Das canções barulhentas que animam rebeldes: uma nota sobre Redson, a banda Cólera e a emergência do anarco-punk.

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Por Acácio Augusto *

Fonte: GEAPI – Grupo de Estudos Anarquistas do Piauí

Você era um bom menino

mas um dia se cansou

de ser dominado

de tanta pressão

Cólera

O punk foi o grito de guerra que marcou um rompimento com as tecnologias disciplinares e, ao mesmo tempo, anunciou rebeldias contra os governos na sociedade de controle. Diante do fim do sonho, jovens que adotaram a revolta como atitude estética bradavam: não há futuro! Mais do que moda juvenil ou produto da indústria cultural — como querem as definições sociológicas de gabinete —, o punk rock deu forma, trilha e estética aos jovens que odiavam a família, a escola, a igreja, o exército, a polícia, o emprego, o Estado, enfim, toda e qualquer autoridade que se apresentasse a eles como tal. Tudo ou nada. Afirmava não ser preciso que alguém lhe autorizasse se seu querer era destruir uma sociedade que se apresentava tão podre quanto sua calça jeans, sua jaqueta de couro e seu coturno. Destruição!

No Brasil, o punk encontrou um país saindo de uma ditadura civil-militar e em um processo de democratização que fedia tanto quanto o chulé de garotos petulantes e mal-

criados oriundos dos bairros pobres da cidade de São Paulo. “O punk veio para pintar a asa branca de negro, atrasar o trem das onze e fazer da Amélia uma mulher qualquer”, declarou Clemente, da banda Inocentes, a um repórter da TV Cultura durante a realização, em 1982, do festival “O começo do fim do mundo”, realizado no SESC Pompéia, em São Paulo, com decisiva interferência do jornalista e dramaturgo Antonio Bivar.

O festival contou com uma prévia, meses antes, no antigo Salão Beta, dos estudantes

da PUC-SP, onde hoje é o Tucarena. Uma das bandas que tocaram nesse festival foi o Cólera.

O Cólera foi formado em 1979 pelos irmãos Pierre e Edson Pozzi, este adotando o nome punk de Redson, o filho vermelho, o som vermelho. Não cabe para um punk um obituário ou uma nota biográfica, mas o registro do ano de início de uma banda que, junto com Restos de Nada, amplificou em termos sonoros, estéticos e políticos o que havia de mais visceral e contundente no punk da periferia e do subúrbio de São Paulo.

Agora, o dia 27 de setembro de 2011, com a morte de Redson, marca o final da banda mais longeva do punk no Brasil: 32 anos de cólera, de revolta, de gritos de ódio. Finda uma obra feita com o que os punks chamam de do it yourself.

Sem grandes gravadoras, sem facilidades computacionais, sem patrocínios ou paitrocínios. O Cólera foi uma das primeiras bandas a gravar um disco com selo próprio, o Ataque Frontal; a primeira a se arriscar, em meados dos anos 1980, a tocar em squats e ocupações de quase toda Europa, com a ajuda de amigos cultivados por correspondências; a gravar, fazer shows, participar de manifestações e até, eventualmente, tocar em programas de TV, como o extinto Boca Livre, sem um esquema empresarial. A proximidade do punk com a autogestão e os anarquismos não foi mera coincidência ou afinidade ideológica: se tocaram pelo jeito de fazer as coisas e de se inventar no mundo.

Marcante, também, na existência de Redson e do Cólera, foi a temática recorrente em suas letras. Além daquelas sobre a vida de jovens na cidade, o combate à polícia, o ódio simultâneo ao consumismo, ao comunismo e ao fascismo, e as brigas pelas ruas, comuns a quase toda banda punk que se preze, foi a partir do disco “Pela paz em todo mundo”, de 1986, que temáticas como o pacifismo ativo, as preocupações ecológicas, o combate à homofobia, ao machismo e ao sexismo, o antimilitarismo e os alertas antinucleares passaram a fazer parte do repertório e da verve dos punks no Brasil.

Tal atenção para com a elaboração e temática das letras fez do Cólera procedência imediata do que depois se conhecerá como anarco-punk no Brasil, em especial por evidenciar e investir no rompimento com uma educação de costumes conservadores trazida de casa e sustentadas por muitos punks.

Impressionante, também, era a energia de Redson, Val e Pierre no palco: ágeis, sagazes e incansáveis. Qualquer um que fitasse o brilho nos olhos de Redson tocando e Das canções barulhentas que animam rebeldes cantando não conseguiria ficar indiferente a músicas como “Agir”, “Histeria”, “Subúrbio Geral”, “São Paulo”, “Duas Ogivas” ou “Quanto vale a liberdade?”.

