Entrevista: Eduardo Viveiros de Castro sobre Lévi-Strauss

Foto: Flor Pensée Sauvage

Foto: Flor Pensée Sauvage

Fonte: Epifenomenos

O etnólogo do Museu Nacional explica, nesta entrevista, o que distingue, para Lévi-Strauss, o pensamento em estado selvagem do pensamento científico.

Por Carolina Cantarino e Rodrigo Cunha

Etnólogo americanista, com experiência de pesquisa na Amazônia, professor e pesquisador do Museu Nacional, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, Eduardo Viveiros de Castro referiu-se recentemente a Lévi-Strauss, no último encontro da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs), como autor de uma obra de incrível versatilidade. Nesta entrevista, ele explica a abordagem de Lévi-Strauss sobre a distinção entre Natureza e Cultura, entre o pensamento selvagem e o científico, fala da universalidade do etnocentrismo, da importância do corpo para as culturas ameríndias e das relações entre mito, ciência e arte para Lévi-Strauss.

Em artigo publicado na revista Mana, o senhor afirma que a diferenciação entre Natureza e Cultura é, para Lévi-Strauss, o maior tema da mitologia ameríndia. Como ele descreve e interpreta essa diferenciação e quais os desdobramentos disso para a antropologia, em termos de novas interpretações ou revisões críticas?

Eduardo Viveiros de Castro – Com efeito, Lévi-Strauss afirma repetidas vezes, em sua obra, que a mitologia ameríndia – ou pelo menos aquela vasta porção da mitologia ameríndia que foi objeto de sua atenção ao longo de pelo menos sete livros – teria como tema central a diferenciação entre Natureza e Cultura. Interpretar essa afirmação aparentemente tão simples é, na verdade, tarefa bastante complicada, para a qual eu mesmo, entre outros colegas, venho tentando contribuir há vários anos. Em primeiro lugar, a dita diferenciação entre Natureza e Cultura é menos (ou mais) que umtema; ela é um problema para o pensamento indígena. Pois o tal tema central raras vezes se reduz, tanto no discurso mitológico como na análise levistraussiana do mesmo, a uma narrativa unívoca sobre a transcendência, conquista e domínio da Natureza pela Cultura, ao contrário do que se passa dominantemente em nossa mitologia ocidental (também conhecida pelo nome de “metafísica”). Ao contrário, os mitos, assim como seu analista, insistem sobre o caráter multiplamente problemático dessa separação: seja pelo alto preço que ela custa à espécie humana (a origem da cultura é costumeiramente associada, nos mitos, à origem da mortalidade, e à perda da comunicação linguística com os outros viventes do cosmos), seja pela remanência crucial de zonas, momentos ou fenômenos em que a separação se mostra incompleta ou impossível, seja, finalmente, por um poderoso impulso em direção contrária, uma “marcha regressiva” da Cultura em direção à Natureza que acompanha como uma sombra o movimento de separação, ao longo de toda essa mitologia. Na verdade, o percurso interpretativo empreendido por Lévi-Strauss dá testemunho de um progressivo deslocamento de ênfase, desde O cru e o cozido(1964) até História de Lince (1991), onde o caráter equívoco, ambivalente e problemático da separação entre Natureza e Cultura, vai predominando sobre um discurso “antropológico” ou hominizante. Esse deslocamento ecoa, por sua vez, a crescente indignação de Lévi-Strauss com as consequências suicidas da metafísica ocidental a respeito da “separação” entre Natureza e Cultura – estou-me referindo aqui à crise ecológica planetária.

Quando se pensa na abordagem de Lévi-Strauss sobre ciência, a primeira obra que tende a ser lembrada é O pensamento selvagem (1962), em que ele confere estatuto de pensamento aos mitos indígenas. Segundo Lévi-Strauss, a ciência ocidental teria acesso à natureza tal como é, enquanto que outras culturas fariam apenas imagens ou representações dessa natureza. Há outras possibilidades de se pensar a relação entre a ciência ocidental e o pensamento selvagem?

Viveiros de Castro O pensamento selvagem não versa sobre mitos indígenas, mas sobre certas disposições universais do pensamento humano: ameríndio, europeu, asiático ou qualquer outro. O “pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “primitivos” (em oposição ao “pensamento ocidental”), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em vista da obtenção de um rendimento. O pensamento selvagem não se opõe ao pensamento científico como duas formas ou duas lógicas mutuamente exclusivas. Sua relação é, antes, uma relação entre gênero (o pensamento selvagem) e espécie (o pensamento científico). Ambas as formas de pensamento se utilizam dos mesmos recursos cognitivos; o que as distingue é, diz Lévi-Strauss, o nível do real ao qual eles se aplicam: o nível das propriedades sensíveis (caso do pensamento selvagem), e o nível das propriedades abstratas (caso do pensamento científico). Mas a tendência, diz o autor, é que o pensamento científico, à medida em que avança, vá-se aproximando do pensamento selvagem, ao se mostrar capaz de incorporar as dimensões sensíveis da experiência humana em uma abordagem unificada, onde física e semântica não estão mais separadas por um abismo ontológico. Ou seja, o futuro da ciência não é se distanciar do pensamento selvagem, mas convergir com ele.

Para Lévi-Strauss, a visão de mundo indígena é tão etnocêntrica quanto a ocidental, e a distinção básica entre ambas estaria na relação entre corpo e alma. Como ele explica isso?


Viveiros de Castro
– A questão do etnocentrismo não passa pela distinção (ou pela indistinção) entre pensamento selvagem e pensamento domesticado. O que Lévi-Strauss diz é que existe uma tendência humana universal a tomar o próprio grupo como exemplo acabado da humanidade, e a ver os demais coletivos humanos (outras culturas, povos e sociedades) como exemplares menos perfeitos dessa humanidade e, no limite, como estando fora do escopo desse conceito. Isso é o chamado etnocentrismo. A universalidade de tal disposição, porém, não exclui diferenças importantes em seu modo de exercício e de manifestação. Assim, ao falar das percepções recíprocas da alteridade mobilizadas pela invasão e conquista européia das Américas, Lévi-Strauss insiste sobre a diferença radical entre o que chama de “abertura ao Outro”, característica do pensamento ameríndio, e o fechamento fanático dos europeus – fechamento político, filosófico, estético – diante da alteridade social e natural oferecida pelo Novo Mundo. As consequências políticas dessa diferença dispensam, creio, comentários.

Quais foram as principais contribuições de Lévi-Strauss acerca da importância do corpo para as culturas ameríndias, em obras como O cru e o cozido? Há releituras posteriores desses trabalhos que mereçam ser destacadas?

Viveiros de Castro – Ao mesmo tempo em que é um estudo formal dedicado às mitologias ameríndias, as Mitológicas, cujo primeiro volume é justamente O cru e o cozido, revelam também outra coisa, a saber, que os materiais simbólicos de que as sociedades indígenas lançam mão para se constituírem são refratários às categorias tradicionais da sociologia e da antropologia social. Princípios cosmológicos embutidos em oposições de qualidades sensíveis, uma economia simbólica da alteridade inscrita no corpo e nos fluxos materiais, um modo de articulação com a natureza que pressupõe uma socialidade universal (a diferenciação entre Natureza e Cultura de que falávamos não exclui, muito pelo contrário, um fundo comum de socialidade que atravessa todo o campo do vivente), são os materiais e processos que parecem tomar o lugar dos idiomas jurisdicistas e economicistas com que a antropologia descreveu as sociedades de outras partes do mundo, com seus feixes de direitos e deveres, suas corporações de parentesco perpétuas e territorializadas, seus elaborados regimes de propriedade e herança, seus modos de produção linhageiros… Longe de se constituírem em conteúdos “superestruturais” ou “culturais” das formações sul-americanas, esses materiais e processos articulam diretamente uma sociologia indígena.

Lévi-Strauss estabelece uma relação entre arte, mito e conhecimento. Muitos trabalhos contemporâneos em ciências humanas e sociais costumam ver a arte como único conhecimento, hoje, capaz de questionar politicamente a ciência, inclusive nos seus princípios operatórios. Como pensar essa relação entre mito, ciência e arte, partindo de Lévi-Strauss?

Viveiros de Castro – A arte é, para Lévi-Strauss, como que o refúgio ecológico do pensamento selvagem dentro do mundo racionalizado e tecnicizado das sociedades modernas. Na arte, ainda é lícito sermos “selvagens”, no bom sentido que o adjetivo sempre tem na pena de Lévi-Strauss. O mestre francês não entende, porém, ao contrário desses trabalhos contemporâneos mencionados pela pergunta (e que confesso ignorar completamente quais sejam), que a arte, ou o mito, possuam qualquer superioridade sobre a ciência. Ao contrário, Lévi-Strauss afirma repetidas vezes que a ciência é uma aquisição fundamental da espécie, e que o tipo de conhecimento tornado possível pela ciência é de um valor inestimável, ao qual nem o mito nem a arte podem pretender. Não há como transformar Lévi-Strauss em um profeta anti-científico! Mas ele certamente não é, por outro lado, um admirador incondicional da civilização que gerou a ciência (e que é até certo ponto gerida por ela, ou pior, que pensa sê-lo); muito pelo contrário. E também é certo que Lévi-Strauss vê na arte a expressão máxima do gênio humano. A arte é para ele, no final das contas (assim me parece), um modelo para a ciência, essa forma de conhecimento que em seus momentos culminantes se aproxima da arte. O mito representa para Lévi-Strauss aquele momento quase-adâmico da história cognitiva da espécie, quando a arte e a ciência ainda não haviam tomado rumos distintos. E o futuro do pensamento humano – se é que há um – não poderá consistir senão em um movimento em espiral de volta à região onde impera, inesgotável, o impulso gerador do mito.

Extraído de : Revista Com Ciência, No. 114 – 10/12/2009

Anarquismo, parlamentarismo e democracia, por Miguel Amorós

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Miguel Amorós

Fonte: La Haine

Quando durante a Revolução Francesa se tratou de instituir a democracia como poder do “povo” ou da nação – entendido como o poder do “terceiro estado” -, surgiram imediatamente graves problemas entre a maioria do tal “povo” e o Governo, nomeados como seus “representantes” eleitos.

A democracia popular baseada em clubes, seções e assembleias entrava em contradição com a democracia parlamentar jacobina. O Governo, a Convenção, as instituições nacionais, as leis e o sufrágio não garantiam a liberdade e a igualdade mais do que as classes possuidoras. Um setor radical dos “descamisados” de Paris (o povo parisino), os “Enragés”, no manifesto que apresentou na câmara de deputados no dia seguinte após ter sido votada a Constituição, no dia 25 de junho de 1793, afirmaria que: “A liberdade não é mais que um fantasma vão, quando um tipo de gente pode matar de fome a outra, impunemente. A igualdade não é mais que um fantasma vão, quando o rico, graças ao monopólio, dispõe do direito à vida e à morte sobre seus semelhantes”.

O experimento constitucional e parlamentar fracassaria devido à forte oposição entre os interesses das classes detentoras e os das classes populares. O “povo” não era mais que algo irreal. No parlamento não se manifestava nenhuma “vontade popular” senão os interesses da classe dominante. Não podia ter liberdade real sem igualdade econômica e a fonte de tal desigualdade radicava na propriedade. “O que é a propriedade? A propriedade é um roubo”, responderia Proudhon. E seguia: “a liberdade é igualdade, porque a liberdade não existe senão no estado social”. A questão da propriedade dividiu os democratas revolucionários e alcançou sua maior amplitude quando entrou em cena o proletariado e os “democratas sociais” – Marx, Proudhon e Bakunin se chamaram assim – identificaram seus interesses com os de todos os oprimidos. A tão desgastada vontade popular não seria outra coisa que não o interesse “da imensa maioria”, a saber, os operários. A “democracia social” equivaleria a um regime cujo protagonista principal seria a classe operária. Para uns, esse regime seria comunista. O jovem Marx acreditava que “o comunismo era a solução ao enigma da história”. Proudhon, em contrapartida, rechaçava as formulações autoritárias dos primeiros comunistas e se inclinava pela “organização das forças econômicas sob a lei suprema do contrato”, ou seja, pela propriedade cooperativa ou coletiva dos meios de produção, das “associações operárias organizadas democraticamente” e livremente federadas. Frequentemente, levaram-lhe pouco em consideração e o colocaram ao lado dos “utópicos”, isso quando não lhe tacharam de representante do “socialismo burguês”, tal como lhe qualificara injustamente Marx no Manifesto. Entretanto, Proudhon foi o primeiro que formulou uma crítica social especificamente proletária e a ele corresponde a crítica política do sistema parlamentar burguês mais incisiva, a que deu impulso ao ideário operário anarquista.

Para Proudhon, a autoridade chamada de Governo ou Estado, existente por cima da “vontade popular”, representava o mesmo despotismo dos reis, pois “o que compõe a realeza não é o rei, não é a herança; é o acúmulo dos poderes; é a concentração hierárquica de todas as faculdades políticas e sociais em uma só e indivisível função, que é o governo, este representado por um príncipe hereditário, ou também por um ou vários mandatários imóveis e eleitos”. A falha do sistema representativo estava na delegação de poderes, causa da separação entre governantes e governados: “Hoje mesmo, temos exemplos vivos de que a democracia mais perfeita não garante a liberdade. E isso não é tudo: o povo rei não pode exercer a soberania por si mesmo; está obrigado a delegá-la aos encarregados do poder. Se estes funcionários são cinco, dez, cem, mil, que importa o número ou o nome? Sempre será o governo do homem, o império da vontade e do favoritismo”. Se nenhum indivíduo reconhecesse mais autoridade que ele mesmo, se o povo inteiro quisesse realmente governar, não haveria governados. A impossibilidade de refletir-se a vontade do povo em uma autoridade delegada, exterior a ele, é o que forçava Proudhon a se declarar anarquista, partidário da abolição de qualquer forma de autoridade e chamar de “anarquia” o regime dos homens livres e iguais: “anarquia, ausência de amo, de soberano, tal é a forma de governo à que cada dia nos aproximamos”. A vontade popular somente podia se manifestar sem mediações, de modo direto. O governo do povo era uma falácia; se havia governo, não havia povo e vice-versa; se realmente um povo conseguisse se constituir, exercendo o poder diretamente, sem mediações, o governo não existiria. A anarquia era o governo de todos, e, portanto, o de ninguém: “a fórmula revolucionária não pode ser nem a legislação direta, nem governo direto, nem governo simplificado; a fórmula é nada de governo”. Bakunin contribuiu bem pouco para a análise proudhoniano. Partindo da premissa de que o governo tinha opção de ser verdadeiramente popular e representativo só se estava controlado pelo povo, como tal controle era fictício não existiu em nenhum país, concluía que a liberdade sob tal regime era irreal: “Todo o sistema do governo representativo é uma imensa fraude que se apoia nesta ficção: que os corpos legislativo e executivo, eleitos em sufrágio universal pelo povo, devem ou até podem representar a vontade do povo”. Esses poderes promoviam unicamente os poderes da burguesia. O sufrágio universal, dadas a desigualdade e a opressão em que se encontrava o povo trabalhador, era uma zombaria; votando, cada um elegia seu patrão. Devido a sua miséria, a sua falta de formação, à pouca disponibilidade de tempo, à ausência de informação, à inexistência de espaços de discussão etc., o povo não podia formular uma opinião geral e, por conseguinte, não podia utilizar o sufrágio universal “para a conquista da igualdade econômica. Sempre será de forma necessária um instrumento hostil ao povo, que de fato apoia a ditadura de fato da burguesia”. Malatesta chegou a dizer que “o direito eleitoral é o direito de renúncia aos próprios direitos”. O mesmo raciocínio circular há em Bakunin e Malatesta como em Proudhon: o governo não podia ser representativo porque a vontade popular não podia se formular através dele; si o fizesse, seria representativo, mas já não seria governo. A identidade entre governantes e governados, essência verdadeira da democracia, não podia se realizar mediante um governo parlamentar senão mediante sua abolição. As ideias proudhonianas de autonomia operária inspiraram os internacionalistas durante a Comuna de Paris (1871). Tanto Bakunin como o próprio Marx viram na Comuna a democracia proletária e a negação do Estado.

Na Espanha, país pouco afetado pela revolução industrial, e portanto, com um proletariado pouco desenvolvido, as ideias igualitárias e “socialistas” (contrárias à propriedade privada) foram filtradas pelos movimentos radicais da burguesia. A palavra “democrata”, em seus inícios, designava na política algo parecido com anarquista. No “Dicionário dos Políticos” (1855), do monarquista Juan Rico e Amat, dizia-se que “o democrata puro é inimigo acérrimo de tudo o que se relacione ao governo”; o democrata confiava na insurreição como método para alcançar seu objetivo, a igualdade política: “Se pertence à classe mediana, nunca usa “senhor”; sempre se chama fulano de tal apenas: gosta de tratar por “você” e de dar a mão aos de classe baixa, e nos pronunciamentos, chama de cidadãos os homens e de cidadãs as mulheres”. Uma fração dos democratas, os republicanos federais, trataram de conciliar o problema da mediação entre o povo e o Estado recorrendo à descentralização administrativa.

Nas palavras de Pi e Margall, tradutor de Proudhon: “Na atual organização, o Estado administra tudo; na federação, o Estado, a Província e o Município são três entidades igualmente autônomas, ligadas por pactos sinalagmáticos e concretos. Tem cada uma determinada sua esfera de ação pela mesma índole que os interesses que representa e podem todos moverem-se livremente sem que se entrechoquem”. A República Federal, governo do povo soberano, não seria mais do que a soma federada desses pactos. Mas para se constituir o povo primeiro teria que se romper o Estado monárquico, de forma que seus fragmentos autônomos decidissem livremente se confederarem. O partido federal, ao propugnar o desmembramento do Estado, se situava contra todos os demais partidos, mas mantinha distância do proletariado. Acreditava na harmonia das classes, respeitava a propriedade e era inimigo das greves e demais manifestações da luta social, e por isso bastou apenas que surgisse a Associação Internacional de Trabalhadores na Espanha para que perdesse o apoio dos militantes operários. Sua oportunidade histórica sumiu com o fracasso da Primeira República, a de 1873; não obstante, a ideia do município como célula da sociedade livre penetrou tão fundo como o pensamento de Bakunin, transmitido aos trabalhadores espanhóis pelos internacionalistas.

