido. Mas quanto mais se consegue conhecer as importantes obras da velha literatura socialista, mais se percebe tudo o que o chamado socialismo científico deve àqueles “utopistas” que durante longo tempo foram esquecidos por causa do “reclame” gigantesco que a escola marxista e de outros fatores que levaram ao esquecimento a literatura socialista do primeiro período. E um dos mestres mais importantes de Marx e o que esteve nas bases de toda a sua evolução posterior foi precisamente Proudhon, o anarquista tão caluniado e mal compreendido pelos socialistas verídicos.

IV

No dia 20 de julho de 1870, Karl Marx escrevia para Friedich Engels: “a França deve ser golpeada rudemente, pois si a Prússia consegue sair vitoriosa, o poder estatal ficará mais centralizado e o mesmo ocorrerá com todo o movimento operário da Alemanha. A potência alemã mudará o centro do movimento operário da França para a Alemanha. Só é necessário comparar o movimento nestes dois países, desde 1866 até nossos dias, para se convencer da superioridade da classe operária alemã sobre a francesa, tanto na teoria como na organização e sua maior potência nos acontecimentos internacionais significa um triunfo para nossa doutrina sobre a de Proudhon…”

Marx tinha razão: o triunfo da Alemanha sobre a França significou uma nova rota na história do movimento operário europeu.

O socialismo revolucionário e liberal dos países latinos foi deixado de lado, deixando o campo para as teorias estatais e anti-anarquistas do marxismo. A evolução daquele socialismo vivaz e criador se viu turvada pelo novo dogmatismo férreo que pretendia possuir um pleno conhecimento da realidade social, quando era apenas um conjunto de fraseologias teológicas e de sofismos fatalistas, e se tornou logo o sepulcro de todo o verdadeiro pensamento socialista.

Com as ideias, mudaram também os métodos de luta do movimento socialista. Em vez de grupos revolucionários para a propaganda e para a organização das lutas econômicas, nos quais os internacionalistas tinham visto a semente da sociedade futura e os órgãos aptos para a socialização dos meios de produção e intercâmbio, começou então a era dos partidos socialistas e da representação parlamentar do proletariado. Pouco a pouco se esqueceu da antiga educação socialista que levava aos operários a conquista da terra e das fábricas, pondo em seu lugar a nova disciplina do partido que considerava a conquista do poder político como seu mais supremo ideal.

Mikhail Bakunin, o grande crítico de Marx, observou com clarividência a mudança da situação e com o coração amargado predisse que, com o triunfo da Alemanha e a queda da Comuna de Paris, começava um novo capítulo na história da Europa. Fisicamente esgotado e olhando de frente para a morte, escreveu, no dia 11 de novembro de 1874, estas importantes palavras a Ogaref: “O bismarkismo – que vem a ser militarismo, regime policial e monopólio financeiro fundidos em um sistema que se intitula o Novo Estado – está triunfando em todas as partes. Mas talvez dentro de dez ou quinze anos a instável evolução da espécie humana iluminará novamente os caminhos do triunfo”. Bakunin errou nessa ocasião, não calculando que teria de passar meio século até que, no meio de uma terrível catástrofe mundial, fosse derrotado o bismarkismo.

V

Assim como o triunfo da Alemanha em 1871 e a queda da Comuna de Paris foram os sinais da desaparição da velha Internacional, assim a grande guerra de 1914 foi o início da bancarrota do socialismo político.

E aqui acontece um estranho curso que se torna às vezes verdadeiramente grotesco e que só encontra sua explicação na falta de todo o conhecimento sobre a história do velho movimento socialista. Bolcheviques, independentes, comunistas etc. não deixaram de acusar os herdeiros da velha Social-democracia de uma vergonhosa abdicação dos princípios do marxismo. Acusaram-nos de ter afogado o movimento socialista na estagnação do parlamentarismo burguês, de ter interpretado mal a atitude de Marx e Engels sobre o estado etc.

O diretor espiritual dos bolcheviques, Vladimir Lenin, tratou de fundamentar sua acusação sobre bases sólidas em seu conhecido livro “O Estado e a Revolução”, que é definido por seus discípulos como a verdadeira e pura interpretação do marxismo. Por meio de uma coleção de citações perfeitamente arrumadas, Lenin pretende demonstrar que “os fundadores do socialismo científico” foram sempre inimigos declarados da democracia e do pântano parlamentar e que todas as suas aspirações estavam encaminhadas à desaparição do estado.