Redson era um homem generoso, atento às bandas que desapareciam tão rápido quanto apareciam e defensor de uma atitude não violenta que se afastava de certa rabugice da maioria dos punks. Sabia que lutar contra fascismo não era matar e morrer estupidamente nas ruas da cidade. Atravessou, corajosamente, três décadas de punk como um quase infame que viu muita gente morrer, virar crente ou skinhead, casar e depois ver no punk um arroubo juvenil. Seguiu sem esmorecer insuflando a revolta de novos garotos que queriam “destruir o sistema”. Com guitarra em punho, com suas hesitações e contradições, mostrou com sua existência que é possível viver diferentemente do que se destina a você quando nasce. Mostrou que é possível deixar uma marca sem abrir mão da liberdade e sem “se entregar ao sistema”.

Hoje, abundam as chamadas bandas e gravadoras alternativas e independentes, e a internet ampliou a possibilidade de espalhar uma banda ou um som. A maioria dos jovens das periferias, encantados com o rap oriundo dos Estados Unidos, querem ser integrados e fazer sucesso. Os punks, na sua maioria, matam-se estupidamente na porta de shows e produzem ecumênicas alianças com skinheads. Parecem perdidos numa justificativa ideológica de brigas de gangue. Paradoxalmente, foi a ousadia de pessoas como Redson, no começo dos anos 1980, que abriu caminho para isso. O grito de revolta de trinta anos atrás, em pouco tempo foi respondido com essa pacificação violenta que oscila entre um punk que não produz mais algo como o Cólera e um rap que é quase unânime nos bairros pobres da cidade e nas rodinhas das classes médias politizadas.

A morte de Redson lembra que já faz trinta anos que a revolta eclodiu na cidade e que hoje ela está sufocada, ou impedida de aparecer, pela intensificação da comunicação e por uma recusa das condições de vida nos bairros pobres que se expressa como vontade de inclusão e expressão de assujeitamentos.

***

Conheci e convivi com Redson em momentos efêmeros e intermitentes. Não era um homem extraordinário, mas um sujeito incomum. Assisti muitos dos seus shows, em casas noturnas do centro e em bares imundos nas bordas mais ermas da cidade. O mais marcante era a energia e o brilho no olhar. Ao escrever sobre sua morte, por sugestão de um amigo, que sensivelmente notou minha perturbação com a notícia, dou-me conta de que cheguei à quarta página sem arriscar escrever na primeira pessoa do singular. De fato, a banda Cólera e seu front man, Redson, tem toda essa importância descrita acima, talvez até mais, e sua morte me levou a pensar sobre essa diferença entre o que foi possível de vivamente revoltado e rebelde num momento, e o que é tão raro hoje; como o punk rock abriu a possibilidade de um rompimento que hoje é dificilmente ensaiado.

A revolta contra a sociedade parece ter virado muro de lamentações. A rapidez e urgência do hardcore foi cedendo espaço ao peso e lentidão do rap. Redson morreu, tendo vivido à sua maneira, escapou do itinerário destinado a um jovem de periferia sem virar “macaco” da classe média. Como todo vivente não escapou da morte, mas viveu a intensidade da vida numa cidade estúpida que só poderia ser desafiada com a agressividade própria do

punk rock.

Das canções barulhentas que animam rebeldes Quando eu tinha 14 anos e um tremendo mal-estar de habitar um mundo que então se abria, foi muito bom ouvir, num disco de vinil ainda, Redson cantar: “Quanto vale a liberdade?/Pra vocês ela tem um preço/Quanto vale a confiança?/Não quero esperar/Não acredito no seu dinheiro/Onde está o seu caráter?/Deve estar perdido em algum beco/Horas você enlouquece/E depois quer fugir/Se refugia como um animal, como um animal/Dia após dia eu procuro ir em frente/Vê se me entende, não há razão, não há razão/Já não pode mais pensar/Olhe para tudo como está/Agora eu sei que não há preço/Mas me sinto acorrentado/Dia após dia, e não há razão, não há razão/Quanto vale a liberdade?/Quanto vale a liberdade?/Não importa, eu vou em frente/Não importa, eu vou em frente!” Que a revolta e o barulho, em vermelho e negro, que animou jovens como Redson siga existindo e seja capaz de inventar novos percursos de liberdade à sua maneira, como há trinta anos esse punk inventou.

*Acácio Augusto é doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP, professor no Cur-

so de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina e pesquisador no

Nu-Sol. Escreveu em parceria com Edson Passetti Anarquismos e educação,

Editora Autêntica, 2008.

Somos Todos Grupelhos

JL

Felix Guattari

Fonte: Protopia

Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos. É fácil falar, sobretudo em países onde as forças materiais estão cada vez mais na dependência das máquinas técnicas e do desenvolvimento das ciências.