A distância entre As Cortes espanholas e a realidade social foi tão grande durante o século XIX que as massas populares, normalmente alheias à política, receberam as ideias anarquistas com agrado. O sistema político da Restauração baseado na alternância de dois partidos monarquistas artificiais não fez senão contribuir à identificação entre política, corrupção e coronelismo [em espanhol, caciquismo, que significa, segundo a RAE “Intromissão abusiva de uma pessoa ou uma autoridade em determinados assuntos, valendo-se de seu poder ou influência”; nota do tradutor]. Não obstante, um setor do movimento operário, o partido socialista, aceitou as regras do jogo e exerceu oposição junto com as minorias republicanas, enquanto à margem se desenvolvia um potente sindicalismo revolucionário. Entre 1916 e 1923 a CNT foi capaz de desenvolver uma democracia operária alheia completamente à política e consolidada pela solidariedade de classe, a base de assembleias sindicais, plenárias, palestras e congressos, o que alarmou tanto as classes detentoras que estas substituíram sua democracia coronelista [em espanhol, caciquista; cf. nota n°1] pela ditadura militar do general Primo de Rivera. A clandestinidade arruinou as possibilidades do sindicalismo revolucionário e arrastou seus dirigentes ao terreno das conspirações políticas e do possibilismo. A CNT entrou nela dividida entre moderados e revolucionários, para não pretender mais do que ser bucha de canhão em uma coalizão de partidos e personalidades opostas à ditadura e à monarquia, que abandonadas por seus aliados, caíram. A Segunda República não tratou bem os trabalhadores. A posição a respeito da República e a seu sistema parlamentar dividiu os anarcossindicalistas entre partidários de uma linha insurrecional e partidários da permanência dentro da legalidade republicana. Para os segundos, o abstencionismo, as alianças políticas ou inclusive a participação institucional eram questões táticas, não princípios. Enquanto isso, o avanço do proletariado tinha dividido a burguesia em duas metades opostas: uma, reformista, representada por partidos republicanos, e outra, militarista e clerical, representada pelo partido radical e pela direita. Quando a aliança direitista subiu ao poder – graças a umas eleições nas que as mulheres votavam pela primeira vez – teve de se enfrentar duas tentativas de insurreição, que terminaram enchendo as prisões de operários. Os anarquistas tiveram que atar novamente relações com seus inimigos de ontem, a burguesia republicana, parar separar do poder a outros muito piores, a burguesia fascista. Então renunciaram ao seu tradicional abstencionismo, e, embora não hajam convocado o voto em fevereiro de 1936, tampouco convocaram a abstenção. Entre os anarquistas se impunha uma tendência revolucionária que considerava a participação eleitoral como uma tática destinada a resistir ao fascismo. Durruti o expressou claramente com a seguinte instrução: “estamos diante da revolução ou da guerra civil. O operário que não votar e ficar também em sua casa, será outro contrarrevolucionário”.

A questão principal não era o temido triunfo da direita, mas sim o fracasso eleitoral que impulsionaria o golpe de estado. Para Durruti, o triunfo eleitoral dos socialistas e republicanos permitia ganhar tempo, mas somente um movimento revolucionário poderia detê-las de fato: “O fascismo, ou Revolução Social”, tal era sua conclusão. Como tanto a sublevação militar como a revolução social triunfaram meio a meio e se desencadeou uma guerra civil ficando o proletariado isolado internacionalmente, o “antifascismo” deixou de ser uma tática antiburguesa para acontecer colaboracionismo de classes. O Estado, o Governo, a Nação, as instituições democráticas, as leis, os partidos, a própria burguesia, foram valorados de modo diferente como habitualmente o haviam sido. O anarquismo saiu profundamente alterado da guerra civil e nunca se recompôs desde então.

O sistema parlamentar voltou à Espanha em 1977 como prolongamento da ditadura franquista. A vontade popular só podia se formular em torno da democracia proletária das assembleias. Unicamente o proletariado constituído politicamente como classe em coordenações ou conselhos operários podia encarnar o interesse da imensa maioria. Mas quem realmente se constituiu como nação, como “povoado”, foi a burguesia franquista. Longe de dissolver as instituições fascistas, pactuou a desativação do movimento operário em troca de um espaço político para a oposição. O exílio pôde regressar sem compensações, sequer morais: a oposição tinha assinado também um pacto de silêncio: o esquecimento do genocídio do pós-guerra civil e dos anos de perseguições e sofrimentos. O franquismo anistiado legalizou os partidos e sindicatos e convocou eleições, livrando-se de cadáveres como As Cortes, a CNS ou o Movimento Nacional, mas guardou íntegro seu aparato, que se transformou no aparato da nova “democracia”. A polícia, a Justiça, a Monarquia, a guarda civil, o Exército, os deputados, os governos civis e militares, as capitanias, a diplomacia, a administração, os serviços secretos…; tudo, absolutamente tudo, permaneceu intocável. Nem as eleições, nem o processo constituinte nascido delas afetaram à burocracia estatal ou à burguesia. Um partido nascido do franquismo, a UCD, comandou o processo de “transição” – ou acordou a “reforma” – em suma, o sobrevir democrático da ditadura, auxiliado pela oposição: esse foi o “contrato social” da democracia espanhola. O advento da “democracia” – as eleições municipais, as duas câmaras, o sindicalismo reformista, os Pactos da Moncloa, a constituição, os estatutos de autonomia – foi uma sinistra comédia que teve como preço a liquidação da democracia socialista esboçada pelos trabalhadores. Representou-se quando o sistema parlamentar no mundo subsistia como caricatura. O Parlamentarismo espanhol teve todas as misérias dos demais e nenhuma de suas glórias. Todos os partidos eram partidos de ordem burguesa. Votar significou em seu primeiro momento adoecer voluntariamente de amnésia e colaborar com a farsa, legitimá-la, sujar-se com o sangue dos mortos que até o fim acompanharam o franquismo. O anarquismo precisava de uma revisão a fundo de sua experiência que queria passar a borracha naquelas datas cruciais. Ao não o fazer, não pôde renovar sua crítica, nem tornar concreta uma tática, e não influenciou nos acontecimentos. Acabou sem se inteirar de nada, convertido numa ideologia autista e contemplativa, apoiada em um relato sem contradições de um passado histórico mutilado. Os efeitos foram paralizadores.

A transformação da classe operária em massa sem classe acabou com a possibilidade de que ela mesma pudesse alçar-se como representante do interesse geral e encarnar a vontade popular nas formas da democracia direta que tinha conseguido pôr de pé nas fábricas e nos bairros. O reino indiscutível do capital transformou em pouco tempo a sociedade graças a um desenvolvimento acelerado da tecnologia. As características próprias das massas, como a atomização, a movimentação frenética, o consumismo e o confinamento na vida privada, se acentuaram na sociedade tecnológica, eliminando os restos de sociabilidade e potenciando o controle social totalitário. Ao ganhar preponderância o mercado mundial sobre os Estados, os parlamentos perderam o escasso poder que conservavam. Nem sequer serviam para formular o interesse específico da classe dominante; este se formava diretamente nas instituições mundiais do mercado capitalista. A maioria parlamentar de tal ou qual partido podia introduzir mudanças no espetáculo político, mas na verdade essas mudanças afetavam o poder real. Os aspectos técnicos do parlamentarismo – a campanha, a recontagem de votos, os debates televisivos, as votações nas câmaras, as moções, as comissões etc. – foram conservados, mas o que progredia era o monólogo da dominação, a tecnovigilância, a erosão do direito, a criminalização da dissidência e a população carcerária. Nesse momento se concluía um ciclo: os partidos deixavam de representar opções distintas da mesma ordem para não representar mais do que interesses particulares e de particulares, o que bastaria para explicar a extensão do fenômeno da corrupção política. Por sua parte, o sistema parlamentar deixava de se diferenciar da ditadura fascista. Fascismo tão suave como se queira dizer, fascismo tecnológico, mas fascismo. Na etapa globalizadora as liberdades aparentes pouco a pouco se afogam num estado de exceção e o estado tecno-democrático se dirige para o Estado penal. A política do ano 200 é a do “panóptico” de Bentham ou a do “Big brother”, o Grande Irmão do qual falava Orwell. Nestas circunstâncias a abstenção é mero reflexo da dignidade dos oprimidos. As razões táticas do tipo “para que não ganhe a direita” não atrasam a marcha do totalitarismo, ou como sempre se disse, do “fascismo”, mas sim contribuem com ela. Tal como estamos agora, quando dizem “cidadão”, é preciso entender “fascista”, pois quem acredita nas instituições, confia no novo totalitarismo. A cidadania satisfeita é a base do fascismo moderno. Não há direita nem esquerda porque não há política. Os assuntos do poder se resolvem em outra parte, são extraparlamentares. A luta social também o será.

Aqueles núcleos de discussão que sobrevivem ou se organizam têm sobre suas costas a missão de reconstruir retalhos de vida pública e de democracia direta dentro de uma sociedade massificada que não sejam efêmeros experimentos. E a partir deles forjar opiniões, discutir, informar, instruir, enfim, ligar à memória esquecida e às tradições perdidas de luta. É o conhecimento com que se terá de enfrentar à classe dominante e seu totalitarismo tecnófilo. Saberão interpretar as questões tecnológicas como problemas políticos e sociais da maior magnitude, pois lutam contra um regime totalitário fascista com roupagem liberal e nos sistemas desse tipo as verdadeiras questões aparecem como se fossem problemas técnicos. “A tecnologia é o futuro”, dizem os servos. O anarquismo, se souber escapar das armadilhas da ideologia, será o instrumento teórico mais adequado para forjar uma crítica radical da sociedade, porque é o único ideário que insistiu na democracia direta como fórmula emancipadora. Enquanto que as teorias comunistas puseram em destaque a igualdade como condição necessária da liberdade humana, sem que a travessia por fases autoritárias as afetasse, em troca, o anarquismo proclamou que sem liberdade não pode ter igualdade, e, por conseguinte, o caminho da emancipação estará fecundado por ela.

A política sexual, o surgimento do Estado e a contrarrevolução (nota sobre a prostituição), por Silvia Federici

Albrecht Dürer, A queda do homem (1510) Esta cena impactante sobre a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Éden evoca a expulsão dos camponeses de seus campos comuns, que começava a ocorrer na Europa oriental exatamente ao mesmo tempo em que Dürer produzia este trabalho.

Fonte: Notícias y Anarquía
Tradução: José Roberto de Luna

Os seguintes fragmentos correspondem à parte final do capítulo 1, “O mundo inteiro precisa de uma sacudida”, do livro Calibã e a Bruxa de Silvia Federici. Recomendo que não se faça uma interpretação limitada do pensamento federiciano sobre a prostituição a partir destes fragmentos, pois ao longo do livro Silvia Federici continua abordando o tema da prostituição de diversas perspectivas. As ilustrações e legendas correspondem à edição original do Livro. Saudações. N&A.

A fins do século XV, se pôs em marcha uma contrarrevolução que agia em todos os níveis da vida social e política. Em primeiro lugar, as autoridades políticas realizaram importantes esforços para cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes por meio de uma maliciosa política sexual, que lhes deu acesso a sexo gratuito e transformou o antagonismo de classe em hostilidade contra as mulheres proletárias. Como demonstrou Jacques Rossiaud em Medieval Prostitution (1988) [A prostituição medieval], na França as autoridades municipais praticamente deixaram de considerar o estupro de mulheres proletárias como delito nos casos em que as vítimas foram mulheres de classe baixa. Na Veneza do século XIV, o estupro de mulheres proletárias solteiras poucas vezes tinha como consequência algo mais que um puxão de orelhas, inclusive no caso frequente de um ataque em grupo (Ruggiero, 1989: 94, 91-108). O mesmo acontecia na maioria das cidades francesas. Nelas, a violação em bando de mulheres proletárias se transformou numa prática comum, que os autores realizavam aberta e ruidosamente pela noite, em grupos de dois a quinze, entrando nas casas ou arrastando as vítimas pelas ruas sem a mínima tentativa de se esconder ou dissimular. Quem participava nestes “esportes” eram aprendizes ou empregados domésticos, jovens e filhos das famílias acomodadas sem um centavo no bolso, enquanto que as mulheres eram garotas pobres que trabalhavam como criadas ou lavadeiras, de quem se espalhava que eram “possuídas” por seus amos (Rossiaud, 1988:22). Quase todos os jovens participaram alguma vez destes ataques, que Rossiaud descreve como uma forma de protesto de classe, um meio para que homens proletários – forçados a adiar seu matrimônio durante muitos anos devido a suas condições econômicas – cobravam “o seu” e se vingavam dos ricos. Mas os resultados foram destrutivos para todos os trabalhadores, assim que o estupro de mulheres pobres com consentimento estatal debilitou a solidariedade de classe que se alcançara na luta anti-feudal. Como se esperava, as autoridades perceberam os distúrbios causados por semelhante política (as algazarras, a presença de bandos de jovens perambulando pelas ruas em busca de aventuras e perturbando a tranquilidade pública) como um pequeno preço a pagar em troca da diminuição das tensões sociais, já que estavam obcecados pelo medo das grandes insurreições urbanas e da crença de que se os pobres conseguissem se impor, empoderariam suas esposas e as colocariam em igualdade (ibidem: 13).

Para estas mulheres proletárias, tão arrogantemente sacrificadas por amos e servos, o preço a pagar foi incalculável. Uma vez estupradas, não lhes era fácil recuperar seu lugar na sociedade. Com sua reputação destruída, tinham que abandonar a cidade ou se dedicar à prostituição (ibidem/ Ruggiero, 1985: 99). Mas não eram as únicas que sofriam. A legalização do estupro criou um clima intensamente misógino que degradou todas as mulheres, qualquer que fosse sua classe.

Também insensibilizou a população ante à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período. As primeiras condenações por bruxaria tiveram lugar a fins do século XIV; pela primeira vez a Inquisição registrou a existência de uma heresia e uma seita de adoradores do demônio completamente feminina.

Bordel, de uma impressão alemã do século XV. Os bordéis eram vistos como um remédio contra a luta social, a heresia e a homossexualidade.

Outro aspecto da política sexual fragmentadora que príncipes e autoridades municipais executaram com o fim de dissolver o protesto dos trabalhadores foi a institucionalização da prostituição, implementada a partir do estabelecimento de bordéis municipais que logo proliferaram por toda Europa. Possibilitada pelo regime de salários elevados, a prostituição gerida pelo Estado foi vista como um remédio útil contra a turbulência da juventude proletária, que podia desfrutar em La Grand Maison – como era chamado o bordel estatal na França – de um privilégio previamente reservado a homens mais velhos (Rossiaud, 1988). O bordel municipal também era considerado como um remédio contra a homossexualidade (Otis, 1985), que em algumas cidades europeias (por exemplo, Pádua e Florência) se praticava ampla e publicamente, mas que depois da Peste Negra começou a ser temida como causa de despovoação. (34)

Assim, entre 1350 e 1450 em cada cidade e aldeia da Itália e da França se abriram bordéis, geridos publicamente e financiados através de impostos, em uma quantidade muito superior à alcançada no século XIX. Em 1453, só Amiens tinha 53 bordéis. Além disso, eliminaram-se todas as restrições e penalidades contra a prostituição. As prostitutas podiam agora abordar seus clientes em qualquer parte da cidade, inclusive defronte à igreja e durante a missa. Já não estavam atadas a nenhum código de vestimenta ou a usar marcas distintivas, pois a prostituição era oficialmente reconhecida como um serviço público (ibidem: 9-10).

Inclusive a própria Igreja chegou a ver a prostituição como uma atividade legítima. Cria-se que o bordel administrado pelo Estado provia um antídoto contra as práticas sexuais orgiásticas das seitas hereges e que era um remédio para a sodomia, assim como também um meio para proteger a vida familiar.

Torna-se difícil discernir, de forma retrospectiva, até que ponto essa “cartilha sexual” ajudou o Estado a disciplinar e dividir o proletariado medieval. O que é verdade é que este new deal foi parte de um processo mais amplo que, em resposta à intensificação do conflito social, conduziu à centralização do Estado como o único agente capaz de afrontar a generalização da luta e a preservação das relações de classe.

Neste processo, como se verá mais adiante, o Estado se converteu no gestor supremo das relações de classe e no supervisor da reprodução da força de trabalho – uma função que continua realizando até o dia de hoje.

Levando à frente esta função, os funcionários de muitos países criaram leis que estabeleciam limites ao custo do trabalho (fixando o salário máximo), proibiam a vadiagem (agora castigada duramente) (Geremek, 1985: 61 e sg.) e incentivavam os trabalhadores a se reproduzirem.

Em última instância, o crescente conflito de classes provocou uma nova aliança entre a burguesia e a nobreza, sem a qual as revoltas proletárias não teriam podido ser derrotadas. De fato, é difícil aceitar a afirmação que frequentemente fazem os historiadores de acordo com a qual estas lutas não tinham possibilidade de êxito devido à limitação de seu horizonte político e “à confusão de suas demandas”. Na verdade, os objetivos dos camponeses e artesãos eram absolutamente transparentes. Exigiam que “cada homem tivesse tanto como qualquer outro” (Perenne, 1937: 202) e, para conseguir este objetivo, uniam-se a todos aqueles “que não tivessem nada a perder”, agindo conjuntamente, em diferentes regiões, sem medo de se enfrentarem com os bem treinados exércitos da nobreza, e isto embora carecessem de técnicas militares.

Se foram derrotados, foi porque todas as forças do poder feudal – a nobreza, a Igreja e a burguesia -, apesar de suas divisões tradicionais, enfrentaram-nos de forma unificada por medo de uma rebelião proletária. Efetivamente, a imagem que chegou até nós de uma burguesia em guerra perene contra a nobreza e que levava em suas bandeiras a busca pela igualdade e pela democracia é uma distorção. Na Baixa Idade Média, onde quer que olhemos, de Toscana até Inglaterra e os Países Baixos, encontramos a burguesia já aliada com a nobreza na eliminação das classes baixas. (35) A burguesia reconheceu, tanto nos camponeses como nos costureiros e sapateiros democratas de suas cidades, um inimigo muito mais perigoso que a nobreza – um inimigo que inclusive fez que valesse a pena sacrificar sua apreciada autonomia política. Assim foi como a burguesia urbana, depois de dois séculos de lutas para conquistar a plena soberania dentro das muralhas de suas comunas, restituiu o poder da nobreza se subordinando voluntariamente ao reinado do Príncipe e dando assim o primeiro passo no caminho para o Estado Absoluto.

John Hus martirizado em Gottlieben sobre o Rin em 1413. Depois de sua morte, suas cinzas foram jogadas ao rio.

Alberto Durero, a queda do homem (1510)

Esta cena impactante sobre a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Éden evoca a expulsão dos camponeses de seus campos comuns, que começava a ocorrer na Europa oriental exatamente ao mesmo tempo em que Durero produzia este trabalho.

John Hus martirizado em Gottlieben sobre o Rin em 1413. Depois de sua morte, suas cinzas foram jogadas ao rio.