Não se deve esquecer do que Lenin fez após descobrir que seu partido, contra todas as esperanças, estava em minoria depois das eleições para a Assembleia Constituinte. Até então os bolcheviques tinham participado ao lado dos demais partidos nas eleições e se cuidavam para não entrar em conflito com os princípios da democracia. Nas últimas eleições para a Assembleia Constituinte de 1918, tomaram parte com um programa grandioso, esperando obter uma maioria importante. Mas ao ver que, apesar de tudo, ficaram em minoria, declararão guerra à democracia e dissolveram a Assembleia Constituinte, publicando então Lenin sua obra “O Estado e a Revolução” como justificativa pessoal.

VI

A tarefa de Lenin não era simples, com certeza: de um lado se via obrigado a fazer concessões dirigidas às tendências antiestatais dos anarquistas e do outro a demonstrar que sua atitude não era de modo algum anarquista, mas sim marxista unicamente. Como inevitável consequência de tudo isso, sua obra está cheia de erros contra a lógica do são pensamento do homem. Um exemplo provará esta afirmação: querendo Lenin acentuar o máximo possível uma suposta tendência anti-estatal de Marx, cita o conhecido parágrafo de “Guerra civil na França”, onde Marx dá sua aprovação à Comuna por ter começado desterrando o estado parasitário. Mas Lenin não se dá ao trabalho de lembrar que Marx se via obrigado com estas palavras – que estão em clara contradição com toda sua atitude anterior – a fazer uma concessão aos partidários de Bakunin, com os quais mantinha, naquele momento, uma luta muito inflamada.

Até mesmo Franz Mehring – a quem não se pode suspeitar da simpatia pelos socialistas majoritários – teve que reconhecer essa contradição em seu último livro “Karl Marx”, onde diz: “Apesar de serem totalmente verdadeiros os detalhes dessa obra, não resta dúvidas de que o pensamento ali expresso contradiz todas as opiniões que Marx e Engels vinham proclamando desde o “Manifesto Comunista” 25 anos antes”.

Bakunin estava certo ao dizer naquele momento: “A impressão da Comuna levantada em armas foi tão imponente que até os marxistas, cujas ideias tinham sido completamente desalojadas pela revolução de Paris, tiveram que abaixar a cabeça ante os feitos da Comuna. Fizeram mais ainda: em contradição com toda a lógica e com as suas conhecidas convicções tiveram que se relacionar com a Comuna e se identificar com seus princípios e aspirações. Foi uma carnavalesca brincadeira cômica… mas necessária. Pois o entusiasmo provocado pela Revolução era tão grande que teriam sido rechaçados e expelidos de todas as partes se tivessem tentado permanecer em seus dogmatismos.

VII

Outra coisa também esquece Lenin, algo que é, por certo, de capital importância nessa questão. É o seguinte: que foram precisamente Marx e Engels que obrigaram as organizações da velha Internacional a desenvolver uma ação parlamentar, fazendo-se, deste modo, responsáveis diretos da estagnação coletiva do movimento operário socialista no parlamentarismo burguês. A internacional foi a primeira tentativa de unir os trabalhadores organizados de todos os países em uma grande união, cuja aspiração final seria a libertação econômica dos trabalhadores. Diferenciando-se entre si as ideias e os métodos das diferentes seções, era de capital importância estabelecer os pontos semelhantes para a obra comum e reconhecer a ampla autonomia e a autoridade independente das diversas seções. Enquanto isso se fez, a internacional cresceu poderosamente e floresceu em todos os países. Mas tudo mudou completamente desde o momento em que Marx e Engels se empenharam em empurrar as diferentes federações nacionais para a ação parlamentar. Isto aconteceu pela primeira vez na infeliz conferência de Londres de 1871, onde conseguiram aprovar uma resolução que terminava com as seguintes palavras:

“Considerando: que o proletariado só pode permanecer como classe se constituindo em partido político aparte, em oposição a todos os velhos partidos das classes dominantes; que esta constituição do proletariado em partido político é necessária para chegar ao triunfo da Revolução Social e a sua finalidade, a desaparição das classes; que a união das forças proletárias que se vem conseguindo pelas lutas econômicas é também um meio de que se valem as massas na ação contra as forças políticas do Capitalismo; a conferência lembra aos membros da Internacional a necessidade de manter nas lutas operárias indissoluvelmente unidas suas atividades econômicas e políticas”.

Que uma só seção ou federação da Internacional adotasse tal resolução era coisa bem possível, pois só aos seus componentes envolveria o cumprimento dela; mas que o Conselho Executivo a impusesse a todos os componentes da Internacional, e especialmente se tratando de um assunto que não foi apresentado ao Congresso Geral, constituía um proceder arbitrário, em grande contradição com o espírito da Internacional e que tinha necessariamente que levantar o protesto enérgico de todos os elementos individualistas e revolucionários.

O Congresso com vergonha d’A Faia, em 1872, concluiu a obra empreendida por Marx e Engels para transformar a Internacional em uma maquinaria de eleições, incluindo a este efeito uma cláusula que obrigava as diferentes seções a lutar pela conquista do poder político. Foram, então, Marx e Engels os culpados do divisionismo da Internacional, com todas as suas consequências funestas para o movimento operário, e os que pela ação política trouxeram a estagnação e a degeneração do Socialismo.

VIII

Quando se iniciou a revolução da Espanha em 1973, os membros da Internacional – quase todos anarquistas – ignoraram as petições dos partidos burgueses e seguiram seu próprio caminho para a expropriação da terra e dos meios de produção, com um espírito socialmente revolucionário. Organizaram greves gerais e revoltas em Alcoy, San Lúcar de Barrameda, Sevilha, Cartagena e outros lugares, que tiveram de ser sufocadas à força. Mais tempo resistiu a cidade portuária de Cartagena, a qual se manteve nas mãos dos revolucionários por vários meses até que finalmente caiu devido ao fogo dos navios de guerra prussianos e ingleses. Naquele momento Engels atacou duramente no “Fol.-Stat” aos bakuninianos espanhóis e os repreendeu por não querer aderir aos cidadãos republicanos. Como teria o mesmo Engels, se ainda vivesse, criticado seus discípulos comunistas da Rússia e Alemanha!

Depois do célebre Congresso de 1891, quando os dirigentes dos chamados “Jovens” foram expulsos do Partido Socialdemocrata, por levantar a mesma acusação que Lenin dirigia aos “oportunistas” e “kautzkianos”, fundaram estes um partido diferente com um órgão próprio: “Der Socialist” em Berlim. Em princípio, este movimento foi extremamente dogmático e representou ideias quase idênticas às do atual Partido Comunista. Se se lê, por exemplo, o livro de Teistle “O Parlamentarismo e a classe operária”, se encontrarão idênticos conceitos presentes em “O Estado e a Revolução” de Lenin. Igual aos bolcheviques russos e aos membros do Partido Comunista alemão, os socialistas independentes daquele momento rechaçavam os princípios da Democracia e se negavam a participar nos parlamentos burgueses sobre a base dos princípios reformistas do marxismo.

E como falava Engels desses “Jovens” que se compraziam iguais aos comunistas, em acusar os dirigentes do Partido Socialdemocrata de traição ao marxismo? Numa carta a Sorge, em outubro de 1891, faz o velho Engels os amáveis comentários: “Os asquerosos berlinenses se transformaram em acusados em vez de continuarem sendo acusadores e tendo agido como covardes infelizes foram obrigados a trabalhar fora do Partido, se é que desejam fazer algo. Sem dúvida, há entre eles espiões policiais e anarquistas disfarçados que desejam trabalhar secretamente entre nossa gente. Junto a eles há anos, estudantes iludidos e palhaços insolentes de todo tipo. No total são umas duzentas pessoas”.

Seria verdadeiramente curioso saber com que adjetivos simpáticos teria hoje honrado Engels nossos “comunistas”, que se dizem ser “os possuidores dos princípios marxistas”.

IX

Não é possível caracterizar os métodos da velha social-democracia. Em relação a tal ponto Lenin não diz uma só palavra e menos ainda seus amigos alemães. Os socialistas majoritários devem se lembrar deste detalhe sugestivo para demonstrar que são eles os verdadeiros representantes do marxismo; qualquer um que conhece algo de história deve dar a eles a razão. O marxismo foi quem impôs a ação parlamentar à classe operária e marcou a rota da evolução operada no Partido Social-democrata alemão. Só quando isso for compreendido se entenderá que a rota da libertação social nos leva à terra feliz do anarquismo, passando por cima do marxismo.

Reforma política é segunda demão no estado

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Por Gilson Moura Henrique Junior

O uso pelos partidos da ordem e pela esquerda partidária da reforma política como panaceia para a solução dos problemas do país esconde uma preguiça intelectual fortemente aliada ao oportunismo eleitoreiro.