Derrubar o czarismo implicava na ação em massa de dezenas de milhares de explorados e sua mobilização contra a atroz máquina repressiva da sociedade e do Estado russo, era fazer as massas tomarem consciência da sua força irresistível face à fragilidade do inimigo de classe; fragilidade a ser revelada, a ser demonstrada pela prova de forças.


Para nós, nos países “ricos”, as coisas se passam de outro jeito; não é tão óbvio que tenhamos que enfrentar apenas um tigre de papel. O inimigo se infiltrou por toda parte, ele secretou uma imensa interzona pequeno-burguesa para atenuar o quanto for possível os contornos de classe. A própria classe operária está profundamente infiltrada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas… Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático. Primeiro, participação material em escala planetária: as classes operárias dos países economicamente desenvolvidos estão implicadas objetivamente, mesmo que seja só pela diferença crescente de níveis de vida relativos, na exploração internacional dos antigos países coloniais. Depois, participação inconsciente e de tudo quanto é jeito: os trabalhadores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da burguesia – maldição do roubo, da preguiça, da doença, etc. Eles reproduzem, por conta própria, objetos institucionais alienantes, tais como a família conjugal e o que ela implica de repressão intrafamiliar entre os sexos e as faixas etárias, ou então se ligando à pátria com seu gostinho inevitável de racismo (sem falar do regionalismo ou dos particularismos de toda espécie: profissionais, sindicais, esportivos, etc., e de todas as outras barreiras imaginárias que são erguidas artificialmente entre os trabalhadores. Isto fica bastante claro, por exemplo, na organização, em grande escala, do mercado da competição esportiva).


Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do “socialismo” burocrático são corroídas por uma angústia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de auto-sujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. A obtenção deste resultado repousa sobre o desenvolvimento de um antagonismo reforçado entre um ideal imaginário, que inculcamos nos indivíduos por sugestão coletiva, e uma realidade totalmente outra que os espera na esquina. A sugestão audiovisual, os meios de comunicação de massa, fazem milagres! Obtém-se assim uma valorização fervorosa de um mundo imaginário maternal e familiar, entrecortado por valores pretensamente viris, que tendem à negação e ao rebaixamento do sexo feminino, e ainda por cima à promoção de um ideal de amor mítico, uma mágica do conforto e da saúde que mascara urna negação da finitude e da morte. No final das contas, todo um sistema de demanda que perpetua a dependência inconsciente em relação ao sistema de produção; é a técnica do intéressement (2).


O resultado deste trabalho é a produção em série de um indivíduo que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas importantes de sua vida. É completamente desarmado que ele enfrentara a realidade, sozinho, sem recursos, emperrado por toda esta moral e este ideal babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz de se desfazer. Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar no resto… Agora, toda a sua vida ficará envenenada em maior ou menor grau pela incerteza de sua condição em relação aos processos de produção, de distribuição e de consumo, pela preocupação com seu lugar na sociedade, e o de seus próximos. Tudo passa a ser motivo de grilo: um novo nascimento, ou então “a criança não vai muito bem na escola”, ou ainda “os mais grandinhos se enchem e aprontam mil loucuras”; as doenças, os casamentos, a casa, as férias, tudo é motivo de aborrecimento…


Assim, tornou-se inevitável um mínimo de ascensão nos escalões da pirâmide das relações de produção. Não precisa nem fazer um desenho ou uma lição. Diferentemente dos jovens trabalhadores, os militantes de origem estudantil que vão trabalhar na fábrica estão seguros de se virar caso sejam despedidos; queiram ou não, eles não podem escapar à potencialidade que os marca de uma inserção hierárquica “que poderia ser bem melhor”. A verdade dos trabalhadores é uma dependência de fato e quase absoluta em relação à máquina de produção; é o esmagamento do desejo, com exceção de suas formas residuais e “normalizadas”, o desejo bem pensante ou bem militante; ou, então, o refúgio numa droga ou em outra, se não for a piração ou o suicídio! Quem estabelecerá a porcentagem de “acidentes de trabalho” que, em realidade, não eram senão suicídios inconscientes?