Notas

34- assim, a proliferação de bordéis públicos esteve acompanhada por uma campanha contra os homossexuais que se estendeu inclusive a Florência, onde a homossexualidade era uma parte importante do tecido social “que atraía homens de todas as idades, estados civis e níveis sociais”. A homossexualidade era tão popular em Florência que as prostitutas costumavam usar roupa masculina para atrair seus clientes. Os sinais de mudança vieram de duas iniciativas introduzidas pelas autoridades em 1403, quando a cidade proibiu os “sodomitas” de receberem cargos públicos e instituiu uma comissão de controle dedicada a extinguir a homossexualidade: a Oficina da Decência. Significativamente, o primeiro passo que deu a oficina foi preparar a abertura de um novo bordel público, de tal maneira que, em 1418, as autoridades ainda seguiam buscando meios para erradicar a sodomia “da cidade e do campo” (Rocke, 1997: 30-2, 35). Sobre a promoção da prostituição financiada publicamente como remédio contra a diminuição da população e a “sodomia” por parte do governo florentino, veja-se também Richard C. Trexler (1993:32):

Como outras cidades italianas do século XV, Florência cria que a prostituição patrocinada oficialmente combatia outros dois males incomparavelmente mais importantes do ponto de vista moral e social: a homossexualidade masculina – a cuja prática se atribuía o escurecimento da diferença entre os sexos e portanto de toda diferença e decoro – e a diminuição da população legítima como consequência de uma quantidade insuficiente de matrimônios.

Trexler aponta que é possível encontrar a mesma correlação entre a difusão da homossexualidade, a diminuição da população e os auspício estatal da prostituição em Lucca, Veneza e Sena entre os fins do século XIV e princípios do XV; aponta também que o crescimento em quantidade e poder social das prostitutas conduziu finalmente a uma reação violenta, de tal maneira que enquanto que: [A] começos do século XV pregadores e estadistas acreditaram profundamente (em Florência) que nenhuma cidade na que as mulheres e os homens parecessem iguais podia se sustentar por muito tempo […] um século mais tarde se perguntavam se uma cidade podia sobreviver quando as mulheres de classe alta não pudessem se distinguir das prostitutas de bordel (ibidem:65).

35- Em Toscana, aonde a democratização da vida política chegara mais longe do que em qualquer outra região europeia, na segunda metade do século XV se deu uma inversão desta tendência e uma restauração do poder da nobreza promovida pela burguesia mercantil com o fim de bloquear a ascensão das classes baixas. Nessa época se produziu uma fusão orgânica entre as famílias dos mercadores e as da nobreza, por meio de matrimônios e prerrogativas compartilhadas. Isto deu por terminada a mobilidade social, o logro mais importante da sociedade urbana e da vida comunal na Toscana medieval (Luzzati, 1981: 187, 206).

Silvia Federici

Fonte: Livro Calibã e a Bruxa (pág. 78-84).

Anarco-Primitivismo

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Fonte: Epifenômenos

Por John Zerzan
 
 
 
 
Uma mudança é definitivamente essencial para o que a filosofia da anarquia significa. Em paises como Inglaterra, França e Turquia assim como nos Estados Unidos, existe um crescente interesse em o que é chamado anarco-primitivismo. Publicações americanas como por exemplo, Anarchy, Fifth State e Feral refletem esta mudança. Assim como Green Anarchist e Do or Die! na Inglaterra.
 
Aqui está um olhar, de uma perspectiva Americana, sobre o movimento.
 
1. Existe uma profunda crise em todos os níveis; individual, social, ambiental. O câncer do capitalismo tecnológico esta se expandindo com um impacto devastador.
 
2 . Liberalismo, esquerdismo, pacifismo são faces de uma falida pseudo-oposição a ordem dominante. A única oposição radical é a anarquia.
 
3. A anarquia é cada vez mais militante. Sabemos que aproximações por métodos manipuladores e submissão são falsos. Se nós e o planeta desejamos sobreviver e nos tornar livres, devemos quebrar as regras e revidar.
 
4. A anarquia é cada vez mais primitivista. Sabemos que a tecnologia não é “neutra”, e incorpora o sistema sugador de vidas que esta nos cercando. Civilização, que é baseada na divisão de trabalho e domesticação, também deve ser abolida. Sua lógica desdobradora tem nos levado para a atual condição de vazio, destruição e patologia.
 
5. Nosso objetivo é uma comunidade não-hierárquica e face a face. Todo obstáculo para tal deve ser removido. Um grande desmantelamento é necessário para que a natureza e cada individuo seja honrado. A descentralização completa é o objetivo.
 
6. Tecnologia e capital a uma monocultura massificada que escraviza toda vida. Produção em massa, fabrica, especialização, pensamento separatista é parte do problema, e não da solução.
 
7. Livre associação, autonomia, transparência, espontaneidade, comunhão com a natureza, diversão, criatividade são requisitos para uma existência saudável e livre. Produtividade, hierarquia, coerção, trabalho, consciência de tempo não.
 
8. Se nossa missão e nossa visão parece loucura, quão mais louco é não fazer nada efetivo para impedir a marcha mortal da compra e venda global? No futuro uma criança pode perguntar: “Como você deixou tudo isso chegar a esse ponto? O que você fez para parar?”
 
9. Com a infelicidade difundida está exposto muito das mentiras e condicionamentos que defende este sistema de não futuro, vemos que um diálogo aberto entre todos é essencial.
 
10. Voto, programas de reciclagem, reformismo, e protestos não têm conseguido realmente nada. Tem que haver um rompimento qualitativo com a Mega-maquina.
 
De que lado você está?
 
 
 
John Zerzan – Anarchist Action Collective, PO Box 11703, Eugene, Oregon 97440, USA

Ecologia Social é Pelegagem!?

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Fonte: Nodo50

A Ecologia Social é pelegagem ou a Pedagogia Libertária é mera retórica, para um falar e agir intelectualmente “confortante”?

Todas as idéias novas e constatação de fatos quando concebidos ou descobertos, a princípio, sempre são recebidos com a “desconfiança” do preconceito e a sua decorrente animosidade e desvalorização. Isto para apresentar uma forma mais amena de contrariedade.

Vide o que ocorreu com “livres–pensadores” como Copérnico, Giordano Bruno e Galileu Galilei na assim chamada idade média. Homens que podem representar o advento da série de questionamentos em diversos setores do saber e na visão de mundo que desembocou no “Renascimento” cultural e a redescoberta do próprio Ocidente.

No caso de Copérnico foi uma profunda e radical mudança de paradigma, chamada de revolução Copernicana, que consistiu na teoria de que a terra move-se em torno do sol e não o inverso, que era postulado dogmaticamente pela igreja. Consiste na oposição do geocentrismo da igreja ao heliocentrismo de Copérnico, pela qual a detentora do monopólio ideológico perdia, e perdeu, muito de sua influência e poder.

Em seguida, com o “Renascimento”, como autoproclamado pelos estetas da época, surgiram novos paradigmas como o antropocentrismo, que colaborou para a desconstrução do teocentrismo até este momento dominante neste processo de transformações do Ocidente.

Decorreu em seguida o mercantilismo, a reforma protestante e o racionalismo cartesiano, de base “mecanicista” e etc. sendo que este último erigiu–se como uma “nova moral religiosa da modernidade” e sua conseqüência direta foi uma visão extremamente utilitarista do mundo, subordinando–o à sua lógica “analógica”, “analítica” e “digital”, antes da cibernética, com os seus: racional ou irracional, certo ou errado, lucrativo ou não.

Este tipo de visão tem como prioridade secionar, atomizar o conhecimento e a sua experiência. Ele vê as partes de uma árvore ao invés da árvore, ou de um bosque. “Adestra” a visão do homem em relação ao mundo e à “natureza”, das coisas a uma determinada lógica. Este paradigma gera um “conforto”, uma “conformidade” do pensamento no que ele poderia inspirar de reflexões mais instigantes, obscuras e ansiosas, pois as grandes questões não-eleitas como utilitárias ou importantes, e a própria reflexão sobre esses valores, são deixadas de lado. É um “conforto” que gera “conformismo” intelectual e pensamento estático. Ela divide, escrutina, separa, seciona o conhecimento e conquista o imaginário social diminuindo o poder de intervenção e elaboração simbólica de outros saberes como as culturas e tradições ancestrais em relação à natureza, sua ética e visão do mundo e para com o mundo.

Estamos numa época de profundos conflitos, gerados pela “globalização”. Também dentro desta conjuntura há o florescimento, e o resgate de outras visões de mundo, ou o surgimento de outras. Podemos afirmar que estamos caminhando, se não houver nenhum “acidente”, para uma provável nova “revolução Copernicana”. Mas deixemos este ponto para mais adiante. Falemos agora das polêmicas surgidas dentro do “movimento libertário” a partir destas novas conjunturas.

Com a derrocada dos regimes do capitalismo estatal, como ex–URSS e leste europeu, ou seja, o fim da “guerra fria”, com o mundo todo se tornando um imenso burgo lamacento, onde espaços antes ocupados no imaginário social, e antes de tudo nos movimentos sociais, em que esquerda fetichizava o operário industrial urbano e colonizava com o seu programa outros setores, tais como camponeses, favelados e contestações de fundo étnico, dando–lhes uma dinâmica monolítica e unidimensional, e com a falência deste projeto, novos movimentos e alternativas começaram a surgir ocupando estes espaços, dentro de uma enorme multiplicidade. Estes movimentos são de todos os tipos e aspectos. Muitos são meras reivindicações como princípios em si mesmos, como o movimento dos consumidores “conscientes”. Outros de perfil que poderíamos chamar “não rigidamente” de “libertários”. E muitos outros fundamentalistas, como os religiosos, nacionalistas e “Nazis”.

Dos anos 60, séc. XX, até a atualidade, popularizou–se a revalorização das teses e práticas “libertárias anarquistas”, o surgimento e valorização de movimentos étnicos, indígena e negro por exemplo, de gênero e anti–patriarcais, gays, lésbicas e mulheres, e a verdadeira “febre”” que é o “movimento ecológico internacional”, sendo isto, em muito, herdeiro de um arcabouço teórico de origem anarquista, tendo como exemplo evidente a obra “Campos, fábricas e oficinas”, de Pedro Kropotkin, e um dos seus lemas mais importantes é sintomático em relação a isto, “pensar globalmente, agir localmente”. Apesar deste florescimento de movimentos, ousadias intelectuais e ativistas, o mundo não se tornou uma grande “aldeia–livre”.

Estas novas concepções, e as resgatadas, de movimentos e visões de mundo ainda estão sendo digeridas, e talvez o seu pleno potencial ainda seja embrionário e contraditório. Conflitos entre estes elementos não foram totalmente superados, e isto somente a prática social quotidiana poderá silenciosamente responder.

Para assinalar a partir do campo da ação e reflexão anarquista pode ser exemplificada brevemente ao nível geral a polêmica surgida recentemente a respeito da Ecologia social e da Ecologia profunda. Tentar-se-á tratar deste tema como um todo.

Com a popularização das “teses” políticas e ecológicas colocadas em pauta em todo mundo, mais fortemente a partir dos anos 60, nasceram duas vertentes neste debate de pensamento e ação radical que são a ecologia social, de influência nitidamente e diretamente anarquista, vide a obra de Murray Boockchin, anarquista norte–americano membro fundador do Instituto de Ecologia Social de Nova Iorque, e a chamada “Ecologia Profunda”, inicialmente sem ligações diretas com o anarquismo, inspirada na obra do filósofo norueguês Arne Naess e posteriormente adotada pela “eco-guerrilha”, ou sabotagem ecológica, pela organização chamada Earth First!, “A Terra Primeiro!”, fundada inicialmente nos EUA em 1979, pelo fuzileiro veterano da guerra do Vietnã, Dave Foreman, cujos princípios básicos da organização são: estrutura federalista e radicalmente descentralizada, não–violência, ação direta e ecologia profunda.

Entre estas duas vertentes existe uma certa animosidade mútua principalmente no campo teórico, já que a militância da EF! é mais forte e contem muitas individualidades e organizações ácratas. A EF! acusa os ecologistas sociais de excessivamente “antropocêntricos”, preocupados apenas com a remediação dos problemas ecológicos, vendo apenas uma parte da vida, o homem, e não atentando para o todo do planeta, a Mãe Terra, categoria forte na EF!. Da parte dos Ecologistas sociais, aviso, nem todos de matriz anarquista já que a ecologia social se pretende enquanto uma das diversas subdivisões da ciência, acusam a Ecologia profunda de misantrópica, alienada das questões sociais e excessivamente “biocêntrica”. Na linha de frente desta crítica está o próprio M. Boockchin. Como podem ver, está formada uma querela. Embora o próprio M. Boockchin no seu trabalho “Por uma ecologia social”, reconheça a proximidade nos últimos tempos da EF! com a IWW, órgão sindical de orientação libertária, fato deveras inovador neste país onde o sindicalismo tem a tendência e tradição de ser corporativo e atrelado ao paradigma do credo industrial capitalista.

Para complicar um pouquinho mais este quadro, há a posição de setores anarco–sindicalistas portugueses da FAI que acusam os signatários das teses do Boockchin de “neo–anarquistas” de direita, que abandonaram “a luta dos trabalhadores”. Fazendo uma breve análise destas questões, no caso específico dos anarco–sindicalistas, existe um equívoco em relação a este assunto. Primeiro por que estes não consideram estas questões. As suas avaliações são realizadas em categorias cristalizadas, desconectadas com o real, feitas na maioria das vezes de forma apriorística, e não que os companheiros sejam obrigados a uma “concordância” inexorável e a se tornarem PhDs em ecologia social, mas um pouquinho de sensibilidade e menos ortodoxias ajudariam bastante a sensibilizarem–se a novas e pertinentes questões. Talvez em Portugal seja um pouco como no Brasil. Em segundo, o anarco–sindicalismo ainda está atrelado ao paradigma da “luta econômica industrialista”, sendo que é observado que esta tendência e as suas organizações não são mais um movimento preponderante, e nem representam mais uma alternativa concreta de transformação social. Sua preocupação primordial é promover a luta econômica industrial com tintas “anárquicas”, mas estes hoje apenas sobrevivem em formas mumificadas e em discursos radicalmente ultrapassadas, convertendo–os assim em ortodoxos.

Em relação à dicotomia Ecologia Profunda e Ecologia Social, a questão às vezes é meio espinhosa, mas mesmo assim há de se aprender muito com a prática e a teoria das duas vertentes. A princípio, deve-se observar e esclarecer que no caso da Ecologia social esta não consiste numa organização e sim em uma elaboração teórica e proposta, como tantas outras teses anarquistas: o apoio mútuo, a desobediência civil, a ação direta, a autogestão etc. Nos EUA esta prática habita duas esferas: a acadêmica, como uma espécie sui generis de transdiciplinaridade, e o ponto programático, idéia-força, tese e princípio dos grupos organizados anarquistas. Porém existem grandes polêmica sobre os limites desta última esfera por parte de outros ecólogos sociais.

No caso da Ecologia Profunda, esta pode ser considerada como um conjunto de princípios éticos sobre toda forma de vida no planeta, seja humana ou não-humana, como são trabalhadas as categorias de discurso por parte dos ecólogos profundos. Como foi dito antes, a principal organização política que adota esta teoria é a já referida EF!, mas também há a incorporação de pequenos grupos pacifistas e de direitos e liberação animal.

A EF! advoga uma profunda transformação nas estruturas econômicas, políticas e das mentalidades. As suas “ações diretas” de eco-sabotagem são contra os agentes diretos da poluição e depredação da natureza. O alvo principal é o grande capital das megacorporações transnacionais e também nacionais. Tem se observado que nos últimos anos, nas fileiras da EF!, tem crescido bastante o número de militantes de orientação anarquista.

Visto isso, pode-se interpretar que as posições de luta pela melhoria da qualidade de vida das comunidades humanas com uma conseqüente transformação “profunda” da sociedade a pressupostos de defesa de quaisquer formas de vida e seus ecossistemas não são contraditórios e nem oponentes. A dicotomia entre antropocentrismo e biocentrismo é falsa. Mas ocorre um fato além da vaidade e briga por espaço político. Acontece realmente que adeptos da Ecologia profunda, eventualmente, e alguns setores, têm a tendência há um certo “fundamentalismo biológico preservacionista”, e talvez isto seja reflexo das proposições do próprio Foreman. Mas o seu empenho ativista, dedicação e base ética bem constituída na esfera da condução filosófica do ativismo, são invejáveis, mesmo se estes ainda engatinharem na clareza de sua análise social para a “comunidade humana”. Enquanto que com a ecologia social, esta tem claras e objetivas propostas em relação ao social, mas apenas principia-se em uma visão mais holística com outros elementos vitais ao ser humano e à vida. Prendem-se a vícios do passado que também atrapalham com que esta visão se amplie.

Estas teses e proposições ideológicas, metodológicas, filosóficas, científicas, práticas e éticas devidamente criticizadas são possivelmente intercambiáveis aqui no Brasil. Jamais devemos ser certos de nossas certezas em demais pois isto atrofia a prática, esteriliza a reflexão e dogmatiza o espírito, mas mesmo assim nas condições tropicais brasileiras talvez seja possível florescer uma “Ecologia social de visão profunda” como uma linha de interpretação do mundo e linha de ação. O nosso patrimônio biológico, multicultural, humano e social podem contribuir muito para com a nossa própria sociedade e por que não com o próprio planeta. Esta temática e este tipo de proposta com certeza enfrentaram (e enfrentam) resistências infundadas ou talvez preconceituosas.

Dado que os anarquistas brasileiros, muitos, mas não todos, sofrem de uma estranha doença “da auto-afirmação”, depois de anos de inação e auto-enclausuramento em conventos culturalistas, agora que estes estão começando a despertar para a ação nas gerações mais recentes sofrem desta estranha patologia, que é repetir retoricamente um anarco-comunismo datado combinado aos vícios da visão anarco-sindicalista com práticas de análise em “dogmatismos principistas” da esquerda tradicional. Mas esta crítica está associada apenas aos reprodutores da “velha escola” e “culturalistas de classe média” por que já existe uma nova geração composta de elementos sinceros e tolerantes que estão trabalhando para alavancar as lutas sociais vitais para a nossa sociedade.

Pois é nítido, empiricamente comprovado, que o paradigma cartesiano-mecanicista, “industrialista” e utilitarista-econômico hoje, com o processo de globalização, porá em cheque a humanidade e quaisquer formas de vida ameaçando severamente a Mãe Terra.

