Nova colecção digital de textos sobre anarquismo

capturar14Fonte: Coletivo Libertário Évora

O projecto MOSCA (sobre o Movimento Social Crítico e Alternativo), sedeado na Universidade de Évora, editou um primeiro texto de uma nova colecção sobre anarquismo, em formato digital. Trata-se do texto de João Freire, ANARQUISMO E SOCIOLOGIA (2005), consistindo numa introdução sua a um debate organizado pelo Centro de Estudos Libertários naquela data, apenas ligeiramente retocado para a sua actual difusão. Cada uma das apresentações dos 4 “andamentos” foi seguida de debate com os circunstantes e suportada pela prévia distribuição de uns “textos de apoio”, a que se fazem algumas referências.

O texto encontra-se no arquivo do MOSCA e pode ser descarregado a partir desta ligação: http://mosca-servidor.xdi.uevora.pt/arquivo/index.php?p=digitallibrary%2Fdigitalcontent&id=1601&q=Jo%C3%A3o+Freire

[Reino Unido] Brighton: Crônica da manifestação em solidariedade com os presos no estado espanhol

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Fonte: ANA – Agência de Notícias Anarquistas

No domingo, 12 de abril, aproximadamente 40 pessoas participaram de um protesto contra a repressão na Espanha. A manifestação aconteceu em resposta a recente “Operação Piñata”, onde houve uma enorme (e barulhenta) incursão policial contra o movimento anarquista na Espanha. No momento, cinco pessoas permanecem detidas em regime de isolamento.

Desde as 18 horas, as pessoas foram chegando à praça central da Clock Tower. Com faixas e distribuindo folhetos, os manifestantes explicaram a quem passava por ali a situação repressiva na Espanha e o caso específico dos nossos companheiros. Também foram ecoados gritos contra a repressão e contra a polícia e as prisões (alguns em espanhol).

Meia hora após o início da concentração, os ativistas decidiram bloquear o tráfego por alguns minutos, caminhando até a Churchill Square. Lá, foi lido um comunicado em frente do Banco Santander e da O2 (Telefônica), duas das principais multinacionais espanholas. O grupo, então, voltou para a Clock Tower, onde terminou a ação.

A concentração contou com um número significativo de imigrantes do estado espanhol residente em Brighton e de companheiros de vários movimentos sociais da cidade. Grupos como Brighton-SolFed, Brighton Antifascists, Brighton Anarchist Black Cross e o Cowley Clube mostraram sua solidariedade.

Esta ação foi organizada por um grupo de ativistas preocupados com a situação na Espanha. Enquanto as condições de vida estão piorando, a classe dominante do país responde com a criminalização dos movimentos sociais e dos que lutam.

Agora, a solidariedade internacional é especialmente importante. Temos de mostrar que não temos medo, que estamos alertas e que nossos companheiros não estão sozinhos. A solidariedade continua.

Espanha cheira a Estado Policial!

Liberdade presos anarquistas!

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http://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2015/04/02/alemanha-berlim-solidariedade-com-detidos-na-operacao-pinata/

A Reação na Alemanha (1842)

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Por Bakunin

Fonte: Arquivo Bakunin

BAKUNINE, Miguel. A reação na Alemanha.In: Cadernos Peninsulares, Nova Série, Ensaio 17.  Tradução: José Gabriel. Portugal: Editora Assírio & Alvin, 1976. Pags. 105-127


OS ADVERSÁRIOS DA LIBERDADE


Liberdade, realização da liberdade: quem pode negar que estas palavras estão agora à cabeça da ordem do dia da história? Amigos e inimigos reconhecem-no apesar de tudo, e ninguém ousa declarar-se abertamente e audaciosamente adversário da liberdade. Mas falar de alguma coisa e reconhecê-la não lhe dá uma existência real, e isto, o evangelho, sabe-o bem
[1]; na realidade, há infelizmente ainda uma multidão que, verdadeiramente, não acredita do mais profundo do seu coração, na liberdade. Vala a pena, no interesse desta causa, ocuparmo-nos deles. Pertencem a tipos muito diferentes: encontramos, em primeiro lugar, pessoas bem colocadas, carregadas de anos e de experiência que, na sua juventude, eram mesmo diletantes da liberdade política; um homem rico e distinto encontra, na realidade, um certo prazer requintado em falar de liberdade e de igualdade, o que o torna, além do mais, duplamente importante na sociedade. Mas como não mais podem agora gozar a vida como no tempo da sua juventude, procuram dissimular o seu enfraquecimento físico e intelectual sob o véu da “experiência” — uma palavra tanta vez enganadora —: é perder tempo falar com estas pessoas; nunca levaram a liberdade a sério, nunca a liberdade foi para eles a religião que só conduz aos maiores prazeres e à felicidade suprema pela via das mais terríveis contradições, ao preço dos mais cruéis sofrimentos e da abnegação total e sem reservas. Verdadeiramente não há algum interesse em discutir com eles, porque são velhos e, assim, apesar de tudo, morrerão brevemente.

Mas também há infelizmente muitas pessoas jovens que partilham com as pessoas do primeira grupo as mesmas convicções, ou antes, a ausência de toda a convicção. Pertencem na maior parte, a essa aristocracia que pela sua natureza está marcada desde há muito tempo, na Alemanha, pela morte política, seja a classe burguesa e comerciante, seja a dos funcionários. Com eles não há nada a empreender, e menos ainda com as pessoas judiciosas e experimentadas da primeira categoria que têm já um pé no túmulo. Os últimos tinham ao menos uma aparência de vida, enquanto que os outros são de nascença seres inexistentes, homens mortos. Estão todos embaraçados nos seus interesses sórdidos de vaidade ou do dinheiro e unicamente preocupados com os seus quotidianos, ignoram mesmo tudo da vida e o que se passa á volta deles, a ponto que, se não tivessem ouvido falar um pouco na escola da história e da evolução das ideias, acreditariam provavelmente que o mundo nunca teria sido outro do que é agora. São naturezas mortas, sombras que não podem ser nem úteis, nem nocivas; não temos nada a temer delas, porque só o que é vivo é que pode agir e como já passou de moda ter comércio com sombras, não queremos perder o nosso tempo com eles.


Mas há ainda uma terceira categoria de adversários do princípio da Revolução: é o partido reaccionário surgido pouco depois da Restauração em toda Europa e que se chama conservadorismo em política, escola histórica na ciência do direito, e filosofia positiva nas ciências especulativas. Temos a intenção de discutir com este partido, e seria absurdo da nossa parte, ignorar a sua existência e considerá-lo como insignificante; reconhecemos ao contrário, sinceramente que é agora, em todo o lado, o partido dirigente, e, bem mais, estamos prestes a conceder-lhe que a sua força presente não é um jogo do acaso, mas que tem as suas raízes profundas na evolução do espírito moderno. Em geral, não reconheço, ao acaso, uma influência real sobre a história; a história é um desenvolvimento livre, mas também necessário, do pensamento livre, de maneira que se atribuísse, ao acaso, a preponderância actual do partido reaccionário, eu prestaria o pior serviço à profissão de fé democrática que se funda unicamente sobre a liberdade absoluta do pensamento. Isto seria tanto mais perigoso, para nós, de nos adormecer numa quietude nefasta e mentirosa, que infelizmente, até ao presente, estamos ainda muito longe de compreender a nossa situação. Perigo tanto maior que, no desconhecimento, o que não é muito frequente, da verdadeira origem da nossa força e da natureza do nosso inimigo, acabrunhados pelo triste espectáculo da vulgaridade, nós podemos perder toda a nossa coragem, ou — o que é talvez, pior — como o desespero não pode durar num ser cheio de vida, restar atormentado por um temor injustificado, infantil e estéril.


PARTIDO DEMOCRÁTICO

E PARTIDO REACCIONÁRIO


Nada pode ser mais útil ao partido democrático que conhecer a sua fraqueza momentânea e a força relativa dos seus adversários. Este conhecimento fá-lo sair, primeiramente da onda de imaginação e entrar nessa realidade onde deve viver, sofrer e finalmente vencer. Torna o seu entusiasmo reflectido e modesto. Quando, por este doloroso contacto com a realidade, tiver tomado consciência da sua missão sagrada e sacerdotal; quando for atormentado pelas inumeráveis dificuldades que se levantam em toda a parte sobre o seu caminho e que não têm o seu manancial — como frequentemente o partido democrático parece julgá-lo — no obscurantismo dos seus adversários, mas antes na riqueza e na complexidade da natureza humana que resiste às teorias abstractas; logo que estas dificuldades lhe façam conhecer, e em seguida, compreender as imperfeições de toda o sua existência presente e lhe tenham mostrado que o seu inimigo não está somente fora dele, mas também e, sobretudo, nele mesmo e que, depois, deve começar a vencer este inimigo imanente; logo que tenha adquirido a convicção de que a democracia não consiste somente numa oposição aos governantes, não é uma reforma particular constitucional, política ou económica, mas que anuncia uma transformação total da estrutura actual do mundo e uma vida essencialmente nova desconhecida até agora na história; logo que tudo isto o tenha convencido que a democracia é uma religião, logo que esta concepção o tenha tornado a ele mesmo, religioso, quer dizer, não somente convencido do seu principio em pensamento e em raciocínio, mas também fiel a este princípio na vida real, até nas mais pequenas manifestações — então, e só então, o partido democrático abancará sobre o mundo uma vitória efectiva.


Reconhecemos, portanto, sinceramente que a força actual do partido reaccionário não é fato do acaso, mas é uma necessidade histórica. Não tem a sua origem na imperfeição do princípio democrático: este é, na realidade, a igualdade entre os homens realizando-se em liberdade, mas é também esta identidade do espírito, a mais profunda, a mais geral, a mais universal, numa palavra esta identidade única que se manifesta na história. Esta força do partido reaccionário é o efeito da imperfeição do partido democrático que não é ainda bem sucedido na consciência afirmativa do seu princípio e, por consequência, não existe senão como negação da realidade presente. Mas não sendo senão negação, mantém-se, primeiro, necessariamente alheio a esta plenitude da vida, de que não pode ainda compreender o desenvolvimento a partir de um princípio concebido por ele sob uma forma quase unicamente negativa. É porque, até agora, ele é apenas um partido e não ainda essa realidade viva que é o futuro e não o presente. Como os democratas formam somente um partido (e ainda, a julgar pelas manifestações exteriores da sua existência, um fraco partido), como o facto de não ser senão um partido suposto, e oposto a eles, um outro partido potente, isto só devia esclarecer os democratas sobre as suas próprias imperfeições que residem essencialmente neles.


Segundo a sua natureza e o seu princípio, o partido democrático aspira ao geral e ao universal, mas segundo a sua existência, enquanto partido, é somente qualquer coisa de particular — o negativo— opondo-se a qualquer outra coisa de particular — o positivo. Toda a importância e toda a força irresistível do negativo consistindo no aniquilamento do positivo, mas, ao mesmo tempo que o positivo, o negativo breve na sua ruína, devido à sua natureza particular, imperfeito e inadaptado à sua essência. O partido democrático não existe como tal, na plenitude da sua afirmação, mas somente como a negação do positivo: é porque deve, nesta forma imperfeita, desaparecer ao mesmo tempo que o positivo, para renascer espontaneamente sob uma forma regenerada e na plenitude viva do seu ser. Assim, o partido democrático torna-se nele mesmo e esta transformação não é somente quantitativa, não é um simples alargamento da sua existência actual imperfeita: Deus nos guarde! Porque um tal alargamento conduziria e uma humilhação universal e o termo final da história seria um nada absoluto. Esta transformação é, ao contrário, qualitativa, é uma revelação que vive e que anuncia a vida, é um novo céu e uma nova terra, um mundo jovem e magnífico, no qual todas as dissonâncias actuais se transformarão numa unidade harmoniosa.


É impossível corrigir as imperfeições do partido democrático pondo um termo ao carácter exclusivo da sua existência como partido por uma aparente conciliação com o positivo: seriam esforços vãos porque o positivo e o negativo são, uma vez por todas, incompatíveis. O negativo, pelo que se isole da sua oposição ao positivo e que se considere em si, parece ser em substância e sem vida. Esta inconsistência aparente é mesmo a censura capital que os positivos fazem aos democratas; esta censura repousa sobre um mal-entendido, porque o negativo não pode ser tomado isoladamente — não seria absolutamente nada! — mas somente na sua oposição ao positivo; todo o seu ser, o seu conteúdo, a sua vitalidade tendem para a destruição do positivo. “A propaganda revolucionária”, diz o Pentarque
[2], “é pela sua natureza íntima a negação das instituições existentes do Estado, porque o seu carácter mais autêntico não lhe pode determinar outro programa que a destruição de tudo o que existe”. Mas, então, é possível que o negativo, que toda a vida não tem por missão senão destruir, possa aparentemente coexistir com o que a sua natureza íntima o obriga a destruir? Só podem pensá-lo as pessoas sem chama e sem energia que não fazem uma ideia séria do positivo e do negativo.

O PARTIDO DEMOCRÁTICO PERANTE

OS REACCIONÁRIOS PUROS


No seio do partido reaccionário podem-se distinguir actualmente dois grupos principais; num figuram os reaccionários puros e consequentes, no outro os inconsequentes e conciliadores. Os primeiros concebem a oposição em toda sua pureza; sabem bem que não se pode mais conciliar o positivo e o negativo, como a água com o fogo; não vendo no negativo o lado afirmativo da sua natureza, não podem acreditá-lo e deduzem correctamente que o positivo não se pode manter senão pelo esmagamento total do negativo. Ao mesmo tempo, não dão conta que o positivo não é o mesmo positivo defendido por eles senão na medida em que o negativo se opõe ainda a ele; não vêem que, por consequência, se o positivo obtivesse uma vitória total sobre o negativo, seria, daqui para o futuro, fora da oposição, não seria mais o positivo, mas antes o fim do negativo: é preciso perdoar-se-lhes esta incompreensão, porque a cegueira é o carácter essencial de todo o positivo, enquanto que o discernimento é próprio só do negativo. Na nossa triste época sem consciência, numerosos são aqueles que pela covardia tentam esconder a eles mesmos as estritas consequências dos seus próprios princípios e esperam, assim, escapar ao risco de serem alterados no edifício artificial e frágil das suas pretensas convicções. Também é necessário dizer um muito obrigado a estes senhores, aos mais reaccionários. São sinceros, honestos e querem ser homens inteiros. Não se pode falar muito com eles, porque nunca se querem prestar a uma conversa razoável e, agora que o negativo divulgou, por toda a parte, o seu fermento de decomposição, é-lhes bem difícil, senão impossível, manterem-se no puro positivo: a tal ponto que lhes é necessário separarem-se da sua própria razão; é de ter medo deles mesmo e temer o menor ensaio de demonstração das suas convicções, o que ocasionará, com certeza, a sua refutação. Têm perfeita consciência disto: também substituem a palavra pela injúria…  Não são homens menos honestos e inteiros, ou, mais exactamente, querem ser homens honestos e inteiros. Têm como nós o ódio a toda a meia-medida, porque sabem que só um homem inteiro pode ser bom e que as meias-medidas são fonte envenenada de todo o mal.


Estes reaccionários fanáticos acusam-nos de heresia, e, se fosse possível, fariam surgir do arsenal da história a força oculta da Inquisição para a utilizar contra nós; eles negam-nos todo o sentimento bom ou humano e vêem em nós anticristos endurecidos que é permitido combater por todos os meios. Pagamos-lhes na mesma moeda? Não, seria indigno para nós e a grande causa que defendemos. O grande princípio ao serviço do qual nos pusémos dá-nos, entre outras vantagens, o bom privilégio de ser justos e imparciais sem para isso causar dano à nossa causa. Tudo o que repouse sobre um ponto de vista irredutível não pode utilizar como arma a verdade, porque a verdade está em contradição com todo o ponto de vista irredutível. Tudo o que é irredutível é forçosamente nas suas declarações parcial e fanático, porque não pode afirmar-se senão pela supressão brutal de todos os outros pontos de vista irredutíveis que lhe são opostos e que são justificados tanto como ele. Um ponto de vista irredutível, pelo único facto de existir, supõe que existem outros que deva, em razão da sua natureza particular, eliminar para se manter. Esta contradição é a maldição que pesa sobre ele, uma maldição que trás em si e que muda em ódio a expressão de todos os bons sentimentos inatos em todo o homem considerado como tal.


Somos, de certo modo, infinitamente mais felizes; certamente, como partido, opomo-nos aos positivistas, combatemo-los, e esta luta acorda em todos nós as más paixões; o facto de pertencermos, nós mesmos, a um partido torna-nos também frequentemente parciais e injustos. Mas não somos somente este partido negativo oposto ao positivo; a nossa fonte de vida, é o principio universal da liberdade absoluta, um principio que oculta nele tudo o que tem de bom no positivo e que está por cima do positivo, como também por cima de nós, considerados como partido. Enquanto partido fazemos somente política, mas não encontramos a nossa justificação senão no nosso princípio, senão a nossa causa não seria melhor que aquela do positivo, e é-nos necessário, para a nossa própria conservação, ficar fiel ao nosso princípio como inimigos da religião cristã — é só conosco que está dizer, elevarmo-nos continuamente desta existência estreita e somente política até à religião do nosso princípio universal e aberto sobre a vida. Devemos agir não só politicamente, mas também na nossa política religiosamente, o que significa ter a religião da liberdade de que a única expressão autêntica é a justiça e o amor. Sim, é conosco — tratam-nos como inimigos da religião cristã — é só conosco que está reservada esta tarefa de que fazemos dever supremo: praticar efectivamente o amor mesmo nos combates mais obstinados, este amor que é o mais alto poder do Cristo e o princípio único do verdadeiro cristianismo.


Procuramos ser justos mesmo perante os nossos inimigos, e reconhecemos voluntariamente que eles se esforçam de querer realmente o bem, e mais, que a sua natureza os tinha destinado para o bem e para uma vida animada e que só um inconcebível golpe do destino os desviou da sua verdadeira vocação. Não falamos daqueles que só se juntaram ao seu partido para deixar o campo livre às suas más paixões: os tartufos, há infelizmente muitos em todos os partidos! Não falamos senão dos defensores sinceros do positivismo consequente, que se esforça por chegar ao bem sem ter a vontade de o realizar, e aí reside o seu grande infortúnio e a sua consciência é por isso dilacerada. Não vêem no principio da liberdade mais que uma fria e vulgar abstracção, na qual a vulgaridade e a secura de vários defensores deste princípio colaboraram activamente, uma abstracção vazia de toda a vida, de toda a beleza e de toda a santidade. Não compreendem que não se deve confundir este princípio com a sua forma actual, medíocre e totalmente negativa, e que não pode vencer e realizar-se se não for a viva afirmação de si mesmo suprimindo o negativo como também o positivo. A sua opinião, dividida ainda infelizmente por muitos dos aderentes do partido negativo, é que o negativo ensaia de se propapagar enquanto tal, e pensam, exactamente como nós que a difusão do negativo faria soçobrar na vulgaridade toda a sociedade intelectual. Ao mesmo tempo, os seus sentimentos espontâneos fazem-nos aspirar de pleno direito à plenitude de uma vida apaixonada e, não encontrando no negativo mais que a humilhação desta vida, retornam ao passado, ao passado tal como existia antes que surgisse a oposição entre o negativo e o positivo. Têm razão, na medida, em que esse passado era um todo animado de vida própria apresentando-se, como tal, bem mais vivo e mais rico que o presente dilacerado pelas suas contradições. Mas cometem um grande erro quando pensam poder ressuscitar esse passado tão vivo; esquecem que a plenitude do passado só lhes pode surgir sob a forma de uma imagem desunida e quebrada no espelho das contradições actuais que fatalmente engendraram, e que este passado, pertencendo ao positivo, não é mais que um cadáver sem alma abandonado as leis mecânicas e químicas da reflexão. Adeptos do um positivismo cego, não compreendem isto, se bem que os seres vivos, em razão da sua própria natureza, ressintam perfeitamente esta falta de vida; e como eles não sabem que, pelo só facto de serem positivos suportavam deles o negativo, rejeitam para o negativo toda  responsabilidade desta falta de vida; o seu impulso para a vida e a verdade, incapaz de se satisfazer, mudou em ódio e fazem pesei o peso deste fracasso sobre o negativo. Tal é necessariamente, em todo o positivista consequente, o desenrolar interno dos seus sentimentos: isto porque a meu ver são verdadeiramente de lastimar, tendo os seus esforços uma origem quase sempre honesta.

O PARTIDO DEMOCRÁTICO PERANTE OS REACCIONÁRIOS CONCILIADORES


Os positivistas conciliadores têm uma outra posição: distinguem-se dos positivistas consequentes de duas maneiras: mais corrompidos que estes últimos pela falsa visão que têm da nossa época, não somente rejeitam pura e simplesmente o negativo como um mal absoluto, mas acordam-lhe mesmo uma justificação relativa e momentânea; e por outra parte, não possuem a mesma pureza cheia de energia, esta pureza à qual aspiram, ao menos, os positivistas consequentes e intransigentes e que assinalamos como o indício de uma natureza inteira, rica e honesta. Podemos definir o ponto de vista dos conciliadores como o da desonestidade no domínio da teoria; digo bem: da teoria, porque prefiro evitar toda a acusação contra os actos ou pessoas e porque não acredito que, na evolução dos espíritos, uma má vontade pessoal possa intervir para o entravar; contudo, é necessário reconhecer que a desonestidade teórica, em razão da sua própria natureza, leva necessariamente quase sempre à desonestidade prática.


Os positivistas conciliadores têm mais inteligência e penetração que os consequentes; são os inteligentes e os teóricos por excelência e, nesta medida, os principais representantes da época actual. Poderíamos aplicar-lhes o que, no começo da revolução de Julho, dizia um jornal francês o “Juste Milieu”. “O lado esquerdo diz: dois vezes dois, fazem quatro; o lado direito: dois vezes dois, fazem seis… e o justo centro diz: dois vezes dois, fazem cinco.” Mas achariam isto ruim! Vamos também tentar estudar muito seriamente a sua natureza confusa e difícil e com o mais profundo respeito pela sua sabedoria. É muito mais penoso dar razão aos conciliadores que aos consequentes. Estes últimos manifestam nos seus actos a força das suas convicções, sabem o que querem e falam claramente, e odeiam, tal como nós, toda a indecisão, toda a obscuridade porque as suas naturezas enérgicas na acção não podem respirar livremente senão no ar puro e luminoso. Mas com os conciliadores, é outro negócio! São indivíduos maliciosos, oh! são inteligentes e prudentes! Nunca permitem na prática à paixão da verdade destruir o edifício artificial das suas teorias; são muito experimentados, muito inteligentes para dar ouvidos à voz imperativa da simples consciência prática. Seguros dos seus pontos de vista, lançam sobre ela olhares cheios de distinção, e quando dizemos que só o que é simples é verdadeiro e real, porque só ele pode jogar um papel criador, eles pretendem, ao contrário, que só o complexo é verdadeiro: tiveram, na realidade as maiores dificuldades em o remendar e é o único sinal que permite distingui-los, a eles, os indivíduos inteligentes, da plebe imbecil e inculta (e é bem difícil vencer estes indivíduos porque, precisamente, sabem tudo!). Outras razões da sua atitude: sendo hábeis políticos, resistem a uma imperdoável fraqueza de serem tomados de imprevisto por qualquer acontecimento; enfim, ajudados pela reflexão, deslizaram em todos os recantos do mundo da natureza e do espírito e, depois desta longa e penosa viagem intelectual, adquiriram a convicção de que não vale a pena manter contactos ardentes com o mundo real. Com estes indivíduos é difícil tirar alguma coisa a claro, porque, assim como as constituições alemãs, tomam com a mão direita o que dão com a esquerda; nunca respondem com um sim, ou um não, dizem: “Numa certa medida vocês têm razão, mas contudo …”, e quando não têm argumentos dizem então: “Sim, é uma questão delicada.”


E, contudo, desejamos experimentar entrar em relações com o partido dos conciliadores que, apesar da inconsciência da sua doutrina e incapacidade de jogar um papel de direcção, é actualmente um partido forte, mesmo o mais forte, se tivermos em conta, bem entendido, o número e não as ideias. A sua existência é um sinal do tempo, e um dos mais importantes: também não é permitido ignorar este partido ou passá-lo sob silêncio.


DISCUSSÃO DA NATUREZA LÓGICA

DA CONTRADIÇÃO


Toda a sabedoria dos conciliadores consiste em pretender que duas tendências opostas, pelo facto mesmo da sua posição, são exclusivas e, por consequência, falsas, e se os dois termos da contradição, tomados no abstracto, são falsos, é necessário, portanto, que a verdade esteja entre os dois, á necessário conciliar os contrários para chegar à verdade. À primeira vista, este raciocínio parece irrefutável; nós mesmos admitimos o carácter exclusivo do negativo enquanto ele se opuser ao positivo e que nesta oposição relacione tudo consigo. Não resultará daqui que se realize e se complete essencialmente no positivo? E os conciliadores não têm razão de querer conciliar o positivo e o negativo? De acordo, se esta conciliação for possível: mas será verdadeiramente possível? A única razão de ser do negativo não é a destruição do positivo? Logo que os conciliadores fundam o seu ponto de vista sobre a natureza da contradição, quer dizer, sobre o facto que duas exclusividades opostas se supõem, enquanto tais, adversários, é-lhes necessário então permitir e aceitar que esta natureza toma toda a sua extensão; é-lhes necessário também, em razão das consequências que isto arrasta para eles, ficar fiéis ao seu ponto de vista, visto que a face da contradição que lhes é favorável é inseparável daquela que lhes é desfavorável. Ora, o que é desfavorável para eles é que a existência de um termo da contradição supõe a existência do outro: e isto não é qualquer coisa de positivo, mas bem de negativo e de destruição, É necessário chamar a atenção destes senhores sobre a lógica de Hegel onde ele faz um estudo tão notável sobre a categoria da contradição.


A contradição e o seu desenvolvimento imamente formam um dos nós principais de todo o sistema hegeliano, e como esta categoria é a categoria principal, a característica principal da nossa época, Hegel é sem réplica o maior filósofo do nosso tempo, o mais alto cume da nossa cultura moderna considerada unicamente do ponto de vista teórico. E precisamente, porque ele é este cume, porque compreendeu esta categoria e, por consequência a analisou, precisamente ele está na origem de uma necessária auto-decomposição da cultura moderna. Certamente, no princípio, era ainda prisioneiro da teoria, mas porque ele é este cume, evadiu-se, está por cima dela e postula um novo mundo prático; um mundo que não se realizará, em caso algum, pela aplicação formal e a extensão de teorias feitas, mas somente por uma acção espontânea do espírito prático autónomo. A contradição é a essência a mais íntima, não somente de toda a teoria determinada ou particular, mas ainda da teoria em geral; e assim, o momento em que a teoria é compreendida é também, ao mesmo tempo, quando o seu papel acabou. Devido a este contributo a teoria transforma-se num mundo novo prático e espontâneo, na presença real da liberdade. Mas não é aqui o lugar para desenvolver longamente esta questão, e queremos ainda, mais uma vez, debruçarmo-nos sobre a discussão da natureza lógica da contradição.


A própria contradição, enquanto tal, inclui os dois termos exclusivos num e no outro, é total, absoluta, verdadeira; não se lhe pode censurar esta natureza exclusiva à qual está necessariamente ligado um carácter superficial e estreito, porque ela não é somente o negativo, mas é também o positivo e, englobando-o inteiramente, é a plenitude total, absoluta, não deixando nada fora dela. E isto autoriza os conciliadores a exigir que não se retenha abstractamente só um dos dois termos em exclusivo, mas que, respeitando o laço necessário e indissolúvel que os une, se apreendam na sua totalidade: “Só a contradição á verdadeira”, dizem eles: “cada um dos termos opostos, tomados em si, é exclusivo e, portanto, falso; resulta que devemos compreender a contradição na sua totalidade para conhecermos a verdade”. Mas é precisamente aqui que começa a dificuldade: a contradição é bem a verdade, mas não existe como tal, ela não é como a totalidade, é somente uma totalidade em si e escondida, e a sua existência nasce precisamente da oposição e da divisão dos seus dois termos: o positivo e o negativo. A contradição, enquanto que verdade total, é a união indissolúvel da sua simplicidade e da sua própria divisão num princípio único. É essa a sua natureza em si, a sua natureza escondida que, por consequência, o espírito não pode imediatamente apreender, e precisamente porque esta união está escondida, a contradição só existe unicamente sob a forma da divisão dos seus termos e não é mais que a adição do positivo e do negativo; ora, estes termos excluem-se um ao outro tão categoricamente que esta exclusão recíproca constitui toda a sua natureza. Mas então como compreender a contradição na sua totalidade? Restam-nos, parece, duas saídas: ou bem que arbitrariamente é preciso fazer a abstracção da divisão refugiar-se nesta totalidade da contradição, totalidade simples e precedente da divisão — mas isto á impossível, porque o que escapa à compreensão nunca pode ser compreendido pelo espírito e porque a contradição, como tal, não tem existência imediata senão como divisão dos seus termos, e sem estar não existe; ou bem que é preciso procurar conciliar os termos opostos com um cuidado maternal, e é nisto que se esforça a escola conciliadora: vamos ver se tem êxito.


CARACTERES DO POSITIVO E DO NEGATIVO:
PREPONDERÂNCIA DO NEGATIVO


O positivo parece ser, primeiramente, o elemento calmo e imóvel; e mesmo é positivo unicamente porque nele não repousa nenhuma causa de perturbação e não há nada nele que possa ser uma negação, porque, enfim, no interior do positivo não há nenhum movimento, visto que todo o movimento é uma negação. Mas precisamente o positivo é tal que nele a ausência de movimento está estabelecida como tal, e assim, tomado em si, tem por imagem a ausência total do movimento; ora, a imagem que evoca em nós a imobilidade está indissoluvelmente ligada à do movimento, ou antes, elas não são mais que uma só e mesma imagem, e assim o positivo, repouso absoluto, só é positivo em oposição ao negativo, agitação absoluta. A situação do positivo relativamente ao negativo apresenta-se assim sob dois aspectos: de uma parte, traz consigo o repouso, e esta calma apática que o caracteriza não tem qualquer traço do negativo, em si; de outra parte, para conservar este repouso, afasta energicamente dele o negativo, como se tivesse qualquer coisa de oposto ao negativo. Mas a actividade que desenvolve para excluir o negativo é um movimento, e assim o positivo, tomado em si mesmo e precisamente por causa da sua positividade, já não é mais o positivo, mas o negativo; eliminando dele o negativo, elimina-se a ele próprio e corre para a sua própria perda.


O positivo e o negativo não são, em consequência, iguais em direitos como o pensam os conciliadores; a contradição não é um equilíbrio, mas uma preponderância do negativo. O negativo é, portanto, o factor dominante da contradição, determina a existência do positivo e encerra só em si a totalidade da contradição: é também ele o único que está autorizado, por direito, de uma maneira absoluta. Talvez me objectem não termos admitido que o negativo considerado abstractamente é tão exclusivo como o positivo e que o alargamento da sua existência actual imperfeita conduzirá a um achatamento universal? Sim! mas falei somente da existência actual do negativo, falei do negativo que, afastado do positivo, dobra-se pacificamente sobre si mesmo e, assim toma os caracteres do positivo. E como tal, é negado pelo positivo, e os positivistas consequentes, negando a existência do negativo e o seu pacífico comportamento executam ao mesmo tempo uma função lógica e sagrada… sem, aliás, saber o que fazem. Julgam negar o negativo, e ao contrário, negam o negativo unicamente na medida em que se identifica com o positivo; acordam o negativo deste repouso de bom burguês para que não está destinado e reconduzem-no à sua grande vocação: sem descanso e sem reservas, destruir tudo o que tiver uma existência positiva.


Reconheçamos que o positivo e o negativo têm direitos iguais, mas este último dobra-se sobre si próprio pacifica e egoisticamente e, assim, é infiel à sua missão. Mas o negativo não deve ser egoísta, deve-se dar com amor ao positivo para o absorver e, neste acto de destruição religioso, cheio de fé e de vida, revelar a sua natureza íntima inesgotável e cheia de futuro. O positivo é negado pelo negativo e, inversamente, o negativo pelo positivo; portanto, o que é comum a ambos e quem os domina? O facto de negar, de destruir, de absorver apaixonadamente o positivo, mesmo quando este procura com astúcia esconder-se sob os traços do negativo. O negativo encontra a sua justificação nesta negação radical —  e como tal está absolutamente justificado: é, na realidade, por ele que age o espírito prático bem presente como invisível na contradição, o espírito que, por esta tempestade de destruição, exorta ardentemente à penitência das almas pecadoras dos conciliadores e anuncia a sua vinda próxima, a sua Revolução próxima numa Igreja da Liberdade verdadeiramente democrata e aberta à humanidade universal.

Esta auto-decomposição do positivo é a única conciliação possível entre o positivo e o negativo, porque este último é ele mesmo, de maneira imanente e total, o movimento e a energia da contradição. Assim, qualquer outro modo de conciliação é arbitrário, e todos aqueles que tendem para uma conciliação demonstram somente pela mesma que não estão penetrados pelo espírito do tempo e que são estúpidos, ou sem carácter: não se é, na realidade, verdadeiramente inteligente e moral se se abandona por completo este espírito e se se é penetrado por ele. A contradição é total e verdadeira: mesmo os conciliadores o reconhecem. Sendo total é animada por uma vida intensa, e desta vida que abraça extrai precisamente a sua energia, do positivo ardente na chama pura do negativo.


ARGUMENTOS DOS CONCILIADORES E CRÍTICA

DESTES ARGUMENTOS


Que fazem então os conciliadores? Concedem-nos tudo isto, reconhecem, como nós, o carácter total da contradição, com a diferença de que a despojam — ou antes, querem despojá-la — do seu movimento, da sua vitalidade e da sua alma inteiramente: esta vitalidade, na realidade, é uma força prática, incompatível com as suas alminhas impotentes, e por isso mesmo acima de tudo o que possam tentar para a sufocar. Já dissémos e demonstrámos que o positivo, tomado em si mesmo, está privado de todos os direitos: não se justifica senão na medida em que opõe a sua recusa à quietude do negativo e a toda a relação como ele, em que afasta de si o negativo categoricamente e sem reservas e mantém assim a sua actividade, na medida, enfim, em que se transforma num negativo activo. Esta actividade que consigo carrega a negação, à qual os positivistas se elevam graças à potência invencível da contradição e à sua presença invisível em todas as naturezas vivas, esta actividade que constitui a única justificação dos positivistas e o único sinal da sua vitalidade, é ela precisamente que os conciliadores querem proibir. Por uma desgraça singular e incompreensível, ou antes, em razão desta desgraça perfeitamente compreensível que nasce da sua falta de carácter e da sua importância na vida prática, não conhecem nos elementos positivos senão
o que neles há de morto, de apodrecido, e dedicados à destruição recusam o que cria toda a sua vitalidade: a luta viva com o negativo, a presença da contradição.

E vejamos o que dizem aos positivistas: “Senhores, vocês têm razão em conservar os restos apodrecidos e ressecados pela tradição. Como a vida é bela e agradável nas ruínas, neste mundo absurdo da rococó cujo ar, para os nossos espíritos anémicos, é tão saudável como o ar de um estábulo para os corpos anêmicos. No que nos diz respeito, nós ter-nos-íamos estabelecido com a maior alegria no vosso mundo, num mundo onde o Verdadeiro e o Sagrado não se avaliem à escala da razão e das decisões razoáveis da vontade humana, mas àquela da longa duração e da imobilidade, um mundo como, em consequência, é certamente a China com os seus mandarins e os seus bestonados para a Verdade absoluta. Mas, o que é preciso fazer agora, senhores? Vivemos dos tristes tempos, nossos inimigos comuns, os negativos, ganharam muito terreno. Á nossa raiva para com eles é também forte, senão mais forte que a vossa, porque eles se permitem nos seus excessos desprezar-nos. Mas tornaram-se fortes e é-nos necessário — quer queiramos, quer não — levá-los em consideração, sob pena de sermos inteiramente destruídos por eles. Não sejam, portanto, tão fanáticos, senhores, concedam-lhes um lugarzito na vossa sociedade. Que vos importa se, no vosso museu histórico, eles tomam o lugar frequentemente de ruínas, aliás muito veneráveis mas completamente arruinados? Acreditem-nos: contentíssimos da honra que assim lhes testemunhais, conduzir-se-ão na vossa respeitável sociedade com muita calma e discrição. Não são, afinal de contas, senão indivíduos jovens tornados amargos pela necessidade e a falta de uma situação isenta de cuidados: é a única razão dos seus gritos a de todo o barulho que fazem, esperançados por adquirirem uma certa importância e obterem um lugar agradável na sociedade.”


Depois voltam-se para os negativistas e dizem-lhes: “Senhores as vossas aspirações são nobres! Compreendendo o vosso entusiasmo juvenil pelos puros princípios temos por vós a maior simpatia; mas, acreditem-nos, os puros princípios são na sua pureza inaplicáveis á vida; é necessário para viver ter uma certa dose de eclectismo, o mundo não se deixa guiar segundo os vossos desejos e é preciso ceder-lhe sobre certos pontos para poder exercer sobre ele uma acção eficaz: senão a vossa situação no mundo estará completamente perdida”. Os conciliadores parecem-se com os judeus polacos que, diz-se, aquando da última guerra da Polónia, queriam prestar serviços aos dois partidos em luta, aos polacos e aos russos, e foram pendurados por um e por outro; da mesma maneira, estes infelizes atormentem-se com o seu empreendimento impossível de conciliação exterior e, em agradecimento, são desprezados pelos dois partidos. É somente deplorável que na época actual falte tanta força e energia para fazer sua a lei de Sólon!
[3]


”Não passam de frases!” dirão; “os conciliadores são indivíduos, na maior parte, honrosos e tendo uma formação científica há entre eles um grande número de pessoas universalmente consideradas e altamente colocadas, e vocês apresentam-os como indivíduos sem discernimento e sem carácter!” Que posso contra isso, se isso é verdade? Não me quero entregar a qualquer ataque pessoal; os sentimentos íntimos de um indivíduo são para mim uma coisa santa e inviolável, qualquer coisa de incomensurável sobre a qual nunca me permitiria fazer um julgamento; eles podem ter para o indivíduo um valor imenso, mas, na realidade, para o mundo eles existem, na medida em que se manifestam, e o mundo vê-os tal como eles se manifestam. Todo o homem é realmente o que é no mundo real, é-me impossível chamar branco ao que é preto.


Sim, responderão, as aspirações dos conciliadores parecem-nos negras, ou mais exactamente acinzentadas; na realidade, querem somente o progresso, tendem para ele e favorizam-no mais que vós mesmos, metendo-se ao trabalho com prudência e não com a presunção dos democratas que procuram fazer saltar o mundo inteiro. Mas já vimos o que é este pretendido progresso visado pelos conciliadores, já vimos que eles não querem, no fundo nada que não seja abafar o único princípio vivo da nossa época, aliás, tão miserável, o princípio criador e rico de futuro do movimento que desintegra todas as coisas. Vêem tão bem como nós que o nosso tempo é o da contradição; admitem que é uma situação difícil e cheia de tumultos, mas no lugar de a deixarem evoluir, sob o efeito da contradição levada ao seu termo, para uma realidade nova, afirmativa e orgânica, querem manter eternamente esta situação, tão miserável e tão débil na sua existência presente, através duma infinidade de reformas graduais. É isto progresso? Eles dizem aos positivos: “Conservais o que é velho, mas permiti ao mesmo tempo aos negativos desagregá-lo pouco a pouco”. E aos negativos; “Destrui o que é velho, mas não de um só golpe nem totalmente, afim que possais ter sempre qualquer obra a fazer; quer dizer, ficai cada um na vossa exclusividade, enquanto que nós os Eleitos, guardaremos para nós o usufruto da totalidade!” Miserável totalidade que somente pode satisfazer os espíritos miseráveis! Eles despojam a contradição da sua alma prática e sempre em movimento e regozijam-se de poder, em seguida, tratá-la segundo a sua fantasia. A grande contradição actual não é para eles uma força prática do tempo presente, à qual todo o ser vivo deve abandonar-se para conservar a sua vitalidade, mas um simples brinquedo teórico. Não estão penetrados pelo espírito prático do tempo e são, por esta razão, indivíduos sem moralidade; sim, sem moralidade! eles que se vangloriam da tal forma da sua moralidade! Porque fora desta igreja da humanidade livre não haveria possibilidade de haver moralidade, sem a qual não há salvação! É preciso repetir-lhes o que o autor do Apocalipse diz aos conciliadores do seu tempo
[4];

 “Conheço a tua conduta; não és nem trio, nem quente – não és nem uma coisa, nem outra!

 Assim, já que estás tépido, nem quente nem trio, vou vomitar-te da minha boca.

 Tu imaginas-te: eis-me rico, enriqueci-me e nada me falta; mas tu não o vês; és tu que és infeliz, piedoso, pobre, cego e nu.”

Mas” dir-me-ão, “não irão cair, com a vossa separação absoluta dos extremos, neste ponto de vista abstracto desde há muito tempo superado por Shelling e Hegel? E este mesmo Hegel que tendes em tão alta consideração, não remarcou justamente que na luz pura se vê tão pouco como na obscuridade pura, e que só a união concreta dos dois torna a visão geralmente possível? E o grande mérito de Hegel não é de ter demonstrado que todo o ser vivo não vive se não possuir a sua negação não exteriormente a ele, mas nele como uma condição vital imanente, e que se fosse somente positivo e tivesse a sua negação exteriormente a ele, seria privado de movimento e de vida?”. Sei-o muito bem, senhores! Admito que, por exemplo, um organismo vivo não vive se não traz o germe da sua morte. Mas se querem citar Hegel, é necessário fazê-lo integralmente. Vereis então que o negativo não é condição vital dum determinado organismo senão durante o tempo em que aparece nesse organismo como factor mantido na sua totalidade. Vereis que chega um momento onde a acção gradual do negativo é bruscamente quebrada, transformando-se em principio independente, que este instante significa a morte deste organismo e que a filosofia de Hegel caracteriza este momento como a passagem da natureza a um mundo qualitativamente novo, ao mundo livro do espírito.

CONTRADIÇÃO SEMPRE MAIS AGUDA ENTRE

NÃO-LIBERDADE E LIBERDADE
DECOMPOSIÇÃO DAS IGREJAS E DOS ESTADOS

 Os mesmos factos reproduzem-se na história; por exemplo, o princípio da liberdade teórica despertou no mundo católico do passado desde os primeiros anos da sua existência. Este princípio foi a fonte de todas as heresias tão numerosas no catolicismo. Sem este princípio, o catolicismo teria permanecido congelado; foi, portanto, ao mesmo tempo o princípio da sua vitalidade, mas somente, enquanto foi mantido na sua totalidade como um factor simples. E assim o protestantismo fez, pouco a pouco, a sua aparição; a sua origem remonta mesmo à origem do catolicismo, mas um dia a sua progressão cessou bruscamente de ser gradual e o princípio da liberdade teórica elevou-se até se tornar um princípio autónomo e independente. É somente então que a contradição aparece na sua pureza, e vós bem o sabeis, senhores, vós que vos dizeis protestantes, o que Lutero respondeu aos conciliadores do seu tempo quando lhe vieram propor os seus serviços.


Como vemos, a ideia que faço sobre a natureza da contradição presta-se a uma confirmação não somente lógica, mas também histórica. Sei que nenhuma demonstração tem efeito sobre vós, porque, sendo sem vida, vós tendes como ocupação preferida o domínio da história, e não é sem razão que vos consideraram arrumadores insensibilizados! “Não estamos ainda vencidos” talvez me respondam os conciliadores; “tudo o que dizeis sobre a contradição é verdadeiro; mas há uma coisa com que não podemos estar de acordo, é que a situação actual esteja tão má como a pretendeis. Há contradições na nossa época, mas não são tão perigosas como vós o assegurais. Vejamos, em toda a parte reina a calma, em toda a parte a agitação está sossegada, ninguém pensa na guerra e a maioria da nações e dos homens vivos actualmente empregam todas as suas forças para manter a paz; é que eles sabem que, sem a paz, não podem ser favorecidos os seus interesses materiais, que parece terem-se tornado o principal negócio da política e do mundo civilizado. Que excelentes ocasiões apareceram para fazer a guerra e para destruir o regime existente, desde a revolução de Julho até aos nossos dias! Durante estes doze anos produziram-se tais complicações que nunca se acreditou ser possível a sua solução pacífica, houve tantos momentos em que um conflito geral parecia inevitável e que as mais terríveis tempestades nos ameaçavam: e, entretanto, as dificuldades, pouco a pouco, desapareceram, tudo ficou tranquilo e a paz parece ter-se estabelecido para sempre sobre a terra”!


A paz, dizeis vós: como se se pudesse chamar paz a isto! Sustento, ao contrário, que nunca as contradições estiveram tão acentuadas como no presente; afirmo que a eterna contradição que existe desde sempre, mas que, durante a história, não fez mais que crescer e desenvolver-se esta contradição entre a liberdade e a não-liberdade, tomou o seu impulso no nosso tempo tão análogo aos períodos da decomposição do mundo pagão e atingiu o apogeu! Não leram sobre o frontão do templo da Liberdade erigido pela Revolução estas palavras misteriosas e terríveis: Liberdade, Igualdade, Fraternidade? Não sabeis e não sentis que estas palavras significam a destruição total da presente ordem política e social? Nunca ouviram dizer que Napoleão, esse pretenso vencedor dos princípios democráticos, tem, como filho digno da Revolução, propagado por toda a Europa, pela sua mão vitoriosa, os princípios igualitários? Talvez ignorais tudo sobre Kant, Fichte, Schelling e Hegel, e não sabeis verdadeiramente nada de uma filosofia que, no mundo intelectual, estabeleceu o princípio da autonomia do espírito, idêntico ao princípio igualitário da Revolução? Não compreendeis que este princípio está em contradição absoluta com todas as religiões positivas actuais, com todas as Igrejas existentes?


”Sim”, respondeis, “mas estas contradições são justamente da história antiga; em França, a revolução foi vencida pelo sábio governo de Louis-Philippe, e foi Schelling, ele próprio, que recentemente derrubou a filosofia moderna, quando tinha sido ele um dos seus maiores fundadores. Em toda a parte, e agora em todas as esferas da vida, a contradição será superada!” Acreditais verdadeiramente nesta resolução, nesta vitória sobre o espírito revolucionário? Sois, portanto, cegos ou surdos? Não tendes olhos nem orelhas para perceber o que progride à vossa volta? Não, senhores, o espírito revolucionário não foi vencido; a sua primeira aparição abalou o mundo inteiro até aos seus fundamentos, em seguida apenas se dobrou sobre si próprio, ocultou-se somente em si para pouco depois, de novo, se anunciar como o princípio afirmativo e criador, e escava agora sob a terra como uma toupeira, segundo a expressão de Hegei! Que não trabalha inutilmente, é o que mostram todas estas ruínas que juncam o solo do edifício religioso, político e social. E falais de superação da contradição e de reconciliação! Olhai à vossa volta e dizei-me o que ficou vivo do velho mundo católico e protestante? Falais de vitória sobre o princípio negativo! Não leram nada de Strauss, de Feuerbach e de Bruno Bauer, não sabeis que as suas obras estão em todas as mãos? Não vêem que toda a literatura alemã, todos os livros, jornais e brochuras estão penetrados por este espírito negativo e que mesmo as obras dos positivistas, inconsciente e involuntariamente, o estão também. E é a isto que chamais paz e reconciliação!


Sabemos que a humanidade, em razão da sua nobre missão, não pode encontrar a sua satisfação e o seu apaziguamento senão no princípio prático universal, num princípio que com força abraça a si as mil diversas manifestações da vida espiritual. Mas onde está este princípio, senhores? Entretanto, chegamos por vezes, durante a vossa existência ordinária tão triste, a viver instantes cheios de vida e de humanidade, desses instantes em que rejeitais para longe de vós os móveis mesquinhos que animam a vossa vida quotidiana e aspirais à verdade, a tudo o que é grande e santo; respondam-me então sinceramente, a mão sobre o coração: já encontrásteis em alguma parte qualquer coisa de vivo? Já alguma vez, entre as ruínas que nos rodeiam, descobriram este mundo tão desejado onde poderíeis renascer para uma nova vida num abandono total e numa comunhão perfeita com toda a humanidade? Seria isto, por acaso, o mundo do protestantismo? Mas esse está atormentado pelas mais horríveis desordens, e em quantas seitas diferentes não está ele dividido? “Sem um grande entusiasmo geral”, diz Schelling, “só há seitas, mas não há opinião pública”. E o mundo protestante actual está em mil lugares a ser penetrado por um tal entusiasmo, porque é o mundo mais prosaico que se possa imaginar. Seria isto, por acaso, o catolicismo? Mas onde está o seu antigo esplendor? Ele, que foi o mestre do mundo, não se tornou o instrumento submisso de uma política imoral, estranha aos seus princípios? Ou talvez encontreis a vossa satisfação no Estado tal como é presentemente? Pois bem! isto seria uma bonita satisfação! O Estado consagrou-se, agora, às contradições interiores mais extremas, porque o Estado sem religião e sem princípios sólidos comuns não pode viver. Se vos quereis convencer, olhai somente para a França e Inglaterra: prefiro não falar da Alemanha!

Olhai para vós mesmos, senhores, e digam-me sinceramente se estais contentes convosco e se vos é possível ser? Não vos pareceis todos, sem excepção, com os tristes e miseráveis fantasmas da nossa triste e miserável época? Não estais cheios de contradições? Sois homens inteiros? Acreditais verdadeiramente em alguma coisa? Sabeis o que quereis e, sobretudo, sois capazes de querer alguma coisa? O pensamento moderno, esta epidemia da nossa época, terá deixado viva uma só parte de vós, não vos penetrou até ao recôndito, paralisados e quebrados? Em verdade, senhores, é necessário que reconheçam que a nossa época é uma época miserável e que nós somos as crianças ainda mais miseráveis!

DA DESTRUIÇÃO DO VELHO MUNDO SURGIRÁ

UMA ORDEM NOVA


Mas por outro lado manifestam-se à nossa volto fenómenos precursores: são o sinal de que o Espírito, esta velha toupeira
[5], acabou o seu trabalho subterrâneo e irá
brevemente reaparecer para fazer a sua justiça. Formam-se, por todo o lado, e sobretudo em França e na Inglaterra, associações de tipo, ao mesmo tempo, socialista e religioso, que, inteiramente à parte do mundo político actual, irão buscar a sua vitalidade em fontes novas e desconhecidas, desenvolvendo-se e propagando-se secretamente. O povo, a classe das pessoas pobres que constituem sem dúvida alguma a imensa maioria da humanidade
[6], essa classe de que já se reconheceu os direitos em teoria, mas que o seu aparecimento e a sua situação de condenados, até ao presente, à miséria e à ignorância e, do mesmo modo, a uma escravidão de facto, esta classe que constitui o povo propriamente dito, toma por toda a parte uma atitude ofensiva; começa a enumerar os seus inimigos, cujas forças são inferiores às suas, e a reclamar a efectivação dos seus direitos que todos já lhe reconheceram. Todos os povos e todos os indivíduos estão plenos de um vago pressentimento, e todo o ser normalmente constituído espera ansiosamente este futuro próximo, onde serão pronunciadas as palavras libertadoras. Mesmo na Rússia, esse império imenso de estepes cobertas de neve que conhecemos tão pouco e a quem se abre talvez um grande futuro, mesmo nesta Rússia se amontoam nuvens escuras, precursoras da tempestade. Oh! a atmosfera sufoca o está cheia de tempestades!


[1] Bakunine referia-se, sem dúvida, à passagem do Evangelho segundo S. Mateus “Não é dizendo-me: Senhor! Senhor! que se entra ao reino dos céus, mas é fazendo a vontade de meu Pai que está nos céus” (A Bíblia, editada pela Escola Bíblica do Jerusalém — pág. 1298).

[2] Segundo uma nota de Rainer Beer (Bakounine — “Phllosophie der Tat”, Edições Hegner, em Colónia) este sobrenome, designaria um teórico do Direito, Fréderic Julius Stahl (1820-1861), um dos criadores desta concepção cristã-conservadora que concebe ao Estado e ao Direito uma origem divina

[3] Por volta da 594 a. o. Solon promulgou em Atenas ame isi surpreendente: perda parcial ou total dos direitos políticos (atimie) dos cidadãos culpados de abstenção política em caso de agitação ou da perigo necional Por volta de 454 a. o., depois de Marathon e antes da grande Invasão de Xerxes, esta lei tinha cado em desuso e para combater os sd,,ersár]os do rearmamento de Atenas, Thérmisrode lisa o ostracismo.

[4] As linhas que se seguem são extraídas do Apocalipse; cartas às Igreja da Ásia (Laodicée). O texto referido é reproduzido da Bíblia (Escola Bíblica de Jerusalém), pág. 623. O texto alemão de Bakunine está inteiramente conforme a tradução apresentada.

[5] Alusão e essa passagem de Haqel: -Frequentemente parece que o espirito esquece-se, perde-se; mas no interior está sempre em opoolçâo cora ele mesmo. é progresso interior, como Hemlat diz do eepprilo de seu pai- ‘Bom trabalho, velha toupeiral». até ao momento em que encontre nele mesmo tanta força para levantar a crosta terrestre que o separado sol”. Marx utilizou e mesma imagem: “Logo que a revolução tenha acabado o seu trabalho subterrâneo, a Europa saltará do seu lugar e rejubilará: “Bem escavado, velha toupeira!”

[6] Comparar Proudhon (“Filosofia do Progresso”, 1853): A classe assalariada, a mais numerosa e a mais pobre, tanto mais pobre do que numerosa.”

Das canções barulhentas que animam rebeldes: uma nota sobre Redson, a banda Cólera e a emergência do anarco-punk.

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Por Acácio Augusto *

Fonte: GEAPI – Grupo de Estudos Anarquistas do Piauí

Você era um bom menino

mas um dia se cansou

de ser dominado

de tanta pressão

Cólera

O punk foi o grito de guerra que marcou um rompimento com as tecnologias disciplinares e, ao mesmo tempo, anunciou rebeldias contra os governos na sociedade de controle. Diante do fim do sonho, jovens que adotaram a revolta como atitude estética bradavam: não há futuro! Mais do que moda juvenil ou produto da indústria cultural — como querem as definições sociológicas de gabinete —, o punk rock deu forma, trilha e estética aos jovens que odiavam a família, a escola, a igreja, o exército, a polícia, o emprego, o Estado, enfim, toda e qualquer autoridade que se apresentasse a eles como tal. Tudo ou nada. Afirmava não ser preciso que alguém lhe autorizasse se seu querer era destruir uma sociedade que se apresentava tão podre quanto sua calça jeans, sua jaqueta de couro e seu coturno. Destruição!

No Brasil, o punk encontrou um país saindo de uma ditadura civil-militar e em um processo de democratização que fedia tanto quanto o chulé de garotos petulantes e mal-

criados oriundos dos bairros pobres da cidade de São Paulo. “O punk veio para pintar a asa branca de negro, atrasar o trem das onze e fazer da Amélia uma mulher qualquer”, declarou Clemente, da banda Inocentes, a um repórter da TV Cultura durante a realização, em 1982, do festival “O começo do fim do mundo”, realizado no SESC Pompéia, em São Paulo, com decisiva interferência do jornalista e dramaturgo Antonio Bivar.

O festival contou com uma prévia, meses antes, no antigo Salão Beta, dos estudantes

da PUC-SP, onde hoje é o Tucarena. Uma das bandas que tocaram nesse festival foi o Cólera.

O Cólera foi formado em 1979 pelos irmãos Pierre e Edson Pozzi, este adotando o nome punk de Redson, o filho vermelho, o som vermelho. Não cabe para um punk um obituário ou uma nota biográfica, mas o registro do ano de início de uma banda que, junto com Restos de Nada, amplificou em termos sonoros, estéticos e políticos o que havia de mais visceral e contundente no punk da periferia e do subúrbio de São Paulo.

Agora, o dia 27 de setembro de 2011, com a morte de Redson, marca o final da banda mais longeva do punk no Brasil: 32 anos de cólera, de revolta, de gritos de ódio. Finda uma obra feita com o que os punks chamam de do it yourself.

Sem grandes gravadoras, sem facilidades computacionais, sem patrocínios ou paitrocínios. O Cólera foi uma das primeiras bandas a gravar um disco com selo próprio, o Ataque Frontal; a primeira a se arriscar, em meados dos anos 1980, a tocar em squats e ocupações de quase toda Europa, com a ajuda de amigos cultivados por correspondências; a gravar, fazer shows, participar de manifestações e até, eventualmente, tocar em programas de TV, como o extinto Boca Livre, sem um esquema empresarial. A proximidade do punk com a autogestão e os anarquismos não foi mera coincidência ou afinidade ideológica: se tocaram pelo jeito de fazer as coisas e de se inventar no mundo.

Marcante, também, na existência de Redson e do Cólera, foi a temática recorrente em suas letras. Além daquelas sobre a vida de jovens na cidade, o combate à polícia, o ódio simultâneo ao consumismo, ao comunismo e ao fascismo, e as brigas pelas ruas, comuns a quase toda banda punk que se preze, foi a partir do disco “Pela paz em todo mundo”, de 1986, que temáticas como o pacifismo ativo, as preocupações ecológicas, o combate à homofobia, ao machismo e ao sexismo, o antimilitarismo e os alertas antinucleares passaram a fazer parte do repertório e da verve dos punks no Brasil.

Tal atenção para com a elaboração e temática das letras fez do Cólera procedência imediata do que depois se conhecerá como anarco-punk no Brasil, em especial por evidenciar e investir no rompimento com uma educação de costumes conservadores trazida de casa e sustentadas por muitos punks.

Impressionante, também, era a energia de Redson, Val e Pierre no palco: ágeis, sagazes e incansáveis. Qualquer um que fitasse o brilho nos olhos de Redson tocando e Das canções barulhentas que animam rebeldes cantando não conseguiria ficar indiferente a músicas como “Agir”, “Histeria”, “Subúrbio Geral”, “São Paulo”, “Duas Ogivas” ou “Quanto vale a liberdade?”.

Redson era um homem generoso, atento às bandas que desapareciam tão rápido quanto apareciam e defensor de uma atitude não violenta que se afastava de certa rabugice da maioria dos punks. Sabia que lutar contra fascismo não era matar e morrer estupidamente nas ruas da cidade. Atravessou, corajosamente, três décadas de punk como um quase infame que viu muita gente morrer, virar crente ou skinhead, casar e depois ver no punk um arroubo juvenil. Seguiu sem esmorecer insuflando a revolta de novos garotos que queriam “destruir o sistema”. Com guitarra em punho, com suas hesitações e contradições, mostrou com sua existência que é possível viver diferentemente do que se destina a você quando nasce. Mostrou que é possível deixar uma marca sem abrir mão da liberdade e sem “se entregar ao sistema”.

Hoje, abundam as chamadas bandas e gravadoras alternativas e independentes, e a internet ampliou a possibilidade de espalhar uma banda ou um som. A maioria dos jovens das periferias, encantados com o rap oriundo dos Estados Unidos, querem ser integrados e fazer sucesso. Os punks, na sua maioria, matam-se estupidamente na porta de shows e produzem ecumênicas alianças com skinheads. Parecem perdidos numa justificativa ideológica de brigas de gangue. Paradoxalmente, foi a ousadia de pessoas como Redson, no começo dos anos 1980, que abriu caminho para isso. O grito de revolta de trinta anos atrás, em pouco tempo foi respondido com essa pacificação violenta que oscila entre um punk que não produz mais algo como o Cólera e um rap que é quase unânime nos bairros pobres da cidade e nas rodinhas das classes médias politizadas.

A morte de Redson lembra que já faz trinta anos que a revolta eclodiu na cidade e que hoje ela está sufocada, ou impedida de aparecer, pela intensificação da comunicação e por uma recusa das condições de vida nos bairros pobres que se expressa como vontade de inclusão e expressão de assujeitamentos.

***

Conheci e convivi com Redson em momentos efêmeros e intermitentes. Não era um homem extraordinário, mas um sujeito incomum. Assisti muitos dos seus shows, em casas noturnas do centro e em bares imundos nas bordas mais ermas da cidade. O mais marcante era a energia e o brilho no olhar. Ao escrever sobre sua morte, por sugestão de um amigo, que sensivelmente notou minha perturbação com a notícia, dou-me conta de que cheguei à quarta página sem arriscar escrever na primeira pessoa do singular. De fato, a banda Cólera e seu front man, Redson, tem toda essa importância descrita acima, talvez até mais, e sua morte me levou a pensar sobre essa diferença entre o que foi possível de vivamente revoltado e rebelde num momento, e o que é tão raro hoje; como o punk rock abriu a possibilidade de um rompimento que hoje é dificilmente ensaiado.

A revolta contra a sociedade parece ter virado muro de lamentações. A rapidez e urgência do hardcore foi cedendo espaço ao peso e lentidão do rap. Redson morreu, tendo vivido à sua maneira, escapou do itinerário destinado a um jovem de periferia sem virar “macaco” da classe média. Como todo vivente não escapou da morte, mas viveu a intensidade da vida numa cidade estúpida que só poderia ser desafiada com a agressividade própria do

punk rock.

Das canções barulhentas que animam rebeldes Quando eu tinha 14 anos e um tremendo mal-estar de habitar um mundo que então se abria, foi muito bom ouvir, num disco de vinil ainda, Redson cantar: “Quanto vale a liberdade?/Pra vocês ela tem um preço/Quanto vale a confiança?/Não quero esperar/Não acredito no seu dinheiro/Onde está o seu caráter?/Deve estar perdido em algum beco/Horas você enlouquece/E depois quer fugir/Se refugia como um animal, como um animal/Dia após dia eu procuro ir em frente/Vê se me entende, não há razão, não há razão/Já não pode mais pensar/Olhe para tudo como está/Agora eu sei que não há preço/Mas me sinto acorrentado/Dia após dia, e não há razão, não há razão/Quanto vale a liberdade?/Quanto vale a liberdade?/Não importa, eu vou em frente/Não importa, eu vou em frente!” Que a revolta e o barulho, em vermelho e negro, que animou jovens como Redson siga existindo e seja capaz de inventar novos percursos de liberdade à sua maneira, como há trinta anos esse punk inventou.

*Acácio Augusto é doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP, professor no Cur-

so de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina e pesquisador no

Nu-Sol. Escreveu em parceria com Edson Passetti Anarquismos e educação,

Editora Autêntica, 2008.

Alexandre Samis. “A Associação Internacional dos Trabalhadores e a Conformação da Tradição Libertária”

a

Fonte: Instituto de Teoria e História Anarquista

Nesse texto, Samis analisa a formação e consolidação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), chamada posteriormente de Primeira Internacional, e da matriz libertária do socialismo. Com uma análise minuciosa das atas e minutas congressuais da AIT, sempre relacionado-as ao contexto de seu tempo, ele elucida a composição de forças, estratégias e tendências políticas dessa associação. Num trabalho de reconstituição dos fios históricos que conformaram a tradição libertária, o autor discute as principais polêmicas congressuais abordando, além dos primeiros congressos, as resoluções e conflitos internos do Congresso da Basiléia (1869), da Conferência de Londres (1871) e por fim, a formação em Saint-Imier da Internacional Anti-autoritária (1872), que pode ser vista, do ponto de vista simbólico, como o ponto o marco definitivo da conformação da tradição libertária. Longe de reduzir a formação da tendência libertária e da própria Internacional, tratando-os como produto de uma doutrina sem relação com as questões da classe trabalhadora, o autor evidencia que as posições ideológicas e políticas dessa associação ligam-se diretamente a uma experiência de classe.

* Baixe o artigo completo aqui: Alexandre Samis – A Associação Internacional dos Trabalhadores e a Conformação da Tradição Libertária

(Estado espanhol) CNT contra a perseguição ao movimento anarquista

final

Fonte: Coletivo Libertário Évora

A CNT solidariza-se com todos os detidos na operação policial de 30 de Março

O Estado volta a recorrer à repressão e tenta, de novo, criminalizar a ideologia e os colectivos anarquistas. Para isso põe em marcha todo o seu poder mediático e judicial, tentando desta maneira instalar na sociedade um clima de medo e insegurança que justifique a aprovação e a aplicação de novas leis, cada vez mais repressivas e reaccionárias. Precisam de um inimigo e fabricam-no. Primeiro fazem as leis; depois procuram alegados culpados a quem elas se apliquem. Com isto pretendem esconder ao serviço de quem está toda a máquina do estado, que não é senão as grandes empresas e a banca.

Quando, apesar dos apelos à participação nos processos eleitorais, se mantêm ou aumenta a resposta na rua contra os cortes sociais e laborais e a perda de direitos, o estado necessita reforçar as suas ferramentas repressivas e de controlo social. E põem-nas em acção contra aqueles que o enfrentam.

As prisões e as buscas de hoje acontecem, precisamente, poucos dias depois de ser aprovada a nova Lei de Segurança Cidadã, mais conhecida como Lei Mordaça, à qual não só se opõem os movimentos sociais e sindicais mais combativos. Instituições tão pouco suspeitas de serem “anarquistas Terroristas” como ONG’s e outros movimentos sociais, a União Europeia ou a ONU também manifestaram o seu repúdio ou as suas reservas face a esta lei.

A relação entre os dois factos parece-nos nítida. As operações policiais acompanham a aprovação de uma lei tão controversa, jogando aqui o movimento e os colectivos anarquistas o papel de vitimas “à mão de semear”: como não se apresentam a eleições nem têm lugar fixo nas tertúlias televisivas, as suas denúncias ficam silenciadas pelo ensurdecedor ruído mediático. Ao mesmo tempo que a lei gera alarme social e procura uma base de apoio a política do quero e posso reprime qualquer reivindicação que ponha em perigo o seu controlo sobre a resposta social e sindical aos seus ataques-

 O único terrorismo real de que sofre a classe trabalhadora é o que se exerce a partir do poder: os despejos, o desemprego, o desmantelamento do sistema de saúde e de educação… Como gritamos nas ruas “violência é o dinheiro não chegar ao fim do mês”. Não podemos permitir que espezinhem os nossos direitos mais básicos. Antes prendiam manifestantes e grevistas. Hoje prendem anarquistas. Amanhã serás tu. E então já será tarde.

 Não à repressão. Não à prisão de quem luta.

Secretariado Permanente do Comité Confederal da CNT

http://www.cnt.es/noticias/cnt-en-contra-de-la-persecuci%C3%B3n-al-movimiento-anarquista

relacionado: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2015/03/30/novas-detencoes-de-anarquistas-no-estado-espanhol/

https://directa.cat/policia-espanyola-dete-28-persones-en-una-operacio-contra-collectius-anarquistes

https://www.diagonalperiodico.net/libertades/26261-26-detenciones-madrid-la-segunda-parte-la-operacion-pandora.html

Excertos de O Anarquismo frente aos Novos Tempos

Anarquismo-Social-ou-Anarquismo-de-Estilo-De-VidaFonte: Protopia

Por Murray Bookchin

O capitalismo, inevitavelmente por sua própria natureza, utilizará cada progresso técnico com objetivos autoritários e destrutivos.

E quando digo destrutivos, não me refiro só ao destino da humanidade, mas também ao desse mundo natural do qual dependem, para sua sobrevivência, todas as espécies em seu conjunto. Sentido fala-se tanto de bombas ou de antibióticos, de gás venenoso ou de substancias químicas para a agricultura, de radar ou de comunicações telefônicas. As vantagens que a Humanidade pode colher do progresso técnico são tão somente migalhas caídas de um banquete orgiástico de destruição que, só neste século, sacrificou mais vítimas que em qualquer outro período histórico.

Nos parâmetros temporais que definem a unidade de nossa época, o projeto libertador se encontra frente aos problemas típicos de um período de transição: a exigência de trabalhar com estratos sociais em declínio que constituem, todavia, elementos decisivos de mutação social; a exigência de trabalhar com estratos sociais em declínio que constituem, todavia, elementos decisivos de mutação social; a exigência de trabalhar com estratos sociais emergentes que estão convertendo-se em fatores decisivos das mudanças sociais como, por exemplo, os técnicos e profissionais altamente qualificados; a exigência de trabalhar com os oprimidos de sempre, que sempre serão elementos potenciais decisivos de mudança social, como as mulheres e as minorias étnicas; a exigência de trabalhar com os denominados “grupos marginais”, categorias socialmente não bem definidas que podem tornar-se elementos cruciais para a mudança social, como a inteligência radical, que jogou um papel estratégico em todas as situações revolucionárias, e os indivíduos que escolhem estilos e normas de vida cultural e sexual não ortodoxas.

Presumivelmente a tecnologia cibernética, que se encontra apenas em sua infância, converterá em economicamente supérflua a maioria dos norte- americanos que hoje trabalham. Não estou fazendo retórica. Cada década leva em si profundas mudanças técnicas que vão tornando “inúteis” quase todo tipo de trabalho tradicional.

Ainda que alguns milhões de pessoas fiquem de alguma maneira implicadas nestas operações, elas constituirão as “margens” da economia, não o seu núcleo. Devemos enfrentar o fato de que é possível uma tão imponente substituição do trabalho humano, assim como de que é inevitável, se o capitalismo seguir seu curso.

O que significa existencialmente essa ilimitada revolução tecnológica? Significa que o capitalismo deverá enfrentar o problema dos incontáveis milhões de pessoas que, a partir do ponto de vista burguês, não contarão com nenhum posto na sociedade.

Hoje, e nos anos que estão por vir, esse mesmo capitalismo que produziu Hitler é seguramente capaz de produzir instituições que acabem com a população supérflua sem se importar quão numerosa e recalcitrante ela possa ser. Sofreremos qualquer outra estratégia genocida similar a de Hitler? Não excluamos tão facilmente uma “solução” que já tenha sido dada no passado. Os métodos podem ser mais indiretos, como os atuais sistemas chineses de “controle demográfico” ou o escandaloso sistema de esterilização forçada imposto por Indira Gandhi.

A reestruturação do Estado “democrático burguês” esta na ordem do dia em quase todos os paises industrializados do mundo. A única coisa que detém o capitalismo rumo á totalização completa desses países é o enorme peso das tradições que, em todas as partes do ocidente, frustra o poder executivo, e, em particular, a tradição libertária dos Estados Unidos, com sua ênfase sobre os direitos individuais, sobre a autonomia, sobre o controle local, sobre o federalismo.

Na década de 30, era um mundo da extensa família em que várias gerações viviam juntas ou em íntimo contato umas com as outras, preservando a cultura e as tradições de um não-burguês. Era o mundo da “pequena pátria”: a vila, a cidade, o bairro, onde a amizade era íntima e onde existia um espaço público que nutria uma esfera pública e um corpo político que nutria uma esfera pública e um corpo político ativo.

Existiam, no entanto, centros comunitários que contavam com um lugar para a instrução, a conferência, o apoio mútuo, os livros, os períodos, a exposição de “idéias avançadas” e ainda para a ajuda material quando os tempos eram difíceis. Os famosos meetings em uma esquina da rua, onde uma surpreendente variedade de oradores radicais falava a um público cativo,ou no mínimo expectante. Esse fantástico mundo das “caixas de sabão”, era uma fonte de ativo intercambio político, um mundo que habilitava tanto oradores como público na arte da atividade pública. O Estado e sociedade industrial destruíram esse mundo social e político descentralizado. As grandes famílias, ricas em diversidades geracionais e culturais, murcharam para a família nuclear, constituída por dois genitores intercambiáveis e por seus dois ou três filhos intercambiáveis também. Os anciãos foram oportunamente despachados para bairros residenciais, para “cidadãos da terceira idade”, assim como a história e a cultura pré-industrial foram enterradas nos museus, nas academias e nos bancos de dados dos computadores. A venda de alimentos, de artigos domésticos e de vestuário, bem como de diversos instrumentos, que, em um tempo, foi uma atividade muito personalizada, própria de comerciantes locais (muito freqüentemente negócios de gestão familiar) em conexão estreita com os bairros ou com a cidade, é hoje um grande negócio de enormes empresas.

As ruas estão congestionadas de veículos e não de seres humanos e as praças se converteram em estacionamentos e não em lugares aonde as pessoas se reúnam e dialoguem.

As ruas e avenidas dilaceram os centros da cidade e irradiam os bairros com efeitos espantosamente destrutivos para a integridade cultural da comunidade.

O discurso é preferencialmente eletrônico. Debater nas horas mais importantes é reservado a pretensos experts e à estrelas dos meios de comunicação de massa que o fazem com uma passiva insanidade, o que está produzindo uma geração de mudos e de idiotas.

Está surgindo uma geração que não aprecia o pensamento enquanto tal e que tem sido adestrada a não generalizar. A atividade cerebral captura a forma de imagens vulgares idênticas àquelas apresentadas pela televisão e de uma mentalidade (se assim pode-se chamar) reduzida, que “trabalha com freios” antes quantitativos de informação que com conceitos qualitativos. Considero tal desenvolvimento simplesmente aterrador, na medida em que subverte a mente, impedindo a capacidade de imaginar espontaneamente pela alternativa de trabalhar de maneira que contradiga as imagens pré-fabricadas que a indústria publicitária (política e comercial) tende a imprimir no cérebro humano.

As imagens, na realidade, começam a substituir a imaginação, e a figura imposta pelo externo começa a substituir a idéia formada internamente.

Em 1983, quando escrevi Ecologia e Pensamento Revolucionário, recordo que falava do “efeito invernal”, que poderia elevar a temperatura do globo o suficiente para derreter parte das calotas polares em alguns séculos.

Defrontamo-nos não só com uma sociedade moribunda, mas também com um planeta moribundo e ambos sofrem da mesma doença e da mesma causa: nossa mentalidade histórica de domínio, cuja pretensão de “progresso” é hoje em dia uma dramática troça da realidade.

Como podemos, enquanto anarquistas, fazer frente às mudanças radicais no campo técnico, econômico, social e ecológico, das quais falamos até aqui? Quais são as “prioridades programáticas”, qual é a “ordem do dia” do nosso movimento para os anos subseqüentes a que possa compreender nossos esforços a nível internacional, ao lado de nossa oposição ao Estado e ao autoritarismo de todas as formas?

Dos nossos ideais de autogestão, descentralização, federalismo e apoio mútuo têm-se apropriado despudoradamente e sem uma palavra de agradecimento, escritores marxistas.

Nós os anarquistas, tempos sido há muito tempo os progenitores de uma sensibilidade orgânica, naturalista e mutualista da qual se tem apropriado o movimento ecológico, com escassíssimas referências às fontes: o naturalismo de Kropotkin e a ética de Guyau.

Aquilo que unifica o anarquismo do mundo clássico e também do mundo tribal até nossos dias, esta todo nessa idéia: nenhum domínio do homem sobre o homem. Esta postura anti-autoritária é o coração e a alma do anarquismo e sua autodefinição, corpo da idéia e da prática.

Devemos estar prontos para definir as novas questões emergentes, como a ecologia, o feminismo, o racismo, o municipalismo e aqueles movimentos culturais que se ocupam da qualidade de vida no mais amplo sentido do termo, para não falar das tentativas de opor-se à alienação de uma sociedade espiritualmente vazia.

Devemos estar dispostos a sair das velhas trincheiras ideológicas para olhar com honestidade, clareza e inteligência o mundo autoritário que se vai modelando a nossa volta e a tomar nota das tensões que existem entre as tradições utópicas das revoluções democráticas burguesas e a maré ascendente do militarismo e centralismo que ameaça cancelar essas tradições. Podem-se ignorar a política localista, os movimentos democráticos contra as tentativas de incrementar a autoridade do poder executivo? Humanismo anárquico universal.

Palavras como “contracultura”, ou seja, uma reivindicação programática que pode ser orquestrada pela base contra a cúpula, contra o poder estatal centralizado. Não posso chegar aos operários em suas fabricas e sindicatos , porque ambos são escolas de hierarquia e de domínio, mas assim posso chegar a eles – e a muita gente- no meu bairro e ás localidades próximas à minha comunidade. Em Burlington, Vermont, os anarquistas têm sido os primeiros a instituir assembléias de bairro –versão urbana dos meetings citadinos da Nova Inglaterra – que, em essência podem ser instituídas em qualquer parte: Milão, Turim, Veneza, Marselha, Paris, Genebra, Frankfurt, Amsterdã, Londres… O que obstrui seu nascimento não são dificuldades logísticas ou problemas de dimensão demográfica, senão o nível de consciência e não é justamente o problema da consciência – consciência de classe ou consciência libertária – o problema central de todo o projeto libertador?

Dirijo-me a sua fé nos direitos individuais, na descentralização, em uma concepção ativa da cidadania, no apoio mútuo e em sua aversão pela cidadania governamental. Eu não critico em demasia a conjugação liberdade-propriedade.

Lembro-lhe das instituições libertarias típicas de sua tradição revolucionária norte-americana: assembléias de cidadãos, formas associativas confederadas, autonomia municipal, procedimentos democráticos… Meu objetivo é claro: criar, a partir das tradições libertárias norte-americanas, aquelas formas de liberdade que possam opor-se ao crescente poder do Estado e à concentração da autoridade política e econômica. O núcleo central do meu planejamento é tanto municipalista quanto ecológico e contracultural.

Meu programa consiste em criar um poder popular dual, antagônico ao poder estatal que ameaça os resíduos de liberdade do povo um poder popular que reconstitua em forma anárquica, aqueles valores libertários e aqueles elementos utópicos que são o patrimônio mais vital da Revolução Americana.

  • Os excertos acima foram retirados da obra ‘O Anarquismo frente aos Novos Tempos’.

Somos Todos Grupelhos

JL

Felix Guattari

Fonte: Protopia

Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos. É fácil falar, sobretudo em países onde as forças materiais estão cada vez mais na dependência das máquinas técnicas e do desenvolvimento das ciências.


Derrubar o czarismo implicava na ação em massa de dezenas de milhares de explorados e sua mobilização contra a atroz máquina repressiva da sociedade e do Estado russo, era fazer as massas tomarem consciência da sua força irresistível face à fragilidade do inimigo de classe; fragilidade a ser revelada, a ser demonstrada pela prova de forças.


Para nós, nos países “ricos”, as coisas se passam de outro jeito; não é tão óbvio que tenhamos que enfrentar apenas um tigre de papel. O inimigo se infiltrou por toda parte, ele secretou uma imensa interzona pequeno-burguesa para atenuar o quanto for possível os contornos de classe. A própria classe operária está profundamente infiltrada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas… Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático. Primeiro, participação material em escala planetária: as classes operárias dos países economicamente desenvolvidos estão implicadas objetivamente, mesmo que seja só pela diferença crescente de níveis de vida relativos, na exploração internacional dos antigos países coloniais. Depois, participação inconsciente e de tudo quanto é jeito: os trabalhadores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da burguesia – maldição do roubo, da preguiça, da doença, etc. Eles reproduzem, por conta própria, objetos institucionais alienantes, tais como a família conjugal e o que ela implica de repressão intrafamiliar entre os sexos e as faixas etárias, ou então se ligando à pátria com seu gostinho inevitável de racismo (sem falar do regionalismo ou dos particularismos de toda espécie: profissionais, sindicais, esportivos, etc., e de todas as outras barreiras imaginárias que são erguidas artificialmente entre os trabalhadores. Isto fica bastante claro, por exemplo, na organização, em grande escala, do mercado da competição esportiva).


Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do “socialismo” burocrático são corroídas por uma angústia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de auto-sujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. A obtenção deste resultado repousa sobre o desenvolvimento de um antagonismo reforçado entre um ideal imaginário, que inculcamos nos indivíduos por sugestão coletiva, e uma realidade totalmente outra que os espera na esquina. A sugestão audiovisual, os meios de comunicação de massa, fazem milagres! Obtém-se assim uma valorização fervorosa de um mundo imaginário maternal e familiar, entrecortado por valores pretensamente viris, que tendem à negação e ao rebaixamento do sexo feminino, e ainda por cima à promoção de um ideal de amor mítico, uma mágica do conforto e da saúde que mascara urna negação da finitude e da morte. No final das contas, todo um sistema de demanda que perpetua a dependência inconsciente em relação ao sistema de produção; é a técnica do intéressement (2).


O resultado deste trabalho é a produção em série de um indivíduo que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas importantes de sua vida. É completamente desarmado que ele enfrentara a realidade, sozinho, sem recursos, emperrado por toda esta moral e este ideal babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz de se desfazer. Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar no resto… Agora, toda a sua vida ficará envenenada em maior ou menor grau pela incerteza de sua condição em relação aos processos de produção, de distribuição e de consumo, pela preocupação com seu lugar na sociedade, e o de seus próximos. Tudo passa a ser motivo de grilo: um novo nascimento, ou então “a criança não vai muito bem na escola”, ou ainda “os mais grandinhos se enchem e aprontam mil loucuras”; as doenças, os casamentos, a casa, as férias, tudo é motivo de aborrecimento…


Assim, tornou-se inevitável um mínimo de ascensão nos escalões da pirâmide das relações de produção. Não precisa nem fazer um desenho ou uma lição. Diferentemente dos jovens trabalhadores, os militantes de origem estudantil que vão trabalhar na fábrica estão seguros de se virar caso sejam despedidos; queiram ou não, eles não podem escapar à potencialidade que os marca de uma inserção hierárquica “que poderia ser bem melhor”. A verdade dos trabalhadores é uma dependência de fato e quase absoluta em relação à máquina de produção; é o esmagamento do desejo, com exceção de suas formas residuais e “normalizadas”, o desejo bem pensante ou bem militante; ou, então, o refúgio numa droga ou em outra, se não for a piração ou o suicídio! Quem estabelecerá a porcentagem de “acidentes de trabalho” que, em realidade, não eram senão suicídios inconscientes?


O capitalismo pode sempre dar um jeito nas coisas, retoca-las aqui e ali, mas no conjunto e no essencial tudo vai cada vez pior. Daqui a 20 anos alguns dentre nós terão 20 anos a mais, mas a humanidade terá quase duplicado. Se os cálculos dos especialistas no assunto se revelam exatos, a Terra atingirá pelo menos 5 bilhões de habitantes em 1990. Isto deveria colocar no decorrer do processo alguns problemas suplementares! E como nada nem ninguém está em condições de prever ou organizar alguma coisa para acolher estes recém-chegados – à parte alguns porra-loucas nos organismos internacionais, que aliás não resolveram um só problema político importante durante os 25 anos em que estiveram aí instalados -, podemos imaginar que seguramente acontecerá muita coisa nos próximos anos. E de tudo quanto é tipo, revoluções, mas também, sem sombra de dúvida. Umas merdas do tipo fascismo e companhia. E dai o que é que se deve fazer? Esperar e deixar andar? Passar à ação? Tudo bem, mas onde, o quê, como? Mergulhar com tudo, no que der e vier. Mas não é tão simples assim, a resposta a muitos golpes está prevista, organizada, calculada pelas máquinas dos poderes de Estado. Estou convencido de que todas as variações possíveis de um outro Maio de 1968 já foram programadas em IBM. Talvez não na França, porque eles estão fodidos, e ao mesmo tempo bem pagos para saber que este tipo de baboseira não constitui garantia alguma e que não se encontrou ainda nada de sério para substituir os exércitos de tiras e de burocratas. Seja o que for, já está mais do que na hora de os revolucionários reexaminarem seus programas, pois há alguns que começam a caducar. Já está mais do que na hora de abandonar todo e qualquer triunfalismo – note-se o falismo – para se dar conta de que não só estamos na merda até o pescoço, mas que a merda penetra em cada um de nós mesmos, em cada uma de nossas “organizações”.


A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorado: autoridade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá-la a partir do vocabulário de uns e de outros, seu jeito de falar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim! A luta de classe contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou o interior de cada um de nós com seu eu, com o ideal de status que acreditamos ter de adotar para nós mesmos. Já está mais do que na hora de se organizar em todos os níveis para encarar esta luta de classe generalizada. