A Sociedade Contra O Estado, por Pierre Clastres

"Methods of sieging and attacking"/"Métodos de cerco e ataque" Theodore de Bry, Séc. XVI

“Methods of sieging and attacking”/”Métodos de cerco e ataque” Theodore de Bry, Séc. XVI

POSTADO EM Arte e Anarquia

As sociedades primitivas são sociedades sem Estado: esse julgamento de fato, em si mesmo correto, na verdade dissimula uma opinião, um juízo de valor, que prejudica então a possibilidade de constituir uma antropologia política como ciência rigorosa. O fato que se enuncia é que as sociedades primitivas estão privadas de alguma coisa – o Estado – que lhes é, tal como a qualquer outra sociedade – a nossa, por exemplo – necessária. Essas sociedades são, portanto, incompletas. Não são exatamente verdadeiras sociedades – não são policiadas -, e subsistem na experiência talvez dolorosa de uma falta – falta do Estado – que elas tentariam, sempre em vão, suprir. De um modo mais ou menos confuso, é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade sem o Estado, o Estado é o destino de toda sociedade. Descobre-se nessa abordagem uma fixação etnocentrista tanto mais sólida quanto é ela, o mais das vezes, inconsciente. A referência imediata, espontânea ‘é, se não aquilo que melhor se conhece, pelo menos o mais familiar. Cada um de nós traz efetivamente em si, interiorizada como a fé do crente, essa certeza de que a sociedade existe para o Estado. Como conceber então a própria existência das sociedades primitivas, a não ser como espécies à margem da história universal, sobrevivências anacrônicas de uma fase distante e, em todos os lugares há muito ultrapassada? Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, a convicção complementar de que a história tem um sentido único, de que toda sociedade está condenada a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria, conduzem à civilização “Todos os povos policiados foram selvagens”, escreve Raynal. Mas o registro de uma evolução evidente de forma alguma fundamenta uma doutrina que, relacionando arbitrariamente o estado de civilização com a civilização do Estado, designa este último como termo necessário atribuído a toda sociedade. Pode-se então indagar o que manteve os últimos povos ainda selvagens.

Por trás das formulações modernas, o velho evolucionismo permanece, na verdade, intacto. Mais delicado para se dissimular na linguagem da antropologia, e não mais na da filosofia, ele aflora contudo ao nível das categorias que pretendem ser científicas. Já se percebeu que, quase sempre, as sociedades arcaicas são determinadas de maneira negativa, sob o critério da falta: sociedades sem Estado, sociedades sem escrita, sociedades sem história. Mostra-se como sendo da mesma ordem a determinação dessas Sociedades no plano econômico: sociedades de economia de subsistência. Se, com isso, quisermos significar que as sociedades primitivas desconhecem a economia de mercado onde são escoados os excedentes da produção, nada afirmamos de modo estrito, e contentamo-nos em destacar mais uma falta, sempre com referência ao nosso próprio mundo: essas sociedades que não possuem Estado, escrita, história, também não dispõem de mercado. Todavia, pode objetar o bom senso, para que serve um mercado, se não há excedentes? Ora a idéia de economia de subsistência contém em si mesma a afirmação de que, se as sociedades primitivas não produzem excedentes, é porque são incapazes de fazê-lo, inteiramente ocupadas que estariam em produzir o mínimo necessário à sobrevivência, à subsistência. Imagem antiga, sempre eficaz, da miséria dos selvagens. E, a fim de explicar essa incapacidade das sociedades primitivas de sair da estagnação de viver o dia-a-dia, dessa alienação permanente na busca de alimentos, invocam-se o subequipamento técnico, a inferioridade tecnológica.

O que ocorre na realidade? Se entendermos por técnica o conjunto dos processos de que se munem os homens, não para assegurarem o domínio absoluto da natureza (isso só vale para o nosso mundo em seu insano projeto cartesiano cujas conseqüências ecológicas mal começamos a medir), mas para garantir um domínio do meio natural adaptado e relativo às suas necessidades, então não mais podemos falar em inferioridade técnica das sociedades primitivas: elas demonstram uma capacidade de satisfazer suas necessidades pelo menos igual àquela de que se orgulha a sociedade industrial e técnica. Isso equivale a dizer que todo grupo humano chega a exercer, pela força, o mínimo necessário de dominação sobre o meio que ocupa. Até agora não se tem conhecimento de nenhuma sociedade que se haja estabelecido, salvo por meio de coação e violência exterior, sobre um espaço natural impossível de dominar: ou ela desaparece ou muda de território. O que surpreende nos esquimós e nos australianos é justamente a riqueza, a imaginação e o refinamento da atividade técnica, o poder de invenção e de eficácia demonstrada pelas ferramentas utilizadas por esses povos. Basta fazer uma visita aos museus etnográficos: o rigor de fabricação dos instrumentos da vida cotidiana faz praticamente de cada modesto utensílio uma obra de arte. Não existe portanto hierarquia no campo da técnica, nem tecnologia superior ou inferior; só se pode medir um equipamento tecnológico pela sua capacidade de satisfazer, num determinado meio, as necessidades da sociedade. E, sob esse ponto de vista, não parece de forma alguma que as sociedades primitivas se mostraram incapazes de se proporcionar os meios de realizar esse fim. Essa potência de inovação técnica testemunhada pelas sociedades primitivas desdobra-se sem dúvida no tempo. Nada é fornecido de uma só vez, há sempre o paciente trabalho de observação e de pesquisa, a longa sucessão de ensaios, erros, fracassos e êxitos. Os historiadores da pré-história nos dão notícia de quantos milênios foram necessários para que os homens do paleolítico substituíssem os grosseiros bifaces pelas admiráveis lâminas do solutreano. Segundo outro ponto de vista, observa-se que a descoberta da agricultura e a domesticação das plantas são quase contemporâneas na América e no velho Mundo. E impõe-se constatar que os ameríndios em nada se mostram inferiores, muito pelo contrário, no que se refere à arte de selecionar e diferençar, múltiplas variedades de plantas foram úteis.

Detenhamo-nos por um momento no funesto interesse que levou os índios a quererem instrumentos metálicos. Com efeito, ele está diretamente relacionado com a questão da economia nas sociedades primitivas, mas não da maneira que se poderia acreditar. Essas sociedades estariam, segundo se afirma, condenadas à economia de subsistência em razão da inferioridade tecnológica. Como acabamos de ver, esse argumento não tem fundamento em direito nem em fato. Nem em direito, porque não existe escala abstrata pela qual se possam medir as “intensidades” tecnológicas: o equipamento técnico de uma sociedade não é diretamente comparável àquele de uma sociedade diferente, e de nada serve opor o fuzil ao arco. Nem em fato, uma vez que a arqueologia, a etnografia, a botânica etc. nos demonstram precisamente a potência de rentabilidade e de eficácia das tecnologias selvagens. Por conseguinte, se as sociedades primitivas repousam numa economia de subsistência, não é por lhes faltar uma habilidade técnica. A verdadeira pergunta que se deve formular é a seguinte: a economia dessas sociedades é realmente uma economia de subsistência? Precisando o sentido das expressões: se por economia de subsistência não nos contentamos em entender economia sem mercado e sem excedentes – o que seria um simples truísmo, o puro registro da diferença – então com efeito se afirma que esse tipo de economia permite à sociedade que ele funda tão somente subsistir; afirma-se que essa sociedade mobiliza permanentemente a totalidade de suas forças produtivas para fornecer a seus membros o mínimo necessário à subsistência.

Existe aí um preconceito tenaz, curiosamente co-extensivo à idéia contraditória e não menos corrente de que o selvagem é preguiçoso. Se em nossa linguagem popular diz-se “trabalhar como um negro”, na América do Sul, por outro lado, diz-se “vagabundo como um índio”. Então, das duas uma: ou o homem das sociedades primitivas, americanas e outras, vive em economia de subsistência e passa quase todo o seu tempo à procura de alimento, ou não vive em economia de subsistência e pode portanto se proporcionar lazeres prolongados fumando em sua rede. Isso chocou claramente os primeiros observadores europeus dos índios do Brasil. Grande era a sua reprovação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam se empetecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regarem com suor as suas áreas cultivadas. Tratava-se, portanto, de povos que ignoravam deliberadamente que é preciso ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Isso era demais, e não durou muito: rapidamente se puseram os índios para trabalhar, e eles começaram a morrer. Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidental desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é necessário trabalhar. Os índios, efetivamente, só dedicavam pouco tempo àquilo a que damos o nome de trabalho. E apesar disso não morriam de fome. As crônicas da época são unânimes em descrever a bela aparência dos adultos, a boa saúde das numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos alimentares. Por conseguinte, a economia de subsistência das tribos indígenas não implicava de forma alguma a angustiosa busca, em tempo integral, de alimento. Uma economia de subsistência é, pois, compatível com uma considerável limitação do tempo dedicado às atividades produtivas. Era o que se verificava com as tribos sul americanas de agricultores, como os Tupi-Guarani, cuja ociosidade irritava igualmente os franceses e os portugueses. A vida econômica desses índios baseava-se sobretudo na agricultura, e, acessoriamente, na caça, na pesca e na coleta. Uma mesma área de cultivo era utilizada por um período ininterrupto de quatro a seis anos. Em seguida, era abandonada, por esgotar-se o solo ou, mais provavelmente, em virtude da invasão do espaço destacado por uma vegetação parasitária de difícil eliminação. O grosso do trabalho, efetuado pelos homens, consistia em arrotear, por meio de um machado de pedra e com auxílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa, realizada no fim da estação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo o resto do processo agrícola – plantar, mondar, colher -, em conformidade com a divisão sexual do trabalho, era executado pelas mulheres. Donde a seguinte conclusão feliz: os homens, isto é, a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em cada quatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradas não como trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu gosto apaixonado pela guerra.

Ora, esses dados maciços, qualitativos, impressionistas, encontram uma brilhante confirmação em pesquisas recentes – algumas em curso – de caráter rigorosamente demonstrativo, já que medem o tempo de trabalho nas sociedades com economia de subsistência. Quer se trate de caçadores-nômades do deserto do Kalahari ou de agricultores sedentários ameríndios, os números obtidos revelam uma divisão média do tempo diário de trabalho inferior a quatro horas por dia. Jacques Lizot, que vive há muitos anos entre os índios Yanomami da Amazônia venezuelana, estabeleceu, cronometricamente, que a duração média do tempo, que os adultos dedicam todos os dias ao trabalho, incluídas todas as atividades, mal ultrapassa três horas. Não chegamos, pessoalmente, a realizar cálculos desse gênero entre os Guayaki, caçadores nômades da floresta paraguaia. Mas pode-se assegurar que os índios – homens e mulheres – passavam pelo menos a metade do dia em quase completa ociosidade, uma vez que a caça e a coleta se efetuavam, e não todos os dias, entre, mais ou menos, 6 e 11 horas da manhã. É provável que estudos desse gênero, levados a efeito entre as últimas populações primitivas, resultassem – consideradas as diferenças ecológicas – em resultados muito parecidos.

Estamos portanto bem longe da miserabilidade que envolve a idéia de economia de subsistência. Não só o homem das sociedades primitivas não está de forma alguma sujeito a essa existência animal que seja a busca permanente para assegurar a existência, como é ao preço de um tempo de atividade notavelmente curto que ele alcança – e até ultrapassa -. esse resultado. Isso significa que as sociedades primitivas dispõem, se assim o desejarem, de todo o tempo necessário para aumentar a produção dos bens materiais. O bom senso questiona: por que razão os homens dessas sociedades quereriam trabalhar e produzir mais, quando três ou quatro horas diárias de atividade são suficientes para garantir as necessidades do grupo? De que lhes serviria isso? Qual seria a utilidade dos excedentes assim acumulados? Qual seria o destino desses excedentes? É sempre pela força que os homens trabalham além das suas necessidades. E exatamente essa força está ausente do mundo primitivo: a ausência dessa força externa define inclusive a natureza das sociedades primitivas. Podemos admitir, a partir de agora, para qualificar a organização econômica dessas sociedades, a expressão economia de subsistência, desde que não a entendamos no sentido da necessidade de um defeito, de uma incapacidade inerentes a esse tipo de sociedade e a sua tecnologia, mas, ao contrário, no sentido da recusa de um excesso inútil da vontade de restringir a atividade produtiva à satisfação das necessidades. E nada mais. Tanto mais que, para examinar as coisas mais de perto, há efetivamente produção de excedentes nas sociedades primitivas: a quantidade de plantas cultivadas produzidas (mandioca, milho, fumo, algodão etc.) sempre ultrapassa o que é necessário ao consumo do grupo, estando essa produção suplementar, evidentemente incluída no tempo normal de trabalho. Esse excesso, obtido sem sobre-trabalho, é consumido, consumado, com finalidades propriamente políticas, por ocasião de festas, convites, visita de estrangeiros etc. A vantagem de um machado de metal sobre um machado de pedra é evidente demais para que nela nos detenhamos: podemos, no mesmo tempo, realizar com o primeiro talvez dez vezes mais trabalho que com o segundo; ou então executar o mesmo trabalho num tempo dez vezes menor. E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais curto. Mas foi exatamente o contrário que se verificou, pois, com os machados metálicos, irromperam no mundo primitivo dos índios a violência, a força, o poder, impostos aos selvagens pelos civilizados recém-chegados.

As sociedades primitivas são, como escreve Lizot ao propósito dos Yanomami, sociedades de recusa do trabalho: “O desprezo dos Yanomami pelo trabalho e o seu desinteresse por um progresso tecnológico autônomo é certo”1 Primeiras sociedades do lazer, primeiras sociedades da abundância, na justa e feliz expressão de Marshall Sahlins. Se o projeto de constituir uma antropologia econômica das sociedades primitivas como disciplina autônoma tem um sentido, este não pode advir da simples consideração da vida econômica dessas sociedades: permanecemos numa etnologia da descrição, na descrição de uma dimensão não-autônoma da vida social primitiva. É muito antes, quando essa dimensão do “fato social total” se constitui como esfera autônoma, que a idéia de uma antropologia econômica parece fundamentada: quando desaparece a recusa ao trabalho, quando o sentido do lazer é substituído pelo gosto da acumulação, quando, em síntese, surge no corpo social essa força externa que evocamos antes, essa força sem a qual os selvagens não renunciariam ao lazer e que destrói a sociedade como sociedade primitiva; essa força é a potência de sujeitar, é a capacidade de coerção, é o poder político. Mas, em conseqüência disso, a antropologia deixa desde então de ser econômica, e perde de alguma forma o seu objeto no próprio instante em que crê agarrá-lo, e a economia torna-se política. Para o homem das sociedades primitivas, a atividade de produção é exatamente medida, delimitada pelas necessidades que têm de ser satisfeitas, estando implícito que se trata essencialmente das necessidades energéticas: a produção é projetada sobre a reconstituição do estoque de energia gasto. Em outros termos, é a vida como natureza que – com exceção dos bens consumidos socialmente por ocasião das festas – fundamenta e determina a quantidade de tempo dedicado a reproduzi-la. Isso equivale a dizer que, uma vez assegurada a satisfação global das necessidades energéticas, nada poderia estimular a sociedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, a alienar o seu tempo num trabalho sem finalidade, enquanto esse tempo é disponível para a ociosidade, o jogo, a guerra ou a festa. Quais as condições em que se podem transformar essa relação entre o homem primitivo e a atividade de produção? Sob que condições essa atividade se atribui uma finalidade diferente da satisfação das necessidades energéticas? Temos aí levantada a questão da origem do trabalho como trabalho alienado.

Na sociedade primitiva, sociedade essencialmente igualitária, os homens são senhores de sua atividade, senhores da circulação dos produtos dessa atividade: eles só agem para si próprios, mesmo se a lei de troca dos bens só mediatiza a relação direta do homem com o seu produto. Tudo se desarruma, por conseguinte, quando a atividade de produção se afasta do seu objetivo inicial quando em vez de produzir apenas para si mesmo, o homem primitivo produz também para os outros, sem troca e sem reciprocidade. Só então é que podemos falar em trabalho: quando a regra igualitária de troca deixa de constituir o “código civil” da sociedade, quando a atividade de produção visa a satisfazer as necessidades dos outros, quando a regra de troca é substituída pelo terror da dívida. Na verdade, é exatamente aí que se inscreve a diferença entre o selvagem amazônico e o índio do império inca. O primeiro produz, em suma, para viver, enquanto o segundo trabalha, de mais a mais, para fazer com que outros vivam – os que não trabalham, os senhores que lhe dizem: cumpre que tu pagues o que nos deves; impõe-se que tu eternamente saldes a dívida que conosco contraíste.

Quando, na sociedade primitiva, o econômico se deixa identificar como campo autônomo e definido, quando a atividade de produção se transforma em trabalho alienado, contabilizado e imposto por aqueles que vão tirar proveito dos frutos desse trabalho, é sinal de que a sociedade não é mais primitiva, tornou-se uma sociedade dividida em dominantes e dominados, em senhores e súditos, e de que parou de exorcizar aquilo que está destinado a matá-la: o poder e o respeito ao poder. A principal divisão da sociedade, aquela que serve de base a todas as outras, inclusive sem dúvida a divisão do trabalho, é a nova disposição vertical entre a base e o cume, é o grande corte político entre detentores da força, seja ela guerreira ou religiosa, e sujeitados a essa força. A relação política do poder precede e fundamenta a relação econômica de exploração. Antes de ser econômica, a alienação é política, o poder antecede o trabalho, o econômico é uma derivação do político, a emergência do Estado determina o aparecimento das classes.

Inacabamento, incompletude, falta: não é absolutamente desse lado que se revela a natureza das sociedades primitivas. Ela impõe-se bem mais como positividade, como domínio do meio ambiente natural e do projeto social, como vontade livre de não deixar escapar para fora de seu ser nada que possa alterá-lo, corrompê-lo e dissolvê-lo. É a isso que nos devemos prender com firmeza: as sociedades primitivas não são os embriões retardatários das sociedades ulteriores, dos corpos sociais de decolagem “normal” interrompida por alguma estranha doença; elas não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que conduz diretamente ao termo inscrito de antemão, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social. (Se a história é essa lógica, como podem ainda existir sociedades primitivas?) Tudo isso se traduz, no plano da vida econômica, pela recusa das sociedades primitivas em se deixarem tragar pelo trabalho e pela produção, através da decisão de limitar os estoques às necessidades sociopolíticas, da impossibilidade intrínseca da concorrência – de que serviria, numa sociedade primitiva, ser rico entre os pobres? – em suma, pela proibição, não formulada ainda que dita, da desigualdade.

O que é que determina que numa sociedade primitiva a economia não seja política? Isso se dá, como se vê, devido ao fato da economia nela não funcionar de maneira autônoma. Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, as sociedades primitivas são sociedades sem economia por recusarem a economia. Mas deve-se então classificar também como ausência a existência do político nessas sociedades? É preciso admitir que, por se tratar de sociedades “sem lei e sem rei ” o campo político lhes falta? E não tornaríamos dessa forma a cair na rotina clássica de um etnocentrismo para o qual a falta assinala em todos os níveis as diferentes sociedades?

Abordemos pois a questão do político nas sociedades primitivas. Não se trata simplesmente de um problema “interessante”, de um tema reservado apenas à reflexão dos especialistas, pois a etnologia ganha as dimensões de uma teoria geral (a construir) da sociedade. A extrema diversidade dos tipos de organização social, a abundância, no tempo e no espaço, de sociedades dessemelhantes, não impedem entretanto a possibilidade de uma ordem na descontinuidade, a possibilidade de uma redução dessa multiplicidade infinita de diferenças. Redução maciça, uma vez que a história só nos oferece, de fato, dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao outro, duas macro-classes, cada uma das quais reúne em si sociedades que, além de suas diferenças, têm em comum alguma coisa de fundamental. Existem por um lado as sociedades primitivas ou sociedades sem Estado; e, por outro lado, as sociedades com Estado. É a presença ou a ausência da formação estatal (suscetível de assumir múltiplas formas) que fornece a toda sociedade o seu elo lógico, que traça uma linha de irreversível descontinuidade entre as sociedades. O aparecimento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre selvagens e civilizados, e traçou uma indelével linha de separação além da qual tudo mudou, pois o Tempo se torna História. Tem-se freqüentemente descoberto – e com razão – no movimento da história mundial duas acelerações decisivas do seu ritmo. O motor da primeira foi o que se denomina a revolução neolítica (domesticação dos animais, agricultura, descoberta das artes da tecelagem e da cerâmica, sedentarização conseqüente dos grupos humanos etc.). Estamos ainda vivendo, e cada vez mais (se nos é lícita a expressão) no prolongamento da segunda aceleração, a revolução industrial do século XIX.