O primeiro problema das propostas de reforma política que ela não é política em seu inteiro teor, ela é uma reforma eleitoral, e tímida. Enquanto reforma não abrange sequer outras formas de políticas fora do eixo eleitoral, mas ainda dentro da institucionalidade, como a expansão dos comitês e conselhos que já existem na esfera municipal, para além de conselhos consultivos ou expansão para as esferas estaduais e federais com ganho de poderes e capilaridade. Enquanto política as propostas de reforma sequer tangenciam uma discussão sobre o caráter democrático do estado e a necessária repactuação deste para que o exercício do poder não seja platônico, onde uma elite dirigente quase intocável conduz a população conforme foi eleita para fazer, nas palavras de Eduardo cunha, presidente da câmara.

E isso ainda sendo discutida a reforma política nos parâmetros reformistas do estado conforme se propõe a esquerda partidária e os partidos da ordem, sequer comecei a debater o problema sob a luz da superação do sistema e do estado, coisa que pelo menos superficialmente os partidos da oposição de esquerda se dizem desejosos.

Sob o ponto de vista para além do estado é preciso dizer que o que se deveria exigir é mais que reforma do estado, que nada mais é que uma segunda demão na pintura exterior do aparato estatal ampliando direitos e deveres sob o ponto de vista eleitoral reduzindo pontual e mediocremente a questão política à financiamento público de campanha, recall e plebiscito.

Até por exigência ecológica é preciso que se exija uma descentralização absoluta do processo decisório sobre economia, energia e gestão a ponto de obrigar a um repensar de produção e consumo a níveis radicais, não por uma preferência ideológica descolada da realidade, mas por absoluta necessidade de manutenção da vida na terra.

Enquanto a economia não for lógica ou ecológica, enquanto a gestão de recursos entendê-los ainda como infinitos e ignorar resíduos, ignorar a ruptura metabólica causada pela extração de recursos e pela geração de resíduos, em escala geométrica e reproduzida de forma praticamente infinitesimal, enquanto a compreensão da casa (oykos+logos) for secundarizada pela administração da casa (oykos+nomos), correremos o risco da casa cair.

E é esse o eixo que grita a necessidade de ir além da reforma da casa, ou de parte dela ou de parte superficial de parte dela, é fundamental que se grite a obrigatoriedade da exposição á população do risco do modelo em curso de gestão da vida das pessoas e recursos para a vida no planeta, para a existência das civilizações e a partir disto é fundamental horizontalizar os processos decisórios, torná-los comunais, organizados de rua a rua, bairro a bairro, vila a vila, cidade a cidade, estado a estado, para que cada ponto onde a ação econômica atinge e afeta, produzindo danos ambientais, sociais, comunitários,etc, tenha poder para decidir sobre seus rumos, para decidir sobre como é afetado, para além da decisão distante de gestores que sequer sabem da existência dos pontos atingidos por suas ações.

Se nem como reforma isso é posto em perspectiva, diante da absoluta necessidade de por em prática uma gestão democrática radical da produção de alimentos, da produção industrial, de energia, e do consumo disso tudo, inclusive sob o ponto de vista da saúde, se isto não é visto como política e parte do que se propõe como reforma para a política, que reforma e que política é essa?

Que política e essa onde diante da absoluta necessidade de, por exemplo, discutirmos a produção de alimentos centralizada e cujo resultado dela percorre milhares de quilômetros para chegar às mesas dos consumidores, recebendo para isso uma carga absoluta de produtos químicos para sua conservação até lá e com eles afetando a saúde dos consumidores, o que ocorre é a omissão, o silêncio e a troca disso por plebiscitos aqui e ali e um recall ou outro?

Que política é essa onde transgênicos e agrotóxicos são naturalizados e entendidos como algo externo à população que no máximo que se terá de acesso á decisão é se um dia vier, no fantástico mundo da institucionalidade, a plebiscito? E como viria? Por que o inteiro teor das leis não pode ser discutido por quem sofre com elas?

Cadê a política dessas reformas?

A grande reforma que daria solução para os problemas do país, dos países, com a democracia só pode ser a reforma definitiva do estado, que é sua superação e substituição por processos horizontais de decisão, organizados em confederações de conselhos organizadas em cantões, pela descentralização da própria ideia artificial de nação, de Brasil, França ou seja lá o que os estados nacionais tomam pra si como se fossem proprietários da população que reside entre as cercas embandeiradas que separam quintais. População esta forçada a se entender como parte de uma ficção, por vezes na base da porrada, que não tem nenhuma raiz na constituição coletiva além de elementos políticos externos à ela, construído nos altos fornos das elites políticas.