O capitalismo pode sempre dar um jeito nas coisas, retoca-las aqui e ali, mas no conjunto e no essencial tudo vai cada vez pior. Daqui a 20 anos alguns dentre nós terão 20 anos a mais, mas a humanidade terá quase duplicado. Se os cálculos dos especialistas no assunto se revelam exatos, a Terra atingirá pelo menos 5 bilhões de habitantes em 1990. Isto deveria colocar no decorrer do processo alguns problemas suplementares! E como nada nem ninguém está em condições de prever ou organizar alguma coisa para acolher estes recém-chegados – à parte alguns porra-loucas nos organismos internacionais, que aliás não resolveram um só problema político importante durante os 25 anos em que estiveram aí instalados -, podemos imaginar que seguramente acontecerá muita coisa nos próximos anos. E de tudo quanto é tipo, revoluções, mas também, sem sombra de dúvida. Umas merdas do tipo fascismo e companhia. E dai o que é que se deve fazer? Esperar e deixar andar? Passar à ação? Tudo bem, mas onde, o quê, como? Mergulhar com tudo, no que der e vier. Mas não é tão simples assim, a resposta a muitos golpes está prevista, organizada, calculada pelas máquinas dos poderes de Estado. Estou convencido de que todas as variações possíveis de um outro Maio de 1968 já foram programadas em IBM. Talvez não na França, porque eles estão fodidos, e ao mesmo tempo bem pagos para saber que este tipo de baboseira não constitui garantia alguma e que não se encontrou ainda nada de sério para substituir os exércitos de tiras e de burocratas. Seja o que for, já está mais do que na hora de os revolucionários reexaminarem seus programas, pois há alguns que começam a caducar. Já está mais do que na hora de abandonar todo e qualquer triunfalismo – note-se o falismo – para se dar conta de que não só estamos na merda até o pescoço, mas que a merda penetra em cada um de nós mesmos, em cada uma de nossas “organizações”.


A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorado: autoridade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá-la a partir do vocabulário de uns e de outros, seu jeito de falar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim! A luta de classe contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou o interior de cada um de nós com seu eu, com o ideal de status que acreditamos ter de adotar para nós mesmos. Já está mais do que na hora de se organizar em todos os níveis para encarar esta luta de classe generalizada. Já é hora de elaborar uma estratégia para cada um destes níveis, pois eles se condicionam mutuamente. De que serviria, por exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização antiautoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos superativos, se eles se comportam com os militantes dos outros grupos, no interior de seu próprio grupo, com seus próximos ou cada um consigo mesmo, como perfeitos canalhas, perfeitos carolas? De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? Os fins políticos são pessoas desencarnadas. Eles acham que se pode e se deve poupar as preocupações neste domínio para mobilizar toda a sua energia em objetivos políticos gerais. Estão muito enganados! Pois na ausência de desejo a energia se auto-consome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia. E pelo tempo que já estão nessa, já podiam ter se dado conta destas coisas por si mesmos!


A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica – a libido – em objetivos de luta social. É fácil reduzir tudo às famosas contradições principais. É demasiadamente abstrato. É até mesmo um meio de defesa, um troço que ajuda a desenvolver phantasias (3) de grupo, estruturas de desconhecimento, um troço de burocratas; se entrincheirar sempre atrás de alguma coisa que está sempre atrás, sempre em outro lugar, sempre mais importante e nunca ao alcance da intervenção imediata dos interessados; é o princípio da “causa justa”, que serve para te obrigar a engolir todas as mesquinharias, as míseras perversões burocráticas, o prazerzinho que se tem em te impor – “pela boa causa” – caras que te enchem o saco, em forçar tua barra para ações puramente sacrificiais e simbólicas, para as quais ninguém está nem aí, a começar pelas próprias massas. Trata-se de uma forma de satisfação sexual desviada de seus objetivos habituais. Este gênero de perversão não teria a menor importância se incidisse em outros objetos que não revolução – e olha que não faltam objetos! O que é chato é que estes monomaníacos da direção revolucionária conseguem, com a cumplicidade inconsciente da “base”, enterrar o investimento militante em impasses particularistas. É meu grupo, é minha tendência, é meu jornal, a gente é quem tem razão, a gente tem a linha da gente, a gente se faz existir se contrapondo às outras linhas, a gente constitui para si uma pequena identidade coletiva encarnada em seu líder local… A gente não se enchia tanto em Maio de 68! Enfim, tudo ocorreu mais ou menos bem até o momento em que os “porta-vozes” disto ou daquilo conseguiram voltar à tona. Como se a voz precisasse de portador. Ela se porta bem sozinha e numa velocidade louca no seio das massas, quando ela é verdadeira. O trabalho dos revolucionários não é ser portador de voz, mandar dizer as coisas, transportar, transferir modelos e imagens; seu trabalho é dizer a verdade lá onde eles estão, nem mais nem menos, sem tirar nem por, sem trapacear. Como reconhecer este trabalho da verdade? É simples, tem um troço infalível: está havendo verdade revolucionária, quando as coisas não te enchem o saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer, correndo até o risco de morte. A verdade, a vimos atuando em Maio de 68; todo mundo a entendia de cara. A verdade não é a teoria nem a organização. É depois dela ter surgido que a teoria e a organização têm de se virar com ela. Elas sempre acabam se situando e recuperando as coisas, mesmo que para isso tenham de deformá-la e mentir. A autocrítica cabe à teoria e à organização e nunca ao desejo.