A militância libertária para este princípio de terceiro milênio além de não transigir com os seus princípios vitais incorporados nas lutas populares, deve ter uma atuação prática dentro de uma visão multidimensional, ou seja, signatária de novos paradigmas Holísticos e transdiciplinares filosóficos-científicos como também otimisadores de outras tradições, saberes; o intuitivo com o racional conjugado com os saberes populares e comunitários, e também dos saberes milenares dos povos ancestrais “originários”, africanos, indígenas e etc. Pois urge cada vez mais o rompimento com as metafísicas mistificadoras religiosas tanto quanto com os vícios e males do materialismo. Deixemos isto para o marxismo.

Neste tempo de demanda por transformações politico–sociais, é contatado que novas formas de conhecimento como a ecologia, que por acaso significa o “estudo da casa”, ou seja ambiente, universo, requer o trabalho sócio-cultural da consciência ambiental irmanado com a questão econômica. Economia significa administração da casa, do ambiente. Para continuarmos a viver e não meramente sobreviver como humanos devemos entender e lutar por quem vai “administrar”, respeitar ou arrumar a casa. Nós todos ou uma casta genocida?

Tanto se fala entre os anarquistas brasileiros e outros ativistas populares na defesa de uma concepção de acordo com a cultura popular brasileira e latino-americana e se faz tão pouco para implementá-la. O paradigma Holístico é uma janela que se abre para esta questão.

Afinal de contas o termo libertário hoje é um conceito muito amplo. Ele não é mais de nenhuma forma monopólio dos anarquistas, devemos ter consciência disto, pois dentro dos próprios princípios dos “autonomistas” europeus, por exemplo, admite-se que em outras culturas, de outros continentes surjam formas diversas de “libertários”. Os “Resistentes”, “Magonistas” e “Zapatistas” podem enquadrar-se neste caso, ou seja, sermos globais, internacionalistas, sem esquecermos de quem somos ou dos nossos rituais culturais comunitários.

O que se entende por “libertários” são aqueles que lutam e ao mesmo tempo têm como princípio a liberdade. Isto dado não apenas numa forma idealizada e abstrata, metafísica, e sim com práticas concretas como, ação direta, descentralização, democracia direta horizontalizada, fóruns coletivos públicos de deliberação e federalismo. Dentro destes princípios existe hoje uma grande multiplicidade de correntes e movimentos sociais adeptos tais como os autonomistas, movimento Zapatista no México, movimento Okupas na Espanha, movimentos ecológicos, ação global dos povos, movimentos indígenas etc. Somente dialogando apoiando, agindo conjuntamente e incentivando estas iniciativas contra o verdadeiro adversário da humanidade que é o capitalismo “globalitarista” promotor de guerras, genocídios e ecocídios, somente através de alianças em “rede” e horizontalizadas que as pessoas poderão resistir “globalmente.”

Desconstruindo quaisquer formas de obscurantismos, mentalidades confortantes e acomodadas mal-disfarçadas de principismo, poderá se construir uma democratização econômica com a descentralização produtiva, com gestão comunitária em rede gerando empregos saudáveis e para todos em oposição às concentrações da produção industrial que é hierárquica, sexista, anti-humana e poluidora. Características típicas da economia capitalista.

Pode-se afirmar que a vida na terra seja humana e não-humana, seja comunitária e que os ecossistemas estão além do que nossas arbitrárias medidas de valores supõem.

Para esclarecer melhor o que foi discutido neste ensaio é recomendada a leitura de obras dos autores clássicos tais como Petr Kropotkin, os irmãos Reclus e de autores recentes como Felix Guatarri, Cornelius Castoriadis, Fritjof Capra, Michel Foucault, Arne Naess, Murray Boockchin, Lewis Munford e Pierre Clastres.

Concluindo, para se trabalhar de forma concreta a consciência ambiental e ecológica, de nossa casa que é o mundo, com um processo de aprofundamento da tomada de consciência social é pertinente se trabalhar na educação popular incluindo na sua área temática e didática a educação ambiental. E esta Educação popular pode apoiar-se no seguinte tripé temático: pedagogia libertária, estudo e aplicação da ecologia social mesclada à ecologia profunda e práticas técnicas para a melhoria direta da comunidade feita em regime de mutirão.

A pedagogia libertária é a educação na vida e a ecologia é a ética na ciência conjugando um “modo de vida” voltado para a vida.

Coletivo Domingos Passos – São Gonçalo, 2001.

E As Anarco-Feministas O Que São?

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Fonte: Nodo50, por Valéria Bolevari

Conhecemos a aparência de uma bota
vista de baixo,
conhecemos a filosofia das botas…

Logo invadiremos como ervas daninha
em todo lugar, mas devagar…
as plantas cativas farão revolta
conosco, os muros cairão.

Não existirão mais as botas
No entanto, comemos terra
e dormimos; estamos esperando
embaixo dos seus pés;

Quando dissermos: ataque!
você não ouvirá nada
no começo…

Peggy Kornegger

 

Quando se ouve a palavra anarco-feminismo, logo vem a impressão de mulheres que excluem os homens de suas vidas, que querem separar as pessoas pelo sexo, etc. Mas o que nem sempre se para prá pensar, é porque se tem essa impressão.

Continuam, até mesmo os anarquistas, a se espelharem nas imagens distorcidas que veiculadas pelos meios de comunicação da sociedade burguesa. Se assim fosse, acreditaríamos também que anarquia é bagunça, que Deus existe, que os anjos existem e tem asas…

É necessário, para se compreender realmente alguma coisa, que nos desvinculemos das respostas prontas já fornecidas pela imprensa burguesa, que a mente se abra para receber novas idéias e questioná-las.

Anarco-feminismo não é separatismo! Se você é homossexual e resolve se juntar a outros homossexuais para lutar por sua emancipação, você está sendo separatista? Você acredita que cada classe oprimida conquista sua liberdade através de seu próprio esforço e luta? Sim? Então, pára de reclamar! As mulheres estão se dando conta do quanto são oprimidas e exploradas dentro da sociedade patriarcal, de que nunca puderam ouvir sua própria voz e discutir sua opressão. O que acontece, hoje, no movimento libertário, é que nós, mulheres que estamos tomando consciência de nossa condição de proletária do proletário ou escrava do homem escravo, temos condições de levantar a cabeça e discutir com outras mulheres (que também são vítimas da mesma opressão) o que queremos fazer para lutar contra isso. E isso não são apenas os homens machistas, mas sim uma sociedade cristalizada no patriarcado, onde os valores estão montados em cima da exploração, da escravidão e do preconceito.

Precisamos de espaço para mostrar nossa cultura e desenvolver nossas potencialidades, que foram sufocadas no patriarcado. Tudo isso, só conseguiremos com muito trabalho conjunto e abertura, para que possamos mostrar o que queremos fazer e como fazer. Temos que desenvolver o nosso lado feminino real, e não o feminino imposto pela sociedade machista. Os nossos valores foram sufocados e, em lugar desses, vieram valores integrados, como a estética, a beleza, o comportamento, a maternidade obrigatória, etc., que não são naturais como parecem. Tais coisas, somente nós mesmas podemos avaliar, questionar e mudar, mais ninguém. Não se pode chegar para um negro e dizer-lhe o que fazer para lutar contra sua discriminação, se você nunca sofreu isso. Você pode ajudá-lo e apoiá-lo, mas se você nunca sofreu discriminação racial, nunca poderá saber o que ele sente, quanto mais decidir o que ele deve fazer. O mesmo ocorre com as mulheres.

Mudando nosso comportamento e nossa visão de mundo, estaremos muito mais abertas para relacionamentos realmente recíprocos, e não paternalistas. Teremos muito mais autonomia para batalhar em outros coletivos e tomar conta de nossas próprias vidas. Isso é fato!

Os grupos de mulheres têm essa função que, dentro do movimento anarquista, se torna imprescindível para quem almeja uma sociedade livre, humana e igualitária.

Aqueles que torcem o nariz ou fazem de tudo para atrapalhar a luta de um grupo específico, não compreendem que a base do anarquismo está no indivíduo, e que somente a partir do indivíduo é que se inicia uma revolução. Se cada classe oprimida se unisse e trabalhasse a sua questão, em vez de tentar ficar fazendo tudo ao mesmo tempo, nossa evolução/revolução seria muito mais concreta, com bases sólidas, pois cada grupo estaria desenvolvendo um trabalho contínuo, o que renderia frutos. Pense sobre isso.

Nós precisamos de espaço e vamos lutar por ele. Que alguns torçam o nariz, que outros falem mal por não entenderem, que façam abaixo assinados e panfletagens, o que quiserem, mas estamos aqui e pronto! Acreditamos no anarquismo, mas só acreditamos nele funcionando no dia-a-dia. Se nós mulheres criamos grupos específicos, é porque estes nasceram dá necessidade, e não por brincadeira.

Nossa luta não se restringe apenas ao feminismo, mas sim a tudo que engloba o anarquismo e, por isso, nossas atividades sempre são em conjunto com outros grupos anarquistas e anarco punks, os quais apoiamos e nos apoiam, sendo a luta e a caminhada lado a lado. Se a possibilidade das mulheres tomarem conta de sua própria luta o assusta, então apavore-se, pois nossa arte, nossa escrita, nossa poesia e nossa forma de lutar vão estar correndo livres velas ruas!


Valéria Bolevari
CAF/SP
C.Postal 117;
CEP: 07111-970;
Guarulhos

 

Libera #46, março de 1995

Anarquismo e Feminismo

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Fonte: Nodo50
As novas formas de “relações conjugais” e de “relações domésticas” sugerem um novo modelo de feminilidade: o da “mulher liberada”, segundo um tipo de liberação que convém a economia capitalista e as políticas dos Estados governantes.
O princípio básico desta feminilidade é a igualdade na diferença. De um lado, as mulheres adquiriram os mesmos direitos e deveres que os homens, no que diz, respeito ao matrimônio, a família ao trabalho e à vida política social. Do outro lado, as diferenças específicas homem – mulher devem e precisam ser preservadas.
Esta especificidade refere-se a toda uma série de características físicas, intelectuais e emocionais que são consideradas típicas da natureza feminina. No entanto, tal conceituação de feminilidade não mais eficiente para descrever a mulher no mundo atual Antes, impõe e estabelece um novo estereótipo normatizado e normalizado da mulher.
Os componentes clássicos da mulher submissa eram: heterossexualidade, passividade, narcisismo e sentimentalismo. Hoje, os componentes básicos da mulher liberada camuflam os anteriores e adaptam a mulher às características deste novo ser emergente: individualismo, autonomia, força, autocontrole, eficácia e racionalidade.
Não obstante as suas contradições, este modelo e mulher justifica psicologicamente e permite socialmente ao mesmo tempo a relação conjugal, a maternidade e, na esfera das relações econômicas, a divisão do trabalho com o homem.
No contexto político, a feminilidade é objeto de negociações de todo tipo entre os movimentos feministas e as instituições que produzem, difundem e inculcam ideologias nas sociedades modernas: o Estado, os meios de comunicação e o meio cultural.
O modelo da “mulher liberada” é, basicamente, o reflexo das relações de poder entre esses dois agentes: Os movimentos feministas e os Estados governantes. Este novo modelo de feminilidade não só torna possível formas “avançadas” de opressão sobre a “mulher liberada”, como também, constitui o fator – chave da reversibilidade do movimento de liberação feminina, enquanto movimento cooptado pelo Estado.
A história das mulheres é uma história de avanços e recuos. Em certos períodos históricos, as mulheres adquiriram direitos formais e informais que, em outros períodos, foram perdidos. Por outro lado, outros foram conquistados, de maneiras diversas e em contextos diversos, e assim por diante.
Toda mudança econômica, social e política relevante implica em conseqüências positivas ou negativas para as mulheres. Melhorias em sua condição são sempre fruto de uma mobilização ativa, inserida na contradição dessas mudanças.
A ideologia da feminilidade reflete a variação, no tempo, de uma essência mantida imutável: “o eterno feminino”. A eficácia do feminismo, a curto e a longo prazos, depende, em grande parte, da capacidade das mulher em impedir a formação e a institucionalizacão de novas variantes do “eterno feminino”, mesmo que venham apresentadas como parte integrante do processo de liberação da mulher.
O potencial de força das mulheres somente poderá ser mobilizado e usado em favor de sua verdadeira liberação, se o movimento feminista trilhar um caminho verdadeiramente revolucionário. Em outras palavras, se optar por uma mudança da ordem social e não na ordem social.
O anarquismo oferece instrumentos de organização e de luta revolucionária capazes de tornar realidade o potencial subversivo do feminismo.
Em sua origem, o feminismo representou um sério golpe nas estruturas de poder, em sua forma mais elementar e básica: o controle interpessoal, no jogo recíproco de força e consenso.
Mas a força do protesto feminista pode-se voltar contra as mulheres, se, em sua luta contra a dominação, decidirem aliar-se às instituições detentoras de poder: os partidos políticos e os aparelhos de Estado.
O Estado tornou-se (ou foi convertido em) interlocutor privilegiado do movimento feminista moderno, desde seu surgimento, e de forma cada vez mais íntima. Em seu diálogo com o Estado, o movimento das mulheres, ao formular suas reivindicações principais, terminou por assimilar-lhe a linguagem.
Dessa forma, adquiriram elas direitos que o Estado pode garantir, reformas que o Estado pode realizar e recursos que o Estado pode distribuir.
Ainda o Estado apresenta-se como agente garantidor de mudanças em esferas privadas que ele (Estado) não pode realizar diretamente, coma no caso de relações sexuais e afetivas homem – mulher.
Da mesma maneira que a movimento operário, especialmente em suas formas sindicais institucionalizadas, o movimento feminista é, a todo momento, levado a negociar com o Estado. Por sen turno, o movimento feminista dispõe-se a esse tipo de negociação porque lhe parece que somente esta forma mostra-se capaz de impor respeito a maridos, patrões, pais, concidadãos, colégios, dirigentes de todo tipo, intelectuais, etc.
Essa interação movimento feminista – Estado é coerente com a lógica dos sistemas sociais vigentes. De fato, a função principal do Estado moderno é expressar e neutralizar as tensões e os conflitos causados por atritos entre sujeitos sociais, especialmente as relativos a classes sociais e sexos.
Todo movimento de protesto, a qualquer nível de luta, é necessariamente remetido ao Estado. E este dispõe dos recursos e mecanismos necessários para neutralizá-lo. Pode e tem reprimido protestos com o uso da violência, mas também tem e pode determinar realizar modificações funcionais do sistema, com vistas a reduzir as tensões, sem comprometer a sua autoridade e perpetuação.
A história do movimento operário, das lutas raciais, dos movimentos estudantis oferecem uma farta ilustração de como opera o mecanismo estatal de controle nas Sociedades modernas.
Sem dúvida, as mulheres obtiveram, sobretudo por parte doEstado, o reconhecimento de certos direitos e melhorias parciais de sua condição. Na maior parte dos casos, estas vitórias das mulheres tornaram-se, também, vitórias do Estado, na medida em que significaram, em certa medida, um aumento da capacidade do Estado de controlá-las e a seu movimento.
Alguns organismos instalados a nível governamental têm toda a aparência de mecanismos permanentes de controle sobre as mulheres e seu movimento, como, por exemplo, comitês, comissões, institutos montados para estudar a mulher, formular soluções para seus problemas e, até, para montar e implantar projetos feministas.
Estes organismos e instituições multiplicam-se e proliferam em sociedades nas quais a movimento feminista tem provocado fortes impactos e possui articulações regionais e internacionais.
A despeito dessa interação, as relações mulheres – Estado estão longe de ser harmoniosas. Isso porque a Estado não resolveu – e nem pode resolver – as contradições que alimentam a revolta e a resistência das mulheres. Se, por um lado, oferece-se como um interlocutor e lhe fornece canais legais de reivindicações, por outros neutraliza seu potencial revolucionário e corrói seu potencial de libertação.
0 movimento feminista proclama, como principio, que o privado é político. Séculos de opressão demonstram que a afirmação é verdadeira sob todos as seus aspectos.
É chegado o momento, no entanto, de uma predominâcia da esfera privada sobre a pública. A primeira é vida e desejo. A segunda é ordem e imposição. Imposição que sempre vem sob a camuflagem de ajudar o desejo, desejo que é sempre posto a serviço da ordem. Porque se trata, aqui, daquele desejo que a ordem programou e daquela imposição que o desejo previu e a ela se sujeitou.
Para subverter este sistema, é necessário superar a linha imaginária que se construiu entre esfera pública e esfera privada. São duas faces da mesma moeda: a Estado – família e a família – Estado.
É necessário liberar a consciência para o fato de que, neste âmbito de solidão e luta, a moeda corrente é o controle.
Além de outras formas que devem ser liberadas, está aquela a que me referi no inicio – a feminilidade – e tal só pode ser feito se entendermos que é o poder que a produz e que são as mulheres as suas prisioneiras.
Nicole Laurin-Frenette
Professora de Sociologia na Universidade de Montreal
Membro do Instituto Anarchos,
Montreal Canadá,
in “Volontà”, no. 4, 1982.
revista anarquista trimestral
editada na Itália
Revista Utopia #1, primavera de 1988

Um pouco da história do feminismo libertário…

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Fonte: Gritos Libertários

Muitas das anarquistas não se consideravam feministas por acreditarem que esse termo designava as mulheres que lutavam pelo voto. Porém elas são consideradas feministas por suas preocupações com a emancipação das mulheres, que tem profunda relação com as ideias libertárias do anarquismo, já que este busca a emancipação humana. Desse modo o anarquismo engloba o feminismo, porém os termos “anarcofeminismo” ou “feminismo libertário” passaram a ser usados para dar mais destaque ao campo de atuação que se trata.

Feminismo libertário no Brasil:

O feminismo anarquista tem destaque no Brasil do começo do século XX. Nessa época muitas mulheres atuaram politicamente, em greves pelo aumento de salário, redução da jornada de trabalho, respeito no trato a elas e às crianças e em solidariedade a seus companheiros. Vale lembrar que nessa época, diferentemente de hoje em dia, trabalhadores de diferentes categorias frequentemente entravam em greve em solidariedade a uma outra categoria. Assim, por exemplo, quando os ferroviários paravam, os padeiros, sapateiros e outros também paravam. Foi por esse tipo de organização que a Greve Geral de 1917 foi possível no Brasil.

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Maria Lacerda de Moura

Uma das militantes brasileiras de mais destaque da época foi Maria Lacerda de Moura. Ela foi professora, conferencista, jornalista, poetisa e escreveu vários livros que tinham como objetivo passar ideias sobre emancipação humana, questionando o papel da escola e da educação, da religião, do Estado, o fascismo, o militarismo e falando sobre controle da natalidade. Ajudou a fundar a “Federação Internacional Feminina” e o “Comitê Feminino Contra a Guerra”, nos anos 20, que tinham como objetivo articular as mulheres de São Paulo e Santos para além da luta pelo voto, articulada por outras feministas da época.