Evidentemente não há dúvida de que a linha de separação neolítica alterou de modo considerável as condições de existência material dos povos outrora paleolíticos. Mas essa transformação teria sido tão radical a ponto de afetar em sua mais extrema profundidade a essência das sociedades? Pode-se falar em um funcionamento diferente dos sistemas sociais, conforme sejam eles pré-neolíticos ou pós-neolíticos? A experiência etnográfica indica antes o contrário. A passagem do nomadismo à sedentarização seria a conseqüência mais rica da revolução neolítica, no sentido de que permitiu, pela concentração de uma população estabilizada, a formação das cidades e, mais adiante, dos aparelhos de Estado. Mas determina-se que, ao fazer isso, todo “complexo” tecnocultural desprovido de agricultura está necessariamente fadado ao nomadismo. Eis o que é etnograficamente inexato: uma economia de caça, pesca e coleta não exige obrigatoriamente um modo de vida nômade. Vários exemplos, tanto na América como em outros lugares, o atestam: a ausência de agricultura é compatível com o sedentarismo. Isso permitiria supor, então, que, se certos povos não chegaram a possuir agricultura, no momento em que ela era ecologicamente possível, não foi por incapacidade, atraso tecnológico, inferioridade cultural, porém, mais simplesmente, porque dela não tinham necessidade.

A história pós-colombiana da América apresenta o caso de populações de agricultores sedentários que, sob o efeito de uma revolução técnica (conquista do cavalo e, acessoriamente, das armas de fogo), preferiram abandonar a agricultura para se dedicarem de maneira quase exclusiva à caça, cujo rendimento era multiplicado pela mobilidade dez vezes maior proporcionada pelo cavalo. A partir do momento em que se tornaram eqüestres, as tribos das planícies da América do Norte ou as do Chaco, na América do Sul, intensificaram e estenderam os seus deslocamentos: contudo, estamos aí bem longe do nomadismo em que recaem geralmente os bandos de caçadores-coletores (como os Guayaki do Paraguai), e o abandono da agricultura não se traduziu, para os grupos em questão, pela dispersão demográfica, nem pela transformação da organização social anterior. Que nos é ensinado por esse movimento de maioria de sociedades que passaram da caça à agricultura e pelo movimento inverso, de algumas outras, que, partindo da agricultura, chegaram à caça? É que isso parece efetivar-se sem que ocorra qualquer mudança na natureza da sociedade; que esta permanece idêntica a si mesma enquanto se transformam apenas as suas condições de existência material; que a revolução neolítica, se por um lado afetou consideravelmente, e sem dúvida facilitou, a vida material dos grupos humanos de então, por outro lado não acarreta de maneira automática uma perturbação da ordem social. Em outros termos, e no que tange às sociedades primitivas, a mudança no plano do que o marxismo chama a infra-estrutura econômica não determina de modo algum o seu reflexo conseqüente a superestrutura política, já que esta surge independente da sua base material. O continente americano ilustra claramente a autonomia respectiva da economia e da sociedade. Grupos de caçadores-pescadores-coletores, nômades ou não, apresentam as mesmas propriedades sociopolíticas que os seus vizinhos agricultores sedentários: “infraestruturas” diferentes, “superestrutura” idêntica. Inversamente, as sociedades mesoamericanas – sociedades imperiais, sociedades com Estado – eram tributárias de uma agricultura que, mais intensiva que alhures, não ficava muito longe, do ponto de vista de seu nível técnico, da agricultura das tribos “selvagens” da Floresta Tropical: “infraestrutura” idêntica, “superestruturas” diferentes, uma vez que, num dos casos, se trata de sociedades sem Estado, e, no outro, de Estados acabados.

É então a ruptura política – e não a mudança econômica – que é decisiva. A verdadeira revolução, na proto-história da humanidade, não é a do neolítico, uma vez que ela pode muito bem deixar intacta a antiga organização social, mas a revolução política: é essa aparição misteriosa, irreversível, mortal para as sociedades primitivas, que conhecemos sob o nome de Estado. E caso haja desejo de conservar os conceitos marxistas de infra-estrutura e de superestrutura, então talvez seja necessário reconhecer que a infra-estrutura é o político e que a superestrutura é o econômico. Somente uma convulsão estrutural, abissal pode transformar, destruindo-a como tal, a sociedade primitiva: aquilo que faz surgir em seu seio, ou do exterior, aquilo cuja ausência mesma define essa sociedade, a autoridade da hierarquia, a relação de poder, a dominação dos homens, o Estado. Seria vão procurar sua origem numa hipotética modificação das relações de produção na sociedade primitiva, modificação que, dividindo pouco a pouco a sociedade em ricos e pobres, exploradores e explorados, conduziria mecanicamente à instauração de um órgão de exercício do poder dos primeiros sobre os segundos, ao aparecimento do Estado.

Hipotética, essa modificação da base econômica é ainda mais impossível. Para que, numa dada sociedade, o regime de produção se transforme no sentido de uma maior imensidade de trabalho que visa a uma produção acrescida de bens, é necessário ou que os homens dessa sociedade desejem essa transformação de seu gênero de vida tradicional, ou que, mesmo não a desejando, eles se vejam obrigados por uma violência externa. No segundo caso, nada advém da própria sociedade, que sofre a agressão de uma força externa em beneficio da qual o regime de produção vai modificar-se: trabalhar e produzir mais para satisfazer as necessidades dos novos senhores do poder. A opressão política determina, chama, permite a exploração. Mas a evocação de uma tal “encenação” não serve de nada, uma vez que ela coloca uma origem externa, contingente, imediata, da violência estatal, e não a lenta realização das condições internas, socioeconômicas, de seu aparecimento. O Estado, dizem, é o instrumento que permite à classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classes dominadas. Que seja. Para que haja o aparecimento do Estado, é necessário pois, que exista antes divisão da sociedade em classes sociais antagônicas, ligadas entre si por relação de exploração. Por conseguinte, a estrutura da sociedade – a divisão em classes – deveria preceder a emergência da máquina estatal. Observemos de passagem a fragilidade dessa concepção puramente instrumental do Estado. Se a sociedade é organizada por opressores capazes de explorar os oprimidos, é que essa capacidade de impor a alienação repousa sobre o uso de uma força, isto é, sobre o que faz da própria substância do Estado “monopólio da violência física legítima”. A que necessidade responderia desde então a existência de um Estado, uma vez que sua essência – a violência – é imanente à divisão da sociedade, já que é, nesse sentido, dada antecipadamente na opressão exercida por um grupo social sobre os outros? Ele não seria senão o inútil órgão de uma função preenchida antes e alhures.

Articular o aparecimento da máquina estatal com a transformação da estrutura social leva somente a recuar o problema desse aparecimento. É então necessário perguntar por que se produz, no seio de uma sociedade primitiva, isto é, de uma sociedade não-dividida, a nova divisão dos homens em dominantes e dominados. Qual é o motor dessa transformação maior que culminaria na instalação do Estado? Sua emergência sancionaria a legitimidade de uma propriedade privada previamente surgida, e o Estado seria o representante e o protetor dos proprietários. Muito bem. Mas por que se teria o surgimento da propriedade privada num tipo de sociedade que ignora, por recusá-la, a propriedade? Por que alguns desejaram proclamar um dia: isto é meu, e como os outros deixaram que se estabelecesse assim o germe daquilo que a sociedade primitiva ignora, a autoridade, a opressão, o Estado? O que hoje se sabe das sociedades primitivas não permite mais procurar no nível econômico a origem do político. Não é nesse solo que se enraíza a árvore genealógica do Estado. Nada existe, no funcionamento econômico de uma sociedade primitiva, de uma sociedade sem Estado, que permita a introdução da diferença entre mais ricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranho desejo de fazer, possuir, parecer mais que seu vizinho. A capacidade, igual entre todos, de satisfazer as necessidades materiais, e a troca de bens e serviços, que impede constantemente o acúmulo privado dos bens, tornam simplesmente impossível a eclosão de um tal desejo, desejo de posse que é de fato desejo de poder. A sociedade primitiva, primeira sociedade de abundância, não deixa nenhum espaço para o desejo de superabundância.

As sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque, nelas, o Estado é impossível. E entretanto todos os povos civilizados foram primeiramente selvagens: o que fez com que o Estado deixasse de ser impossível? Por que os povos cessaram de ser selvagens? Que formidável acontecimento, que revolução permitiram o surgimento da figura do Déspota, daquele que comanda os que obedecem? De onde provém o poder político? Mistério, talvez provisório, da origem.

Se parece ainda possível determinar as condições de aparecimento do Estado, podemos em troca precisar as condições de seu não-aparecimento, e os textos que foram aqui reunidos tentam cercar o espaço do político nas sociedades sem Estado. Sem fé, sem lei sem rei: o que no século XVI o Ocidente dizia dos índios pode estender-se sem dificuldade a toda sociedade primitiva. Este pode ser mesmo o critério de distinção: uma sociedade é primitiva se nela falta o rei, como fonte legítima da lei, isto é, a máquina estatal. Inversamente, toda sociedade não-primitiva é uma sociedade de Estado: pouco importa o regime socioeconômico em vigor. É por isso que podemos reagrupar numa mesma classe os grandes despotismos arcaicos – reis, imperadores da China ou dos Andes, faraós – as monarquias mais recentes – O Estado sou eu – ou os sistemas sociais contemporâneos, quer o capitalismo seja liberal corno na Europa ocidental, ou de Estado como alhures… Portanto, a tribo não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado. O que significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar urna ordem. O chefe não é um comandante, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder, e a figura (mal denominada) do “chefe” selvagem não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. Certamente não é da chefia primitiva que se pode deduzir o aparelho estatal em geral.

Em que o chefe da tribo não prefigura o chefe de Estado? Em que uma tal antecipação do Estado é impossível no mundo dos selvagens? Essa descontinuidade radical – que torna impensável uma passagem progressiva da chefia primitiva à máquina estatal – se funda naturalmente nessa relação de exclusão que coloca o poder político no exterior da chefia. O que se deve imaginar é um chefe sem poder, uma instituição, a chefia, estranha à sua essência, a autoridade. As funções do chefe, tal como foram analisadas acima, mostram perfeitamente que não se trata de funções de autoridade. Essencialmente encarregado de eliminar conflitos que podem surgir entre indivíduos, famílias e linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, do prestÍgio que lhe reconhece à sociedade. Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra: não para arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é um juiz e não pode se permitir tomar partido por um ou por outro, mas para, armado apenas de sua eloqüência, tentar persuadir as pessoas da necessidade de se apaziguar, de renunciar às injúrias, de imitar os ancestrais que sempre viveram no bom entendimento. Empreendimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois a palavra do chefe não tem força de lei. Se o esforço de persuasão fracassa, então o conflito corre o risco de se resolver pela violência e o prestígio do chefe pode muito bem não sobreviver a isso, uma vez que ele deu provas de sua impotência em realizar o que se espera dele.

Em função de que a tribo estima que tal homem é digno de ser um chefe? No fim das contas, somente em função de sua competência “técnica”: dons oratórios, habilidade como caçador, capacidade de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma a sociedade deixa o chefe ir além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se transformar em autoridade política. O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma – verdadeiro lugar do poder – que exerce como tal sua autoridade sobre o chefe. É por isso que é impossível para o chefe alterar essa relação em seu proveito, colocar a sociedade a seu próprio serviço, exercer sobre a tribo o que denominamos poder: a sociedade nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota. Grande vigilância. de certo modo, a que a tribo submete o chefe, prisioneiro em um espaço do qual ela não o deixa sair. É possível que um chefe deseje ser chefe? Que ele queira substituir o serviço e o interesse do grupo pela realização do seu próprio desejo? Que a satisfação do seu interesse pessoal ultrapasse a submissão ao projeto coletivo? Em virtude do estreito controle a que a sociedade – por sua natureza de sociedade primitiva e não, é claro, por cuidado consciente e deliberado de vigilância – submete, como todo o resto, a prática do líder, raros são os casos de chefes colocados em situação de transgredir a lei primitiva: tu não és mais que os outros. Raros certamente, mas não inexistentes: acontece às vezes que um chefe queira bancar o chefe, e não por cálculo maquiavélico, mas antes porque definitivamente ele não tem escolha, não pode fazer de outro modo. Expliquemonos. Em regra geral, um chefe não tenta (ele nem mesmo sonha) subverter a relação normal (conforme às normas) que mantém com seu grupo, subversão que, de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relação normal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro de uma tribo Abipione do Chaco argentino, a definiu perfeitamente na resposta que deu a um oficial espanhol que queria convencê-lo ~ levar sua tribo a uma guerra que ela não desejava: “Os Abipiones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade e não de acordo com a do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado e não temido por eles” E, não duvidemos, a maior parte dos chefes indígenas teria sustentado o mesmo discurso.

Existem entretanto exceções quase sempre ligadas à guerra. Sabemos com efeito que a preparação e a condução de uma expedição militar são as únicas circunstâncias em que o chefe pode exercer um mínimo de autoridade, fundada somente, repitamo-lo, em sua competência técnica de guerrear. Uma vez as coisas terminadas, e qualquer que seja o resultado do combate, o chefe guerreiro volta a ser um chefe sem poder, e em nenhuma hipótese o prestígio decorrente da vitória se transforma em autoridade. Tudo se passa precisamente sobre essa separação mantida pela sociedade entre poder e prestígio, entre a glória de um guerreiro vencedor e o comando que lhe é proibido exercer. A fonte mais apta para saciar a sede de prestígio de um guerreiro é a guerra. Ao mesmo tempo, um chefe cujo prestígio está ligado à guerra não pode conservá-lo e reforçá-lo senão na guerra: é uma espécie de fuga impulsiva para a frente que o faz querer organizar sem cessar expedições guerreiras das quais ele conta retirar os benefícios (simbólicos) aferentes à vitória. Enquanto seu desejo de guerra corresponder à vontade geral da tribo, em particular dos jovens para os quais a guerra é também o principal meio de adquirir prestígio, e enquanto a vontade do chefe não ultrapassar a da sociedade, as relações habituais entre o segundo e o primeiro manter-se-ão inalteradas. Mas o risco de uma ultrapassagem do desejo da sociedade pelo desejo do seu chefe, o risco para ele de ir além do que deve, de sair do estreito limite determinado à sua função, é permanente. O chefe às vezes aceita corrê-lo, tenta impor à tribo seu projeto individual tenta substituir o interesse coletivo por seu interesse pessoal. Alterando a relação normal que determina o líder como meio a serviço de um fim socialmente definido, ele tenta fazer da sociedade o meio de realizar um fim puramente privado: a tribo a serviço do chefe, e não mais o chefe a serviço da tribo. Se isso funcionasse, então teríamos aí a terra natal do poder político, como coerção e violência, teríamos a primeira encarnação da figura mínima do Estado. Mas isso nunca funciona.

No belíssimo relato dos vinte anos que passou entre os Yanomami,2 Helena Valero fala longamente de seu primeiro marido, o líder guerreiro Fousiwe. Sua história ilustra perfeitamente o destino da chefia selvagem quando ela é, por força das coisas, levada a transgredir a lei da sociedade primitiva que, verdadeiro lugar do poder, recusa cedê-lo, recusa delegá-lo. Fousiwe foi então reconhecido como “chefe” por sua tribo em virtude do prestígio que adquiriu como organizador e condutor de ataques vitoriosos contra os grupos inimigos. Ele dirige conseqüentemente guerras desejadas por sua tribo, coloca à disposição de seu grupo sua competência técnica de homem de guerra, sua coragem, seu dinamismo, e é o instrumento eficaz de sua sociedade. Mas a infelicidade do guerreiro selvagem é que o prestígio adquirido na guerra se perde rapidamente, se não se renovam constantemente as fontes. A tribo, para a qual o chefe é apenas “um instrumento apto a realizar sua vontade”, esquece facilmente as vitórias passadas do chefe. Para ele, nada é definitivamente adquirido e, se ele quer devolver às pessoas a memória tão facilmente perdida de seu prestígio e de sua glória, não é apenas exaltando suas antigas façanhas que o conseguirá, mas antes suscitando a ocasião de novos feitos bélicos. Um guerreiro não tem escolha: ele está condenado a desejar a guerra. É exatamente aí que se dá o limite do consenso que o reconhece como chefe. Se seu desejo de guerra coincide com o desejo de guerra da sociedade, esta continua a segui-lo. Mas se o desejo de guerra do chefe tenta se estabelecer sobre uma sociedade animada pelo desejo de paz – com feito, nenhuma sociedade deseja sempre guerrear -, então a relação entre o chefe e a tribo se modifica, o líder tenta utilizar a sociedade como instrumento de seu objetivo individual, como meio de sua meta pessoal. Ora, não o esqueçamos, o chefe primitivo é um chefe sem poder: como poderia ele impor a lei de seu desejo a uma sociedade que o recusa? Ele é ao mesmo tempo prisioneiro de seu desejo de prestígio e de sua impotência em realizá-lo. O que pode então ocorrer? O guerreiro está destinado a solidão, a esse combate duvidoso que só o conduz à morte. Tal foi o destino do guerreiro sul-americano Fouiswe. Por ter querido impor aos seus uma guerra que eles não desejavam, foi abandonado por sua tribo. Só restava lutar sozinho nessa guerra, e ele morreu crivado de flechas. A morte é o destino do guerreiro, pois a sociedade primitiva é tal que não permite que a vontade de poder substitua o desejo de prestígio. Ou, em outros termos, na sociedade primitiva, o chefe, como possibilidade de vontade de poder, está antecipadamente condenado à morte. O poder político isolado é impossível na sociedade primitiva; nela não há lugar, não há vazio que o Estado pudesse preencher. Menos trágica em sua conclusão, mas muito semelhante no seu desenvolvimento é a história de um outro líder indígena, infinitamente mais célebre que o obscuro guerreiro amazônico, uma vez que se trata do famoso chefe apache Gerônimo. A leitura de suas Memórias3 , se bem que bastante futilmente recolhidas, se revela muito instrutiva. Gerônimo não passava de um jovem guerreiro como os outros quando os soldados mexicanos atacaram o acampamento de sua tribo e massacraram mulheres e crianças. A família de Gerônimo foi inteiramente exterminada. As diversas tribos Apache se aliaram para se vingar dos assassinos e Gerônimo foi encarregado de conduzir o combate. Sucesso completo para os Apache, que eliminaram a guarnição mexicana. O prestígio guerreiro de Gerônimo, principal artífice da vitória, foi imenso. E, desde esse momento, as coisas mudaram, alguma coisa se passou em Gerônimo, alguma coisa sucedeu. Pois se, para os Apache, satisfeitos com uma vitória que realizou perfeitamente seu desejo de vingança, o caso estava de alguma forma acabado, para Gerônimo, os rumores eram outros: ele queria continuar a se vingar dos mexicanos e considerou insuficiente a sangrenta derrota imposta aos soldados. Mas ele não pôde, é claro, atacar sozinho as aldeias mexicanas. Tentou pois, convencer os seus a fazer uma nova expedição. Inutilmente. A sociedade Apache, uma vez realizado o objetivo coletivo – a vingança – aspirava ao repouso. O objetivo de Gerônimo foi, portanto, um objetivo individual para cuja realização ele pretendeu arrastar a tribo. Ele quis fazer da tribo o instrumento de seu desejo, ao passo que antes ele foi, em função de sua competência como guerreiro, o instrumento da tribo. Evidentemente, os Apache jamais quiseram seguir Gerônimo, da mesma forma que os Yanomami se recusaram a seguir Fousiwe. Quando muito o chefe Apache conseguia (por vezes, ao preço de mentiras) convencer alguns jovens ávidos de glória e de saque. Para uma dessas expedições, o exército de Gerônimo, heróico e ridículo compunha-se de dois homens! Os Apache, que, em função das circunstâncias, aceitavam a liderança de Gerônimo em virtude da sua habilidade de combatente, sistematicamente lhe davam as costas quando ele queria fazer sua guerra pessoal. Gerônimo foi o último grande chefe de guerra norte-americano, que passou trinta anos de sua vida querendo “bancar o chefe” e não conseguiu…

A propriedade essencial (quer dizer, que toca a essência) da sociedade primitiva é exercer um poder absoluto e completo sobre tudo que a compõe, é interditar a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos internos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social nos limites e na direção desejados pela sociedade. A tribo manifesta, entre outras (e pela violência se for necessário), sua vontade de preservar essa ordem social primitiva, interditando a emergência de um poder político individual, central e separado. Sociedade à qual nada escapa, que nada deixa sair de si mesma, pois todas as saídas estão fechadas. Sociedade que, por conseguinte, deveria eternamente se reproduzir sem que nada de substancial a afete através do tempo. Há contudo um campo que, parece, escapa, ao menos em parte, ao controle da sociedade: é um “fluxo” ao qual ela só parece poder impor uma “codificação” imperfeita. Trata-se do domínio demográfico, domínio regido por regras culturais, mas também por leis naturais, espaço de desdobramento de uma vida enraizada tanto no social quanto no biológico, lugar de uma “máquina” que funciona talvez segundo uma mecânica própria e que estaria, em seguida, fora de alcance da empresa social.

Sem sonhar em substituir um determinismo econômico por um determinismo demográfico, em inscrever nas causas – o crescimento demográfico – a necessidade dos efeitos – transformação da organização social – é entretanto necessário constatar, sobretudo na América, o peso sociológico do número da população, a capacidade que possui o aumento das densidades de abalar – não dissemos destruir a sociedade primitiva. Com efeito é bastante provável que uma condição fundamental da existência da sociedade primitiva consista numa fraqueza relativa de seu porte demográfico. As coisas só podem funcionar segundo o modelo primitivo se a população é pouco numerosa. Ou, em outros termos, para que uma sociedade seja primitiva, é necessário que ela seja pequena em número. E, de fato, o que se constata no mundo dos selvagens é um extraordinário esfacelamento das “nações”, tribos, sociedades em grupos locais que tratam cuidadosamente de conservar sua autonomia no seio do conjunto do qual fazem parte, com o risco de concluir alianças provisórias com seus vizinhos “compatriotas”, se as circunstâncias – guerreiras em particular – o exigem. Essa atomização do universo tribal é certamente um meio eficaz de impedir a constituição de conjuntos sóciopolíticos que integram os grupos locais, e, mais além um meio de proibir a emergência do Estado que, em sua essência, é unificador.

Ora, é perturbador constatar que os Tupi-Guarani parecem, na época que a Europa os descobre, afastar-se sensivelmente do modelo primitivo habitual, e em dois pomos essenciais: a taxa de densidade demográfica de suas tribos ou grupos locais ultrapassa claramente a das populações vizinhas; por outro lado, o porte dos grupos locais não tem medida comum com o das unidades sociopolíticas da Floresta Tropical. Evidentemente, as aldeias tupinambá, por exemplo, que reuniam vários milhares de habitantes, não eram cidades; mas deixavam igualmente de pertencer ao horizonte “clássico” da dimensão demográfica das sociedades vizinhas. Sobre essa base de expansão demográfica e de concentração da população se destaca – fato também inabitual na América dos selvagens, ao menos na dos impérios – a tendência evidente das chefias em obter um poder desconhecido alhures. Os chefes tupi-guarani não eram certamente déspotas, mas não eram mais de modo algum chefes sem poder. Não cabe aqui empreender a longa e complexa tarefa de analisar a chefia entre os Tupi-Guarani. Baste-nos simplesmente revelar, num extremo da sociedade, se é possível dizer, o crescimento demográfico, e, no outro, a lenta emergência do poder político. Sem dúvida não cabe à etnologia (ou ao menos a ela sozinha) responder às questões das causas da expansão demográfica numa sociedade primitiva. Em compensação, incumbe a essa disciplina a articulação do demográfico e do político, a análise da força que o primeiro exerce sobre o segundo através do sociológico.

Não cessamos, ao longo deste texto, de proclamar a impossibilidade interna do poder político separado numa sociedade primitiva, a impossibilidade de uma gênese do Estado a partir do interior da sociedade primitiva. E eis que, ao que parece, evocamos nós mesmos, contraditoriamente, os Tupi-Guarani como um caso de sociedade primitiva onde começava a surgir o que poderia ter podido se tornar o Estado. Incontestavelmente se desenvolvia, nessas sociedades, um processo, sem dúvida, em curso já há muito tempo, de constituição de uma chefia cujo poder político não era negligenciável. a ponto mesmo de os cronistas franceses e portugueses da época não hesitarem em atribuir aos grandes chefes de federações de tribos os títulos de “reis de província” ou “régulos. Esse processo de transformação profunda da sociedade tupi-guarani teve uma interrupção brutal com a chegada dos europeus. Quererá isso dizer que, se o descobrimento do Novo Mundo tivesse sido adiado de um século por exemplo, uma formação estatal seria imposta às tribos indígenas do litoral brasileiro? Sempre é fácil, e arriscado, reconstruir uma história hipotética que nada viria desmentir. Mas, no presente caso, pensamos poder responder com firmeza pela negativa: não foi a chegada dos ocidentais que cortou a emergência possível do Estado entre os Tupi-Guarani, e sim um sobressalto da própria sociedade enquanto sociedade primitiva, um sobressalto, uma sublevação de alguma forma dirigida, se não explicitamente contra as chefias, ao menos, por seus efeitos, destruidor do poder dos chefes. Queremos falar desse estranho fenômeno que, desde os últimos decênios do século XV, agitava as tribos tupi-guarani a predicação inflamada de alguns homens que, de grupo em grupo, concitavam os índios a tudo abandonar para se lançarem na procura da Terra sem Mal, do paraíso terrestre.

Chefia e linguagem estão, na sociedade primitiva, intrinsecamente ligadas; a palavra é o único poder concedido ao chefe: mais do que isso a palavra é para ele um dever. Mas há uma outra palavra, um outro discurso, articulado não pelos chefes, mas por esses homens que, nos séculos XV e XVI, arrastavam atrás de si milhares de índios em loucas migrações em busca da pátria dos deuses: é o discurso dos karai, é a palavra profética, palavra virulenta eminentemente subversiva que chama os índios a empreender o que se deve reconhecer como a destruição da sociedade. O apelo dos profetas pra o abandono da terra má, isto é, da sociedade tal como ela era, para alcançar a Terra sem Mal, a sociedade da felicidade divina, implicava a condenação à morte da estrutura da sociedade e do seu sistema de normas. Ora, a essa sociedade se impunha cada vez mais fortemente a marca da autoridade dos chefes, o peso de seu poder político nascente. Talvez então possamos dizer que, se os profetas, surgidos no coração da sociedade, proclamavam mau o mundo em que os homens viviam, é porque eles revelavam a infelicidade, o mal, nessa morte lenta à qual a emergência do poder condenava num prazo mais ou menos longo, a sociedade tupi-guarani, como sociedade primitiva, como sociedade sem Estado. Habitados pelo sentimento de que o amigo mundo selvagem tremia em seu fundamento, perseguidos pelo pressentimento de uma catástrofe sócio-cósmica, os profetas decidiram que era preciso mudar o mundo, abandonar o dos homens e ganhar o dos deuses.

Palavra profética ainda viva, como o testemunham os textos “Profetas na selva” e “Do Um sem o Múltiplo”. Os 3 ou 4 mil índios Guarani que subsistem miseravelmente nas florestas do Paraguai gozam ainda da riqueza incomparável que os karai lhes oferecem. Estes não são mais – duvidamos – condutores de tribos, como seus ancestrais do século XVI, não é mais possível a procura da Terra sem Mal. Mas a falta de ação parece ter permitido uma embriaguez do pensamento, um aprofundamento sempre mais tenso da reflexão sobre a infelicidade da condição humana. E esse pensamento selvagem que quase cega por tanta luz, nos diz que o lugar de nascimento do Mal, da fonte da infelicidade, é o Um.

Talvez seja preciso dizer um pouco mais e se perguntar o que o sábio guarani designa sob o nome de Um. Os temas favoritos do pensamento guarani contemporâneo são os mesmos que inquietavam, há mais de quatro séculos, aqueles a quem já se chamava karai, os profetas. Por que o mundo é mau? O que podemos fazer para escapar ao mal? Questões que ao cabo de gerações esses índios não cessam de se colocar: os karai de agora se obstinam pateticamente em repetir o discurso dos profetas de outros tempos. Estes sabiam, pois, que o Um é o mal; eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoas os seguiam na procura do Bem, na busca do não-Um. Temos, portanto, entre os Tupi-Guarani do tempo do Descobrimento, de um lado uma prática – a migração religiosa – inexplicável se não vemos nela a recusa da via em que a chefia engajava a sociedade, a recusa do poder político isolado, a recusa do Estado; do outro, um discurso profético que identifica o Um como a raiz do Mal e afirma a possibilidade de escapar-lhe. Em que condições é possível pensar o Um? É preciso que, de algum modo, sua presença, odiada ou desejada, seja visível. É por isso que o Um é o Estado. O profetismo tupi-guarani é a tentativa heróica de uma sociedade primitiva para abolir a infelicidade na recusa radical do Um como essência universal do Estado. Essa leitura “política” de uma constatação metafísica deveria então incitar a colocar uma questão, talvez sacrílega: não se poderia submeter a semelhante leitura toda a metafísica do Um? Que acontece ao Um como Bem, como objeto preferencial, que, desde sua aurora, a metafísica ocidental impõe ao desejo do homem? Detenhamo-nos nesta perturbadora evidência: o pensamento dos profetas selvagens e aquele dos gregos antigos pensam a mesma coisa, o Um; mas o índio Guarani diz que o Um é o Mal, ao passo que Heráclito diz que ele é o Bem. Em que condições é possível pensar o Um como Bem? Voltemos, para concluir, ao mundo exemplar dos Tupi-Guarani. Eis uma sociedade primitiva que, atravessada, ameaçada pela irresistível ascensão dos chefes, suscita em si mesma e libera forças, capazes, mesmo ao preço de um quase-suicídio coletivo, de fazer fracassar a dinâmica da chefia, de impedir o movimento que poderia levar à transformação dos chefes em reis portadores de leis. De um lado os chefes; do outro, e contra eles os profetas: tal é, traçado segundo suas linhas essenciais, o quadro da sociedade tupi-guarani no final do século XV. E a “máquina” profética funcionava perfeitamente bem, uma vez que os karai eram capazes de se fazer seguir por massas surpreendentes de índios fanatizados, diríamos hoje, pela palavra desses homens, a ponto de acompanhá-los até na morte.

O que quer isso dizer? Os profetas, armados apenas de seus logos, podiam determinar uma “mobilização” dos índios, podiam realizar esta coisa impossível na sociedade primitiva: unificar na migração religiosa a diversidade múltipla das tribos. Eles conseguiram realizar, de um só golpe, o “programa” dos chefes! Armadilha da história? Fatalidade que apesar de tudo consagra a própria sociedade primitiva à dependência? Não se sabe. Mas, em todo o mais poder do que os segundos detinham. Então talvez seja preciso retificar a idéia da palavra como oposto da violência. Se o chefe selvagem é obrigado a um dever de palavra inocente, a sociedade primitiva pode também, evidentemente em condições determinadas, se voltar para a escuta de uma outra palavra, esquecendo que essa palavra é dita como um comando: é a palavra profética. No discurso dos profetas jaz talvez em germe o discurso do poder, e sob os traços exaltados do condutor de homens que diz o desejo dos homens se dissimula talvez a figura silenciosa do Déspota.

Palavra profética, poder dessa palavra: teríamos nela o lugar originário do poder, o começo do Estado no Verbo? Profetas conquistadores das almas antes de serem senhores dos homens? Talvez. Mas, mesmo na experiência extrema do profetismo (porque sem dúvida a sociedade tupi-guarani tinha atingido, por razões demográficas ou outras, os limites extremos que determinam uma sociedade como sociedade primitiva), o que os selvagens nos mostram é o esforço permanente para impedir os chefes de serem chefes e a recusa da unificação; é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dos povos que têm um história é, diz-se, a história da luta de classes. A história dos povos sem história é, dir-se-á como ao menos tanta verdade, a história da sua luta contra o Estado.

Notas

1 Jaques Lizot, “Economie ou sociéte? Quelques thêmes à propos de l’étude d’une communauté d’Amérindiens.”Journal de Ia Sociiti des Amiricanistes, n. 9, 1973, pp 137-75.

2 Ettore Biocca, Yanoama (Paris: Pkm, [9(9)’

3 Mimoires de Géronimo (Paris: Maspero, 197:1.).

Título Original: Lê Societé contre I’Etat

Tradução: Theo Santiago

Data Publicação Original: 1974

Capítulo da obra:

A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

A Organização, por Errico Malatesta

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Fractal: Conjunto de Mandelbrot

 Fonte: Arte e Anarquia

A ORGANIZAÇÃO I
(Agitazione de Ancone, 04/07/1897.)

Há anos que muito se discute entre os anarquistas esta questão. E como freqüentemente acontece quando se discute com ardor à procura da verdade, acredita-se, em seguida, ter razão. Quando as discussões teóricas são apenas tentativas para justificar uma conduta inspirada por outros motivos, produz-se uma grande confusão de idéias e de palavras.

Lembraremos, de passagem, sobretudo para nos livrarmos delas, as simples questões de frases empregadas, que, às vezes, atingiram o cúmulo do ridículo, como por exemplo: “Não queremos a organização, mas a harmonização”, “Opomo-nos à associação, mas a admitimos”, “Não queremos secretário ou caixa, porque é um sinal de autoritarismo, mas encarregamos um camarada para se ocupar do correio e outro do dinheiro”; passemos a discussão séria.

Se não pudermos concordar, tratemos pelo menos de nos compreender.

Antes de mais nada, distingamos, visto que a questão é tripla: a organização em geral, como princípio e condição da vida social, hoje, e na sociedade futura; a organização das forças populares, e, em particular, a das massas operárias, para resistir ao governo e ao capitalismo.

A necessidade de organização na vida social – direi que organização e sociedade são quase sinônimos – é coisa tão evidente que mal se pode acreditar que pudesse ter sido negada.

Para nos darmos conta disso, é preciso lembrar que ela é a função específica, característica do movimento anarquista, e como homens e partidos estão sujeitos a se deixarem absorver pela questão que os interessa mais diretamente, esquecendo tudo o que a ela se relaciona, dando mais importância à forma que ao conteúdo e, enfim, vendo as coisas somente de um lado, não distinguindo mais a justa noção da realidade.

O movimento anarquista começou como uma reação contra o autoritarismo dominante na sociedade, assim como todos os partidos e organizações operárias, e se acentuou com os adventos de todas as revoltas contra as tendências autoritárias e centralistas.

Era natural, em conseqüência, que inúmeros anarquistas estivessem como que hipnotizados por esta luta contra a autoridade e que eles combatem, para resistir à influência da educação autoritária, tanto a autoridade quanto a organização, da qual ela é a alma.

Na verdade, esta fixação chegou ao ponto de fazer sustentar coisas realmente incríveis. Combateu todo o tipo de cooperação e de acordo porque a associação é a antítese da anarquia. Afirma-se que sem acordos, sem obrigações recíprocas, cada um fazendo o que lhe passar pela cabeça, sem mesmo se informar sobre o que fazem os outros, tudo estaria espontaneamente em harmonia: que a anarquia significa que cada um deve bastar-se a si mesmo e fazer tudo que tem vontade, sem troca e sem trabalho em associação. Assim, as ferrovias poderiam funcionar muito bem sem organização, como acontecia na Inglaterra (!). O correio não seria necessário: alguém de Paris, que quisesse escrever uma carta a Petersburgo… Podia ele próprio levá-la (!!) etc.

Dir-se-á que são besteiras, que não vale a pena discuti-las. Sim, mas estas besteiras foram ditas, propagadas: foram autêntica das idéias anarquistas. Servem sempre como armas de combate aos adversários, burgueses ou não, que querem conseguir uma fácil vitória sobre nós. E, também, estas “besteiras” não são sem valor, visto que são a conseqüência lógica de certas premissas e que podem servir como prova experimental da verdade, ou pelo menos dessas premissas.

Alguns indivíduos, de espírito limitado, mas providos de espírito lógico poderoso, quando aceitam premissas, extraem delas todas as conseqüências até que, por fim, e se a lógica assim o quer, chegam, sem se desconcertar, aos maiores absurdos, à negação dos fatos mais evidentes. Mas há outros indivíduos mais cultos e de espírito mais amplo que encontram sempre um meio de chegar a conclusões mais ou menos razoáveis, mesmo ao preço da violentação da lógica. Para eles, os erros teóricos têm pouca ou nenhuma influência na conduta prática. Mas, em suma, desde que não se haja renunciado a certos erros fundamentais, estamos sempre ameaçados por silogismos exagerados, e voltamos sempre ao começo.

O erro fundamental dos anarquistas adversários da organização é crer que não há possibilidade de organização sem autoridade. E uma vez admitida esta hipótese, preferem renunciar a toda organização, ao invés de aceitar o mínimo de autoridade.

Agora que a organização, quer dizer, a associação com um objetivo determinado e com as formas e os meios necessários para atingir este objetivo, é necessária à vida social, é uma evidência para nós. O homem isolado não pode sequer viver como um animal: ele é impotente (salvo em regiões tropicais, e quando a população é muito dispersa) e não pode obter sua alimentação; ele é incapaz, sem exceção, de ter uma vida superior àquela dos animais. Conseqüentemente, é obrigado a se unir a outros homens, como a evolução anterior das espécies o mostra, e deve suportar a vontade dos outros (escravidão), impor sua vontade aos outros (autoritarismo), ou viver com os outros em fraternal acordo para o maior bem de todos (associação). Ninguém pode escapar dessa necessidade. Os antiorganizadores mais imoderados suportam não apenas a organização geral da sociedade em que vivem, mas também em seus atos, em sua revolta contra a organização, eles se unem, dividem a tarefa, organizam-se com aqueles que compartilham suas idéias, utilizando os meios que a sociedade coloca à sua disposição; com a condição de que estes sejam fatos reais e não vagas aspirações platônicas.

Anarquia significa sociedade organizada sem autoridade, compreendendo-se autoridade como a faculdade de impor sua vontade. Todavia, também significa o fato inevitável e benéfico que aquele que compreende melhor e sabe fazer uma coisa, consegue fazer aceitar mais facilmente sua opinião. Ele serve de guia, quanto a esta coisa, aos menos capazes que ele.

Segundo nossa opinião, a autoridade não é necessária à organização social, mais ainda, longe de ajudá-la, vive como parasita, incomoda a evolução e favorece uma dada classe que explora e oprime as outras. Enquanto há harmonia de interesses em uma coletividade, enquanto ninguém pode frustrar outras pessoas, não há sinal de autoridade. Ela aparece com a luta intestina, a divisão em vencedores e vencidos, os mais fortes confirmando a sua vitória.

Temos esta opinião e é por isso que somos anarquistas, caso contrário, afirmando que não pode existir organização sem autoridade, seremos autoritários. Mas ainda preferimos a autoridade que incomoda e desola a vida, à desorganização que a torna impossível.

De resto, o que seremos nos interessa muito pouco. Se é verdade que o maquinista e o chefe de serviço devem forçosamente ter autoridade, assim como os camaradas que fazem para todos um trabalho determinado, as pessoas sempre preferirão suportar sua autoridade a viajar a pé. Se o correio fosse apenas esta autoridade, todo homem são de espírito a aceitaria para não ter de levar, ele próprio, suas cartas. Se se recusa isto, a anarquia permanecerá o sonho de alguns e nunca se realizará.

A ORGANIZAÇÃO II

(Agitazione de Ancone, 11/07/1897.)

Estando admitida a existência de uma coletividade organizada sem autoridade, isto é, sem coerção, caso contrário, a anarquia não teria sentido, falemos da organização do partido anarquista.

Mesmo nesses casos, a organização nos parece útil e necessária. Se o partido, ou seja, o conjunto dos indivíduos que têm um objetivo em comum e se esforçam para alcançá-lo, é natural que se entendam, unam suas forças, compartilhem o trabalho e tomem todas as medidas adequadas para desempenhar esta tarefa. Permanecer isolado, agindo ou querendo agir cad um por sua conta, sem se entender com os outros, sem preparar-se, sem enfeixar as fracas forças dos isolados, significa condenar-se à fraqueza, desperdiçar sua energia em pequenos atos ineficazes, perder rapidamente a fé no objetivo e cair na completa inação.

Mas isto parece de tal forma evidente que, ao invés de fazer sua demonstração, responderemos aos argumentos dos adversários da organização.

Antes de mais nada, há uma objeção, por assim dizer, formal. “Mas de que partido nos falais? Dizem-nos, nem sequer somos um, não temos um programa”. Este paradoxo significa que as idéias progridem, evoluem continuamente, e que eles não podem aceitar um programa fixo, talvez válido hoje, mas que estará com certeza ultrapassado amanhã.