O que está em questão agora, é o trabalho da verdade e do desejo por toda parte onde pinte encanação, inibição e sufoco. Os grupelhos de fato e de direito, as comunas, os bandos, tudo que pinta no esquerdismo tem de levar um trabalho analítico sobre si mesmo tanto quanto um trabalho político fora. Senão eles correm sempre o risco de sucumbir naquela espécie de mania de hegemonia, mania de grandeza que faz com que alguns sonhem alto e bom som em reconstituir o “partido de Maurice Thorez” ou o de Lenin, de Stalin ou de Trotsky, tão chatos e por fora quanto seus Cristos ou de Gaulles, ou qualquer um desses caras que nunca acabam de morrer.


Cada qual com seu congressinho anual, seu mini-Comitê Central, seu super-birô político, seu secretariado e seu secretário-ge(ne)ral e seus militantes de carreira com seu abono por tempo de serviço, e, na versão trotskista, tudo isso duplicado na escala internacional (congressos mundiais, comitê executivo internacional, seção internacional, etc.).


Por que os grupelhos, ao invés de se comerem entre si, não se multiplicam ao infinito? Cada um com seu grupelho! Em cada fábrica, cada rua, cada escola. Enfim, o reino das comissões de base! Mas grupelhos que aceitassem ser o que são, lá onde são. E, se possível, uma multiplicidade de grupelhos que substituiriam as instituições da burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo, etc. Grupelhos que não temessem, além de seus objetivos de luta revolucionária, se organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam.


Ah, então trata-se de anarquia! Nada de coordenação, nada de centralização, nada de estado-maior… Ao contrário! Tomem o movimento Weathermen nos Estados Unidos: eles estão organizados em tribos, em gangues, etc., mas isto não os impede de se coordenar e muitíssimo bem.


O que é que muda se a questão da coordenação, ao invés de se colocar para indivíduo, se coloca para grupos de base, famílias artificiais, comunas?… O indivíduo tal como foi moldado pela máquina social dominante é demasiado frágil, demasiado exposto às sugestões de toda espécie: droga, medo, família, etc. Num grupo de base, pode-se esperar recuperar um mínimo de identidade coletiva, mas sem megalomania, com um sistema de controle ao alcance da mão; assim, o desejo em questão poderá talvez fazer valer sua palavra, ou estará talvez mais em condições de respeitar seus compromissos militantes. É preciso antes de mais nada acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico, uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contingência, sua finitude e para seus objetivos de luta. O movimento revolucionário deve portanto construir para si uma nova forma de subjetividade que não mais repouse sobre o indivíduo e a família conjugal. A subversão dos modelos abstratos secretados pelo capitalismo, e que continuam caucionados até agora, pela maioria dos teóricos, é um pré-requisito absoluto para o reinvestimento pelas massas de luta revolucionária.


Por enquanto, é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não, quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados.

[editar]NOTAS

1. No original, groupuscule. Corresponde ao “grupelho” no Brasil, nome dado aos grupos de dissidência do partido comunista, da década de 60 – anarquistas, trotskistas, guevaristas, maoístas -, época da desestalinização que o PCF parece ter ignorado. O termo grupelho traz em si um sentido pejorativo, pois desde a perspectiva do PC, perspectiva adotada na época pelos próprios esquerdistas uns contra os outros, ser minoritário era ser facção insignificante, marginal, acometida pela “doença infantil do comunismo”, justificativa suficiente para sua exclusão, como medida sanitária, visão aliás compartilhada pela direita: em junho de 68, de Gaulle, já no controle da situação, através de seu ministro do Interior, proibiu a existência desses grupelhos, baseando-se numa lei da Frente Popular contra as milícias fascistas armadas e paramilitares.

Ora, o autor retoma aqui a própria idéia de grupelho como afirmação de uma posição política. “Somos todos grupelhos”: a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define um grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. É neste devir que a luta se generaliza. “Saúde infantil” do político, que se contrapõe à tendência a generalizar a luta em torno de uma representação totalizadora, sua “doença senil”. Desta perspectiva, tamanho não é documento, e um pequeno grupo também pode ser acometido de “doença senil”.

A noção de grupelho pode ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de “grupo sujeito”, contraposto a “grupo sujeitado” (cf. nota 7 de “A Transversalidade”), à idéia de “agenciamento coletivo de enunciação” e, na década de 70, ao conceito de “molecular”, contraposto a “molar”. (N. do Trad.).

2. O intéressement, pedra de toque da doutrina social do gaullismo, designa uma modalidade de participação dos operários nos lucros da empresa, através de uma remuneração que se acrescenta ao salário fazendo com que o trabalhador se “interesse” pela produtividade da empresa. Esta doutrina, considerada mistificadora pela esquerda francesa, foi por ela amplamente denunciada. (N. do T.).

3. No original alemão Phantasie, traduzido em francês por fantasme. Na tradução de Freud para o português (edição da Standard), optou-se por “fantasia”, de acordo com as traduções inglesa (fantasy ou phantasy, o primeiro consciente e o segundo inconsciente, segundo proposta de Susan Isaacs) e espanhola (fantasia). Preferimos adotar o termo “phantasia”, sugerido na tradução para o português dos Escritos de Lacan (Perspectiva, SP, 1978), que preserva o arcaísmo do termo francês fantasme (cf. nota 14 dos Escritos). (N. do T.).

Tradução de Suely Rolnik

Fontes: GUATTARI, Félix. Revolução Molecular. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 13-19.

Predefinição:Origem-sabotagem

O Movimento Anarcopunk e a luta anti-fascista no Brasil – Parte 1: anos 90

Postado em MAP-SP, Movimento Anarcopunk de São Paulo, 26 de fevereiro de 2015

Sem Título-1* por Imprensa Marginal

O Movimento Anarco Punk no Brasil é fruto de uma crescente politização dentro de parte da cena punk que se dá em meados dos anos 80 e início dos 90. Uma de suas principais bandeiras de luta, desde os primórdios, foi o combate ao nazi-fascismo, o racismo e o preconceito. Em muitas das localidades onde se formou o Movimento Anarco Punk, desenvolveu-se também um trabalho dentro da luta anti-fascista e anti-racista. Tal bandeira de luta já era levantada anteriormente no meio anarquista em diversas partes do mundo desde o surgimento das primeiras tentativas de ascensão de ideologias de extrema direita como o fascismo e o nazismo. No Brasil não foi diferente, e o surgimento do integralismo gerou um fervoroso combate por parte do movimento anarquista que a partir da década de 30 ganha muita intensidade.

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O início dos anos 90 é marcado pela ocorrência de diversos casos de agressão e violência protagonizados por grupos de skinheads White Powers, Carecas do Subúrbio e Carecas do ABC. Esse contexto contava também com a aparição e evidência na mídia de políticos de extrema direita como Armando Zanini Junior, presidente do Partido Nacionalista Revolucionário Brasileiro (PNRB). Assim, desde o final dos anos 80 vão se intensificando cada vez mais as relações entre skinheads e organizações políticas integralistas e nazistas, culminando na entrada de Carecas nos quadros do PNRB e em ações públicas como, por exemplo, o evento de homenagem ao aniversário de cem anos do nascimento de Hitler, que ocorreu em 1989 com participação de Carecas do Subúrbio, Carecas do ABC, Ação Integralista e integrantes de outros partidos nacionalistas na Praça da Sé.

Em meio a este forte processo de tensão e buscando formas efetivas de combater a ação nazi-fascista destes grupos, anarcopunks partiram em busca de contatos com outros movimentos sociais e agrupações que também pudessem estar de alguma forma envolvidas no combate ao avanço da extrema direita. Surgia a percepção de que somente por meio desta parceria poderiam fazer frente à crescente ação dos grupos de extrema direita e desenvolver uma ação efetiva de combate. Em 1992, ante ao ataque de skinheads White Power à Rádio Atual, de programação dirigida à comunidade nordestina em São Paulo, e logo após a realização de uma edição do programa “Documento Especial” que deu voz aos neonazistas de São Paulo, diversos movimentos sociais anti-racistas se reúnem para uma discussão conjunta no mês de outubro. Entre novembro e dezembro o Movimento Anarcopunk realiza pedágios de rua para conseguir dinheiro para confecção de faixas e panfletos para uma campanha anti-fascista, e no dia 12 de dezembro é organizada uma passeata. Pouco depois, em 1993, com a morte do estudante negro Fábio dos Santos em Santo André, em decorrência de espancamento por 30 skinheads, este processo de atuação política do Movimento Anarco Punk se amplia, ocorrendo com maior força os contatos com outros movimentos sociais para parcerias de combate. Vai tomando corpo a criação de um fórum contra a ação dos neonazistas, com participação tanto de anarcopunks, quanto de diversos outros grupos, como movimentos negros, de mulheres, nordestinos, organizações judaicas, grupos de pesquisa, movimentos populares, entre outros. A reunião ocorreu no Conselho Participativo da Comunidade Negra de São Paulo, e o resultado foi uma grande passeata com cerca de 4 mil pessoas no dia 13 de maio de 1993. Grupos e movimentos punks, negros, feministas, e de atuação artística, cultural e política se reuniram em frente à embaixada sul-africana na Av. Paulista/MASP, para uma passeata anti-racista. A passeata passou pela Av. Brigadeiro e foi até a Praça da Sé, acabando com apresentação musical de diversas bandas.  No decorrer de todo o ato foram feitas muitas falas contra a atuação de grupos nazi-fascistas de Carecas e White Powers. Infelizmente, passado algum tempo, a dimensão inicial do fórum anti-racista foi esvaziado, e os meios de comunicação iam deixando de divulgar o caso.