No caso da Federação Internacional Feminina alguns pontos de discussão eram: “assistência, sistemas coercitivos, trabalhos domésticos e trabalho industrial, seduções, jogo, infância delinquente, investigação à paternidade, júri, direitos civis e políticos da mulher, tráfico de mulheres, coeducação, casamento, (…) divórcio, salário, os crimes da maternidade fora da lei, eugenia, proteção aos animais etc”.

As feministas liberais da época criticavam as anarquistas por considerá-las muito radicais, e as últimas criticavam as primeiras alegando que sua luta era pouco transformadora, limitada à esfera pública burguesa e preservadora das relações hierarquizadas na esfera privada. Um exemplo disso é essa crítica feita por Isabel Cerruti, no jornal “A Plebe” em 1920:

“A Revista Feminina em seu programa propõe-se a propugnar pela emancipação da mulher conseguindo para ela o direito de empenhar-se em lutas eleitorais. (…) Como se a emancipação da mulher se resumisse em tão pouco…

O programa anarquista é mais vasto neste terreno; é vastíssimo: quer fazer compreender à mulher na sua inteira concepção, o papel grandioso que ela deve desempenhar, como factora histórica, para a sua inteira integralização na vida social (…).”

Outras militantes conhecidas são Maria Valverde e Sônia Oitica (filha do militante anarquista José Oiticica), que por volta dos anos 30 e 40 atuaram no teatro libertário e eram ligadas aos Centros de Cultura Social, de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde se discutia temas como moral sexual e sexualidade.

Uma crítica feita pelas feministas anarquistas é que os partidos políticos de esquerda da época diluíam a causa das mulheres na causa do partido, pois estes alegavam que elas deveriam se empenhar na luta pela revolução através do partido, relegando a causa feminista à questão da opressão de classe e criticando os espaços específicos das mulheres, ou seja, não reconhecendo uma opressão específica às mulheres, mas alegando que todos os que não são os detentores dos meios de produção são oprimidos pelo capitalismo (como se isso se desse da mesma forma para todos). Assim, para as anarquistas, a divisão das mulheres em partidos enfraqueceu a luta pela emancipação da mulher.

Feminismo libertário em outros países:

Emma Goldman

Emma Goldman

Nos Estados Unidos a figura de Emma Goldman se destaca. A militante nasceu em 1869 na Lituânia, mas se mudou para os EUA em 1885 (com 15 anos), fugindo de um casamento arranjado por seu pai. Lá teve contato com as greves pela jornada de 8 horas de trabalho, o que resultou nas mortes de muitos manifestantes – situação que ficou conhecida como caso dos “Mártires de Chicago”.

Sua militância tratava de temas como o controle de natalidade e o amor livre, militarismo e patriotismo como ameaças à liberdade. Apesar do início da sua militância ter tido mais contato com a ideologia de Bakunin, que utilizava a violência como meio para a revolução, no decorrer de sua vida e principalmente após se encontrar com Kropotkin Emma passou a ter ideias humanitaristas. Ela escrevia a revista “Mother Earth” e teve inúmeros relacionamentos, muitos deles com homens bem mais jovens, causando escândalo para a sociedade da época.

Em 1917 em uma manifestação contra o alistamento para a Primeira Guerra Mundial Emma foi presa acusada de conspiração. Ela foi deportada para a Rússia e conheceu Lênin, que havia executado e encarcerado anarquistas e outros dissidentes, além deste último alegar que a liberdade de expressão era um conceito burguês (liberdade esta tão valorizada por Goldman). Isso fez com que a anarquista escrevesse o livro “Minha desilusão com a Rússia”. A partir de então ela mora em vários países diferentes, morrendo no Canadá em 1940. Suas cinzas foram para o Waldheim Cemetery, ao lado dos mártires de Chicago.

Militante das “Mujeres Libres”

Militante das “Mujeres Libres”

No caso da Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), havia a milícia das Mujeres Libres, que atuavam ao lado da CNT-FAI (Confereración Nacional del Trabajo e Federación Anarquista Ibérica). O grupo foi fundado por Apolonia de Castro, Felisa de Castro, Maruja Boadas, María Cerdán, Nicolasa Gutiérrez, Soledad Estorach, Elodia Pou, Conchita Liaño, dentre outras. Durante a guerra o aborto foi legalizado na Catalunha, o grupo atuou pela educação das mulheres por uma maternidade consciente e propunha que elas fossem agentes da revolução para a construção de uma nova sociedade.

Havia a revista “Mujeres Libres”, editada e escrita exclusivamente por mulheres e que se dirigia a mulheres da classe trabalhadora com a intenção de atraí-las para a causa libertária. Falavam de causas como o anticlericalismo (alegando que a religião usava as mulheres como guardiãs da ordem social e moral tradicional), prostituição, o direito ao prazer sexual e o amor livre, alegando que a monogamia se relacionava estreitamente ao capitalismo e à propriedade privada.

O grupo propunha uma solução coletiva para a emancipação feminina, conscientização e educação. Assim, na Espanha predominou um feminismo que não buscava direitos políticos, mas que fazia reivindicações trabalhistas e educativas, vendo essa luta com uma perspectiva de classe e relacionada ao anarcossindicalismo. A cultura e a educação eram vistas como fundamentais à emancipação humana.

Referências:

Socialismo, anarquismo e feminismo – Carol Ehrlich (1977)

http://colunas.gospelmais.com.br/files/2013/01/feminismo.jpg

 

Fonte: Amor y Anarquia em 31 de maio de 2013, por Carol Ehrlich (1977)

“Você é uma mulher na sociedade capitalista. Você fica puta: com emprego, com as contas, com seu marido (ou ex), com a escola das crianças, com as tarefas domésticas, ser bonita, não ser bonita, ser vista, não ser vista (e no mesmo sentido não ser escutada), etc. Se você pensa em todas essas coisas, como elas se encaixam e o que tem que ser mudado, e ai você procura por algumas palavras para abarcar todos esses pensamentos juntos de forma abreviada, você quase tem que chegar em ‘feminismo socialista’”[1]

Tudo indica que um grupo de mulheres brilhantes teve de “inventar” o feminismo socialista como uma solução ao problema persistente do sexismo. “Socialismo” (em sua surpreendente variedade de formas) é popular para muitas pessoas hoje em dia, porque tem muito a oferecer: preocupação com xs trabalhadorxs, um corpo de teoria revolucionário para o qual as pessoas podem recorrer (tendo ou não lido), e alguns exemplos reais de países industrializados estruturados de forma diferente que os Estados Unidos e seus satélites.

Para muitas feministas, o socialismo é atrativo porque promete acabar com a desigualdade econômica para as mulheres trabalhadoras. Além disso, para aquelas mulheres que acreditam que uma análise exclusivamente feminista é muito estreita para abarcar todas as desigualdades existentes, o socialismo promete abrangê-la, enquanto se resguarda contra a diluição de sua perspectiva radical.

Por boas razões, então, as mulheres estão considerando se o “socialismo feminista” faz ou não sentido como uma teoria política. Para as feministas socialistas realmente parece ser ao mesmo tempo sensível e radical – pelo menos, a maioria delas evidentemente sente uma forte antipatia por algumas armadilhas reformistas e solipsísticas nas quais um crescente número de mulheres parece estar caindo.

Para muitas do tipo mais não-romanticas de nós, a Sociedade Amazônica, com seus exércitos de fortes matriarcas cavalgando ao por-do-sol, é irreal, mas inofensivo. Uma questão mais séria é a atual obsessão com a Grande Deusa e diversos outros objetos de culto, bruxaria, magia e fenômenos psíquicos. Como uma feminista preocupada em transformar a estrutura da sociedade, eu acho isso qualquer coisa menos inofensivo.

Primeiro ponto: Mais de 1400 mulheres foram para Boston em abril de 1976 para assistir a uma conferência de espiritualidade feminina que lida em grande parte com as coisas apontadas acima. Não poderia a energia investida em encantamentos, difundir as últimas idéias pagãs e ir a workshops de dança do ventre e rituais menstruais ter sido utilizada para alguns usos melhores e mais feministas?

Segundo ponto: De acordo com reportagens em um jornal feminista, um grupo de bruxas tentou levitar Susan Saxe para fora da cadeia. Se elas honestamente acharam que isso iria libertar Saxe, então elas estavam totalmente fora de sintonia com as realidades da opressão patriarcal. Se isso pretendia ser uma piadinha alegre, então por que ninguém está rindo?

O reformismo é um inimigo muito maior para os interesses das mulheres do que jogos psíquicos bizarros. Sei que “reformismo” é um nome que pode ser usado de modos que não são nem honestos nem muito úteis – principalmente para demonstrar a pureza ideológica de alguém, ou para dizer que trabalhos políticos concretos de qualquer tipo não valem a pena ser feitos porque são potencialmente cooptáveis. Em resposta, algumas feministas argumentaram persuasivamente que os tipos certos de reformas podem construir um movimento radical[2].

Da mesma forma, existem estratégias reformistas que gastam as energias das mulheres, que aumentam as expectativas de uma grande mudança e que são ilusórias e alienantes porque elas não podem atingir os fins. O melhor (ou pior) exemplo é a política eleitoral. Algumas socialistas (seduzidas pela noção de gradualismo) caem nessa. Anarquistas conhecem melhor. Você não pode se libertar através de meios não-libertadores; você não pode eleger um novo conjunto de políticos (não importa o quão sinceros sejam) para operar nas mesmas velhas instituições corruptas – que por sua vez governam você. Quando a Majority Caucus da National Organisation of Women (NOW) – a corrente radical dessa organização – pede para que as mulheres a sigam “fora do tradicional [mainstream], para a revolução”  através de meios que incluem a política eleitoral, elas vão todas se afundar na profundezas das coisas como elas são.

A política eleitoral é um tipo de armadilha óbvia e rotineira. Até muitas não-radicais aprenderam a evitá-la. Um problema mais sutil é o capitalismo disfarçado de empoderamento econômico feminista. Considere, por exemplo, o Feminist Economic Network. O nome pode talvez enganar você. Ostensivamente era uma rede de negócios alternativos configurada para destruir o capitalismo de dentro para fora por meio da criação de auto-suficiência econômica para mulheres. É uma idéia atraente. Contudo, o primeiro grande projeto do FEN começou em Detroit, abril de 1976. Por uma taxa anual de filiação de 1oo dólares, mulheres privilegiadas poderiam nadar em uma piscina particular, beber num bar privado e conseguir descontos em um punhado de boutiques. O FEN pagava a suas empregadas $2.50 por hora para trabalhar lá. Sua diretora, Laura Brown, anunciou essa empreitada como “o começo da revolução econômica feminista”[3].

Quando dois dos mesmos velhos jogos – política eleitoral e capitalismo – são rotulados de “revolução”, a palavra foi virada de ponta-cabeça. Não é surpresa que uma marca socialista de feminismo parece ser a fonte de sanidade revolucionária para muitas mulheres que não querem ser bruxas, guerreiras primitivas, senadoras ou pequenas empreendedoras, mas sim que querem acabar com o sexismo enquanto criam uma sociedade transformada. O feminismo anarquista pode dar um quadro teórico significativo, mas muitas feministas nunca ouviram falar disso, ou então o descartam como as senhoritas ajudantes de homens que lançam bombas.

O feminismo socialista oferece uma série de “lares” políticos. De um lado, existem os esquálidos, limitados quartéis dos setores da Velha Esquerda, como o Partido Comunista Revolucionário (formalmente a União Revolucionária), a Liga de Outubro e o Partido Internacional dos Trabalhadores. Pouquíssimas mulheres consideram eles habitáveis. Por outro lado, um bom número de mulheres está se movendo para os dispersos e ecléticos estabelecimentos construídos por grupos de esquerda mais novos, como o New American Movement, ou por diversas “união de mulheres” autônomas.

As novas feministas socialistas tem feito uma campanha enérgica e sensata para recrutar mulheres sem alinhamento. Contrariamente, os grupos da Velha Esquerda mais rígidos extensivamente rejeitaram a idéia em si de que lésbicas, separatistas e diversas outras desajustadas e inadequadas feministas poderiam trabalhar com os nobres herdeiros de Marx, Trotsky (apesar de que trostskistas são imprevisíveis), Stalin e Mao. Muitos rejeitaram a idéia de um movimento de mulheres autônomas que se importa só com questões das mulheres. Para eles,  está cheio de mulheres burguesas (o mais condenável de todos os jargões marxistas!) focadas em “fazer suas próprias coisas” e isso “divide a classe trabalhadora”, o que é uma suposição curiosa de que os trabalhadores são mais burros do que todo mundo. Alguns tem uma antipatia histérica por lésbicas: os grupos mais notórios são o Liga de Outubro e o Partido Comunista Revolucionário, mas eles não estão sozinhos. Nessa prática política, como em muitas outras,  a linha anti-lésbica segue a dos países comunistas. O PCR, por exemplo, lançou uma nota de posicionamento no começo dos anos 70 (de volta aos dias de pré-partido, quando era o pleno e velho Revolutionary Union), em que anunciava que homossexuais estão presos no lodo e na lama da decadência burguesa” e que a libertação gay é ” anti classe trabalhadora e contra-revolucionária”. Todos os grupos da velha esquerda são desconfortáveis com a idéia de que qualquer mulher fora do “proletariado” seja oprimida. A classe trabalhadora, é claro, é um conceito maravilhosamente flexível: nos atuais debates de esquerda, abrange desde trabalhadores da ponta da produção (ponto final) até um enorme grupo que inclui cada pessoa que vende seu trabalho por salário, ou que depende de alguém que o faz. Isso é praticamente todxs nós. (Então, Papa Kari, se 90% das pessoas dos Estados Unidos são a vanguarda, por que ainda não fizemos a revolução?)

As feministas socialistas mais novas têm tentado de todas as maneiras dos modos inventivos de manter uma coesão com o pensamento marxista-leninista, atualizá-lo e trazê-lo para o feminismo radical contemporâneo. Os resultados são as vezes peculiares. Em julho de 1975, as mulheres do New American Movement e um número de grupos autônomos realizaram a primeira conferência nacional sobre feminismo socialista. Não foi especialmente divulgado em massa previamente e todo mundo pareceu surpreso que tantas mulheres (mais de 1600, mais as deixadas de fora) quisessem passar a semana do 4 de julho em Ohio.

Lendo as palestras dadas na conferência, assim como os extensos comentários escritos por mulheres que compareceram[4], não é claro o que as organizadoras da conferência pensaram o que estavam oferecendo sob o nome de “feminismo socialista”. Os Princípios da União que foram elaborados antes da conferência incluía dois itens que foram sempre associados ao feminismo radical e que na verdade são tipicamente pensados como antíteses a uma perspectiva socialista. O primeiro princípio colocava: “Nós reconhecemos a necessidade de e apoio ao movimento de mulheres autônomas através do processo revolucionário”. O segundo dizia: “Nós concordamos que toda opressão, seja baseada na raça, classe, sexo ou lesbianismo está interrelacionada e que as lutas por libertação da opressão devem ser simultâneas e cooperativas”. O terceiro simplesmente comentou que o “feminismo socialista é uma estratégia para a revolução” e o quarto e último princípio convidava a manter a discussão “no espírito da luta e união”.

Isso é, claro, uma incrível miscelânea de princípios saborosos – um menu desenhado para atrair praticamente todo mundo. Mas quando feministas “socialistas” servem o movimento de mulheres independentes como o prato principal, e quando dizem que a opressão de classe é só mais uma de muitas opressões, não mais importante do que qualquer outra, então (como seus críticos marxistas dizem) não é mais socialismo.

No entanto, feministas socialistas não seguem as implicações do feminismo radical o tempo todo. Se o fizessem, aceitariam outro princípio: que estruturas não-hierárquicas são essenciais para uma prática feminista. Isso, é claro, é demais para qualquer socialista. Mas o que significa é que o feminismo radical é muito mais compatível com um tipo de anarquismo do que com o socialismo. Esse tipo é o anarquismo social (também conhecido como anarquismo comunista), não as variedades individualistas ou anarco-capitalistas.

Isso não será novidade para feministas acostumadas com os princípios anarquistas – mas poucas feministas são. Isso é compreensível desde que o anarquismo tem se virado entre uma má publicidade e nenhuma. Se as feministas se familiarizassem com o anarquismo, não estariam olhando tanto para o socialismo como um meio de combater a opressão sexista. As feministas tem de ser céticas a qualquer teoria social que vem com um conjunto embutido de líderes e seguidores, não importa o quão “democrática” essa estrutura centralizada se supõe ser. Mulheres de todas as classes, raças e circunstancias de vida tem estado na posição de receptoras da dominação por tempo demais para querer trocar um grupo de mestres por outro. Nós sabemos quem tem poder e (com poucas exceções isoladas) não somos nós.

Várias feministas anarquistas contemporâneas apontaram para as conexões entre anarquismo social e feminismo radical. Lynne Farrow disse que “o feminismo pratica o que o anarquismo prega”. Peggy Kornegger acredita que as “feministas tem sido há anos anarquistas inconscientes tanto na teoria quanto na prática”. E Marian Leighton coloca que ” a distinção refinadora entre feminismo radical e anarco-feminismo é a basicamente aquela em que se dá um passo de desenvolvimento teórico auto-consciente”[5].

Nós construímos autonomia

O processo sempre crescente de síntese

Para toda criatura viva

Nós espalhamos

Espontaneidade e criação

Nós aprendemos os prazeres da igualdade

De relacionamentos

Sem domínio

Entre irmãs.

Nós destruímos a dominação

Em todas as suas formas.

Essa canção apareceu no jornal It Aint Me Babe[6] cujo título principal dizia “acabe com todas a hierarquias”. Não se classificava como um jornal anarquista (ou anarco-feminista), mas as conexões são impressionantes. Exemplificou muito do que a libertação da mulher se tratava nos primeiros anos de ressurgimento do movimento. E é esse espírito que vai ser perdido se o híbrido socialista feminista se enraizar; se as adorações à deusa ou a nação lésbica convencerem às mulheres a estabelecerem novas formas de dominação-submissão.

Feminismo Radical e Feminismo Anarquista

Todas as feministas radicais e todas as feministas anarquistas-sociais estão preocupadas com um conjunto de questões em comum: controle sobre o próprio corpo; alternativas à família mono-nuclear e à heterossexualidade; novos métodos de criação de crianças que libertem mães/pais e crianças; auto-determinação econômica; acabar com os estereótipos sexuais na educação, na mídia, no trabalho; a abolição de leis repressivas; um fim à autoridade , direito de propriedade e controle masculin0s sobre as mulheres; prover às mulheres meios de desenvolver habilidades e tomar atitudes positivas; um fim para os relacionamentos emocionais opressivos; e o que os Situacionistas chamaram de “a reinvenção da vida cotidiana”.