Pra que perder tempo com reformas desta ficção? Não é melhor criar uma outra estória, um outro riso, uma outra peça, um outro poema, uma outra canção?

MANIFESTO: CONSTRUIR UM POVO FORTE PARA POSSIBILITAR OUTRO MUNDO

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

(Manifesto apresentado hoje em Madrid por vários activistas libertários)*

Muitas pessoas recordam que na “Transição” a sociedade acreditou que era possível acabar com um regime que se desmoronava para criar novos modelos de ruptura. Lutou-se, mas acabou-se perdendo: os movimentos sociais foram assimilados; as organizações desmanteladas; e as lutas desarticuladas.

Actualmente o sistema enterrou a política do “consenso” e do “pacto social” própria do Regime de 1978 e da chamada Cultura da Transição. Uma forma de organização criada pelo próprio sistema para fazer frente às exigências de transformação social de uma classe operária poderosa e fortemente organizada. Negociar a mudança para que nada mudasse. Uma vez que fomos despojados das nossas referências ideológicas e organizativas e que conseguiram desvanecer a confiança em nós próprios, o regime, apoiado na desculpa da crise, deu por finalizada a estratégia de concertação social e lançou-se de cabeça na imposição do neoliberalismo por decreto com a justificação da crise económica.

Apesar da orfandade e da indefinição que nos foi inculcada como classe durante as últimas décadas, os níveis de descrédito e de afastamento que o sistema alcançou fez com que nos tivéssemos procurado e reencontrado novamente nas ruas e praças para enfrentar com ânimo a defesa das nossas liberdades e dos bens comuns frente a uma elite que deles se quer apropriar a preço de saldo.

Nós, subscritores e subscritoras deste manifesto, também partilhamos esse desejo de nos reconstruirmos como sociedade livre e soberana, assumirmo-nos como protagonistas das nossas próprias vidas e fazer perceber à elite do velho regime que “não nos representa”. E como outros companheiros e companheiras também sentimos que a este ciclo de mobilizações sociais faltava “alguma coisa” para que nos constituíssemos como alternativa suficiente e capaz de se impor à elite, à casta, ao 1% ou como queiram que seja denominada a classe social que domina as nossas vidas.

Respeitamos os companheiros e as companheiras que face ao mesmo diagnóstico estão a optar pela via da participação institucional através de iniciativas eleitorais, mas apelamos à memória colectiva para sublinhar que os direitos, as conquistas e as grandes transformações sociais nunca nos foram oferecidas a partir das instituições. Foram lutas travadas e ganhas nas ruas, nos locais de trabalho e nos bairros. A nossa memória vem de muito longe para nos recordar que só um povo forte e combativo se impõe às elites que nos governam. Por isso entendemos que é necessária uma grande INICIATIVA SOCIAL que nos ajude a organizarmo-nos, fazermo-nos reconhecer e tornarmo-nos visíveis com todo o potencial que albergamos.

Chegou o momento de impulsionar a independência popular face a outras estruturas para podermos dar um passo em frente e nos erigirmos como povo para vencer. Superar a simples defesa do que já foi alcançado para passar à ofensiva. Impulsionar a auto-organização e o autogoverno para recuperarmos a confiança na nossa capacidade para atingirmos uma sociedade livre e igualitária. Conquistar em conjunto uma verdadeira democracia:

. DEMOCRACIA ECONÓMICA, com um modo de produção que sibstitua o capitalismo pela economia de propriedade colectiva, gerida pelos produtores e consumidores de forma cooperativa.

. DEMOCRACIA POLÍTICA, com um regime que substitua o Estado pela decisão confederal com todas as pessoas que habitam cada território em pé de igualdade.

.DEMOCRACIA DE PARTICIPAÇÃO DIRECTA E EFECTIVA, com representantes que cumpram o que for decidido pelos seus representados e sejam revogáveis a qualquer momento.

. DEMOCRACIA INCLUSIVA DE TODOS E PARA TODOS, que escute, tenha proximidade e compreenda que no mundo há muitos mundos, que assuma e integre todas as lutas que procuram uma mudança para uma sociedade mais igualitária.

. UMA DEMOCRACIA LIBERTÁRIA, DAS PESSOAS E NÃO DOS MERCADOS.

Para isso consideramos como necessárias as iniciativas que actuem nas organizações de trabalhadores e trabalhadoras, de vizinhos e vizinhas, nas cooperativas, nas organizações feministas e de estudantes. Fomentando a sua melhoria qualitativa e quantitativa, a sua democracia interna e a sua eficácia. Actuando para favorecer a sua autonomia face à administração e aos partidos ou candidaturas eleitorais e de forma a respeitar a sua pluralidade interna.

Iniciativas que sejam capazes de elaborar análises e discursos para que possam ser identificadas as necessidades de cada momento e aumentar a nossa preparação como activistas. Que sejam capazes de elaborar estratégias sobre as quais se construa a democracia e que nos permitam acumular forças enquanto caminhamos nessa direcção. Agindo com humildade e reconhecendo a pluralidade existente porque é o povo, e não os projectos ou siglas concretas só por si, quem pode conseguir novos avanços”.

Tradução Portal Anarquista

Aqui: https://construyendopueblofuerte.wordpress.com/

*O manifesto foi apresentado em 19 de fevereiro de 2015 (Nota do coletivo Anarquia ou Barbárie)

Face aos projectos eleitoralistas, espaços e activistas libertários procuram novas formas organizativas – Uma alternativa ao Podemos e a outros movimentos eleitoralistas [Estado espanhol]

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

No Estado Espanhol continua viva a discussão em torno da necessidade de criar organizações que coordenem a actuação dos diversos espaços e activistas libertários, cuja acção decorre sobretudo junto dos movimentos sociais.

No campo sindical, o espaço libertário possui duas organizações fortes, a CNT e a CGT (sendo mesmo, em número de militantes, a CGT a terceira central sindical no Estado Espanhol, depois das CCOO e da UGT), mas no campo específico do movimento libertário têm sido criadas diversas estruturas com pouco peso e pouca relevância.

A FAI junta somente alguns grupos e mesmo assim, apenas de afinidade, quando hoje muitos militantes preferem organizar-se por locais de residência ou por interesses específicos.

Na Catalunha existe já desde há algum tempo o projecto de criação de uma organização de coordenação libertária – o Procés Embat -, enquanto que diversos activistas têm avançado propostas também nesse sentido, como é o caso de Carlos Taibo.

Construindo um povo forte”

Hoje uma nova proposta nesse caminho foi apresentada publicamente em Madrid. Sob o lema “Construindo um povo forte”, o manifesto agora divulgado refere que “é o povo, e não os projectos ou siglas concretas só por si, quem pode conseguir novos avanços” sociais.

Segundo o Periódico Diagonal, este novo projecto pretende servir de espaço de confluência para colectivos e pessoas que, face aos projectos surgidos à volta da via eleitoral, apostam pela mobilização a partir de baixo.

À margem das iniciativas eleitorais

Tudo parte do famoso 15M. Muitas das pessoas que militávamos em movimentos sociais vimos nesse momento que o debate político ultrapassava as fronteiras dos novos movimentos e chegava à sociedade”, diz Dilia Puerta, militante feminista e participante neste processo. “Todos, pessoas de diferentes ideais políticos com diferentes perspectivas, sentiamo-nos amparados por baixo do chapéu de chuva do “não nos representam”. Esse “não nos representam” teve diversas consequências e desembocou em diferentes iniciativas, algumas delas optando por tentarem mudanças por via eleitoral”, continua Puerta. “A grande pergunta é como e onde nos colocamos nós, as pessoas que se sentem reticentes face a estas vias”, conclui.

Uma vida que mereça ser vivida

A iniciativa “Construindo povo forte” nasceu há cerca de um ano em fóruns da internet, nos quais militantes de colectivos libertários impulsionaram um debate em torno da forma de actuar frente à nova situação social e política. Nele têm participado desde militantes feministas a sindicatos. Em geral “qualquer pessoa com vontade de reflectir mais profundamente, que seja capaz de participar na criação de um espaço de confluência, em que possam ser gerados debates que vão até à raiz”, explica a activista Lorea Moral, que ressalta a necessidade de “tirar o dinheiro do centro e pôr a vida no seu lugar, não qualquer vida, mas sim uma vida que mereça ser vivida”. “Uma mudança assim tão radical é difícil que seja conseguida por via eleitoral”, conclui Lorea Moral, citada pelo  jornal alternativo “Diagonal”.

Uma alternativa ao Podemos e a outros movimentos eleitoralistas

No fundo, é a procura de uma resposta libertária para construir uma alternativa coordenada em torno dos diversos espaços e activistas que não passe pela via eleitoral e possa servir de alternativa também a todos aqueles que não se revêem em processos como o do Podemos ou similares, construídos a partir dos movimentos autónomos, mas centralistas e com uma visão autoritária e eleitoralista da vida política e social.

No último ano e meio várias iniciativas têm vindo a rearticular o movimento libertário em Espanha: a Federacão Estudantil Libertária e a Federação Estudantil Anarquista (para a Catalunha), a Federação Anarquista de Catalunha, el Procés Embat (também da Catalunha), o Espaço Libertário de Madrid, o Conceyu Anarquista Asturianu, a Federación Anarquista de Gran Canaria, o C.R.A. e as numerosas assembleias libertárias nas universidades, bairros e concelhos, que se espera possam fortalecer a alternativa libertaria, convertendo-a num actor político real a nivel estatal.

 

O anarquismo que aí vem

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

(O texto que hoje traduzimos foi publicado no órgão da FAI, Tierra y Libertad, de Fevereiro, colocado na internet, mas depois apagado. No entanto, já tinha sido publicado em diversos outros sites de língua castelhana. É um texto polémico cujo autor afirma que os anarquistas têm que deixar as análises do passado e olhar mais para a sociedade em que vivem, onde as próprias relações de poder se estão a alterar).

Andrea Papi

Para muitos, o mundo actual é pouco atractivo e para muitos outros está-se a tornar inabitável. Uma condição difusa que, por si mesma, deveria ser suficiente para empurrar as massas humanas insatisfeitas para uma alternativa de libertação social. O fracasso histórico do bolchevismo, entre outras coisas, deveria ter, pelo menos em teoria, favorecido a adesão aos movimentos anarquistas que, neste momento, estariam cheios de adeptos e de simpatizantes atraídos de uma forma irresistível. Em vez disso assistimos a um empobrecimento da presença militante, enquanto se registam adesões, nalguns casos consistentes, para comportamentos práticos e experiências que podem reconduzir ao sentido e à qualidade das propostas anarquistas (decisões colectivas através de formas de democracia directa, recusa das hierarquias, tensões igualitárias, cooperação e solidariedade partilhadas de forma mútua, etc.), em geral sem se reconhecerem e definirem como tais e muito longe do que era a militância em sentido clássico.

Noutras palavras, o anarquismo está a mudar a forma e o modo de ser fora dos canais ligados à experiência “oficialmente” codificada enquanto tal. Por isso, suponho que se está a produzir uma renovação espontânea, feita de um impulso libertário sincero e genuíno que o velho anarquismo não está na disposição de absorver ou integrar (ou porque não quer, ou porque não o entende, ou porque não é capaz, à parte de algum esporádico e raro caso). Não seria afastarmo-nos da realidade afirmar que nesta fase está a tomar forma e a manifestar-se autonomamente um “anarquismo de novo sabor”, já que o seu nascimento está desligado daquele que existe e é historicamente reconhecido.

Não há nada de mau nisto. Inclusive, em certos aspectos pode ser visto como algo de bom. O considerado “velho”, sobretudo pelo peso intrínseco da sua poderosa história, desde há décadas que aparece facilmente esclerótico e frequentemente imóvel, quando, na realidade, considerado na sua natureza específica de “movimento” deveria estar permanentemente “animado”, genuinamente capaz de se renovar sem ficar pesadamente ancorado a esquemas que se tornaram velhos e obsoletos. Se o “novo” (acrescento eu), com toda a sua multiplicidade de manifestações, antes ou depois não se relaciona com o “velho”, inovando-o cultural e experimentalmente, com muita dificuldade poderá conservar essa integridade libertária que o distingue, para ser (maldito seja!) absorvido por lógicas e visões que o reconduzirão ao maléfico “bando autoritário”, sempre à espreita.

Saber renovar-se quer dizer, antes de mais nada, adquirir a capacidade de actualizar a leitura da realidade, para captar os movimentos, as mutações, as mudanças. Depois há que saber colocar hipóteses para os experimentar, meios e métodos aptos para contestar de forma eficaz e inteligente o contexto despótico que exerce a dominação, para tentar superá-la ou eliminá-la: em suma, para conseguir acabar com ela, com o objectivo de viver relações sociais livres através de tensões libertadoras e libertárias. Parece-me claro que um tal percurso, que não se pode definir senão quando se põe em prática, deverá necessariamente ser expurgado de esquematismos  e ideologismos que escondem o caminho, sabotando-o e, de facto, impedindo-o de ser percorrido.

Não temos que ter medo de abandonar os velhos esquemas que definem o percurso revolucionário, que propõem uma narração do conflito social que, de forma mais ou menos sabida, se apresenta como se fosse absoluta, quase sugerindo que não pode haver outra (a lógica dogmática da “única via possível”). E, nesta vertente, a adesão à “luta de emancipação” pode cair em atitudes cegas e religiosas.

Pensar e agir “em grande”

Na verdade, tudo mudou e continua a mudar, e o anarquismo, se for autêntico, não pode ser entendido como fixo ou parado. Como tudo o que está vivo e em movimento, não pode ser visto como se fosse imóvel: como um corpo que cresce tem continuamente constantes alterações de desenvolvimento. Mesmo em relação aos primeiros momentos em que foi concebido e pensado, realizado nos limites do possível, mudou também profundamente o contexto planetário circundante, como mudaram também os estímulos, o tipo de observações e o imaginário, tudo aquilo que em conjunto define uma visão do mundo. Como todas as visões do mundo pode transformar-se e dilatar-se mantendo intacta a sua substância. Tendo bem presente esta dinâmica, julgo que não deve ser entendido como uma ideologia, ainda que alguns o façam, por vezes, talvez na ilusão de fixarem uma globalidade que, de facto, não é sua.

A velha narrativa em que nos forjámos fala-nos, por exemplo, de insurreição revolucionária para tomar o poder e impor a ditadura do proletariado (como sustentava o marxismo-leninismo) ou para destruir o Estado (como sempre defenderam os anarquistas). Nos dois casos ter-se-ia que tomar os “Palácios do Poder”, num caso para se apossar deles, no outro para destrui-los e eliminar todas as formas de autoritarismo político. Hoje já não há nenhum “Palácio” a conquistar, enquanto que, pelas condições em que nos obrigam a viver, estamos permanentemente imersos num nível de confronto que pode inclusivamente desembocar em lógicas de guerra, sem inimigos nem lugares claramente identificados. Claro que algumas vezes vai-se conseguir vencer alguma escaramuça com as forças da polícia, mas como o verdadeiro poder já não está onde se encontrava dantes e gerou outras formas de poder enormemente sofisticadas, isso não resolve nada.

A velha narrativa dizia-nos que tudo gira em torno da luta irreconciliável entre a burguesia e o proletariado, um confronto permanente entre patrões e explorados intrínseco à estrutura sobre a qual se construiu a sociedade capitalista, vista quase como a ultima forma estrutural da história. Uma visão rígida, que não chega para perceber as dinâmicas da actual liquidez social (para dizê-lo como Bauman), nem a complexidade das redes globais que está a envolver o mundo no seu conjunto. A nova servidão e os novos escravos são massas humanas submissas que representam uma realidade muito mais complexa e articulada do que a working class da memória marxiana, enquanto que a rede global de especulação que alimenta e favorece a oligarquia financeira, capaz de sujeitar a economia produtiva à própria avidez, é algo muito mais complexo e estruturado do que a velha burguesia capitalista de antigamente. O mundo está a enredar-se em algo muito mais ilusório e multiforme do que o conflito dialéctico linear colocado como hipótese nessa altura.

Já não temos que nos confrontar simplesmente com generais, reis, chefes de governo, patrões e todas essas figuras que sempre personificaram o poder enquanto mando e vontade de imposição. Não me interpretem mal; todas essas figuras estão ainda presentes por todo o lado, mas já não representam o vértice da concentração de poder de que depende o destino do mundo. O despotismo, base fundamental da qualidade das relações, continua a crescer, mas tem sofrido mutações que alteram a qualidade das formas e dos métodos de imposição. Atravessamos um passo prepotente e significativo do “mando” para a “coerção objectiva”, como fundamento da capacidade de dominar.

Por tudo isto, não podemos continuar a desgastar-nos numa extenuante guerra de oposição, que se queria revolucionária, na ilusão perpétua de derrubar as estruturas caducas de poderes cada vez menos poderosos, nalguns casos, mesmo em extinção. Devemos, pelo contrário, começar a pensar e a agir “em grande” (entendendo grande em termos cósmicos), escolhendo e inaugurando de forma séria uma rota dedicada sobretudo a construir e a experimentar, de todas as formas criativas possíveis, o novo e diferente que acreditamos poderem concretizar a libertação e a liberdade desejadas, deixando de nos apresentarmos como se estivéssemos numa guerra permanente contra imagens fantoche, que só servem como espantalhos do poder para nos ter entretidos com “tarefas” destinadas ao nosso aniquilamento.

 

A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

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Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.