Ivan e Moranguinho_1991_ato anti-racista praça ramos

Este momento marcou também o início dos trabalhos do projeto ACR – Anarquistas Contra o Racismo, que com o passar do tempo teve formação  de núcleos em diversas localidades para além de São Paulo – como Santos, Criciúma, Rio de Janeiro e Curitiba. A proposta era, dentro da cena punk, incitar a politização no que se refere à questão anti-fascista e, para muito além, estreitar laços com outros movimentos sociais e ampliar a rede de combate ao fascismo de forma concreta. Neste período há forte relação com movimentos LGBT, negros e judaicos, e realização de atividades diversas sobre a questão. Respeitavam-se as peculiaridades específicas de cada movimento, buscando construir a partir dos pontos de afinidade parcerias, compartilhamento de informações e apoio em ações de combate aos grupos e instituições nazi-fascistas nas diversas localidades.

Já era claro para o Movimento Anarco Punk e o Projeto ACR que o combate ao fascismo não poderia se limitar apenas a grupos skinheads, que em última instância eram apenas uma pequena parte de um problema muito maior, que envolvia setores diversos da sociedade com atuação em muitos âmbitos diferentes. O Projeto ACR também não acreditava no simples uso da violência como estratégia de combate, visto que a apologia e uso da violência, o culto à força física e a intolerância extremada são características próprias destes grupos de skinheads nazi-fascistas, e não seria possível combate-los a partir de práticas semelhantes. Ainda assim, as táticas de auto-defesa à esses grupos sempre estiveram em pauta, mas para além disso anarcopunks buscaram construir parcerias com vários setores da sociedade, para que em conjunto fossem traçadas estratégias eficientes para coibir a ação da extrema direita e combater as manifestações cotidianas de racismo na sociedade, propondo o respeito, a valorização da diversidade e da liberdade.

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Diversos eventos públicos foram organizados nesta época, com mostras de vídeos, debates, palestras, panfletagens e ciclos de atividades anti-fascistas. Em novembro de 1994, por exemplo, foi organizado o Ciclo Anti-Fascista, uma série de três eventos com apresentações de bandas anarcopunks, palestras com a Unegro, Ben Abrahan (comunidade judaica ), passeata de rua e outras atividades. Foi um importante evento de discussão da luta anti-fascista que ia se tornando cada vez mais concreta e consistente.  Outro ciclo de atividades e debates sobre a questão foi organizado em 1995 em Curitiba pelo Grupo Anarquista Via Direta de Ação (GRAVIDA), contando com seis palestras, debates, exposições e outras atividades de 30 de outubro a 02 de dezembro. Também foram organizadas, no decorrer dos anos 90, diversas atividades de vídeo-debate anti-fascistas e eventos musicais contra o racismo.

Os núcleos ACR de cada localidade mantinham contato frequente entre si, realizando encontros gerais periódicos e fazendo circular os informes locais mensalmente, e organizaram diversas manifestações públicas e atividades de debate, editaram boletins e materiais de denúncia, produziram dossiês, e ainda criaram um forte canal de diálogo com a imprensa e outros movimentos. Agindo localmente, cada um dos grupos articulava materiais de denúncia e dossiês, realizava manifestações públicas e outras atividades; em conjunto, também organizavam campanhas coletivas, materiais impressos e outras ações que ultrapassavam as fronteiras de cada localidade. Dentre os casos que tiveram forte mobilização nos anos 90 estão a morte de Fábio dos Santos em Santo André em 1993; o assassinato de Carlos Adilson Siqueira por skinheads Carecas do Brasil em 1996 na cidade de Curitiba; a realização de um encontro neonazista de skinheads do Paraná também em 1996; dentre tantos outros. Em março de 96, alguns punks foram abordados pela polícia e, enquanto eram revistados, o moicano de um dos punks foi arrancado à faca por um policial que gritava “Oi!” e “Skin!”, dizendo “não gosto de punks e muito menos de negros”. Depois que os policiais saíram, alguns punks tiraram foto do camburão, prestaram queixa dos policiais e denunciaram na imprensa. O punk agredido levou vinte pontos na cabeça e dois dos policiais foram afastados conforme nota da imprensa oficial. O ACR desenvolveu campanha de denúncia sobre esta agressão.

A primeira edição da Parada Gay em São Paulo, em 1997, também teve participação ativa do Movimento Anarcopunk, que ficou diretamente envolvido na questão da segurança do evento no combate a possíveis ataques durante a manifestação.

Outra campanha que teve ampla e ativa participação dos núcleos ACR e anarcopunks da época foi a questão de Mumia Abu-Jamal, militante negro afro-americano que foi injustamente acusado pelo assassinato de um policial branco e, após um julgamento pautado em inúmeras inconsistências, permanece preso até os dias de hoje, completando mais de 30 anos no cárcere e a maior parte deste tempo no corredor da morte. Foram realizados eventos, debates, publicações e atividades diversas que pudessem dar visibilidade a este emblemático caso do racismo estatal.

Brasil afora, outros coletivos e iniciativas anti-fascistas foram se formando, como é o caso do Coletivo Monanoz, que surge em 1995 em Florianópolis por anarcopunks que tinham como intuito a formação de um grupo de estudos sexuais e realização de atividades de denúncia e combate à homofobia e ao nazi-fascismo. O frequente intercâmbio entre os grupos anti-fascistas gerou também campanhas conjuntas e parcerias. Em outubro de 1995, um encontro de grupos do Projeto ACR no Rio de Janeiro tem como resultado a união dos materiais de denúncia existentes em cada localidade para criação de um grande dossiê anti-fascista, a ser utilizado como instrumento de combate a ação dos grupos nazi-fascistas. Nessa época também se intensificam as discussões sobre a luta afro-punk e sua importância.

Em meio a esse trabalho ocorreram por diversas vezes casos de ameaças ou violência por parte de grupos neonazistas. Dois dos coletivos anarcopunks que sofreram ameaças foram o KRAP (Koletivo de Resistência Anarco Punk) e o Coletivo Altruísta, ambos tendo recebido cartas de ameaça assinadas por grupos skinheads em meados da década de 90. Houve também casos de agressão física, que tornaram cada vez mais importante a prática da auto-defesa por parte de militantes anarcopunks. Em geral, as ações coletivas de resposta também seguiram politicamente no sentido de tornar públicas as ameaças e agressões sofridas, denunciar o caráter nazi-fascista dos grupos de extrema-direita, e reafirmar o engajamento e comprometimento com a luta anti-fascista e anti-racista, o que gerou apoio direto de diversos grupos e indivíduos.

Por questões diversas, muitos dos núcleos do Projeto Anarquistas Contra o Racismo se dissolveram durante os últimos anos da década de 90, desta época restando ativo o núcleo de Criciúma/SC, que desenvolveu trabalhos ligados a esta questão em escolas, junto a comunidade LGBT, negra, pessoas usuárias de CAPS, entre outros, e possui um grande acervo de materiais anti-fascistas. As experiências que estes núcleos obtiveram no decorrer de seu trabalho, porém, foram grandes contribuições para as movimentações anti-fascistas que surgiriam a seguir. Ainda assim, as discussões e ações de denúncia e combate referentes à luta anti-fascista permaneceram vivas, seja por meio de fanzines e panfletos, discussões e debates, seja por meio de ações de rua e manifestações.

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A década de 90 chegava ao fim e os anos subsequentes não seriam menos problemáticos. Diversos casos de agressão protagonizados por grupos de skinheads e nazi-fascistas se faziam frequentes, e um caso muito emblemático ocorre então em fevereiro de 2000: a morte do adestrador de cães Edson Neris, morto a chutes e golpes de soco inglês por dezenas de Carecas do ABC na Praça da República. O caso, de extrema brutalidade e intolerância, gera reações de repúdio e comoção de diversos grupos lgbt, de direitos humanos, agrupações punks e libertárias, ocorrendo manifestações conjuntas e atos diversos. Na ocasião, anarcopunks participam das mobilizações, organizando atividades de denúncia. A partir deste ano, começa a se formar a Jornada Anti-Fascista, que passa a ser organizada anualmente, durante o mês de fevereiro, e acontece até os dias de hoje. Inicia-se como uma manifestação de um único dia para, com o passar dos anos, tornar-se um mês inteiro de atividades sobre a questão, com apresentação de bandas, debates, palestras, vídeos, atos de rua e outros. Ultrapassando os limites de São Paulo, anarcopunks de outras localidades organizaram também atividades antifascistas durante o mês de fevereiro. A morte de Carlos Adilson em 1996, no mês de março, fará com que posteriormente, sejam organizados em Curitiba atividades do Março Anti-Fascista, com proposta semelhante à Jornada criada em São Paulo.

Continua…