Existem, então, muitas questões em que as feministas radicais e as feministas anarquistas concordam. Mas as feministas anarquistas estão preocupadas com algo mais. Porque são anarquistas, elas trabalham para acabar com todas as relações de poder, todas as situações em que alguém pode oprimir outra pessoa. Diferente de algumas feministas radicais que não são anarquistas, elas não acreditam que poder nas mãos das mulheres poderia levar a uma sociedade não-coercitiva. E diferente de muitas feministas socialistas, elas não acreditam que nada bom possa sair de um movimento de massas com uma liderança de elite. Em resumo, nem um Estado dos trabalhadores, nem um matriarcado vai acabar com a opressão de qualquer um. O objetivo, então, não é “conquistar” o poder, como socialistas incitam, mas abolir o poder.

Contrariamente a crença popular, todxs anarquistas sociais são socialistas. Isso é, querem tirar a riqueza das mãos de poucos e redistribuí-la entre todos os membros da comunidade. E acreditam que as pessoas precisam  contribuir umas com as outras como uma comunidade, ao invés de viver como indivíduos isolados. Para anarquistas, no entanto, os problemas centrais são sempre poder e hierarquia social. Se um estado – mesmo um estado representando os trabalhadores – continua, vai reestabelecer formas de dominação, e algumas pessoas não vão mais ser livres. As pessoas não são livres só porque estão sobrevivendo, ou até economicamente confortáveis. Elas são livres somente quando elas tem poder sobre suas próprias vidas. Mulheres, muito mais do que muitos homens, tem muito pouco poder sobre suas próprias vidas. Obter essa autonomia e insistir para que todxs a tenham, é o objetivo principal das anarquistas feministas.

O poder à ninguém, e poder a todxs: para cada umx o poder sobre sua própria vida, e não outros.[7]

Na prática

Essa é a teoria. E quanto a prática? Novamente, o feminismo radical e o anarquista tem muito mais em comum do que com o socialista. Ambos trabalham para criar estruturas alternativas e ambos levam a política do pessoal muito a sério. Feministas socialista são menos inclinadas a pensar que isso é particularmente vital para a prática revolucionária.

Desenvolver formas alternativas de organização significa construir self-help [especializadas e organizadas por mulheres] clínicas, ao invés de lutar para colocar uma radical no quadro de diretores de um hospital; significa grupos de vídeo e jornais de mulheres, ao invés de televisões e jornais comerciais; viver em coletivos, ao invés de famílias nucleares isoladas; centros de crise de estupro; cooperativas de comida; creches controladas pelos pais; escolas livres; cooperativas de editoras; grupos de radio alternativos, e assim em diante.

Ainda, não faz nenhuma melhoria construir instituições alternativas se as estruturas imitam os modelos capitalistas e hierárquicos dos quais somos tão familiarizadxs. Muitas feministas radicais reconheceram isso cedo: é por isso que elas trabalharam para mudar a maneira como as mulheres percebiam o mundo e a si mesmas (através de um grupo de tomada de consciência), e porque elas trabalharam para mudar as formas de relacionamento no trabalho e interações interpessoais (através dos grupos pequenos, sem líderes onde as tarefas eram rotativas e habilidades e conhecimento divididos). Elas estavam tentando fazer isso em uma sociedade hierárquica que não nos dá modelos a não ser os da desigualdade. Certamente, um conhecimento sobre teoria anarquista e modelos de organização teria ajudado. Equipadas desse conhecimento, as feministas radicais talvez teriam evitado alguns dos erros que fizeram – e talvez estivessem melhor capacitadas para superar algumas das dificuldades elas encontraram ao tentar simultaneamente transformar a si mesmas e a sociedade.

Tome, por exemplo, o debate ainda corrente das “mulheres fortes” e a questão intimamente ligada da liderança. A posição das feministas radicais pode ser resumida dessa forma:

1- As mulheres tem sido minorizadas porque estão isoladas umas das outras e estão emparelhadas com homens em relações de dominação e submissão.

2- Os homens não vão libertar as mulheres; as mulheres devem libertar a si mesmas. Isso não pode acontecer se cada mulher tenta se libertar sozinha. Assim, as mulheres devem trabalhar juntas em um modelo de ajuda mútua.

3- “A irmandade é poderosa”, mas as mulheres não podem ser irmãs se recapitulam padrões masculinos de dominação e submissão.

4- Novas formas organizacionais devem ser desenvolvidas. A forma básica é o pequeno grupo sem liderança; os comportamentos mais importantes são o igualitarismo, apoio mútuo e o compartilhamento de habilidades e conhecimento.

Se muitas mulheres aceitam isso, muitas mais não. Algumas eram contra desde o começo; outras viram de primeira que isso era difícil de por em prática, e lamentavelmente concluíram que um idealismo tão bonito nunca funcionaria.

Suporte ideológico àquelxs que rejeitam os princípios apresentados pelas “anarquistas inconscientes” foi dado em dois documentos que circularam rapidamente entre jornais e organizações de libertação das mulheres. O primeiro foi o discurso feito por Anselma dell’Olio no segundo Congresso por União das Mulheres, que aconteceu em maio de 1970 em Nova Iorque. O discurso, intitulado Divisão e Auto-Destruição no Movimento das Mulheres: Uma Carta de Desligamento [Resignation, abandono], dava os motivos de Dell’Olio para sair do movimento. O segundo documento foi A Tirania da Falta de Estrutura de Joreen, que apareceu pela primeira vez em 1972 na Segunda Onda. Ambos levantaram questões sobre práticas organizacionais e pessoais que foram, e ainda são, tremendamente importantes para o movimento das mulheres.

“Eu venho anunciar minha derradeira participação no movimento das mulheres… Eu fui destruída… Eu aprendi há 3 anos e meio atrás que as mulheres sempre foram divididas umas com as outras, que eram auto-destrutivas e repletas de raiva impotente. Eu nunca sonhei que veria o dia em que essa raiva, mascarada de um radicalismo pseudo-igualitário sob a bandeira de “pro-mulher”, se tornaria fascismo anti-intelectual assustadoramente vicioso da esquerda, e usado dentro do movimento para derrubar irmãs apontadas com toda sutileza e justiça de uma corte do Ku Klux Klan. Estou me referindo, é claro, ao ataque pessoal, evidente e odioso, que mulheres do movimento, as quais penosamente conseguiram algum grau de realização, foram submetidas… Se você é… realizada é imediatamente rotulada de uma aventureira oportunista, uma cruel mercenária, tentando ganhar fama e fortuna por aí em cima dos cadáveres de irmãs altruístas que queimaram suas habilidades e sacrificaram suas ambições pela glória maior do Feminismo… se você teve a desgraça de ser sincera e clara, você é acusada de ser louca por poder, elitista, racista, e por fim o pior adjetivo: IDENTIFICADA COM A MASCULINIDADE”[9]

Quando Anselma Dell’Olio deu esse adeus raivoso ao movimento, fez duas coisas: para algumas mulheres, trouxe a questão de como as mulheres podem em relações de poder desiguais entre elas sem destruir uma a outra. Para outras, causou quase o oposto – deu justificativa fácil para todas as mulheres que têm dominado outras mulheres de uma forma não-irmã. Qualquer uma que fosse envolvida com a libertação das mulheres naquele tempo sabe que a declaração de Dell’Olio foi retorcida por algumas mulheres exatamente dessa maneira: Chame a si mesma de assertiva (enérgica/segura), ou forte, ou talentosa e você pode dar outro nome a uma boa porção de comportamentos feios, insensíveis e opressores. As mulheres que se apresentam como heroínas trágicas destruídas por suas “irmãs” invejosas ou disfarçadas (e, é claro, muito menos talentosas) podem contar com a resposta compreensiva de algumas mulheres.

Da mesma forma, as mulheres que estavam envolvidas com o movimento naquele tempo sabem que o tipo de coisa que Dell’Olio falou sobre realmente aconteceram, e elas não deviam ter acontecido. Um conhecimento de teoria anarquista não é o bastante, é claro, para prevenir ataques indiscriminados a mulheres. Mas na luta de aprender novas formas de se relacionar e trabalhar umas com as outras, tal conhecimento poderia – só poderia – ter prevenido alguns desses erros destrutivos.

Ironicamente esses erros foram motivados pela aversão do feminismo radical pelas formas convencionais de poder, e o as relações pessoais desumanas que resultam de um grupo de pessoas tendo poder sobre outras. Quando as feministas radicais e as feministas anarquistas falam de abolir o poder, elas querem dizer se livrar de todas as instituições, todas as formas de socialização, todas as maneiras em que as pessoas são coercitivas com outras – e se sujeitam a serem coagidas.

Um problema maior surgiu ao definir a natureza da coerção no movimento das mulheres. A hostilidade contra a mulher “forte” surgiu porque ela poderia, pelo menos potencialmente, ser coercitiva com mulheres que fossem menos articuladas, menos auto-confiantes, menos contundentes do que ela. A coerção costuma ser muito mais sutil do que a força física ou a sanção econômica. Uma pessoa pode ser coercitiva com outra sem tirar seu emprego, ou golpeá-la ou a atirando na cadeia.

As mulheres fortes começaram com uma vantagem tremenda. Muitas vezes, elas sabiam mais. Certamente elas tinham há muito tempo superado a socialização traumatizante que enfatizou o comportamento passivo, tímido, dócil, conformista – o comportamento que ensinou as mulheres a sorrir quando não estão achando graça, a sussurrar quando querem gritar, a abaixar os olhos quando alguém olha agressivamente para elas. As mulheres fortes não estavam aterrorizadas de falar em público; elas não estavam com medo de fazer tarefas “masculinas”, ou de tentar algo novo. Ou pelo menos pareceu isso.

Ponha uma mulher “forte” no mesmo grupo pequeno que mulheres “fracas”, e ela se torna um problema: Como ela não domina? Como ela compartilha suas confidencias e habilidades arduamente adquiridas com suas irmãs? Do outro lado – como as mulheres “fracas” aprendem a agir por conta própria? Como alguém pode conceber a ajuda “mútua” numa situação de mão-única? De “irmandade” quando os membros “fracos” não se sentem iguais ao membro “forte”?

Essas são perguntas complicadas, sem respostas simples. Talvez o mais próximo que possamos chegar é com o lema anarquista, “um povo forte não precisa de líderes”. Aquelxs de nós que aprendemos a sobreviver dominando outrxs, assim como aquelxs que aprenderam a sobreviver aceitando a dominação, precisamos re-socializar nós mesmxs a sermos fortes sem jogar jogos de dominação-submissão, a controlar o que acontece conosco sem controlar xs outrxs. Isso não pode ser feito elegendo as pessoas certas para cargos ou seguindo a linha certa de partido; nem pode ser feito sentando e refletindo sobre nossos pecados. Nós reconstruímos nós mesmas e o mundo através da atividade, através de sucessos parciais, fracasso, e mais sucessos parciais. E a todo tempo ficamos mais fortes e auto-confiantes.

Se Anselma dell’Olio criticou a prática pessoal das feministas radicais, Joreen levantou algumas questões pesadas sobre a estrutura organizacional. A Tirania da Falta de Estrutura [10] mostrou que não existe isso de um grupo “sem estrutura” e as pessoas que alegam existir estão enganando a si mesmas. Todos os grupos tem uma estrutura; a diferença é se a estrutura está ou não explícita. Se está implícita, elites escondidas certamente existirão e controlarão o grupo – e todo mundo, xs líderes e xs lideradas, vai negar ou ficar confuso pelo controle que existe. Essa é a “tirania” da falta de estrutura. Para superar isso os grupos precisam definir estruturas explícitas, abertas, que sirva a associação.

Qualquer feminista anarquista, eu acho, concordaria com a análise dela – até esse ponto e nada além. Joreen também disse que os auto-entitulados “grupos sem liderança e sem estrutura” eram incapazes de ir além da teoria para a ação. Não somente sua falta de estrutura aberta, mas também seu pequeno tamanho e ênfase na tomada de consciência (teoria) estavam destinadas a fazer dele ineficaz.

Joreen não disse que os grupos de mulheres devem ser hierarquicamente estruturados. Na verdade ela tratou de uma liderança que seria “difusa, flexível, aberta e temporária”; para organizações que pretendiam construir responsabilidade, difusão do poder entre o maior número de pessoas, rotatividade de tarefas, compartilhar habilidades, e disseminar informação e fontes. Todos os bons princípios de organização do anarquismo social! Mas a minorização dela a cerca da tomada de consciência e sua preferência por organizações grandes regionais e nacionais estavam estreitamente ligadas a velha forma de fazer as coisas, e implicitamente aceitava a manutenção de estruturas hierárquicas.

Grupos grandes são organizados de forma que o poder e a tomada de decisões são delegadas para poucos – a não ser, é claro, que se esteja falando de uma rede horizontalmente coordenada de pequenos coletivos, o que ela não mencionou. Como um grupo como o NOW (Organização Nacional de Mulheres), com seus 60.000 membros em 1975, distribui tarefas, divide habilidades e assegura que todas as informações e fontes estejam disponíveis para todo mundo? Não consegue, é claro. Grupos assim tem um presidente, tem um quadro de diretores, um escritório nacional, e associados – alguns dos quais estão em filiais locais, alguns são membros isolados. Poucos desses grupos tem democracia direta e poucos ensinam seus membros novas formas de trabalhar e se relacionar uns com os outros.

O efeito infeliz de A Tirania da Falta de Estrutura é que pôs junto grandes organizações, estrutura formal e ações diretas bem sucedidas de uma forma que pareceu fazer sentido para muitas pessoas. Muitas mulheres sentiram que para combater a opressão social, uma organização grande era essencial, e que quanto maior melhor. A imagem é força confrontando força: Você não mata um elefante com uma pistola de ar, e você não derruba o Estado patriarcal com um grupo pequeno. Para mulheres que aceitam o argumento de que o maior tamanho está relacionada com a maior efetividade, as opções organizacionais parecem limitadas a grandes grupos liberais como o NOW ou a organizações socialistas que são organizações de massa.

Assim como muitas coisas que parecem fazer sentido, a lógica é defeituosa. “Opressão social” é uma reificação, uma entidade inventada, paralizante e exagerada que é basicamente no sentido de que as mesmas opressões acontecem com muitxs de nós. Mas as opressões, não importa o quão universais (penetrantes), o quão previsíveis, quase sempre nos são feitas por alguém – mesmo se essa pessoa está agindo como agente do Estado, ou como um membro da raça, gênero ou classe dominante. As investidas massivas da polícia sobre nossas forças organizadas são poucas; até o policial ou o chefe ou o marido que está exercendo sua porção de sexismo ou papel autoritário nos intersepta num dado ponto da nossa vida cotidiana. A opressão institucionalizada existe, em larga escala, mas raramente precisa ser atacada (na verdade, raramente pode ser atacada) por um grande grupo. Táticas de guerrilha feitas por um pequeno grupo – ocasionalmente até por um único indivíduo – servirão muito bem para retaliação.

Outro efeito infeliz da mentalidade da Tirania da Falta de Estrutura é que alimentou os estereótipos  das pessoas sobre anarquistas. (É claro que as pessoas só consomem algo se demandam por algo). Anarquistas sociais não são opostos à estrutura: nem sequer são contrários à liderança, desde que não acarrete nenhuma recompensa ou privilégio, e que seja temporária e específica para uma meta particular. No entanto, xs anarquistas, que desejam abolir uma estrutura hierarquizada, são quase sempre estereotipadxs como não querendo nenhuma forma de estrutura. Infelizmente, a imagem de um bando de mulheres anarquistas, desorganizadas e caóticas, vagando à deriva sem direção, pegou. Por exemplo, em 1976 a Quest relançou e editou a transcrição de uma entrevista que Charlott Bunch e Beverly Fisher deram para a Feminist Radio Network em 1972. De um lado, o mais interessante da entrevista é que xs editorxs da Quest sentiram que as questões estavam ainda em dia em 1976. [11] (“Nós vemos o mesmo desprezo por líderes e glorificação da falta de estrutura que existia há uns anos atrás” p.13). Mas o que Bunch tinha a dizer naquele tempo era também extremamente interessante: de acordo com ela, a ênfase em resolver problemas de estrutura e liderança era “um desejo anarquista muito forte. Era um desejo bom, mas irrealista” (p.4).

Anarquistas, acostumadxs a serem chamadxs de “irrealistas”, notarão que a irrealidade daquilo tudo aparentemente estava nos problemas que o movimento das mulheres estava tendo em organizar a si mesmo – problemas de liderança oculta, de “líderes” impostxs pela mídia, a dificuldade de alcançar mulheres interessadas mas não envolvidas, do super-representação de mulheres de classe média cheias de tempo sobrando, do movimento amorfo, da escassez de grupos com metas específicas que as mulheres possam aderir, da hostilidade contra mulheres que tentaram demonstrar liderança ou iniciativa. Uma acusação pesada! Ainda assim, esses problemas sérios não foram causados pelo anarquismo, nem serão sanados com doses de vanguardismo ou reformismo. E ao taxarem essas dificuldades organizacionais de “anarquistas”, as feministas ignoram uma rica tradição anarquista, enquanto ao mesmo tempo propõe soluções que são -embora aparentemente elas não saibam – anarquistas. Bunch e Fisher expuseram um modelo de liderança no qual todxs participam na formulação das decisões; e a liderança é específica para uma situação em particular e por tempo limitado. Fisher criticou o NOW por ter “uma liderança hierárquica que não tem responsabilidade com a vastidão de membros”(p.9) e Bunch colocou, “liderança são pessoas tomando iniciativa, dando meios das coisas acontecerem, tendo idéias e imaginação para começar algo, e apresentando habilidades particulares para areas diferentes”(p.8). Como elas sugerem que nós previnamos o silenciamento dessas mulheres sobre falsas noções de igualdade? “A única forma das mulheres pararem de depreciar mulheres fortes, é que elas mesmas sejam fortes” (p.12). Ou, como disse antes, um povo forte não precisa de líderes. E tenho o dito!

Situacionismo e feminismo anarquista

“Transformar o mundo e mudar a estrutura da vida são a mesma única coisa”. [12]

“O pessoal é político”. [13]

Os anarquistas estão acostumadxs a ouvir que elxs não tem uma teoria que ajude a construir uma nova sociedade. Na melhor das hipóteses, dizem paternalmente seus detratores, o anarquismo nos diz o que não fazer. Não permite burocracia ou estruturas hierárquicas; não deixa um grupo de vanguarda tomar as decisões; não pise em mim. Não pise em ninguém. De acordo com essas perspectiva, o anarquismo não é de forma alguma uma teoria. É um conjunto de práticas cautelosas, as vozes da consciência libertária – sempre idealista, as vezes um pouco truculenta, ocasionalmente anacrônica, mas um lembrete necessário.

Existe mais de um núcleo de verdade nessa objeção. Da mesma forma, existem variados pensamentos anarquistas que podem oferecer um enquadramento teórico para analisar o mundo e tomar atitudes para mudá-lo. Para as feministas radicais que querem dar esse “passo em direção a um desenvolvimento teórico auto-consciente” [14], talvez o maior potencial esteja no Situacionismo.

O valor do Situacionismo para uma análise anarca-feminista é que ele combina a consciência socialista dos primórdios da opressão capitalista com a ênfase anarquista em transformar tanto a vida pública como a privada. O ponto da opressão capitalista é importante: com muita frequencia anarquistas parecem esquecer que esse sistema econômico explora a maioria das pessoas. Mas com muita frequencia socialistas – especialmente marxistas – estão cegos para o fato de que as pessoas são oprimidas em todos os aspectos da vida: trabalho, lazer, cultura, relacionamentos pessoais – todos. E somente xs anarquistas insistem que as pessoas devem transformar as condições de suas vidas elas mesmas – ninguém pode fazer isso por elas. Nem o partido, nem o Estado, nem “organizadores”, nem ninguém.

Dois conceitos básicos do Situacionismo são “mercadoria” e “espetáculo”. O capitalismo fez de todas as relações sociais, relações de mercado: O Mercado manda em tudo. As pessoas não são apenas produtoras e consumidoras no estreito sentido econômico, mas a estrutura de sua vida cotidiana é baseada em relações financeiras. A sociedade “é consumida como um todo – o conjunto das relações sociais e estruturas é o produto central da economia de mercado” [15]. Isso inevitavelmente alienou as pessoas de suas vidas, não só do trabalho; consumir relações sociais faz da pessoa uma espectadora passiva de sua própria vida. O espetáculo, então, é a cultura que nasce da economia de mercado – o palco está montado, a ação de desenrola, nós aplaudimos quando pensamos que estamos felizes, nós bocejamos quando achamos que estamos entediados, mas não podemos deixar o show, porque não existe mundo fora do teatro para irmos.

Nos últimos anos, no entanto, o palco social tem começado a esfacelar-se, e assim existe a possibilidade de construir um outro mundo fora do teatro – dessa vez, um mundo real, onde cada umx de nós participa como sujeito e não como objeto. A frase situacionista para essa possibilidade é “a reinvenção da vida cotidiana”.

Como a vida cotidiana pode ser recriada? Criando situações que rompam com o que parece ser a ordem natural das coisas – situações que sacudam as pessoas para fora da forma costumeira de pensar e agir. Só então elas terão meios de agir, de destruir o espetáculo manufaturado e a economia da mercadoria- isto é, o capitalismo em todas as suas formas. Só assim elas estarão livres para criar vidas livres e não alienadas.

A congruência desse ativismo, a teoria do anarquismo social com a teoria do feminismo radical é surpreendente. Os conceitos de mercadoria e espetáculo são especialmente aplicáveis às vidas das mulheres. Na verdade, muitas feministas radicais descreveram eles em detalhe, sem localizá-los no quadro situacionista [16]. Fazer isso abrange a análise ao mostrar a situação da mulher como parte orgânica da sociedade como um todo, mas ao mesmo tempo sem jogar os jogos reducionistas do socialismo. A opressão das mulheres é parte da opressão geral da economia capitalista sobre as pessoas, mas não é menos uma opressão do que as outras. Nem – de uma perspectiva situacionista- você precisa ser de um tipo particular de mulher para ser oprimida; você não precisa ser parte do proletariado, tanto literalmente enquanto uma trabalhadora industrial, nem metaforicamente como alguém que não é rico. Você não tem que esperar ansiosamente por um manifesto socialista feminista para lhe dizer que você tem os requisitos – como dona de casa (reproduzindo a próxima geração de trabalhadores), como trabalhadora de escritório, como estudante ou profissional de classe média empregada pelo Estado (e assim parte da “nova classe trabalhadora”). Você não precisa ser parte do terceiro mundo, ou lésbica, ou idosa, ou alvo de políticas de bem-estar. Todas essas mulheres são objetos na economia de mercado; todas são espectadoras passivas do espetáculo. Obviamente, mulheres em algumas situações estão muito piores do que outras. Mas, ao mesmo tempo, nenhuma delas é livre em todas as áreas de suas vidas.

Mulheres e a Economia de Mercado

As mulheres têm um relacionamento dual com a economia de mercado – elas são ao mesmo tempo consumidoras e consumidas. Como donas de casa, elas são consumidoras de bens domésticos comprados com dinheiro que não pertence a elas, porque não foi “ganho” por elas. Isso deve dar a elas uma certa quantidade de poder de consumo, mas muito pouco poder sobre qualquer aspecto de suas vidas. Como jovens e heterossexuais solteiras, as mulheres consomem bens feitos para dar um alto preço no mercado do casamento. Como qualquer outra coisa –    como lésbica, ou como solteira em idade avançada, ou como mulher auto-suficiente com “carreira”, o relacionamento das mulheres com o mercado enquanto consumidoras não é tão bem definido. Se espera que elas comprem (e quanto melhor sua situação, mais se espera que elas comprem), mas para algumas categorias de mulheres, comprar não é definido primordialmente como o papel que uma mulher deve desempenhar.

Então o que mais é novidade? Não é a idéia da mulher como consumidora passiva, manipulada pela mídia e que se envolve com homens viscosos um cliche exagerado do movimento? Bem, sim – e não. Uma análise situacionista amarra o consumo de bens econômicos ao consumo de bens ideológicos, e então, nos diz para criarmos situações (ações de guerrilha em diversos níveis) que quebrem esse padrão de aceitação social do mundo como ele é. Sem acusações; não vou criticar mulheres que “compraram” a perspectiva de consumidora. Para aquelas que realmente compraram: isso foi vendido a elas como um meio de sobrevivência desde os primeiros momentos de suas vidas. Compre isso: Tornará você bonita e adorável. Compre isso: Vai deixar sua família mais saudável. Está deprimida? Se trate com um dia no salão de beleza ou com um novo vestido!

A culpa leva a inação. Somente a ação, para re-inventar a vida cotidiana e torná-la outra coisa, mudará as relações sociais.

O Presente

Pensando que ela era o presente

Eles começaram a empacotá-la antes do tempo.

Eles poliram seu sorriso

Eles abaixaram os seus olhos

Eles plugaram suas orelhas no telefone

eles fizeram cachinhos em seu cabelo

eles endireitaram os dentes

eles a ensinaram a enterrar seus desejos

eles derramaram mel pela sua goela a baixo

eles a fizeram dizer sim, sim e sim

eles a deixaram imobilizada

Aquela caixa tem meu nome,

disse o homem. É para mim.

E eles não estavam surpresos.

Enquanto eles sopravam beijinhos e me piscavam

ele levou pra casa. Colocou na mesa

onde seus amigos podiam averiguar

dizendo dance, dizendo mais rápido.

Ele a afundou para longe da saída

e queimou o nome dele mais fundo.

Depois ele a colocou em uma plataforma

debaixo dos holofotes

dizendo vai, dizendo mais forte

dizendo assim que eu queria

você me deu um filho.

Carole Oles [17]

As mulheres não são apenas consumidoras na economia de mercado; elas são consumidas como mercadoria. É disso que fala o poema de Oles, e isso é o que Tax chamou de “esquizofrenia feminina”. Tax constrói um monólogo interior para a dona-de-casa-mercadoria: “Não sou nada quando estou sozinha comigo mesma. Em mim mesma, não sou nada. Só sei que existo se sou desejada por alguém que é real, meu marido, e pelos meus filhos”.[18]

Quando as feministas descrevem a socialização nos papéis sexuais de mulher, quando elas apontam as características que garotas são ensinadas a ter (dependência emocional, infantilidade, timidez, preocupação em ser bonita, docilidade, passividade e assim vai), elas estão falando da fabricação cuidadosa de um produto – apesar de não se chamar assim normalmente. Quando elas descrevem a opressão da objetificação sexual, ou de viver em família nuclear, ou de ser uma Supermãe, ou de ser trabalhadora precarizada, subempregos com baixo salário que são ocupados majoritariamente por mulheres, elas também estão descrevendo a mulher enquanto mercadoria. As mulheres são consumidas por homens que as tratam como objetos sexuais; são consumidas por seus filhos (que elas mesmas produziram!) quando eles compram o papel da Supermãe; são consumidas por maridos autoritários que esperam que elas sejam servas submissas; e elas são consumidas por patrões que as mantém instáveis na força de trabalho ativa e que extraem o máximo trabalho pelo menor salário. Elas são consumidas por pesquisadores médicos que experimentam nelas novos e inseguros contraceptivos. São consumidas por homens que compram seus corpos nas ruas. São consumidas pelo Estado e pela Igreja, que esperam que proliferem a próxima geração pela glória de deus e do país; são consumidas por organizações políticas e sociais que esperam que elas “voluntariem” seu tempo e energia. Elas tem pouca noção de si mesmas porque sua pessoa enquanto identidade foi vendida para os outros.

Mulheres e o Espetáculo

É difícil consumir pessoas que travaram uma luta, que resistem à canibalização de seus corpos, mentes e suas vidas. Algumas pessoas tentam resistir, mas não o fazem de forma efetiva, porque não podem. É difícil localizar nosso carrasco, porque é tão difuso, tão familiar. Nós o conhecemos a vida inteira. É a nossa cultura.

Os situacionistas caracterizam nossa cultura como um espetáculo. O espetáculo nos trata a todxs como espectadorxs passivxs do que nos dizem ser nossas vidas. E a cultura-como-espetáculo cobre a tudo: nós nascemos nisso, somos socializadas nisso, vamos para a escola nisso, trabalhamos, relaxamos e nos relacionamos com outras pessoas dentro disso. Mesmo quando nos rebelamos contra isso,  a rebelião geralmente é definida pelo espetáculo. Alguém se importaria em fazer uma estimativa de quantos homens adolescentes sensíveis e alienados que há uma geração atrás  modelaram seu comportamento como James Dean em Juventude Transviada? Estou falando de um filme, cujos produtores capitalistas e cujo astro fizeram uma bagatela em dinheiro com seu espatáculo.

Os atos rebeldes, tendem então a serem atos contra o espetáculo, mas raramente diferem dele ao ponto de transcender o espetáculo. As mulheres tem uma série de comportamentos que demonstram insatisfação em ser o oposto do que se espera. Ao mesmo tempo esses atos são cliches da rebeldia, e assim são quase prescritas como válvulas de escape seguras que não alteram o teatro em nossas vidas. O que se espera que uma mulher rebelde faça? Podemos todos nomear as atitudes – elas aparecem em todos os jornais, no horário nobre da TV, nas lista dos best-sellers, nas revistas populares – e, é claro, na vida cotidiana. Num contexto em que se preza pela manutenção perfeita da casa, ela pode ser uma desleixada; em uma subcultura que preza por grandes famílias, ela pode se negar a ter filhos. Alguma outra insurgência previsível? Ela pode desafiar o padrão de binarismo sexual para mulheres casadas tendo um caso (ou muitos); ela pode beber; ou ela pode usar o que é visto como linguagem de “baixo calão”; ou ela pode ter uma crise nervosa; ou -se ela é adolescente- pode ter um impulso e fugir de casa e transar com muitos homens.

Qualquer uma dessas coisas pode tornar a vida de uma mulher individualmente mais tolerável (com frequência também fazem o contrário); todas elas são garantias para o discurso conservador de que a sociedade está ruindo. Mas esses tipos de insurreições previstas não a fizeram ruir ainda, e, por si só, não farão. Qualquer coisa menos que um ataque direto a todas as condições de nossas vidas não será o bastante.

Quando as mulheres falam de mudar os papéis sexuais destrutivos em que são socializadas, elas escolhem uma das 3 soluções possíveis: (a) garotas devem ser socializadas mais ou menos como garotos para serem independentes, competitivas, agressivas e assim por diante. Em poucas palavras, como é um mundo dos homens, as mulheres que querem se encaixar dele devem ser “como um dos caras”. (b) devemos glorificar o papel de gênero feminino e perceber que aquilo que havíamos chamado de fraqueza, na verdade é força. Devemos ser orgulhosas de ser maternais, provedoras, sensíveis, emotivas… e assim por diante. (c) As pessoas andrógenas são as únicas saudáveis: devemos erradicar as fronteiras artificiais que dividem a humanidade entre masculino e feminino, e ajudar ambos a se tornarem uma mistura do que há de melhor traço em cada.

Com esses três modelos, as possibilidades de soluções pessoais para problemas de opressão sexista são bem abrangentes: ficar solteira; viver em comunidade (com homens e mulher ou apenas com mulheres). Não ter filhos; não ter filhos homens; ter quantos filhos quiser, mas deixar que seus parentes cuidem ou pagar alguém/alguma instituição para cuidar deles. Ter um emprego; conseguir um emprego ainda melhor; fazer pressão para receber ações afirmativas. Ser uma consumidora informada; vestir a camisa de uma causa;  aprender karate; receber treinamento de auto-confiança. Desenvolver a lésbica dentro de você. Desenvolver sua identidade de proletariada. Tudo isso faz sentido em algumas situações, para algumas mulheres. Mas todas elas são soluções parciais para problemas muito maiores, e nenhuma delas implica necessariamente em ver o mundo de forma qualitativamente diferente.

Assim, vamos de soluções particulares para mais gerais. Destruir o capitalismo. Acabar com o patriarcado. Derrubar o heterossexismo. Todas são tarefas óbvias na construção de um mundo novo e verdadeiramente humano. Marxistas, outros socialistas, anarquistas sociais, feministas – todos concordariam. Mas o que o socialismo, e até alguns feminismos, deixam de fora é isso: devemos destruir todas as formas de dominação. Isso não é só um slogan, e é a tarefa mais difícil de todas. Significa que devemos enxergar através do espetáculo, destruir os cenários e palcos, saber que existem outras formas de fazer as coisas. Significa que devemos fazer mais que reagir em rebeliões programadas – devemos agir. E nossas ações serão feitas coletivamente enquanto cada um age anonimamente. Parece contraditório? Não é – mas será muito difícil de fazer. O indivíduo não consegue mudar muita coisa, por essa razão devemos agir juntxs. Mas esse trabalho deve ser feito sem líderes como conhecemos até então, sem delegar nenhum controle sobre o que fazemos e sobre o que queremos construir.

Os socialistas podem fazer isso? Ou as matriarcas? Ou o pessoal das viagens espirituais? Você sabe a resposta. Trabalhe com elxs quando fazer sentido que se deva trabalhar, mas não abra mão de nada. Não ceda nada a eles ou a nenhuma outra pessoa.

O passado nos leva a algum lugar se o forçamos a isso.

Caso contrário, ele nos mantém

em seu asilo sem portões.

Ou nós fazemos a história,

ou ela nos faz. [19]

  • 1. Barbara Ehrenreich, “What is Socialist Feminism?”, Win Magazine, June 3, 1976, p.4.
  • 2. The best of these arguments I’ve encountered are “Socialist Feminism; A Strategy for the Women’s Movement”, by the Hyde Park Chapter, Chicago Women’s Liberation Union, 1972; and Charlotte Bunch, “The Reform Tool Kit”, Quest, 1:1, Summer 1974, pp.37-51.
  • 3. Reports by Polly Anna, Kana Trueblood, C. Corday and S. Tufts, The Fifth Estate, May, 1976, pp. 13, 16. The ” revolution” failed: FEN and its club shut down.
  • 4. People who are interested in reading reports of the conference will find them in almost every feminist or socialist newspaper that appeared in the month or so after July 4th. Speeches by Barbara Ehrenreich, Michelle Russell, and the Berkeley-Oakland Women’s Union are reprinted in Socialist Revolution, No. 26, October-December 1975; and the speech by Charlotte Bunch, “Not for Lesbians Only”, appears in Quest, 2:2, Fall 1975. A thirty-minute audiotape documentary is available from the Great Atlantic Radio Conspiracy, 2743 Maryland Avenue, Baltimore, Maryland 21218.
  • 5. Farrow, “Feminism as Anarchism”, Aurora, 4, 1974, p.9; Kornegger, “Anarchism: The Feminist Connection”, Second Wave, 4: 1, Spring 1975, p.31; Leighton, “Anarcho-Feminism and Louise Michel”, Black Rose, 1, April 1974, p. 14.
  • 6. December, 1, 1970, p.11.
  • 7. Lilith’s Manifesto, from the Women’s Majority Union of Seattle, 1969. Reprinted in Robin Morgan (ed.), Sisterhood is Powerful. N.Y.: Random House, 1970, p.529.
  • 8. The best and most detailed description of the parallels between radical feminism and anarchist feminism is found in Kornegger, op cit.
  • 9. The speech is currently available from KNOW, Inc.
  • 10. The Second Wave, 2:1, 1972.
  • 11. “What Future for Leadership?”, Quest, 2:4, Spring 1976, pp.2-13.
  • 12. Strasbourg Situationists, Once the Universities Were Respected, 1968, p.38.
  • 13. Carol Hanisch, “The Personal is Political”, Notes from the Second Year. N.Y.: Radical Feminism, 1970, pp. 76-78.
  • 14. Leighton, op cit.
  • 15. Point-Blank!, “The Changing of the Guard”, in Point-Blank, October 1972, p.16.
  • 16. For one of the most illuminating of these early analyses, see Meredith Tax, “Woman and Her Mind: The Story of Everyday Life”, Boston: Bread and Roses Publication, 1970.
  • 17. Carole Oles, “The Gift”, in 13th Moon, II: 1, 1974, p. 39.
  • 18. Tax, op cit., p. 13.
  • 19. Marge Piercy, excerpt from “Contribution to Our Museum”, in Living in the Open. N.Y.: Knopf, 1976, pp.74-75.

De Chiapas a Rojava: mais do que apenas coincidências

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06 Feb 2015 Por Petar Stanchev
Kurdish Question: From Chiapas to Rojava – more than just coincidences

Tradução Talita Rauber, Co-Tradução e revisão: Andreza Cassolatto

Autonomia reúne duas revoluções: na esquerda e de baixo.

“Poder para o povo” só pode
ser posto em prática quando o poder exercido pelas elites sociais é
dissolvido nas pessoas. ”
-Murray Bookchin,Anarquismo pós-escassez

e63eba4a60c5a7383338249762b2606c_L_602x298Em grande parte desconhecida até recentemente, a cidade curda de Kobane atraiu a atenção mundial à sua forte resistência [i] contra a invasão do Estado Islâmico, e tornou-se um símbolo internacional, comparada à defesa de Madrid e Stalingrado. A bravura e heroísmo das Unidades de Defesa Popular e das Unidades de Defesa da Mulher (YPG e YPJ) foram elogiados por grande parte de grupos e indivíduos – anarquistas, esquerdistas, liberais e até mesmo direitistas expressaram solidariedade e admiração pelos homens e mulheres de Kobane em sua batalha histórica contra o que foi frequentemente considerado “fascismo” do Estado Islâmico. A grande mídia foi forçada a quebrar o silêncio sobre a autonomia curda, e logo vários artigos e notícias foram transmitidos e publicados, muitas vezes retratando a “dureza” e determinação dos combatentes curdos com uma certa dose de exotismo, é claro. No entanto, essa atenção foi muitas vezes seletiva e parcial – a verdadeira essência do projeto político em Rojava (Curdistão ocidental) foi deixada de lado e a mídia preferiu apresentar a resistência em Kobane como alguma exceção estranha à suposta barbárie do Oriente Médio. Sem surpresa, a estrela vermelha, brilhando nas bandeiras vitoriosas do YPG/YPJ não era uma imagem agradável aos olhos das potências ocidentais e dos seus meios de comunicação. Os cantões autônomos de Rojava representam uma solução caseira para os conflitos no Oriente Médio, que engloba a democracia de base e direitos étnicos, sociais e de gênero, e tudo isso sendo rejeitado tanto pelo terror do Estado Islâmico como também pela democracia liberal e pela economia capitalista. Embora o Ocidente tenha preferido ficar em silêncio sobre esta questão, este fundamento ideológico é a chave para a compreensão do espírito que escreveu a epopeia de Kobane, e que fascinou o mundo, como o ativista curdo e acadêmico, Dilar Dirik, afirmou recentemente [ii].

Enquanto as batalhas em cada rua e canto da cidade intensificava, Kobane deu um jeito de cativar a imaginação da esquerda e, especificamente, da esquerda libertária como um símbolo de resistência e luta, e logo isso estava posto no panteão de algumas da mais emblemáticas batalhas da humanidade, assim como a defesa de Madrid contra os fascistas nos anos 1930. Não foi à toa que o Grupo Turco Marxista Leninista (MLKP) se juntou às YPG/YPJ no campo de batalha, levantou a bandeira da república espanhola sobre das ruínas da cidade no dia de sua libertação e chamou pela formação das Brigadas Internacionais[iii], seguindo o exemplo da revolução espanhola. Não era apenas pela batalha de Kobane em si, mas pela essência libertária dos cantões de Rojava, pela implementação de uma democracia de base de direta, pela participação das mulheres e dos diferentes grupos étnicos dentro de um governo autônomo que se deram as comparações à revolução espanhola. Outra associação brevemente mencionada em vários artigos – a revolução em Rojava e seu governo autônomo foi comparado aos Zapatistas e sua autonomia no sul do México. A importância dessa comparação pode ser crucial para entender o paradigma da luta revolucionária no Kurdistão e o que isso significa para aqueles que acreditam que outro mundo é possível.

O movimento zapatista é provavelmente um dos elementos mais simbólicos e influenciadores da imaginação revolucionária no mundo após a queda dos regimes estado-socialistas no final dos anos 80 e início dos anos 90. Na manhã de 1º de Janeiro de 1994, uma guerrilha armada e desconhecida, composta por indígenas maias, tomou as principais cidades da parte sul do estado do México – Chiapas. A operação militar foi levada adiante com uma brilhante estratégia somada à inovação da internet, o que facilitou que a mensagem se espalhasse aos revolucionários, que ecoou no globo para inspirar a solidariedade internacional e fazer emergir o movimento de Alter-Globalização. Os Zapatistas se rebelaram contra o capitalismo neoliberal e contra o genocídio cultural e social da população indígena do México. Ya Basta, Já Basta, era seu grito de guerra que emergiu na noite dos “500 anos de opressão”, como dito na Primeira Declaração da Selva Lacandona. Os Zapatistas revoltaram-se quando o capital global estava celebrando o “fim da história” e a ideia de que a revolução social parecia ser um anacronismo romântico que pertencia ao passado. O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) foi forçado para fora das cidades em 12 dias de intensas batalhas com o exército federal, mas mostrou-se que a profunda organização horizontal das comunidades indígenas não poderia ser erradicada por qualquer intervenção militar ou terror. O porta-voz mascarado do exército rebelde, Subcomandante Marcos, desafiou a noção de vanguarda histórica como oposta à revolução de base, que não tem objetivo de tomar o poder, mas abolir o poder, e esse conceito se tornou central para a maioria dos movimentos anti-capitalistas de massa desde então – das ocupações em Seattle e Genova à Syntagma e Puerta del Sol e, inclusive, o Movimento Occupy.

Onde estão as semelhanças com a revolução de Rojava?

Do Marxismo-Leninismo à Autonomia – uma trajetória histórica compartilhada

As raízes da autonomia democrática em Rojava pode ser entendida apenas através da história do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), organização que tem sido central no movimento de libertação curda desde sua criação em 1978. O PKK foi estabilizado como uma organização guerrilheira Marxista Leninista no Norte do Curdistão, parte do estado turco, combinando as ideologias de libertação nacional e social. Ele cresceu para ser uma força guerrilheira significativa sob a liderança de Abdullah Ocalan e desafiou o segundo maior exército da OTAN em um conflito que revindicou a vida de mais de 40 mil pessoas. O estado turco desalojou centenas de milhares e supostamente usou tortura, assassinatos e estupros contra a população civil, mas não foi bem sucedido ao quebrar o pilar da resistência curda. Desde sua implementação, o PKK expandiu sua influência tanto na Turquia como nas outras partes do Curdistão. A força de liderança política na Revolução de Rojava – o Partido da União Democrática (PYD) é filiado ao PKK através da União das Comunidades Curdas (CKC), organização de cúpula que abrange vários grupos politico revolucionários, compartilhando ideias do PKK. A ideologia, que une diferentes grupos civís e revolucionários ao KCK, é chamada de confederalismo democrático e é baseada nas ideias do anarquista estadunidense chamado Murray Bookchin, que argumentou a favor de uma sociedade não-hierárquica baseada na ecologia social, no municipalismo libertário e na democracia direta.

Embora os Zapatistas sejam famosos pelo seu governo autônomo e pela rejeição da noção de vanguarda histórica, as raízes da organização também são relacionadas ao marxismo-leninismo e, assim como no caso do PKK, a ideia de auto-governo e revolução vinda de baixo foram um produto de uma longa evolução histórica. O EZLN foi fundado em 1983 por um grupo de guerrilhas urbanas, predominantemente marxista-leninistas, que decidiram começar uma célula revolucionária entre a população indígena em Chiapas, organizar uma força de guerrilha e tomar o poder através da guerra de guerrilha. Logo eles perceberam que seu dogma ideológico não era aplicável às realidade indígenas e começaram a aprender as tradições comunitárias de governo do povo indígena. Assim, o Zapatismo nasceu como uma fusão entre o Marxismo, a experiência e o conhecimento da população nativa que têm resistido ambos contra a Espanha e, mais tarde, contra o estado mexicano.

Essa trajetória ideológica compartilhada demonstra uma virada histórica na compreensão do processo revolucionário. O levante e o estabelecimento zapatista da autonomia em Chiapas marcou uma ruptura com as estratégias de guerrilha tradicionais, inspirada predominantemente pela revolução cubana, esta se fez mais do que clara na carta do porta-voz do EZLN, Subcomandante Marcos, escreveu para a organização do Movimento de Libertação Nacional Basco, ETA:

“Eu cago em todas as vanguardas revolucionárias neste planeta. [iv]”

Não era a vanguarda para liderar o povo agora; era o próprio povo para construir a revolução a partir de baixo e sustentá-la como tal. Esta é a lógica que o PKK tem encaminhado na última década sob a influência de Murray Bookchin e essa mudança demonstra uma evolução da organização de um “movimento para o povo” a “um movimento do povo”.

Cantões e Caracóis – liberdade aqui e agora

Provavelmente, a semelhança mais importante entre a revolução em Rojava e em Chiapas é a reorganização social e política que está acontecendo em ambos os lugares, a qual é baseada na ideologia libertária das duas organizações.

A autonomia zapatista em sua forma atual origina-se do fracasso das negociações de paz com o governo mexicano, após a revolta em 1994. Durante as negociações de paz, os rebeldes exigiram que o governo aderisse aos acordos de San Andres, que dão aos povos indígenas o direito à autonomia, autodeterminação, educação, justiça e de organização política, com base na sua tradição bem como no controle conjunto sobre a terra e os recursos das áreas que pertencem a eles. Esses acordos nunca foram implementadas pelo governo e, em 2001, o presidente Fox apoiou uma versão editada que foi votada no Congresso, mas que não atendia às exigências dos zapatistas e dos outros grupos de resistência. Este evento foi rotulado como “traição” e levou o EZLN a declarar dois anos depois a criação das cinco zonas rebeldes, centradas em cinco Caracoles (caracóis) que servem como centros administrativos. O nome Caracoles veio para mostrar o conceito revolucionário do Zapatistas – estamos fazendo-o nós mesmos, nós aprendemos no processo e nós avançamos, lentamente, mas avançamos. Os Caracoles [v] incluem três níveis de governo autônomo – comunidade, município e Conselho do Bom Governo. Os dois primeiros são baseados em assembleias de base enquanto que os Conselhos de Bom Governo são eleitos, mas com a intenção de obter o maior número possível de pessoas para participar do Governo ao longo dos anos através de um princípio de rotação. A autonomia tem o seu próprio sistema educacional, de saúde e de justiça, bem como as cooperativas, produzindo café, gado, artesanato etc.

Aprendemos enquanto fazemos as coisas, nós não conhecíamos sobre autonomia e nem sabíamos que iríamos construir algo parecido. Mas nós aprendemos e melhoramos coisas, e aprendemos com a luta – disse-me o meu Zapatista guardião Armando, quando visitei o território autônomo no final de 2013. A liberdade só poderia ser praticada aqui e agora, e revolução foi um processo de desafiar constantemente o status-quo e construir alternativas a isso.

Os cantões de Rojava realmente lembram a autonomia em Chiapas. Eles foram proclamados pela PYD dominante em 2013 e funcionam através das assembleias populares e conselhos democráticos estabelecidos. Mulheres participam igualmente na tomada de decisão e estão representadas em todos os cargos eletivos, que são sempre compartilhados por um homem e uma mulher. Todos os grupos étnicos são representados no governo e suas instituições. Saúde e educação também são garantidas pelo sistema de Confederalismo democrático e, recentemente, a primeira universidade de Rojava, a Academia Masepotamia, abriu as suas portas com planos para desafiar a estrutura hierárquica da educação, e para fornecer uma abordagem diferente à aprendizagem.

Assim como é no caso dos zapatistas, a Revolução em Rojava vislumbra-se como uma solução para os problemas em todo o país, não como uma expressão de tendências separatistas. Este sistema democrático genuíno, como alegado pela delegação de acadêmicos da Europa e da América do Norte [vi], que visitou Rojava recentemente, aponta para um futuro diferente do Oriente Médio, baseado na participação direta, a emancipação das mulheres e na paz étnica.

Revolução das Mulheres

O gênero sempre foi central para a revolução zapatista. A situação das mulheres antes da disseminação da organização e da adoção de liberação das mulheres como central para a luta, foi marcada pela exploração, marginalização, casamentos forçados, violência física e discriminação. É por isso que Marcos alega que a primeira revolta não foi aquela de 1994, mas a adoção da Lei Revolucionária das mulheres’, em 1993, configurando um enquadramento para a igualdade de gênero e justiça e garantindo os direitos das mulheres no território rebelde para autonomia pessoal, emancipação e dignidade. Hoje as mulheres participam de todos os níveis de governo e têm suas próprias cooperativas e estruturas econômicas para garantir sua independência económica. As mulheres formavam e ainda formam uma grande parte das fileiras da força de guerrilha zapatista e tomam posições elevadas em seu mandamento. A tomada de San Cristobal de las Casas, a cidade mais importante que as tropas zapatistas capturou durante a revolta em 1994, também foi comandada por mulheres, encabeçada por Comandanta Ramona, que também foi o primeiro Zapatista a ser enviado para cidade do México para representar o movimento.

Não é difícil comparar o envolvimento em massa de mulheres indígenas de Chiapas nas fileiras Zapatistas à participação das mulheres na defesa de Kobane e na YPJ – as Unidades de Proteção a Mulheres, ambos descritos de maneira sensacionalista [vii] pela mídia ocidental nos últimos meses. Entretanto, sua coragem e determinação na guerra contra o Estado Islâmico é um produto de uma longa tradição da participação feminina na luta armada pela libertação social no Kurdistão. Mulheres desempenharam um papel central no PKK e isso está, sem dúvida, conectado à importância do gênero na luta curda. A Revolução Rojava tem uma forte ênfase na libertação das mulheres como indispensável para a libertação social. O quadro teórico que colocou o desmantelamento do patriarcado no coração da luta é chamado “jinealogia”, um conceito desenvolvido por Abdullah Ocalan. A aplicação deste conceito resultou em um nunca visto fortalecimento da mulher não apenas no contexto do Oriente Médio, mas também no contexto do feminismo liberal ocidental. As assembleias das mulheres, estruturas cooperativas e milícias femininas são o coração da revolução, que é considerada incompleta se não destruir a estrutura patriarcal da sociedade, que é um dos fundamentos do capitalismo. Janet Biehl, uma artista e escritora independente, escreveu após sua recente viagem a Rojava que mulheres da revolução curda tem o papel ideológico do proletariado das revoluções século XX.

A ecologia da liberdade

A ecologia da liberdade é, provavelmente, o mais importante dos trabalhos de Bookchin e seu conceito de ecologia social foi adotado por revolucionários em Rojava. Sua Idea de que “a noção de dominação da natureza pelo homem vem da real dominação do homem pelo homem” liga patriarcado, destruição ambiental e capitalismo e aponta para a abolição deles como o único meio para uma sociedade justa. Como uma abordagem holística também é defendida e implementada pelos Zapatistas. Sustentabilidade tem sido um importante ponto de ênfase, especialmente depois da criação dos Caracoles em 2003. O governo autônomo tem tentado recuperar sabedoria ancestral, relacionada ao uso sustentável da terra, e combinar isso com outras práticas ecológicas. Esta lógica não é apenas uma questão de melhorar as condições de vida nas comunidades e evitar o uso de agroquímicos, é a rejeição de toda uma noção de que agricultura industrial em larga escala é superior à forma “primitiva” do povo indígena de trabalhar com a terra, e como isso é um poderoso desafio da lógica de neoliberalismo.

O caminho até a autonomia – o novo paradigma revolucionário

As similaridades entre o sistema de confederalismo democrático que está sendo desenvolvido no Curdistão ocidental e a autonomia em Chiapas vão muito além de poucos pontos que acentuei neste artigo. De slogans como “Ya Basta” adaptado em curdo como “êdî bese” até a democracia de base, estruturas econômicas comunitárias e participação das mulheres, a trajetória similar que o Movimento Curdo e os Zapatistas tem trilhado demonstra a ruptura decisiva com a noção vanguardista do Marxismo-Leninismo e uma nova abordagem para a revolução, que vem de baixo e almeja a criação e uma sociedade livre e não-hierárquica.

Embora ambos movimentos receberam algumas censuras ásperas [viii] de integrantes sectários de esquerda, o fato de que os únicos importantes e bem sucedidos experimentos em mudança social radical originam-se de grupos não ocidentais, marginalizados e colonizados vem como um tapa na cara dos “revolucionários” brancos e dogmaticamente privilegiados do norte do globo que dificilmente tem sido bem sucedidos em desafiar a opressão em seus próprios países mas tendem a acreditar em seus julgamentos de que o que é ou não uma real revolução.

A revolução em Rojava e Chiapas são poderosos exemplos para o mundo, demonstrando a enorme capacidade de organizações de base a e importância de ligações comunitárias como opositores a atomização capitalista social. Por último, mas não menos importante, Chiapas e Rojava devem fazer muitos da esquerda, incluindo alguns anarquistas, jogarem no lixo sua mentalidade colonial e dogmatismo ideológico.

Um mundo sem hierarquia, dominação, capitalismo e destruição ambiental ou, como dizem os Zapatistas, um mundo onde cabem muitos mundos, é frequentemente descrito como “utópico” e “impraticável” pela grande mídia, estruturas educacionais e políticas. Entretanto, não é uma miragem futura que vem dos livros – ele está acontecendo aqui e agora e os exemplos dos Curdos e Zapatistas são uma poderosa arma para fazer valer nossa capacidade de imaginar uma mudança radical real em uma sociedade, assim como um modelo com o qual podemos aprender em nossas lutas. As estrelas vermelhas que brilham sobre os Chiapas e Rojava vertem luz sobre o caminho à libertação e, se precisarmos resumir em uma palavra o que junta estas duas lutas, ela seria, definitivamente, Autonomia.

Notas:

[i] Dicle, Amed (2015) Kobane Victory, How it Unfolded. URL: http://kurdishquestion.com/index.php/insight-research/analysis/kobane-victory-how-it-unfolded.html

[ii] Dirik, Dilar (2015) Whi Kobane Did Not Fall. URL: http://kurdishquestion.com/index.php/kurdistan/west-kurdistan/why-kobani-did-not-fall.html

[iii] International Brigades Form in Rojava (2014) URL: http://beforeitsnews.com/alternative/2015/01/international-brigades-form-in-rojava-no-pasaran-video-3100250.html

[iv] Marcos (2003) I Shit on All Revolutionary Vanguards on This Planet. URL: http://roarmag.org/2011/02/i-shit-on-all-the-revolutionary-vanguards-of-this-planet/

[v] Oikonomakis, Leonidas (2013) Zapatistas Celebrate 10 Years of Autonomy With Escuelita.   http://roarmag.org/2013/08/escuelita-zapatista-10-year-autonomy/

[vi] Joint Statement of the Academic Delagation to Rojava. URL: https://zcomm.org/znetarticle/joint-statement-of-the-academic-delegation-to-rojava/

[vii] Dirik, Dilar (2014) Western Fascination With “Badass” Kurdish Women. URL:http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2014/10/western-fascination-with-badas-2014102112410527736.html

[viii] Anarchist Federation Statement on Rojava (2014)  URL: http://www.afed.org.uk/blog/international/435-anarchist-federation-statement-on-rojava-december-2014.html