Seria perfeitamente justo se se tratasse de estudantes que procuram a verdade, sem se preocuparem com as aplicações práticas. Um matemático, um químico, um psicólogo, um sociólogo podem dizer que não há outro programa senão o de procurar a verdade: eles querem conhecer, mas sem fazer alguma coisa. Mas a anarquia e o socialismo não são ciências: são proposições, projetos que os anarquistas e os socialistas querem por em prática e que, conseqüentemente, precisam ser formulados como programas determinados. A ciência e a arte das construções progridem a cada dia. Mas um engenheiro, que quer construir ou mesmo demolir, deve fazer seu plano, reunir seus meios de ação e agir como se a ciência e a arte tivessem parado no ponto em que as encontrou no início de seu trabalho. Pode acontecer, felizmente, que ele possa utilizar novas aquisições feitas durante seu trabalho sem renunciar à parte essencial de seu plano. Pode acontecer do mesmo modo que as novas descobertas e os novos meios industriais sejam tais que ele se veja na obrigação de abandonar tudo e recomeçar do zero. Mas ao recomeçar, precisará fazer novo plano, com base no conhecimento e na experiência; não poderá conceber e por-se a executar uma construção amorfa, com materiais não produzidos, a pretexto que amanhã a ciência poderia sugerir melhores formas e a indústria fornecer materiais de melhor composição.

Entendemos por partido anarquista o conjunto daqueles que querem contribuir para realizar a anarquia, e que, por conseqüência, precisam fixar um objetivo a alcançar e um caminho a percorrer. Deixamos de bom grado às suas elucubrações transcendentais os amadores da verdade absoluta e de progresso contínuo, que, jamais colocando suas idéias à prova, acabam por nada fazer ou descobrir.

A outra objeção é que a organização cria chefes, uma autoridade. Se isto é verdade, se é verdade que os anarquistas são incapazes de se reunirem e de entrarem em acordo entre si sem se submeter a um autoridade, isto quer dizer que ainda são muito pouco anarquistas. Antes de pensar em estabelecer a anarquia no mundo, devem pensar em se tornar capazes de viver como anarquistas. O remédio não está na organização, mas na consciência perfectível dos membros.

Evidentemente, se em uma organização, deixa-se a alguns todo o trabalho e todas as responsabilidades, se nos submetemos ao que fazem alguns indivíduos, sem por a mão na massa e procurar fazer melhor, esses “alguns” acabarão, mesmo que não queiram, substituindo a vontade da coletividade pela sua. Se em uma organização todos os membros não se interessam em pensar, em querer compreender, em pedir explicações sobre o que não compreendem, em exercer sobre tudo e sobre todos as suas faculdades críticas, deixando a alguns a responsabilidade de pensar por todos, esses “alguns” serão os chefes, as cabeças pensantes e dirigentes.

Todavia, repitamos, o remédio não está na ausência de organização. Ao contrário, nas pequenas como nas grandes sociedades, excetuando a força brutal, a qual não nos diz respeito no caso em questão, a origem e a justificativa da autoridade residem na desorganização social. Quando uma coletividade tem uma necessidade e seus membros não estão espontaneamente organizados para satisfazê-la, surge alguém, uma autoridade que satisfaz esta necessidade servindo-se das forças de todos e dirigindo-as à sua maneira. Se as ruas são pouco seguras e o povo não sabe se defender, surge uma polícia que, por uns poucos serviços que presta, faz com que a sustentem e a paguem, impõe-se a tirania. Se há necessidade de um produto e a coletividade não sabe se entender com os produtores longínquos para que eles enviem esse produto em troca por produtos da região, vem de fora o negociante que se aproveita da necessidade que possuem uns de vender e outros de comprar e impõe os preços que quer a produtores e consumidores.

Como vedes, tudo vem sempre de nós: quanto menos estávamos organizados, mais nos encontrávamos sob a dependência de certos indivíduos. E é normal que tivesse sido assim.

Precisamos estar relacionados com os camaradas das outras localidades, receber e dar notícias, mas não podemos todos nos correspondermos com todos os camaradas. Se estamos organizados, encarregamos alguns camaradas de manter a correspondência por nossa conta; trocamo-os se eles não nos satisfazem, e podemos estar informados sem depender da boa vontade de alguns para obter uma informação. Se, ao contrário, estamos desorganizados, haverá alguém que terá os meios e a vontade de corresponder; ele concentrará em suas mãos todos os contatos, comunicará as notícias como bem quiser, a quem quiser. E se tiver atividade e inteligência suficientes, conseguirá, sem nosso conhecimento, dar ao movimento a direção que quiser, sem que nos reste a nós, a massa do partido, nenhum meio de controle, sem que ninguém tenha o direito de se queixar, visto que este indivíduo age por sua conta, sem mandato de ninguém e sem ter que prestar contas a ninguém de sua conduta.

Precisamos de um jornal. Se estamos organizados, podemos reunir os meios para fundá-lo e fazê-lo viver, encarregar alguns camaradas de redigi-lo e controlar sua direção. Os redatores do jornal lhe darão, sem dúvida, de modo mais ou menos claro, a marca de sua personalidade, mas serão sempre pessoas que teremos escolhido e que poderemos substituir. Se, ao contrário, estamos desorganizados, alguém que tenha suficiente espírito de empreendimento fará o jornal por sua própria conta: encontrará entre nós os correspondentes, os distribuidores, os assinantes, e fará com que sirvamos seus desígnios, sem que saibamos ou queiramos. E nós, como muitas vezes aconteceu, aceitaremos ou apoiaremos este jornal, mesmo que não nos agrade, mesmo que tenhamos a opinião de que é nocivo à Causa, porque seremos incapazes de fazer um que melhor represente nossas idéias.

Desta forma, a organização, longe de criar a autoridade, é o único remédio contra ela e o único meio para que cada um de nós se habitue a tomar parte ativa e consciente no trabalho coletivo, e deixe de ser instrumento passivo nas mãos dos chefes.

Se não fizer nada e houver inação, então, certamente, não haverá nem chefe, nem rebanho; nem comandante, nem comandados, mas, neste caso, a propaganda, o partido, e até mesmo a discussão sobre a organização, cessarão, o que, esperamos, não é o ideal de ninguém…

Contudo, uma organização, diz-se supõe a obrigação de coordenar sua própria ação e a dos outros, portanto, violar a liberdade, suprimir a iniciativa. Parece-nos que o que realmente suprime a liberdade e torna impossível a iniciativa é o isolamento que produz a impotência. A liberdade não é direito abstrato, mas a possibilidade de fazer algo. Isto é verdade para nós como para a sociedade em geral. É na cooperação dos outros que o homem encontra o meio de exercer sua atividade, seu poder de iniciativa.

Evidentemente, organização significa coordenação de forças com um objetivo comum, e obrigação de não promover ações contrárias a este objetivo. Mas quando se trata de organização voluntária, quando aqueles que dela fazem parte têm de fato o mesmo objetivo e são partidários dos mesmos meios, a obrigação recíproca que a todos engaja obtém êxito em proveito de todos. Se alguém renuncia a uma de suas idéias pessoais por consideração à união, isto significa que acha mais vantajoso renunciar a uma idéia, que, por sinal, não poderia realizar sozinho, do que se privar da cooperação dos outros no que acredita ser de maior importância.

Se, em seguida, um indivíduo vê que ninguém, nas organizações existentes, aceita suas idéias e seus métodos naquilo que têm de essencial, e que em nenhuma organização pode desenvolver sua personalidade como deseja, então estará certo em permanecer de fora. Mas, se não quiser permanecer inativo e impotente, deverá procurar outros indivíduos que pensem como ele, e tornar-se iniciador de uma nova organização.

Uma outra objeção, a última que abordaremos, é que, estando organizados, estamos mais expostos à repressão governamental.

Parece-nos, ao contrário, que quanto mais unidos estamos, mais eficazmente nos podemos defender. Na realidade, cada vez que a repressão nos surpreendeu enquanto estávamos desorganizados, colocou-nos em debandada total e aniquilou nosso trabalho precedente. Quando estávamos organizados, ela nos fez mais bem do que mal. Assim também no que concerne ao interesse pessoal dos indivíduos: por exemplo, nas últimas repressões, os isolados foram tanto e talvez mais gravemente atingidos do que os organizados. É o caso, organizados ou não, dos indivíduos que fazem propaganda individual. Para aqueles que nada fazem e ocultam suas convicções, o perigo é certamente mínimo, mas a utilidade que oferecem à Causa também o é.

O único resultado, do ponto de vista da repressão, que se obtém por estar desorganizado é autorizar o governo a nos recusar o direito de associação e tornar possível monstruosos processos por associação delituosa. O governo não agiria dessa forma em relação às pessoas que afirmam de modo altivo e público, o direito e o fato de estarem associados e, se ousasse fazê-lo, isto se voltaria contra ele e em nosso proveito.

De resto, é natural que a organização assuma as formas que as circunstâncias aconselham e impõem. O importante não é tanto a organização formal, mas o espírito de organização. Podem acontecer casos, durante o furor da reação, em que seja útil suspender toda correspondência, cessar todas as reuniões: será sempre um mal, mas se a vontade de estar organizado subsiste, se o espírito de associação permanece vivo, se o período precedente de atividade coordenada multiplicou as relações pessoais, produziu sólidas amizades e criou um real acordo de idéias de conduta entre os camaradas, então o trabalho dos indivíduos, mesmo isolados, participará do objetivo comum. E encontrar-se-á rapidamente o meio de nos reunirmos de novo e repararmos os danos sofridos.

Somos como um exército em guerra e podemos, segundo o terreno e as medidas tomadas pelo inimigo, combater em massa ou em ordem dispersa: o essencial é que nos consideremos sempre membros do mesmo exército, que obedeçamos todos às mesmas idéias diretrizes e que estejamos sempre prontos a nos reunirmos em colunas compactas quando for necessário e quando se puder fazer algo.

Tudo o que dissemos se dirige aos camaradas que são de fato adversários do princípio da organização. Àqueles que combatem a organização, somente porque não querem nela entrar, ou não são aceitos, ou não simpatizam com os indivíduos que dela fazem parte, dizemos: façam com aqueles que estão de acordo com vocês outra organização. É verdade, gostaríamos de poder estar, todos nós, de acordo, e reunir em um único feixe poderoso todas as forças do anarquismo. Mas não acreditamos na solidez das organizações feitas à força de concessões e de restrições, onde não há entre os membros simpatia e concordância real. É melhor estarmos desunidos que mal unidos. Mas gostaríamos que cada um se unisse com seus amigos e que não houvessem forças isoladas, forças perdidas.

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O que é amar, por Bakunin

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POSTADO EM: Diário da LiberdadePimenta Negra (26 de agosto de 2010)

Carta de Bakunin ao irmão Paulo ( 29 de Março de 1845)


Continuo a ser eu próprio, como antes, inimigo declarado da realidade existente, só que com uma diferença: eu parei de ser um teórico, eu venci, enfim, em mim, a metafísica e a filosofia, e entreguei-me inteiramente, com toda a minha alma, ao mundo prático, ao mundo dos factos reais.

Acredite em mim, amigo, a vida é bela; agora tenho pleno direito de dizer isto porque parei há muito tempo de olhá-la através das construções teóricas e de conhecê-la somente em fantasia, pois experimentei efectivamente muitas das suas amarguras, sofri muito e entreguei-me frequentemente ao desespero.

Eu amo, Paulo, amo apaixonadamente: não sei se posso ser amado como gostaria que fosse, porém não me desespero; sei, pelo menos, que tem muito simpatia por mim; devo e quero merecer o amor daquela a quem amo, amando-a religiosamente, ou seja, activamente; ela está submetida à mais terrível e à mais infame escravidão e devo libertá-la combatendo os seus opressores e incendiando no seu coração o sentimento da sua própria dignidade, suscitando nela o amor e a necessidade da liberdade, os instintos da rebeldia e da independência, fazendo-lhe recordar a sensação da sua força e dos seus direitos.

Amar é querer a liberdade, a completa independência do outro; o primeiro acto do verdadeiro amor é a emancipação completa do objeto que se ama; não se pode amar verdadeiramente a não ser alguém perfeitamente livre, independente, não só de todos os demais, mas também e, sobretudo, daquele de quem é amado e a quem ama. 

Esta é a profissão da minha fé política, social e religiosa, aqui está o sentido íntimo, não só dos meus actos e das minhas tendências políticas, mas também, tanto quanto me é possível, da minha existência particular e individual; porque o tempo em que poderiam ser separados estes dois géneros de acção está muito longe da gente; agora o homem quer a liberdade em todas as acepções e em todas as aplicações desta palavra, ou então não a quer de modo algum; querer a dependência daquele a quem se ama é amar uma coisa e não um ser humano, porque o que distingue o ser humano das coisas é a liberdade; e se o amor implicar também a dependência, é o mais perigoso e infame do mundo porque é então uma fonte inesgotável de escravidão e de embrutecimento para toda a humanidade. 

Tudo que emancipa os homens, tudo que, ao fazê-los voltar a si mesmos, suscita neles o princípio da sua vida própria, da sua actividade original e realmente independente, tudo o que lhes dá força para serem eles mesmos, é verdade; tudo o resto é falso, liberticida, absurdo. Emancipar o homem, esta é a única influência legítima e bem-feitora. 

Abaixo todos os dogmas religiosos e filosóficos – que não são mais que mentiras; a verdade não é uma teoria, mas sim um facto; a vida é a comunidade de homens livres e independentes, é a santa unidade do amor que brota das profundidades misteriosas e infinitas da liberdade individual.

Nota biográfica:

Mikhail Bakunin (1814-1876), de origem aristocrática, que percorreu toda a Europa como activista revolucionário e exilado político, foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Trabalhadores, também conhecida por I Internacional, sendo uma das figuras mais importantes do movimento e do pensamento anarquista. Da sua bibliogarfia destaca-se o livro Deus e o Estado.

A carta reproduzida acima tem data de 29 de Março de 1845 e foi enviada de Paris por Bakunin ao seu irmão Paulo.

 

Os seguros do trabalhador não deixam mais ninguém seguro, o papel de palhaço e outras histórias

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Por Gilson Moura Henrique Junior

A absoluta crueldade do estado para com os trabalhadores jamais foi novidade. A novidade, no Brasil, é que ataques aos direitos dos trabalhadores tenha vindo, pasmem, de um partido nomeado “Partido dos Trabalhadores”.

Não que isso seja novidade também.

Basta que a gente se lembre que o Partido dos Trabalhadores praticamente inaugurou seu primeiro mandato de presidente da república na história com a consolidação da reforma da previdência, um dos mais cruéis ataques aos direitos dos trabalhadores que se tem notícia.

Com esse ataque o governo Lula foi feliz ao acenar ao mercado que sua ação de forma contente agiria mantendo a ampliação da idade mínima para se aposentar, reduzindo direitos previdenciários, criando o fator previdenciário,etc.

Essa reforma foi lida pela mídia à época como “grande vitória do Governo Lula”, e o elogio não foi à toa, mesmo diante da ilegalidade da reforma, dado que os pilares da reforma eram um claro aceno que o então governo “de esquerda” estava fazendo uma gestão econômica que não rompia com os pilares neoliberais herdados do governo FHC, embora fizesse ajustes gerenciais que ampliavam a margem de manobra de investimentos do estado na economia.

Além disso, a manutenção de um tucano na presidência do Banco Central, a instituição de um superavit primário superior aos do governo tucano (ampliando o dinheiro destinado ao pagamento dos juros da dívida pública), tudo gerava um contentamento no mercado financeiro na elite econômica, que havia ficado nervoso com a possibilidade de um governo concretamente de esquerda gerindo o estado brasileiro.

De lá pra cá, tudo foi muito bem gerido no âmbito da relação entre esquerda e governo, entre a publicidade oficial e a organizada militância cotidiana de defesa dos governos do PT que a cada movimento da ampla e irrestrita guinada à direita , para a cada exemplo tático desta guinada ser oferecido ao interlocutor um dado positivo do governo.

A questão é que os dados positivos do governo foram a cada dia escasseando mais sob o ponto de vista do trabalhador e não fugindo muito da existência do bolsa-família, ausência de privatizações às claras e manutenção de direitos dos trabalhadores.

Bem, nem isso agora dá pra ser sustentado diante dos ataques diretos ao seguro-desemprego, auxílio doença e seguro defeso feitos pelo governo Dilma no apagar das luzes de 2014.

O ataque especialmente ao seguro-desemprego e seguro-defeso atingem diretamente a população mais pobre e presente em mercados com maior rotatividade empregatícia ou dependentes do seguro governamental no período onde são impossibilitados de efetivamente trabalharem para seu sustento, caso do seguro-defeso.

Ao criar meios de na prática impedir o acesso ao seguro-desemprego e seguro defeso, o governo tira da proteção estatal um exército enorme de pessoas que dependem disso pra comer. São pescadores que na época de defeso não podem pescar, dado que defeso é o período de proteção à reprodução de espécies de peixes, crustáceos e moluscos marinhos e de rio. São trabalhadores do agronegócio que são demitidos após o término de suas atividades, algo que dificilmente supera seis meses e que ficam sem proteção do estado quando não há mais trabalho a ser executado.

Além disso ser extremamente cruel, a economia de 9 bilhões de reais é troco de pinga, dado que a maior parte do orçamento da república vai pro pagamento de juros da dívida pública através dos recursos obtidos a partir do superavit primário. Ou seja, o governo destina muitos bilhões pros bancos e corta a verba destinada aos mais pobres pra economizar algo que se reduzisse apenas meio por cento do dinheiro destinado aos bancos conseguiria economizar. É uma opção clara atingir direitos ao invés de atingir o pagamento de uma dívida que inclusive tem a legitimidade contestada por auditores da auditoria cidadã da dívida.

Ou seja, o governo Dilma antes mesmo do defunto da credibilidade coletiva em cima de uma surreal e improvável guinada à esquerda por sue governo esfriar já abriu um saco de maldades que dificilmente é feito de um maquiavelismo digno de nota.

Isso sem contar um ministério dos horrores onde uma de suas próceres já anunciou que “Não existe latifúndio no Brasil e os índios é que ‘descem para áreas agricultáveis’”.

A sensação de quem vê de fora é que Dilma Roussef não só apelou pra desmoralização completa da malta de tolos que a seguiu acreditando no marketing do João Santana como resolveu discipliná-los através do escarnio e da crueldade.

Só que para além das críticas e ironias quem será atingido é quem fez parte do que os petistas adoravam dizer: Os quarenta milhões retirados da miséria.

Além de terem sido retirados da miséria sem serem retirados da mira assassina da polícia militarizada, racista e elitista, estes entes foram removidos de suas casas para as obras da copa, tiveram o bioma de onde tiravam seu sustento destruído, foram mortos e assassinados pelo agronegócio reforçado pela posse de Katia Breu como ministra da agricultura e agora ou são impedidos de obterem recursos do seguro-desemprego enquanto ficam sem trabalho a partir da sazonalidade e rotatividade do mercado de trabalho local ou tem de escolher entre o bolsa-família e o seguro defeso nos períodos de defeso onde legalmente são impedidos de pescar.

Ou seja, os quarenta milhões que saíram da miséria tão sendo empurrados pra ela de novo ou pior, vão ser empurrados pro crime ambiental.

Ah, esqueci de lembrar que a maior parte das espécies ameaçadas de extinção no Brasil é de peixes. Assim, além de atacar direitos dos trabalhadores a Dilma ataca o meio ambiente, como se não bastasse o caráter predatório de seu governo.

Então, quando o voto crítico com fome juvenil, toscamente autoproclamada de “Petralha”, arrogantemente ignorava avisos de tudo isso que está acontecendo (Mesmo tudo o que está acontecendo conseguir superar o mais crítico e ácido crítico do governo), não contavam com a astúcia da presidenta que qual um Chapolin colorado do mal ao ser perguntado “E agora quem irá nos proteger?”, agora responde: “Ninguém!’.

Ninguém está seguro diante de não uma guinada à direita, mas A guinada à direita, que já era apontada com a composição do ministério cantada em verso e prosa pela oposição à esquerda do governo que iria acontecer (ministro da fazenda ligado a bancos e agronegócio na agricultura). E essa ausência de segurança é exemplar ao atingir primeiramente o que segurava os trabalhadores em períodos de vacas magras forçadas pelo mercado ou pelas leis ambientais.

Quando nenhum seguro é respeitado a única coisa que nos resta é a luta e se espera que junto a esta luta se alinhem quem outrora latia vulgarmente para uma poesia amestrada em programa eleitoral ignorando os uivos de quem já antecipava o pior.

E é de bom tom que os novos lobos saibam fazer autocrítica de seu papel de palhaço na farsa eleitoral.

“Não. Isto é uma verdadeira revolução” Entrevista com David Graeber sobre Rojava

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Fonte: Jornal MAPA

traduzido a partir de ZNET (entrevista originalmente publicada pelo diário Evrensel na Turkia)


O anarquista e professor de Antropologia (London School of economics), David Graeber, escreveu em Outubro passado um artigo para o Guardian, durante a primeira semana dos ataques do ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) a Kobane (norte da Síria), onde perguntava porque é que o mundo estava a ignorar os Kurdos Sírios revolucionários.

Mencionando o seu pai, que se voluntariou para lutar nas Brigadas Internacionais na república espanhola em 1937, perguntou:

“ Se existe hoje um paralelo com os assassinos falangistas, superficialmente devotos de Franco, quem será senão o ISIS? Se existe hoje um paralelo com as Mujeres Libres de Espanha, quem será senão as corajosas mulheres que defendem as barricadas de Kobane? Vai o mundo – e desta vez mais escandalosamente, a esquerda internacional- ser condescendente em deixar que a história se repita?

De acordo com Graeber, a região autónoma de Rojava declarada com um “contracto social” em 2011, como três cantões anti-estado, anti-capitalistas, foi também uma notável experiência democrática desta área.

No início de Dezembro, com um grupo de 8 pessoas, estudantes, activistas e académicos de diferentes partes da Europa e dos EUA, passou 10 dias em Cizire – um dos cantões de Rojava. Tiveram a hipótese de observar a prática da “democracia autónoma” no local e colocar várias questões.

Graeber descreve agora a sua impressão desta viagem com questões maiores e explica por que é que esta “experiência” dos curdos sírios está a ser ignorada pelo mundo inteiro.

No artigo para o Guardian perguntaste por que é que o mundo ignora a “experiencia democrática” dos curdos sírios. Depois da experiência de 10 dias, tens uma nova questão ou talvez uma resposta para isso?

Bem, se alguém tinha dúvidas se isto era uma verdadeira revolução, ou só alguma “sombra”, diria que esta visita tira todas as dúvidas. Ainda existem pessoas a dizer: “Isto é só uma frente do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), na verdade são só uma organização autoritária estalinista, que apenas finge ter adoptado uma democracia radical”. Não. Isto é mesmo a sério. É uma revolução genuína. Mas de certa maneira, é exactamente esse o problema. Os grandes poderes têm-se entregado a uma ideologia que diz que as verdadeiras revoluções já não podem acontecer. Entretanto, muita da esquerda, mesmo a radical, parece tacticamente ter adoptado a política que assume o mesmo, apesar de parecerem superficialmente revolucionários. Assumem um tipo de “anti-imperialismo” puritano que assume que os únicos jogadores importantes são os governos e capitalistas, e que esse é o único jogo que vale a pena discutir. O jogo onde se batalha, se criam vilões míticos, se agarra petróleo e outros recursos, montam-se redes de patrocínios; é o único jogo da cidade. O povo de Rojava diz: “Nós não queremos jogar esse jogo. Queremos criar um novo”. Muita gente acha isto confuso e perturbador, então escolhem acreditar que não está a acontecer, ou que essas pessoas estão iludidas, são desonestas ou ingénuas.

Desde Outubro que vemos uma crescente solidariedade vinda de vários movimentos políticos de todo o mundo. Houve uma grande e deveras entusiástica cobertura da resistência em Kobane pelos média mainstream internacionais. A posição política perante Rojava mudou no Ocidente, de certa forma. Existem sinais significativos mas estar-se-á a discutir suficientemente a autonomia democrática e as experiências nos cantões de Rojava? Que parte de “algumas pessoas corajosas a lutar contra o grande mal desta era, o ISIS” não estará a dominar esta aprovação e este fascínio? Acho que é notável que tanta gente no Ocidente olhe para estes quadros de feministas armadas, por exemplo, e nem sequer pense nas ideias por trás delas. Apenas se apercebem que assim aconteceu, por algum motivo. “Penso que é uma tradição curda”. De certo modo, claro que se trata de orientalismo, ou simplesmente racismo. Nunca lhe ocorreu que as pessoas no Curdistão possam estar também a ler Judith Butler. Na melhor das hipóteses pensam: “Oh, estão a tentar alcançar os padrões ocidentais da democracia e dos direitos das mulheres. Será que é a sério ou será só para os estrangeiros verem”. Não lhes ocorre que eles podem estar a levar as coisas bem mais longe que os “padrões ocidentais” alguma vez levaram; que acreditam genuinamente nos princípios que os Estados ocidentais apenas professam.

Mencionaste a aproximação da esquerda sobre Rojava. Como é isso recebido nas comunidades anarquistas internacionais?

A reacção da comunidade anarquista internacional tem sido decididamente diversa. De certa maneira, acho difícil de entender. Existe um grupo substancial de anarquistas – normalmente os elementos mais sectários – que insiste que o PKK ainda é um grupo nacionalista autoritário estalinista, que adoptou Bookchin, e outros partidários da esquerda libertária, para cortejar a esquerda anti autoritária na Europa e América. Parece-me uma das ideias mais parvas e narcisistas que já ouvi. Mesmo que a premissa estivesse correcta, e que um grupo Marxista-Leninista decidisse fingir uma ideologia para obter apoio estrangeiro, por que raio é que iriam escolher ideias anarquistas desenvolvidas por Murray Bookchin? Isso seria a jogada mais estúpida de sempre. Obviamente fingiriam ser islamitas ou liberais, já que são esses que conseguem armas e apoio material. De qualquer maneira, penso que muita gente na esquerda internacional, incluindo a esquerda anarquista, não quer basicamente ganhar. Não conseguem imaginar que uma revolução realmente acontecesse, e, secretamente, nem sequer a querem, uma vez que isso significaria partilhar o seu clube “fixe” com pessoas comuns; já não seriam especiais. Assim, até é útil para separar os verdadeiros revolucionários dos “poseurs”. Mas os verdadeiros revolucionários têm-se mantido firmes.

Qual foi a coisa mais impressionante que testemunhaste em Rojava nos termos práticos desta autonomia democrática?

Existem tantas coisas impressionantes. Acho que nunca ouvi falar de nenhum outro lado do mundo onde tenha existido uma situação de dualidade de poder, onde as mesmas forças políticas criaram ambos os lados. Existe a “auto-administração democrática”, onde existem todas as formas e armadilhas de um Estado – Parlamento, ministros, e por aí – mas foi criada para ser cuidadosamente separada dos meios do poder coercivo. Depois há o TEV-DEM (o Movimento da Sociedade Democrática) dirigido de raiz instituições de democracia directa. No final – e isto é fulcral – as forças de segurança respondem perante as estruturas que seguem uma abordagem de cima para baixo, e não de baixo para cima. Um dos primeiros locais que visitámos foi a academia de polícia (Asayis). Todos tiveram que frequentar cursos de resolução de conflitos não violenta e de teoria feminista antes de serem autorizados a pegar numa arma. Os co-directores explicaram-nos que o seu objectivo final é dar seis semanas de treino policial a toda a gente no país, para que em última análise se possa eliminar a polícia.

O que responderias às várias críticas em torno de Rojava? Por exemplo: “Eles nunca fariam isto em tempos de paz. É por causa do estado de guerra”

Bem, penso que a maioria dos movimentos, perante as condições horrendas da guerra, não iria no entanto abolir imediatamente a pena capital, dissolver a polícia secreta e democratizar o exército. As unidades militares, por exemplo, elegem os seus oficiais.

E existe outra crítica, bastante popular nos círculos pro-governo aqui na Turquia: “O modelo que os Curdos – na linha do PKK e PYD (o Partido Curto de União Democrática) – estão a tentar promover não é na verdade seguido por todas as pessoas que lá vivem. Essa multi-… estrutura existe apenas à superfície, nos símbolos”

Bem, o presidente do cantão de Cizire é árabe, é de facto o chefe da maior tribo local. Suponho que se possa dizer que ele é só uma figura. No sentido que todo o governo o é. Mas ao olhando para as estruturas organizadas de baixo para cima, é certo que não são só os curdos que estão a participar. Disseram-me que o único problema a sério é com algumas aldeias do “cinto árabe”, pessoas trazidas de outras partes da Síria pelos Baathistas nos anos 50 e 60, como parte de uma política de marginalização e assimilação dos curdos. Algumas dessas comunidades afirmaram-se bastante hostis à revolução. Mas os árabes cujas famílias já lá estão há várias gerações, ou os assírios, quirguizes, arménios, chechenos, mostram-se entusiasmados. Os assírios com quem falámos disseram que, após uma longa e difícil relação com o regime, sentiram que finalmente lhes era permitida autonomia cultural e religiosa. Provavelmente, o maior problema pode ser o da libertação das mulheres. O PYD e o TEV-DEM vêem-no como absolutamente central na sua ideia de revolução, mas também enfrentam o problema de lidar com alianças maiores com comunidades árabes que sentem que isto viola princípios religiosos básicos. Por exemplo, enquanto aqueles que falam siríaco têm a sua própria união de mulheres, os árabes não, e as raparigas árabes interessadas em organizar-se em torno de questões de género ou até assistir a seminários feministas têm de se juntar com os assírios ou mesmo com os curdos.

Não é necessário estar preso no “quadro anti-imperialista puritano” que mencionaste antes, mas o que dirias em relação ao comentário que o Ocidente/imperialismo irá um dia exigir aos curdos sírios um pagamento pelo seu apoio? O que é que o Ocidente pensa exactamente sobre este modelo anti-estado e anti-capitalista? É apenas uma experiência que pode ser ignorada durante um estado de guerra, enquanto os curdos se aceitam voluntariamente combater um inimigo criado pelo Ocidente?

É absolutamente verdade que os EUA e a Europa irão fazer o que poderem para subverter a revolução. Nem é preciso dizer nada. As pessoas com quem falei estão bem cientes disso. Mas não fazem grande diferenciação entre a liderança de poderes regionais como na Turquia, Irão ou Arábia Saudita, e poderes Euro-americanos como por exemplo França ou EUA. Assumem que são todos capitalistas e estadistas e portanto anti-revolucionários, que podem no melhor dos casos ser convencidos a apoiarem-nos mas que, em última análise, não estão do seu lado. Depois existem questões ainda mais complicadas da estrutura da chamada comunidade internacional, o sistema global de instituições como a ONU ou FMI, corporações, ONG’s, organizações humanitárias, em que todas presumem uma organização estadista, um governo que pode passar leis e detém o monopólio da aplicação coerciva dessas leis. Só existe um aeroporto em Cizire e está sobre o controlo do governo Sírio. Podem tomá-lo a qualquer altura, dizem. E há uma razão para não o fazerem: como iria um não-Estado dirigir um aeroporto? Tudo o que se faz num aeroporto é sujeito a regulamentos internacionais, o que presume um Estado.

Tens uma resposta para o porquê da obsessão do ISIS com Kobane?

Bem, eles não podem ser vistos a perder. Toda a sua estratégia de recrutamento é baseada na ideia que eles são imparáveis, e que a sua contínua vitória é a prova que representam a vontade de Deus. Serem derrotados por um monte de feministas seria a humilhação final. Enquanto estiverem a lutar em Kobane, podem dizer que os média mentem e que estão a avançar verdadeiramente. Quem pode provar o contrário? Se recuassem seria admitir a derrota.

Tens resposta para o que Tayyip Erdogan e o seu partido estão a tentar a fazer na Síria e o Médio Oriente em geral?

Posso apenas imaginar. Parece que Erdogan passou de uma política anti-Assad e anti-curda para uma estratégia quase puramente anti-curda. Repetidamente tem mostrado vontade de se aliar com fascistas pseudo-religiosos para atacar qualquer experiência de democracia radical inspirada no PKK. Ele vê claramente, como o próprio Daesh (ISIS), que o que está a ser feito é uma ameaça ideológica, talvez a única alternativa ideológica viável face ao islamismo de direita que se avizinha, e tudo fará para a eliminar.

De um lado existem os curdos iraquianos com uma ideologia bem diferente em termos de capitalismo e noção de independência. Por outro lado, existe este exemplo alternativo em Rojava. E existem os curdos da Turquia que tentam manter um processo de paz com o governo… Pessoalmente, como vês o futuro do Curdistão a curto e a longo prazo?

Quem pode dizer? Neste momento as coisas parecem surpreendentemente boas para as forças revolucionárias. O KDG até desistiu da enorme vala que estava a construir através da fronteira de Rojava, após o PKK intervir e salvar Erbil e outras cidades dos avanços ISIS, em Agosto. Um elemento do KNK disse-me que isso teve um grande impacto na consciência popular; que um mês criou tanta consciência como 20 anos. Os jovens estavam particularmente impressionados pelo facto de os seus próprios Peshmerga abandonarem o campo de batalha mas as mulheres do PKK não. Mas é difícil de imaginar como é que o território de KRG será contudo revolucionado num futuro próximo. Nem o poder internacional o permitiria.

Apesar de a autonomia democrática não parecer estar em cima da mesa de negociações na Turquia, o Movimento Político Cudo tem estado a trabalhar nisso, especialmente ao nível social. Tentam encontrar soluções em termos legais e económicos para possíveis modelos. Quando comparamos, digamos, a estrutura de classes e o nível de capitalismo no Curdistão Ocidental (Rojava) e no Norte (Turquia), o que pensas sobre as diferenças destas duas lutas para uma sociedade anti-capitalista – ou para um capitalismo minimizado, como o descrevem?

Penso que a luta curda é explicitamente anti-capitalista em ambos os países. É o seu ponto de partida. Conseguiram uma espécie de fórmula: não eliminar o capitalismo sem eliminar o Estado, e não podemos eliminar o Estado sem eliminar o patriarcado. No entanto, o povo de Rojava tem a questão simplificada em termos de classes porque a verdadeira burguesia, tal como existia numa região maioritariamente agrícola, desapareceu com o colapso do regime de Baath. Enfrentarão um problema a longo prazo se não trabalharem no sistema educativo, para assegurar que um estrato tecnocrata de desenvolvimento não tente eventualmente tomar poder, mas entretanto, é compreensível que se foquem de imediato nas questões de género. Na Turquia não sei tanto, mas tenho a sensação que as coisas são muito mais complicadas.

Durante os dias em que as pessoas do mundo não podiam respirar por razões óbvias, a tua viagem a Rojava inspirou-te sobre o futuro? Qual achas que é o “remédio” para as pessoas respirarem?

Foi extraordinário. Passei a minha vida a pensar em como poderíamos fazer coisas como estas num futuro remoto e a maioria das pessoas pensa que sou louco por imaginar que isto alguma vez vai acontecer. Estas pessoas estão a fazê-lo agora. Se eles provarem que pode ser feito, que uma sociedade genuinamente igualitária e democrática é possível, isto irá transformar completamente a noção de possibilidades humanas. Pessoalmente, sinto-me dez anos mais novo só de ter lá passado dez dias.

Com que cena te irás recordar da tua viajem a Cizire?

Existem tantas imagens impressionantes, tantas ideias. Gostei da disparidade entre o aspecto das pessoas e as coisas que diziam. Conhece-se alguém, um médico, que parece um militar sírio, vagamente assustador, de casaco de cabedal e expressão austera. Depois fala-se com ele e ele explica: “Bem, sentimos que a melhor abordagem à saúde pública é a prevenção, a maioria das doenças ocorre devido ao stress. Sentimos que se reduzirmos o stress, os níveis de doenças de coração, diabetes, e mesmo o cancro irão diminuir. Assim, o nosso plano final é reorganizar as cidades para terem 70% de espaços verdes…” Existem todos estes planos loucos e brilhantes. Mas depois vai-se ao médico ao lado e explica-nos que, graças ao embargo turco, não conseguem sequer obter equipamento ou medicamentos básicos, que todos os pacientes para diálise que não foram levados dali morreram… Esta disjunção entre as ambições e as incríveis e difíceis circunstâncias. E… A mulher que era efectivamente a nossa guia era uma vice-chanceler chamada Amina. A certa altura, pedimos desculpa por não termos trazido presentes melhores e ajudado a população de Rojava, a sofrer sob o embargo. E ela disse: “No final, isso pouco importa. Temos a única coisa que ninguém nos pode dar. Temos a nossa liberdade. Vocês não. Quem me dera que houvesse uma maneira de vos poder dá-la”.

És por vezes criticado por seres demasiado optimista e entusiasta sobre o que está a acontecer em Rojava. Achas que és? Ou há alguma coisa que não entendem?

Sou optimista de temperamento, procuro situações que carreguem alguma promessa. Não acho que existam garantias que isto resultará no final, que não será esmagado, mas certamente que não será se toda a gente decidir que nenhuma revolução é possível e se recusar a dar-lhe apoio activamente, ou até dedicar esforços a atacá-la ou aumentar o seu isolamento, como muitos fazem. Se existem alguma coisa da qual tenho consciência e os outros não, talvez seja o facto de a história não estar terminada. Os capitalistas têm feito um esforço enorme nos últimos 30 ou 40 anos em convencer as pessoas que os actuais acordos económicos – nem sequer o capitalismo, mas a forma de capitalismo semi-feudal, financializada, peculiar que temos hoje em dia – são o único sistema económico possível. Puserem mais esforços nisto do que em criar um sistema capitalista global viável. Como resultado, o sistema está a despedaçar-se à nossa volta no preciso momento em que toda a gente perdeu a capacidade de imaginar outra coisa. Bem, é bastante óbvio que em 50 anos, o capitalismo sob qualquer forma que conheçamos, e provavelmente sob qualquer outra forma, já não existirá. Terá sido substituído por outra coisa. Essa coisa pode não ser melhor. Pode até ser pior. Por esse mesmo motivo, parece-me que é nossa responsabilidade, enquanto intelectuais, ou simplesmente seres humanos pensantes, de pelo menos pensar como será uma coisa melhor. E se existem pessoas que estão verdadeiramente a tentar criar essa coisa melhor, é nossa responsabilidade ajudá-las.

 

ANARQUISMO E ECOLOGIA

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Por Murray Bookchin

Fonte: Canto Libertário 

O anarquismo não se limita apenas a idéia de criar comunas independentes. E, se me detive a examinar esta possibilidade, foi apenas para demostrar que, longe de ser um ideal remoto, a sociedade anarquista tornou-se um pré-requisito para a prática dos princípios ecológicos. Sintetizando a mensagem crucial da ecologia, diremos que, ao reduzir a variedade no mundo natural, estaremos aviltando sua unidade e integridade, destruindo as forças que contribuem para a harmonia natural e para o equilíbrio duradouro e, o que é ainda mais importante, estaremos provocando um retrocesso no desenvolvimento do mundo natural. Retrocesso que poderá eventualmente, impedir o aparecimento de outras formas mais avançadas de vida.

Sintetizando a mensagem reformadora da ecologia, poderíamos afirmar que, se desejamos promover a unidade e estabilidade do mundo natural, tornando-o mais harmonioso, precisamos estimular e preservar a variedade. Mas estimular a variedade pela variedade seria um vazio. Na natureza, ela surge espontaneamente.

As possibilidades de sobrevivência de uma nova espécie são testadas pelos rigores do clima, pela sua habilidade em enfrentar seu inimigos, pela sua capacidade de estabelecer e ampliar o espaço que ocupa no meio ambiente. Entretanto, qualquer espécie que consegue aumentar seu território estará, ao mesmo tempo, ampliando a situação ecológica como um todo. Citando A. Gutkind, ela estará “ampliando o meio ambiente tanto para si própria quanto para qualquer outra espécie com a qual mantenha um relação equilibrada”.

Como aplicar este conceito a teoria social? Creio que para muitos leitores bastaria dizer que, na medida que o homem é parte da natureza, a ampliação do meio ambiente natural implicaria um maior desenvolvimento social. Mas a resposta para essa pergunta é bem mais profunda do que poderiam supor ecológicos e libertários. Permintam-me retornar mais um vez a idéia ecológica que afirma ser a diversidade uma consequência da integridade e do equilíbrio. Tendo em mente essa idéia, o primeiro passo para encontrar a resposta seria a leitura de um trecho da Filosofia do anarquismo de Herbert Read, onde, ao apresentar seus “critérios de progresso”, ele observa que o progresso pode ser mediado pelo grau de diferenciação existente na sociedade. Se o indivíduo é apenas uma unidade da massa coletiva, sua vida será limitada, monótona e mecânica. Mas, se ele for uma unidade independente, poderá estar sujeito a acidentes ou azares da sorte, mas ao menos terá a chance de crescer e expressar-se. Poderá desenvolver-se – no único sentido real do termo – na consciência de sua própria força, vitalidade e alegria.

Embora não tenha encontrado seguidores, as idéias de Read nos fornecem um importante ponto de partida. O que primeiro nos chama a atenção é o fato de que, tanto ecologista como anarquista ressaltam a importancia da espontaneidade.

Na medida em que é mais que um simples técnico, o ecologista tem um tendência a desprezar o conceito de “domínio sobre a natureza” preferindo falar em “conduzir” uma situação ecológica, em gerir um ecossistema, em vez de recría-lo. O anarquista, por sua vez, fala em espontaneidade social, em libertar o potencial da sociedade e da humanidade, em dar rédeas soltas a criatividade humana. Ambos vêem na autoridade uma força inibidora, um peso que limita o pontencial criativo de uma situação natural ou social.

Assim como o ecologista procura ampliar o alcance de um ecossistema e estimular a livre ação recíproca entre as espécie, o anarquista busca ampliar o alcance da experiência social e remover os obstáculos que possam impedir seu desenvolvimento. O anarquismo não é apenas uma sociedade sem governo, mas uma sociedade harmoniosa que procura expor o homem a todos os estímulos da vida urbana e rural, da atividade física e mental, da sensualidade não reprimida e da espiritualidade, da solidariedade ao grupo e do desenvolvimento individual. Na sociedade esquizóide em que vivemos, tais objetivos não só são considerados irreconciliáveis, como diametralmente opostos.

Uma sociedade anaquista deveria ser descentralizada, não apenas para que tivesse condições de criar bases duradouras que garantissem o estabelecimento de relações harmoniosas entre o homem e a natureza, mas para que fosse possível dar uma nova dimensão ao relacionamente harmônico entre os próprios homens. Há uma necessidade evidente de reduzir as dimensões das comunidades humanas – em parte para solucionar os problemas da poluição e em parte para que pudéssemos criar verdadeiras comunidades. Num certo sentido, seria necessário humanizar a humanidade. O uso de aparelhos eletrônicos, tais como telefones, telégrafos, rádios e televisão, como forma de intermedia a relação entre as pessoas, deveria ser reduzido ao mínimo necessário.

As comunidade menores teriam uma economia equilibrada e vigorosa, em parte para que pudessem utilizar devidamente as matérias-primas e as energias locais, e em parte para ampliar os estímulos agrícolas e industrias. O membro da comunidade que tiver inclinação para engenharia, deveria ser encorajado a mergulhar suas mãos na terra, o intelectual a usar seu músculos, o fazendeiro a conhecer o funcionamento da fábrica. Separa o engenheiro da terra, o pensador da espada, o fazendeiro da fábrica, gera um grau de superespecialização, onde os especialistas assumem um perigoso controle da sociedade.

Uma comunidade auto-suficiente, que dependesse do meio ambiente para sua subsistência, passaria a sentir um novo respeito pelas inter-relações orgânicas que garantem sua sobrevivência. Creio que longe de resultar em provincianismo, essa relativa auto-suficiencia criaria uma nova matriz para o desenvolvimento do indivíduo e da comuna – uma integração com a natureza que revitalizaria a comunidade.

Se algum dia tivermos conseguido ter na prática uma verdadeira comunidade ecológica, ela produzirá um sensível desenvolvimento na diversidade natural, formando um todo harmônico e equilibrado. E, estendendo-se pelas comunidades, regiões e continentes, veremos surgir diferentes territórios humanos e diferente ecossistemas, cada um deles desenvolvendo suas próprias potencialidades e expondo seus membros a uma grande variedade de estímulos econômicos, culturais e de conduta. As diferenças que existem entre indivíduos serão respeitadas como elementos que enriquecem a unidade da experiência e do fenômeno. Libertos de uma rotina monótona e repressiva, das inseguranças e opressões, da carga de um trabalho demasiado penoso e das falsas necessidades, dos obstáculos impostos pela autoridade e das compulsões irracionais, os indivíduos estarão, pela primeira vez na história, numa posição que lhes permitirá realizar seu potencial como membros da comunidade humana e do mundo natural.

(em: O Anarquismo Pós-Escassez, 1974)

PARIS, 1968 – MURRAY BOOKCHIN

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Fonte: Contr’un

Por Murray Bookchin

(Em O Anarquismo pós-escassez, 1974)

A Qualidade da vida cotidiana


A rebelião de maio-junho de 1968 foi um dos mais importantes acon­tecimentos que ocorreram na França desde a Comuna de Paris em 1871. Ela não só sacudiu as bases da sociedade burguesa na França, como levan­tou problemas e apresentou soluções de uma importância sem preceden­tes para a sociedade industrial moderna, merecendo ser estudada e discu­tida em profundidade pêlos revolucionários de todo o mundo.

A rebelião de maio-junho aconteceu num país industrializado e orientado para o consumo — menos desenvolvido que os Estados Unidos, mas pertencendo basicamente à mesma categoria econômica. A revolta destruiu o mito de que a riqueza e os recursos da moderna sociedade industrial podem ser usados para neutralizar todas as formas de oposição revolucionária. Os acontecimentos de maio-junho demonstraram que as con­tradições e antagonismos do capitalismo não são eliminados pela estratificação e por formas avançadas de industrialismo, mas apenas transformados em forma e caráter.

O fato de que a revolta pegou a todos de surpresa, mesmo os mais sofisticados teóricos dos movimentos marxistas, situacionistas e anarquistas, ressalta a importância dos acontecimentos de maio-junho e suscita a necessidade de examinar as origens da inquietação revolucionária da sociedade moderna.

As inscrições que podiam ser lidas nos muros de Paris – “Poder para a imaginação”, “É proibido proibir”. “A vida sem tempos mortos”, “Trabalho, nunca”—representam uma análise mais profunda dessas origens do que todos os volumes cheios de teorias herdadas do passado. A revolução revelou que chegamos ao fim de uma era e ao início de novos tempos. As forças que hoje motivam a revolução — pelo menos no mundo industrializado — já não são simplesmente a escassez e a necessidade material, mas também a qualidade da vida cotidiana, a necessidade de liberação da experiência e a tentativa de controlar o próprio destino.

Não importa que as inscrições dos muros de Paris tivessem sido feitas, no início, por uma pequena minoria. Por tudo o que vi até agora, parece claro que os graffiti (que hoje enchem vários volumes) incendiaram a imaginação de muitos milhares em Paris. Eles conseguiram expor a coragem/nervo revolucionário da cidade

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Um movimento majoritário espontâneo

A revolta foi um movimento majoritário no sentido de que fez um corte longitudinal por todas as camadas da sociedade francesa, envolvendo não apenas estudantes e operários, mas técnicos, engenheiros e funcionários em quase todos os níveis da burocracia estatal, industrial e comercial. Atingiu profissionais liberais e trabalhadores, intelectuais e jogadores de futebol, artistas de televisão e operários do metro. Chegou a penetrar na força policial da cidade e é quase certo que afetou também a grande massa de soldados alistados no exército francês.
A rebelião foi iniciada basicamente pêlos jovens. Ela começou entre os estudantes universitários e depois foi apoiada pêlos jovens operários industriais, pêlos jovens desempregados e pêlos “jaquetas de couro” — a assim chamada delinqüência juvenil das cidades. Deve-se salientar especialmente a participação dos estudantes de segundo grau e dos adolescentes que frequentemente demonstraram mais coragem e determinação do que os seus colegas universitários. Mas a revolta afetou os mais velhos também: funcionários burocráticos, trabalhadores braçais, técnicos e profissionais. Embora tivesse sido catalizada pêlos revolucionários conscientes, especialmente por grupos de afinidade anarquista, de cuja existência ninguém suspeitava nem mesmo vagamente, o fluxo, o movimento de rebelião foi espontâneo.

Ninguém incitou à revolta, ninguém chegou a organizá-la e também ninguém conseguiu controlá-la.
Durante a maior parte daqueles dias de maio e junho, houve uma atmosfera de festa, um despertar da solidariedade, um desejo de ajudar-se mutuamente, de expressar a própria individualidade, algo que não era visto em Paris desde os dias da Comuna. As pessoas estavam literalmente redescobrirido — ou talvez reconstruindo — a si próprias e aos outros. Em muitas cidades industriais, os operários entupiam as praças, hasteavam bandeiras vermelhas, liam avidamente e discutiam cada panfleto que lhes caísse nas mãos.

Milhares de pessoas foram atacadas por uma febre de viver, um renascer de sentimentos que nem sonhavam possuir, de uma alegria e um entusiasmo que nunca pensaram poder sentir. As línguas ficaram mais soltas, os ouvidos e os olhos adquiriram mais acuidade. Cantava-se e muitas das velhas canções ganharam novas letras, mais irreverentes. Os pátios das fábricas se transformavam em salões de baile.

As inibições sexuais que paralisavam a vida de tantos jovens franceses foram destruídas em poucos dias. Esta não era uma revolta solene, um golpe de estado burocraticamente planejado e manipulado por um “partido de vanguarda”, mas algo espirituoso, satírico, criativo — e justa­mente aí estava a sua força, a sua capacidade de mobilizar e contagiar as pessoas.
Muitos conseguiram transcender as estreitas limitações que obstruíam sua visão social. Para milhares de estudantes, a revolução veio desmistificar o pretensioso sentimento de classe, como se os estudantes constituíssem uma casta privilegiada, o que na América é expresso pêlos exames classificatórios e pelo empolado sociologês dos documentos analíticos. Cada operário que se integrava aos comitês de ação em Censier deixava de ser um operário, como tal, para tornar-se um revolucionário. E era precisamente com base nessa nova identidade que pessoas que tinham passado a vida em universidades, fábricas e escritórios podiam encontrar-se livremente, trocar experiências e engajar-se em ações comuns sem preconceitos contra seu meio social ou suas origens.
A revolta tinha criado o ponto de partida de sua própria sociedade, sem classes nem hierarquia. Sua tarefa básica era estender os seus domínios a todo o país, a cada recanto da sociedade francesa e só conseguiria fazê-lo se o princípio de auto-determinação pudesse ser aplicado em todas as suas formas — as assembléias gerais e seus modelos administrativos, os comitês de greve nas fábricas — a todas as áreas da economia e da própria vida. Quem melhor parece ter entendido esta necessidade não foram os operários das indústrias mais tradicionais, onde as CGTs controladas pêlos comunistas exerciam sua poderosa influência, mas os das indústrias modernas, de tecnologia mais avançada, como a eletrônica.(Desejo salientar que esta é uma conclusão puramente especulativa a que chegamos depois de ouvir uma série de episódios esparsos, mas bastante significativos, relatados por jovens militantes dos comitês de ação integrados por estudantes e operários.)

Autoridade e hierarquia:

Um dos aspectos mais importantes da revolta de maio-junho foi a luz que ela lançou sobre a questão da autoridade e da hierarquia.

A este respeito, ela representou um desafio não só aos processos conscientes dos indivíduos mas aos seus mais arraigados hábitos inconscientes e aos condicionamentos impostos pela sociedade. Não creio que seja pre­ciso discutir aqui que tais hábitos são instilados no indivíduo desde os primeiros anos de vida — no ambiente familiar, na educação recebida no lar e na escola, na organização do trabalho, do lazer e da vida cotidiana. Esta amoldagem da estrutura do caráter, segundo normas criadas a partir de arquétipos de obediência e comando, constituem a própria essência daquilo a que chamamos de socialização da juventude.

A mística da organização burocrática, de hierarquias e estruturas impostas e formais, impregna os movimentos mais radicais em períodos não-revolucionários. A extraordinária suscetibilidade da esquerda aos impulsos autoritários e hierárquicos revela que o movimento radical está profundamente enraizado naquela mesma sociedade que aparentemente deseja destruir. Sob este aspecto, quase todas as organizações revolucionárias são uma fonte potencial de contra-revolução e este potencial só pode ser reduzido se a organização revolucionária for estruturada de tal modo que seu modelo espelhe as formas diretas e descentralizadas de liberdade pregadas pela revolução, e se a organização revolucionária promover a adoção de uma personalidade e um modo de vida realmente livres. Só assim o movimento revolucionário será capaz de integrar-se na revolução, sendo absorvido pelo novo modelo social democrático assim como a linha cirúrgica acaba desaparecendo, absorvida pela fenda que cicatriza.

A ação revolucionária destrói todos os laços que mantêm autoridade e hierarquia unidas na ordem social existente. A participação direta do po­vo na arena social é a própria essência da revolução, forma mais avançada de ação social, assim como a ação direta em épocas “normais” é uma preparação indispensável para a ação revolucionária. Em ambos os casos, o que ocorre é uma substituição da ação social, a partir das camadas mais baixas, pela ação política dentro da estrutura hierárquica já estabelecida. Em ambos os casos, há uma transformação molecular de “massas”, classes e níveis sociais, que passam a ser apenas indivíduos revolucionários. É necessário que esta nova condição se torne permanente para que a revolução possa ser bem sucedida — do contrário ela se transformará apenas numa contra-revolução mascarada de ideologia revolucionária. Cada fórmula, cada organização, cada programa “testado e aprovado” deve dar lugar às exigências da revolução. Não há nenhuma teoria, programa ou partido que possa valer mais do que a própria revolução. Entre os mais sérios obstáculos ao sucesso da revolta de maio-junho estavam não apenas De Gaulle e a polícia mas as rígidas organizações de esquerda — o Partido Comunista, que sufocou qualquer espécie de iniciativa em muitas fábricas e os grupos trotskystas que conseguiram criar um péssimo clima durante a assembléia geral na Sorbonne. Não me refiro aqui aos inúmeros indivíduos que se identificavam romanticamente com Che, Mao, Lênin ou Trotsky (e muitas vezes com todos eles a um só tempo), mas daqueles que perdiam totalmente a identidade, a iniciativa e a vontade própria, entregando-se a organizações hierárquicas submetidas a uma rigorosa disciplina. Por mais bem intencionadas que fossem essas pessoas, sua tarefa era “disciplinar” a revolta, ou mais precisamente, retirar dela seus aspectos revolucionários, introduzindo hábitos de obediência e autoridade que suas organizações haviam assimilado da ordem estabelecida. Estes hábitos, estimulados pela participação em organizações muito bem estruturadas — organizações modeladas, na verdade, naquela mesma sociedade que os revolucionários afirmam querer destruir — levavam ao aparecimento de estratégias parlamentares, “panelinhas” secretas, e tentativas de controlar as formas revolucionárias de liberdade criadas pela revolução.

Isto tudo fez com que surgisse, durante a assembléia da Sorbonne, um sonho venenoso de manipulação. Muitos dos estudantes com que falei estavam absolutamente convencidos de que estes grupos estariam dispostos a destruir a assembléia se não pudessem “controlá-la”. Estes grupos não estavam preocupados com a vitalidade das novas formas criadas pela revolução mas apenas com o crescimento de suas próprias organizações. Tendo criado formas autênticas de liberdade nas quais todos podiam expressar livremente os seus pontos de vista, a assembléia estaria plenamente justificada se tivesse decidido banir do seu meio todos os grupos organizados de forma burocrática.
Um dos grandes feitos do Movimento 22 de Março é o fato de que conseguiu integrar-se de tal forma às assembléias revolucionárias que acabou por desaparecer quase totalmente como organização independente, conservando apenas o nome. Nas suas próprias assembléias, os integrantes do 22 de Março baseavam todas as suas decisões no consenso unânime, que permitia a livre expressão de todas as tendências que o movimento abrigava, para testar na prática a sua validade.

Tal tolerância não prejudicou em nada a sua “eficácia”; este movimento anárquico fez mais para catalizar a revolta do que qualquer outro grupo, segundo observações feitas por quase todos os que observaram a sua atuação. O que distingue o Movimento 22 de Março e outros grupos, tais como os anarquistas e os situacionistas, de todos os outros grupos é o fato de que eles não trabalhavam para tomar o poder mas sim para destruí-lo.

A Dialética da Revolução Moderna

Os acontecimento de maio e junho na França revelam de maneira viva e dramática a extraordinária dialética da revolução. A miséria cotidiana de uma sociedade é acentuada pela possibilidade de obtenção da liberdade. E quanto maior for esta possibilidade, mais intolerável se tornará a miséria cotidiana. Por esta razão, o fato de que a sociedade francesa seja hoje mais afluente do que em qualquer outra época de sua história não é muito importante pois afluência, em sua forma burguesa extremamente distorcida, indica simplesmente que já há condições materiais para a liberdade e que as possibilidades técnicas para uma nova vida, mais livre, atingiram a plena maturidade.
E evidente que estas possibilidades vinham rondando já há muito tempo a sociedade francesa, ainda que não fossem percebidas pela maioria das pessoas.

Os gráficos que revelam o crescimento brutal do consumo são um indício da tensão existente entre a realidade medíocre da sociedade francesa e as possibilidades liberadoras de uma revolução, do mesmo modo que uma dieta demasiado farta e uma obesidade excessiva revelam a tensão que existe dentro de um indivíduo. Chega finalmente um momento em que a dieta, por melhor que seja, perde todo o encanto, um momento em que a obesidade social se torna intolerável. Ninguém pode prever o exato momento em que isto acontece. No caso da França, este momento chegou com as barricadas do dia 10 de maio, um dia que sacudiu a consciência de todo o país e fez com que os operários se perguntassem: “Mas afinal, se os estudantes, aqueles ‘filhos da burguesia’, podem fazer isso, por que nós não podemos?”.

A França passava por um processo molecular, completamente invisível mesmo para os revolucionários mais conscientes, um processo que culminou numa ação revolucionária precipitada pelas barricadas. Depois do dia 10 de maio, a tensão entre a mediocridade da vida cotidiana e o potencial de uma sociedade liberada explodiu, provocando a maior greve geral da história.
A extensão da greve demonstra que quase todas as camadas da sociedade francesa estavam profundamente descontentes e que a revolução não era apoiada apenas por uma determinada classe mas por todos aqueles que se sentiam esbulhados, repudiados e logrados no seu direito a uma vida melhor. O impulso revolucionário partiu de uma classe que, mais do que qualquer outra, deveria ter se adaptado à ordem estabelecida — os jovens. Pois eram justamente os jovens que tinham sido alimentados com a papa da “civilização” gaullista, que não tinham sentido na pele o contraste entre as características relativamente atraentes da civilização anterior à guerra e a mediocridade da nova civilização. Mas a papa não funcionou. Sua capacidade para cooptar e atrair é, na verdade, bem menor do que suspeitava a maioria dos críticos da sociedade francesa. A sociedade alimentada com tal papa não teve condições de opor-se ao impulso para a vida que surgiu, especialmente entre os jovens.

Não menos importante, a vida dos jovens na França, tal como ocorrera na América, não tinha sofrido os percalços dos anos de depressão econômica nem da busca de segurança material que moldara a vida dos mais velhos. Os jovens viam a realidade da vida francesa tal como ela era — mesquinha, feia, egoísta, hipócrita e espiritualmente aniquiladora. Este único fato — a revolta dos jovens — é a mais terrível prova da incapacidade do sistema para manter-se em seus próprios termos.

A espantosa decadência interna da sociedade gaullista, uma decadência muito anterior à revolta, assumiu formas que não se ajustam a nenhuma das fórmulas tradicionais de “revolução”, sempre voltadas para os aspectos econômicos da questão. Muita coisa já foi escrita sobre o “consumismo” da sociedade francesa, no sentido de que ele seria uma forma poluidora de mobilização social. O fato de que objetos, mercadorias, estivessem tomando o lugar das lealdades tradicionais, favorecidas pela Igreja, escola, família e pêlos meios de comunicação deveria ser visto como uma prova de que a desintegração social era muito maior do que se sus­peitava. O fato de que a tradicional consciência de classe do operariado estivesse enfraquecendo deveria ser uma prova de que se estavam criando condições propícias para uma grande revolução social e não uma simples revolução entre classes minoritárias. O fato de que os valores lumpen viessem sendo adorados pela juventude francesa na maneira de vestir, na música, na arte e no estilo de vida deveria ser um indício de que, por trás da fachada de protesto político convencional, amadurecia o potencial para a “desordem” e a ação direta.

Por um extraordinário giro de ironia dialética, o processo de “desaburguesamento” acontecia exatamente no momento em que a França tinha atingido níveis nunca antes registrados de afluência material. Fosse qual fosse a popularidade pessoal de De Gaulle, ocorria na França um processo de “desinstitucionalização” precisamente quando o capitalismo estatal parecia mais entrincheirado na estrutura social do que em qualquer outra época recente. A tensão resultante do confronto entre a realidade mesquinha e as possibilidades de libertação aumentava no momento em que a sociedade francesa parecia mais inerte do que em qualquer outro período desde a década de 20. O processo de alienação acontecia no exato instante em que as verdades da sociedade burguesa pareciam mais seguras do que em qualquer outro momento na história da república.

O que importa é que as questões que contribuíam para a ocorrência de inquietações sociais tinham mudado qualitativamente. Os problemas já não estavam ligados à sobrevivência, à penúria e à renúncia, mas à vida, à abundância e ao desejo. Tal como acontecera ao “sonho americano”, o “sonho francês” ruía e se desmistificava. A sociedade burguesa tinha dado tudo o que era capaz de dar nos únicos termos em que poderia “dar” alguma coisa — uma quantidade excessiva de bens materiais de valor discutível, adquiridos graças a um trabalho embotante e sem sentido. Foi a própria experiência e não os “partidos de vanguarda” ou os “programas testados e aprovados” que se transformou no agente mobilizador e na fonte de criatividade da rebelião de maio-junho. E é assim que deveria ser. Não só é natural que uma rebelião aconteça espontaneamente — esta é uma característica comum a todas as grandes revoluções da história — como é também natural que ela se desenvolva espontaneamente.

Isto não significa que os grupos revolucionários devam permanecer silenciosos diante dos acontecimentos. Se tiveram idéias ou sugestões, sua responsabilidade será apresentá-las. Mas utilizar os modelos sociais criados pela revolução com o objetivo de manipular os fatos, agir secretamente pelas costas da revolução, não confiar nela e tentar substituí-la pelo “glorioso partido” é uma irresponsabilidade criminosa e imperdoável. Ou a revolução consegue, eventualmente, absorver todas as organizações políticas ou os organismos políticos se tornam fins em si mesmos — origens inevitáveis da burocracia, da hierarquia e da servidão humana.
Diminuir a espontaneidade de uma revolução, interromper o movimento contínuo entre a mobilização e a emancipação de cada indivíduo isolado, remover os indivíduos do processo para interpor entre eles organizações e instituições políticas emprestadas do passado é o mesmo que corromper os objetivos liberalizantes da revolução. Se a revolução não começa por baixo, se não aumenta a “base” da sociedade até se transformar na própria sociedade, então ela não passa de um mero coup d’état. Se não produz uma sociedade em que cada indivíduo é capaz de controlar a sua própria rotina, em vez da rotina controlar cada indivíduo, então é uma contra-revolução. A liberação social só pode ocorrer quando ocorre simultaneamente uma liberação do indivíduo — se o movimento de “massa” é também um movimento individual que envolve um alto grau de individualização e de auto-conhecimento.

No movimento molecular vindo de baixo, que prepara as condições para que a revolução possa ocorrer; na mobilização de cada indivíduo que coloca a revolução em marcha; na atmosfera de alegria que consolida a revolução — em todas estas etapas sucessivas, há sempre um processo contínuo de individualização, um processo durante o qual o poder se acaba, ocorre a expansão da experiência pessoal e uma liberdade quase esteticamente em harmonia com as possibilidades do nosso tempo. Perceber este processo e articulá-lo, catalizá-lo e determinar as próximas tarefas práticas, manejar com firmeza os movimentos ideológicos que procuram “controlar” o processo revolucionário — estas são, como bem mostraram os acontecimentos na França — as responsabilidades básicas de um revolucionário nos dias de hoje.

Correndo atrás do próprio rabo

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Por Gilson Moura Henrique Júnior

A história recente da esquerda no Brasil tem um quadro incrivelmente eloquente de uma mistura da crise de representação porque passam os movimentos contestatórios mundialmente em relação ao estado com a histórica tendência à burocratização da esquerda partidária (Não só pós-Lênin, mas que ganhou nova característica com o leninismo). Soma-se a isso a desmobilização que a esquerda partidária sofreu pós-PT na presidência e temos o caldo cultural e político do caos na identidade e ação da esquerda como um todo, mas especialmente a marxista leninista partidária, e dos motivos do aprisionamento político-partidário em torno de símbolos petistas e na órbita do partido dos trabalhadores.

São inúmeros os exemplos dessa relação maluca entre a esquerda e o PT e que explicam o motivo pelo qual a esquerda partidária não supera a crise de representação que atinge praticamente todos os países do mundo e não consegue dar resposta aos desafios postos à sua frente sem estar refém de um partido da ordem que no passado tinha majoritariamente uma orientação socialista. Os mais recentes são o mar de voto crítico em Dilma no segundo turno das eleições e após esta nomear um ministério horroroso, mas cantado em verso e prosa há anos que iria acontecer por qualquer um com um mínimo de percepção conjuntura, o alinhamento em torno de Lula (sim, a maior liderança do partido da presidenta Dilma) para “questionar Dilma sobre o ministério”.

Sim, isso mesmo, a esquerda se alinha em torno de Lula,do mesmo partido da presidenta e maior liderança dele, para ser oposição ao governo e fazer as vias de oposição de esquerda unida em frente numa aparente relação esquizofrênica do PT com seu governo sustentada por lideranças de movimentos sociais (E não duvido que por partidos da dita oposição de esquerda).

O que salta aos olhos é a miopia por opção diante de uma enorme manobra do PT, Lula,etc para não perder apoio na esquerda enquanto nomeia um ministério para a direita. A tática de relação pendular com as forças políticas que já existia em Getúlio e que Lula foi mestre em fazer acontecer em seu Governo (E que Dilma não consegue realizar inclusive por seu perfil tecnocrata), é exemplo sintomático do domínio absoluto que o PT tem no imaginário político da esquerda, toda ela, mesmo que mais fortemente presente na esquerda partidária.

E vai funcionar, Lula e o PT conseguirão com a nomeação do ministério e a manobra de oposição a si mesmo capitaneada por Lula controlar, pela esquerda e pela direita, o cenário político nacional por mais alguns anos, e não duvido que gerencie a crise econômica e política elegendo a velha raposa como presidente em 2018.

Vai funcionar porque o quadro de aprisionamento, que era um dado contornável em eleições e conjunturas passadas, agora foi deixado claro pra todo mundo após o apoio significado, eloquente, explícito que toda a esquerda deu ao PT nas eleições de 2014. Declaração de voto crítico não esvazia o apoio presente, cristalino, de gravação de vídeo pra propaganda eleitoral inclusive, que foi dado pela esquerda, de PSOL a PSTU passando inclusive por parte do movimento anarquista que não soube raciocinar diante da pressão da política do medo.

Essa política e o apoio recebido foi a maior vitória do PT nesta eleição, que definitivamente deixou como recado coletivo para a população que o PT é tão de esquerda quanto os anarquistas presos. O apoio deixou claro para a população que o PT é contra a direita representada pelo PSDB. Pior, após a eleição a esquerda entra inteira de cabeça, a partir das lideranças construídas por ela, no reforço da tática de cooptação e aprisionamento a partir do apoio entusiástico a Lula como oposição do Pt ao próprio PT.

Ninguém pôs a mão na cabeça pra ver o óbvio? Que se trata de antecipação da campanha com desvio das críticas para Lula e não pra presidenta, que assim pode desfilar sua política e ostentar seu pragmatismo tecnocrata sem maiores ruídos? O lançamento da oposição a si mesmo na mesma semana da nomeação do ministério tira inteiramente do foco midiático e político as desastrosas nomeações e põe como foco a figura de Lula. E as lideranças de movimentos sociais, elogiadas por todos os partidos da esquerda, propagandeadas por partidos como o PSOL como salvação das lavouras para a oposição de esquerda? Com esse endosso à manobra de Lula deixam claro: O PT ainda é nosso representante.

E por que isso acontece? Em primeiro lugar porque a oposição de esquerda, em um quadro de ampliação da capilarização e crescimento parlamentar esqueceu que era a crítica “responsável” da crise de representação petista e endossou o PT no segundo turno das eleições, com suas principais figuras públicas indo pra TV e internet declarar sem nenhuma discussão com a base que apoiavam Dilma. Ou seja, em plena crise de representação do PT a esquerda na oposição disse: O PT nos representa, mesmo que a contragosto. Bonito,né?

Mas calma! Vai piorar!

Fazendo isso e deixando a descoberto toda representação pela esquerda de contrariedade ao PT (Porque é bom lembrar que quem tem algo contra não vota, assim entende o coleguinha na rua) a própria oposição de esquerda que ainda tentava se livrar da crise de representatividade agora é parte dela. Bacana,né?

Pra piorar parte do movimento anarquista entrou na onda, deixou-se pegar no papel pega mosca da política do medo e parece não ter notado que estava reelegendo um governo homofóbico, proibicionista, anti-índio, antiecológico, que apoia a política de extermínio da população negra. Esqueceu-se isso tudo e foi na fé, esqueceu-se até que para anarquista o voto é muito mais que apertar botãozinho e fazer seu papel de participante da festa da democracia, e quem lembrava isso era “cartilhista”, era muito mais importante pra parte do movimento anarquista ser parte da contaminação da política do medo do que ser o esteio da crítica da pouquíssima diferença entre PT e PSDB. Essa parte inclusive é também amante da lógica de socialização na política, da política como convescote de idealistas em nome de um mundo melhor, pregou que a oposição à Dilma deveria ser “diferente” da com Aécio, como se ambos não fossem parte da ordem. A ordem que nem esperou o defunto da burrice coletiva da esquerda esfriar para reaprisionar companheiros anarquistas e autonomistas e depois sumiu, como via de regra todos os amantes do “voto crítico”.

Agora temos além de uma esquerda aprisionada, um movimento anarquista sendo preso dentro de um processo de ampliação da operação condor para muito além das fronteiras da América do Sul. São anarcos sendo presos e processados no Brasil, no Chile, na Espanha, Portugal, EUA, México, Grã Bretanha,etc. Sim, aprisionados pelo estado, este estado que se endossou ao propor coletivamente para toda a esquerda a suspensão da descrença em apoio à Dilma como “Mal menor” em relação a Aécio Neves.

E até pra nos defender perdemos o Chapolin colorado, único que nos defenderia dado que PSOL, PSTU, PT, todos majoritariamente fizeram e fazem parte do processo de criminalização de anarquistas e autonomistas sem pudor nenhum, e foram apoiados por parte do movimento anarquista nestas eleições de 2014. Ou seja, receberam um endosso, “continuem aprender nossos companheiros porque vocês são um mal menor em relação a Aécio, embora ambos, PT e PSDB, nos prendam e suspendam nossos direitos democráticos”.

Essa parte do movimento anarquista que optou pela acriticidade, pela suspensão da descrença pra seguir bovinamente a política do medo sem tentar usar o maldito cérebro ao menos uma vez pra ver holisticamente o tamanho da merda que estava fazendo merece ou não merece nosso parabéns?

Enfim, diante de um quadro da esquerda e anarquistas correrem atrás do próprio rabo como cães enlouquecidos por algum tipo de dor, coceira ou entorpecimento, temos um dos piores e mais brutalmente autoritários ministérios da história.

Para resistir ao que o governo aponta pelas nomeações que vai fazer precisávamos de movimento organizado ocupando as ruas e fazendo o país parar. Mas em vez disso temos o movimento abraçando o aprisionamento e a domesticação ao participar de uma frente única com o partido do próprio governo, ou seja, para que a resistência seja domesticada, se houver. Quem poderia fazer diferente deu um tiro na cabeça da própria militância que resistia diuturnamente à cooptação pelo PT ao ter suas principais figuras públicas endossando o governo Dilma no segundo turno de 2014.

Existem as Federações anarquistas e a maioria do movimento anarquista que resistiu à cooptação, embora este movimento também tenha sido abalado pela aderência dos anarquistas do terceiro milênio dos últimos dias, aqueles que mesclam Deleuze com Rui Falcão, ao dilmismo Coração Valente, que ao menso criaram no interior dos debates o vírus do medo. Mas estas federações e coletivos anarquistas são hoje o principal inimigo do Estado, são perseguidos, silenciados e só contam com o apoio das próprias mídias para sustentarem sua resistência.

O restante da esquerda optou por fazer eco à criminalização de anarquistas e autonomistas, ou se omitir diante disso, o que dá no mesmo.

Portanto, estamos sozinhos.

A esquerda partidária se juntou numa frente única burocratizada e construída em nome do pavor de ser atropelada por algo que não controla: a insatisfação popular. O quadro aponta para mobilizações fora de movimentos sociais organizados e partidos ou então danou-se.

Para isso nossas esperanças são nos movimentos contra os aumentos de passagem, as greves de garis, as mobilizações indígenas e quilombolas, as mobilizações contra o aquecimento global e a insistência para que lutadores não mais se organizem em partidos.

E mesmo essas esperanças enfrentarão um quadro de acirramento da repressão.

A vida será mais dura.

Domingos Passos: O “Bakunin Brasileiro”

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(Federação Anarquista do Rio de Janeiro-FARJ)

Fonte: FARJ

“Eram 5 horas quando me levantei. O Passos, acordado não sei desde que horas, estava sentado na cama, lendo o “Determinismo e Responsabilidade”, de Hamon. Tomei a toalha e desci, para banhar o rosto. Quando voltava do pateo, enxugando-me, vi dois individuos, que logo tomei pelo que realmente eram, de revolver em punho, dirigirem-se para mim, perguntando asperamente.

 – Onde está o Domingos Passos?

Prevendo uma dessas violencias de que o nosso querido companheiro tem sido tantas vezes victima, senti forte desejo de escondel-o e neguei sua presença, dizendo:

– Domingos Passos não mora aqui!”

Esse pequeno trecho do depoimento do operário Orlando Simoneck ao jornal A Pátria[1], tomado em 16 de março de 1923, expressa claramente alguns aspectos da situação então vivida por aquele rapaz mestiço, neto de avós índios[2], carpinteiro de profissão, anarquista e ativo sindicalista do ramo da construção civil: o “camarada Passos” era, já naquele ano, o alvo preferido da Polícia carioca e, se não o mais, um dos mais queridos e respeitados militantes operários do então Districto Federal. Outra característica notável de Domingos Passos, destacada no depoimento de Simoneck, era seu incansável autodidatismo, sua sede pela instrução e pela cultura, que o fazia varar as madrugadas devorando os livros da pequena biblioteca de Florentino de Carvalho, que morava naquela mesma casa da Rua Barão de São Félix, muito próxima da sede do seu sindicato.

Domingos Passos era natural do Rio de Janeiro, tendo nascido, provavelmente, na última década do século XIX[3]. Sua trajetória militante está em grande parte ligada à sua organização de classe, a União dos Operários em Construcção Civil (UOCC), fundada como União Geral da Construcção Civil (UGCC) em abril de 1917 (a UGCC havia sido, na verdade fundada em 1915, mas teve existência breve). Apenas 2 meses após a sua fundação, a UGCC já com mais de 500 filiados, conseguiu mobilizar mais de 20.000 trabalhadores para o sepultamento dos 13 operários mortos no desabamento do New York Hotel, que se transformou em uma grande manifestação contra a ganância patronal.

No rastro da greve geral iniciada em São Paulo após o assassinato do jovem sapateiro Martinez, a UGCC e outras associações de resistência declararam, em 22 de julho de 1917, a extensão do movimento para o Rio de Janeiro, tendo como conseqüência imediata o fechamento de várias sedes sindicais pela Polícia até o início de setembro e a prisão de vários militantes[4]. Outra conseqüência nefasta para a luta dos trabalhadores, foi o banimento da Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ), que só veio a ser substituída em 18 de janeiro de 1918 pela União Geral dos Trabalhadores (UGT).

Em 26 de junho de 1918, a UGCC mudou sua denominação para UOCC. Em outubro desse ano, a epidemia de gripe espanhola causou a morte de mais de 12.000 pessoas no Rio de Janeiro e a fome assolou a população trabalhadora, principalmente nos cortiços do Centro e nos subúrbios. Criou-se então, a partir da UOCC, o Comitê de Combate a Fome, que a despeito de sua intenção e da tragédia vigente, teve várias de suas reuniões interrompidas pela polícia e quase todos os seus integrantes presos[5].

Em 18 de novembro de 1918, a UOCC participou ativamente da tentativa de greve insurrecional, tendo sua sede novamente fechada durante a onda repressiva que se seguiu, desta vez por mais de 70 dias. Centenas de operários foram encarcerados e a UGT, com apenas 9 meses de vida, foi fechada por decreto federal.

Em abril de 1919, após um ano e meio de disputas internas entre os sindicalista revolucionários (anarquistas) e a “facção conservadora” da UOCC[6], os primeiros elegeram uma nova comissão executiva e conseguiram que a organização voltasse a ser regida pelas Bases de Acordo originais (em dezembro de 1917, um manobra dos conservadores havia “legalizado” um estatuto que previa os cargos de presidente e vice, e que nunca havia sido reconhecido pelos libertários).

Em maio de 1919, a UOCC conquistou finalmente às 8 horas de trabalho diário para a categoria e, em julho, vários de seus membros participaram da fundação do novo organismo federativo, a Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro (FTRJ).

Nos meses de setembro e outubro de 1919, uma feroz repressão foi desencadeada contra as associações de resistência do Rio de Janeiro. No dia 10 de setembro, a sede da UOCC e de várias outras entidades de classe foram atacadas pela Polícia, tendo sido efetuadas dezenas de prisões. No dia seguinte, a FTRJ convocou uma manifestação de protesto contra a violência policial, que degenerou em um conflito com a Força Pública, resultando feridos em ambos os lados.

Foi durante esse duro período que registramos a primeira aparição “oficial” de Domingos Passos, quando este foi eleito, em 16 de outubro de 1919, o 2o Secretário da UOCC e, em dezembro desse mesmo ano, 1o Secretário para o período de janeiro a julho de 1920[7]. Destacamos, no entanto, que o fato de Domingos Passos ter passado a ocupar tais cargos na organização em um momento tão difícil, indica que sua trajetória na UOCC vinha, no mínimo, de alguns meses antes.

Domingos Passos foi indicado, junto com José Teixeira[8], delegado da UOCC no 30 Congresso Operário Brasileiro (1920), quando foi eleito Secretário Excursionista da Confederação Operária Brasileira (COB)[9]. Ao ser escolhido para tal cargo, Passos certamente já se destacava no campo do proletariado organizado por sua inteligência e oratória, cultivada no cotidiano de lutas de sua categoria. Segundo Pedro Catallo[10], Passos era “dono de uma oratória suave, envolvente e agressiva o mesmo tempo, multiplicava a afluência aos comícios, desejosa de ouvi-lo falar. Depois, raramente chegava ao seu domicílio porque a polícia cercava-o no caminho e levava-o para o xadrez, onde repousava de quinze a trinta dias por vez”.

A repressão durante todo o governo Epitácio Pessoa foi brutal, com um sem número de deportações de militantes anarquistas, prisões, torturas e assassinatos, fechamentos de sindicatos e empastelamentos de jornais operários. Em outubro de 1920, a polícia dissolveu à bala uma passeata de trabalhadores na Avenida Rio Branco e, não satisfeita, novamente assaltou a sede da UOCC, ferindo 5 trabalhadores, prendendo 28 e, posteriormente, deportando 8 destes[11].

O movimento operário sentiu os golpes, e declinou a partir de 1921. Os sindicatos “amarelos” e “cooperativistas” se fortaleceram rapidamente, e passaram a disputar a hegemonia de diversas categorias com os sindicatos revolucionários. Entre os anarquistas, desmoronaram as esperanças na Revolução Russa, com a chegada das notícias sobre a repressão bolchevique, notadamente o massacre de Kronstadt, em março de 1921.

Em 16 março de 1922, nove dias antes da fundação do Partido Comunista, a UOCC publicou o documento Refutando as afirmações mentirozas do Grupo Comunista, declarando sua incompatibilidade com os “comunistas de estado”[12]. Este importante manifesto certamente teve a participação de Domingos Passos. Este, como outros militantes da Construção Civil foram, por toda a década de 1920, os oponentes mais ferrenhos e intransigentes da doutrina bolchevista, encarnando a consciência crítica e, em determinados aspectos, punitiva, dos quadros comunistas.

“Na Rússia, onde alguns membros do partido Communista, entronizados no poder, exercem a ditadura em nome do proletariado, estão sendo perseguidos, encarcerados e mortos todos os revolucionários da esquerda, mormente os combatentes anarquistas. Se é a obra de tal partido que os do Grupo Communista propagam e pretendem realizar, outra não pode ser a atitude da Construcção Civil, senão a de opozição à ditadura, e aos seus ditadores”.[13]

Em julho de 1922, no rastro do esmagamento da revolta dos tenentes do Forte Copacabana, a repressão fechou o jornal O Trabalho, órgão da UOCC, do qual Passos foi assíduo colaborador. Um novo bastião dos anarquistas na imprensa ficou a cargo de outro militante da Construção Civil, o carpinteiro e jornalista português José Marques da Costa, redator da Secção Trabalhista do jornal A Pátria.

Em 1923, continuamente perseguido pela polícia, Domingos Passos afastou-se da Comissão Executiva da UOCC e passou a se dedicar à propaganda e à organização federativa, tendo viajado duas vezes ao Estado do Paraná[14] para colaborar com sindicatos de resistência locais. Durante todo o primeiro semestre deste ano foi um dos principais articuladores da refundação da Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ), já que a FTRJ, sob o controle dos bolchevistas, agonizava e, cada vez mais, aproximava-se taticamente da Confederação Sindicalista Cooperativista Brasileira (CSCB), entidade que congregava desde sindicatos colaboracionistas até instituições reacionárias como a Liga de Defesa Nacional e o Centro Industrial do Brasil[15]. Quando a FORJ reapareceu, em 19 de agosto de 1923, Passos foi eleito para o Comitê Federal[16].

Assim como José Oiticica, Carlos Dias e Fábio Luz, Domingos Passos era freqüentemente convidado para conferências nas sedes sindicais. Também participava ativamente dos festivais operários, atuando nas peças teatrais organizadas pelo Grupo Renovação, declamando e palestrando sobre temas sociais. Certamente, foram esses festivais alguns dos poucos momentos de lazer que Passos usufruiu em sua vida de rapaz trabalhador e ativista sindical.

A FORJ, refundada por seis associações de classe (Construção Civil, Sapateiros, Tanoeiros, Carpinteiros Navais, Gastronômicos e o Sindicato de Ofícios Vários de Marechal Hermes), até meados de 1924 teve a adesão de mais cinco categorias importantes: Fundidores, Ladrilheiros, Ferradores, Metalúrgicos e Operários em Pedreiras. O sindicalismo revolucionário, a despeito da repressão estatal e das manobras bolchevistas, se fortalecia sob a orientação da FORJ, que organizava uma conferência intersindical e planejava para aquele ano o 4o Congresso Operário Brasileiro.

E é por isso, simplesmente por isso que dia a dia os trabalhadores vão abandonando os embusteiros, enveredando pelo caminho da organização operaria, não para fortalecer nenhum partido “socialista” ou burguez, e sim para fortalecerem a si mesmos, nos seus organismos de resistencia e de combate as explorações da sociedade actual.

Quando a organização operaria tiver attingido ao apogeu almejado, uma das suas principaes preocupações é a de atirar por terra não só o partido “socialista” (dito Communista) como todos os partidos.

Não é de partidos que precizamos. Os partidos são cacos e os cacos só tem uma utilidade: a de encher as “garys” e ir aterrar a Sapucaia[17].

Precizamos é de “inteiros” e estes só se conseguem com a “organização syndicalista revolucionaria”, que une, que eleva, que constroe.”[18]

Em julho de 1924, todo esse afã organizacional foi ceifado pela repressão que se seguiu à nova revolta dos tenentes, agora em São Paulo. As sedes sindicais foram invadidas e fechadas, centenas de anarquistas encarcerados e muitos deles deportados, entre estes Marques da Costa e Antônio Vaz. Domingos Passos foi um dos primeiros a serem presos e, após 20 dias de sofrimentos na Polícia Central[19], foi recolhido ao navio-prisão Campos, fundeado na Baía de Guanabara. Sua permanência por 3 meses na embarcação caracterizou-se por momentos de profunda privação e constrangimento. Transferido para o navio Comandante Vasconcellos[20], enfrentou mais 22 dias de suplícios junto a outras centenas de cativos (anarquistas, soldados e sub-oficiais sediciosos, ladrões, malandros, cáftens, imigrantes pobres e mendigos), inaugurando em dezembro de 1924[21] a fase prisional da Colônia Agrícola de Clevelândia, o “Inferno Verde” do Oiapoque, no atual Estado do Amapá.

Após alguns meses nessa “Sibéria Tropical”, onde os maus tratos e as doenças dizimaram centenas de homens, Domingos Passos conseguiu fugir para Saint George, na Guiana Francesa. Entretanto, as febres adquiridas na selva o obrigaram à buscar medicamentos em Caiena, tendo sido acolhido fraternalmente por um créole, que o ajudou a recuperar as forças[22]. Da Guiana, seguiu para Belém do Pará, onde permaneceu por algum tempo amparado pela solidariedade ativa do proletariado organizado daquela capital.

Domingos Passos estava entre os que retornaram ao Distrito Federal após o estado de sítio imposto por quase todos os quatro anos do governo de Arthur Bernardes (1923/1926). Ao chegar ao Rio de Janeiro, no início de 1927, retornou ao ativismo sindical, mesmo sofrendo das seqüelas do impaludismo, contraído no Oiapoque. Nesse mesmo ano, mudou-se para São Paulo, onde atuou na reorganização da Federação Operária local (FOSP) e na articulação do Comitê de Agitação Pró-Liberdade de Sacco e Vanzetti[23] ,criado no início de 1926, tendo ainda participado do 4o Congresso Operário do Rio Grande do Sul, realizado em Porto Alegre.

Em agosto de 1927 foi preso durante um meeting pró-Sacco e Vanzetti no Largo do Brás, e levado à temida “Bastilha do Cambucí”, onde permaneceu por 40 dias sujeito à toda sorte de maus tratos. Solto, saiu de São Paulo em direção ao Sul do país, perseguido em todos os cantos, conseguindo chegar a Pelotas, onde foi preso e embarcado à força em um navio para Santos[24]. Ao chegar nessa cidade, conseguiu fugir e voltar a São Paulo, vivendo oculto por algum tempo até que, em fevereiro de 1928, foi preso juntamente com o operário sapateiro Affonso Festa[25].

Segundo Pedro Catallo[26], por ordem do delegado Hibraim Nobre, Passos foi deixado incomunicável por mais de três meses em um cubículo de 2 m2 da “Bastilha do Cambuci”, escuro e sem janelas, recebendo alimentação apenas uma vez por dia. Ao ser retirado da cela imunda, tinha o corpo coberto de feridas e vestia apenas trapos. Foi embarcado em um trem e enviado para morrer nas matas da região de Sengés, no interior ainda selvagem do Estado do Paraná. Algum tempo depois, conseguiu abrigo neste povoado e pôde escrever para os camaradas de São Paulo solicitando dinheiro, que foi-lhe levado em mãos por um emissário.

Aí terminou a trajetória conhecida deste que foi um dos mais influentes e respeitados ativistas do anarquismo e do sindicalismo revolucionário de seu tempo. Nunca mais se teve qualquer notícia dele, apenas boatos esporádicos e nunca confirmados.

Não foi à toa que Domingos Passos ganhou de seus contemporâneos a alcunha de “Bakunin Brasileiro”. Poucos como ele se entregaram de tal forma ao Ideal e sofreram tanto as conseqüências dessa dedicação à luta pela emancipação dos homens e mulheres. Durante apenas uma década, em grande parte passada nas prisões e nas selvas tropicais, Passos tornou-se a grande referência de militância libertária e social de seu tempo…e do nosso também!

Nossos passos seguirão os seus, Passos!

Referências

1 A Pátria, Secção Trabalhista, 16/03/1923 (Seção de Periódicos, Biblioteca Nacional).

2 “Memórias” manuscritas de Pedro Catallo in Edgar Rodrigues. Os Companheiros 2. VJR Editores Associados Ltda. Rio de Janeiro, 1995.

3 Ibidem.

4 Leal, Juvenal. Histórico da União dos Operários em Construcção Civil (18 de março de 1917 a 31 de dezembro de 1919). Edição da União dos Operários em Construcção Civil, 1920. pgs. 10-12 (Acervo da Biblioteca Social Fábio Luz, também disponível no site http://www.insurgentes.nodo50.org).

5 Ibidem. pg.. 16

6 Ibidem. pg. 24.

7 Ibidem. pg. 28.

8 Rodrigues, Edgar. Nacionalismo & Cultura Social (1913-1922). Laemmert, 1972, p.307.

9 Ibidem. p. 314.

10 Rodrigues, Edgar. Os Companheiros 2, p. 26.

11 Rodrigues, Edgar. Nacionalismo & Cultura Social (1913-1922). p. 335-336.

12 UOCC .Refutando as afirmações mentirozas do Grupo Comunista. Edição da União dos Operários em Construcção Civil, 1922. (disponível no site http://www.insurgentes.nodo50.org).

13 Ibidem.

14 A Pátria, Secção Trabalhista, 08/07/1923.

15 Castro Gomes, Ângela. A Invenção do Trabalhismo. São Paulo: Vértice; Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988, p. 160.

16 A Pátria, Secção Trabalhista, 18/10/1923.

17 A Sapucaia era o depósito de lixo da cidade, situado no bairro do Caju, às margens da Baía de Guanabara, hoje cortado pela Linha Vermelha.

18 Passos, Domingos. Em frente – Ao Partido Communista. A Pátria, Secção Trabalhista, 04/05/1924. (disponível no site http://www.insurgentes.nodo50.org).

19 A Plebe, 26/02/1927.

20 Samis, Alexandre. Clevelândia: Anarquismo, Sindicalismo e Repressão Política no Brasil. São Paulo: Ed. Imaginário; Rio de Janeiro: Achiamé, 2002, p. 194.

21 A Plebe, 12/03/1927.

22 A Plebe, 26/02/1927.

23 Rodrigues, Edgar. Novos Rumos (História do Movimento Operário e das Lutas Sociais no Brasil, 1922-1946). Rio de Janeiro, Edições Mundo Livre, 1978.

24 Panfleto “Trabalhadores Conscientes, Procurae saber o paradeiro de Domingos Passos” (1928). Arquivo Biblioteca Social Fábio Luz.

25 Rodrigues, Edgar. Novos Rumos. op. cit. p. 278.

26 Ibidem, p. 279.

Decrescimento ou barbárie!

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Entrevista especial com Serge Latouche

Fonte IHU – Instituto Humanitas Unisinos

“O consumo diminuirá em substância, enquanto seu valor continuará aumentando”, avalia o economista francês Serge Latouche, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, a crise financeira e o caos ambiental instalados no planeta farão o capitalismo reencontrar “a lógica de suas origens, ou seja, crescer às custas da sociedade”. Ao ser questionado sobre a possibilidade de conciliar crescimento econômico e sustentabilidade, ele é enfático: “Impossível. É preciso renunciar ao crescimento enquanto paradigma ou religião”.

Segundo ele, o PIB não pode mais crescer, e a “única possibilidade para escapar ao pauperismo” é “retornar aos elementos fundamentais do socialismo”.

Serge Latouche, além de economista, é sociólogo, antropólogo, professor de Ciências Econômicas na Universidade de Paris-Sul e presidente da Associação Linha do Horizonte. É doutor em Filosofia, pela Université de Lille III, e em Ciências Econômicas, pela Université de Paris, diplomado em Estudos Superiores em Ciências Políticas, pela Université de Paris, e diretor de pesquisas. Entre suas publicações, citamos, La déraison de la raison économique (Paris: Albin Michel, 2001),  Justice sans limites – Le défi de l’éthique dans une économie mondialisée. (Paris: Fayard, 2003) e La pensée créative contre l’économie de l’absurde. (Paris: Parangon, 2003)

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido o decrescimento pode ser uma alternativa ao caos financeiro, do meio ambiente e do atual modelo econômico?

Serge Latouche – Se proclamarmos que o crash financeiro desencadeado pelo abuso dos subprimes é uma boa coisa, então, embora ele seja o iniciador de uma crise bancária e econômica que corre o risco de ser longa, profunda e talvez mortal para o sistema, podemos ser taxados de provocação. No entanto, para os opositores do crescimento, esta crise constitui o sinal anunciador do fim de um pesadelo.
Não se trata, por certo, de negar que esta crise irá atingir com o desemprego milhões de pessoas e gerar sofrimentos para os deserdados do Norte e do Sul. Porém, e acima de tudo, o decrescimento escolhido não é o decrescimento sofrido. O projeto de uma sociedade de decrescimento é radicalmente diferente do crescimento negativo, aquele que agora já conhecemos. O primeiro é comparável a uma cura de austeridade empreendida voluntariamente para melhorar o próprio bem-estar, quando o hiperconsumo vem nos ameaçar pela obesidade. O segundo é a dieta forçada, podendo levar à morte pela fome. Nós o dissemos e repetimos bastantes vezes. Não há nada pior do que uma sociedade de crescimento sem crescimento. Sabe-se que a simples desaceleração do crescimento mergulha nossas sociedades no descontrole, em razão do desemprego, do aumento do abismo que separa ricos e pobres, dos atentados ao poder de compra dos mais desprovidos e do abandono dos programas sociais, sanitários, educacionais, culturais e ambientais que asseguram um mínimo de qualidade de vida. Pode-se imaginar que enorme catástrofe pode originar uma taxa de crescimento negativo. Esta regressão social e civilizatória é precisamente o que nos espreita, se não mudarmos de trajetória.

IHU On-Line – Como manter o equilíbrio entre crescimento econômico e meio ambiente?

Serge Latouche – Impossível. É preciso renunciar ao crescimento enquanto paradigma ou religião.

IHU On-Line – Quais são os limites e as possibilidades de criar uma economia nova, mais sustentável? Quais seriam os seus princípios?

Serge Latouche – Hoje em dia, a festa acabou: já não há mais margens de manobra. A torta, isto é, o produto interno bruto, não pode mais crescer. Mais ainda (e nós o sabemos muito bem há longo tempo, embora nos recusemos a admiti-lo), a economia não deve crescer. A única possibilidade para escapar ao pauperismo, tanto no Norte como no Sul, é a de retornar aos elementos fundamentais do socialismo, mas sem esquecer, desta vez, a natureza: repartir o bolo de maneira equitativa. Ele era trinta a cinquenta vezes menor em 1848 e, no entanto Marx, mas também John Stuart Mill, já pensavam que o problema não era o volume da torta, mas sua injusta repartição! Como, crescendo, a torta se tornou cada vez mais tóxica – as taxas de crescimento da frustração, seguindo a fórmula de Ivan Illich, excedendo amplamente as da produção –, era inevitavelmente necessário modificar a receita. Inventamos, então, uma bela torta com produtos biológicos, de uma dimensão razoável para que nossos filhos e nossos netos pudessem continuar a produzi-la, e a compartilhamos equitativamente. As partes não serão talvez muito grandes para nos tornar obesos, mas a alegria estará no encontro marcado. Com outras palavras, ela nos oferece a oportunidade de construir uma sociedade ecossocialista e mais democrática. Tal é o programa do decrescimento, única receita para sair positiva e duradouramente da crise de civilização em que vivemos.

IHU On-Line – Como conciliar crescimento e decrescimento numa mesma sociedade?

Serge Latouche – Uma lógica de crescimento e um projeto de decrescimento são incompatíveis, mas o projeto de decrescimento visa fazer crescer a alegria de viver, restaurando a qualidade de vida (um ar mais sadio, água potável, menos estresse, mais lazer, relações sociais mais ricas etc.).

IHU On-Line – Alguns especialistas dizem que, com a crise internacional, a economia de muitos países irá desacelerar. Este processo poderá apresentar soluções concretas para o Planeta, ou, ao contrário, a desaceleração representa um processo negativo?

Serge Latouche – As duas opções são possíveis. Infelizmente, nem a crise econômica e financeira nem o fim do petróleo são necessariamente o fim do capitalismo, nem mesmo da sociedade de crescimento. O decrescimento só é viável numa “sociedade de decrescimento”, isto é, no quadro de um sistema que se situa sobre outra lógica. A alternativa é, por conseguinte, esta: decrescimento ou barbárie! Uma economia capitalista ainda poderia funcionar com uma grande escassez dos recursos naturais, um desregramento climático, o desmoronamento da biodiversidade etc. É a parte de verdade dos defensores do desenvolvimento durável, do crescimento verde e do capitalismo do imaterial. As empresas (pelo menos algumas) podem continuar a crescer, a ver sua cifra de negócios aumentar, bem como seus lucros, enquanto as fomes, as pandemias, as guerras exterminariam nove décimos da humanidade. Os recursos, sempre mais raros, aumentariam mais que proporcionalmente de valor. A rarefação do petróleo não prejudica, bem ao contrário, a saúde das firmas petroleiras. Se isso não vale da mesma forma para a pesca, existem substitutivos para o peixe, cujo preço não pode crescer na proporção de sua raridade. O consumo diminuirá em substância, enquanto seu valor continuará aumentando. O capitalismo reencontrará a lógica de suas origens, ou seja, crescer às custas da sociedade.

IHU On-Line – Qual é a marca socioecológica do Planeta? Já existe um déficit ecológico?

Serge Latouche – E como! Mais de 40%, segundo os últimos dados disponíveis. Nosso sobre-crescimento econômico se furta aos limites da finitude da biosfera. A capacidade regeneradora da Terra já não consegue mais seguir a demanda: o homem transforma os recursos em rejeitos mais rapidamente do que a natureza consegue transformar esses rejeitos em novos recursos (1).

Se tomarmos como índice do “peso” ambiental de nosso modo de vida sua “pegada” ecológica em superfície terrestre ou espaço bioprodutivo necessário, obtém-se resultados insustentáveis, tanto do ponto de vista da equidade nos direitos de extração da natureza quanto do ponto de vista da capacidade de carga da biosfera. O espaço disponível sobre o planeta Terra é limitado. Ele representa 51 bilhões de hectares.

Todavia, o espaço “bioprodutivo”, ou seja, útil para a nossa reprodução, é apenas uma fração do total, ou seja, em torno de 12 bilhões de hectares (2). Dividido pela população mundial atual, isso dá aproximadamente 1,8 hectares por pessoa. Tomando em conta as necessidades de materiais e de energia, aqueles que são necessários para absorver dejetos e rejeitos da produção e do consumo (cada vez que queimamos um litro de essência, nós necessitamos de cinco metros quadrados de floresta durante um ano para absorver o CO2!) e acrescentando a isso o impacto do habitat e das infraestruturas necessárias, os pesquisadores que trabalham para o Instituto californiano “Redifining Progress” [Redefinindo o progresso] e para o World Wild Fund (WWF) calcularam que o espaço bioprodutivo consumido por pessoa da humanidade era de 2,2 hectares na média.

Os homens já deixaram, portanto, a vereda de um modo de civilização durável que necessitaria limitar-se a 1,8 hectares, admitindo que a população atual permaneça estável. Desde já vivemos, portanto, a crédito. Além disso, este empreendimento médio oculta muito grandes disparidades. Um cidadão dos Estados Unidos consome 9,6 hectares, um canadense 7,2, um europeu 4,5, um francês 5,26, um italiano 3,8.

Mesmo havendo grandes diferenças no espaço bioprodutivo disponível em cada país, estamos bem longe da igualdade planetária. (2) Cada americano consome em média em torno de 90 toneladas de materiais naturais diversos, um alemão 80, um italiano 50 (ou seja, 137 kg por dia). Em outros termos, a humanidade já consome perto de 40% mais que a capacidade de regeneração da biosfera. Se todo o mundo vivesse como nós franceses, seriam necessários três planetas, e precisaríamos de seis para seguir nossos amigos americanos. Mesmo o Brasil já ultrapassa (em torno de 15%) a cifra sustentável.

Notas:

1.- WWF, Rapport planète vivant [Relatório planeta vivo] 2006, p. 2.
2.- Um hectare de pasto permanente, por exemplo, é considerado como equivalente a 0,48 ha de espaço bioprodutivo e, para uma zona de pesca, 0,36. Wackemagel, Mathis, O nosso planeta se está exaurindo. In: Economia e Ambiente. O desafio do terceiro milênio. EMI, Bolonha 2005. (Nota do entrevistado)
3.- Gianfranco Bologna (org.), Itália capaz de futuro. WWF-EMI, Bolonha, 2001, pp. 86-88. (Nota do entrevistado)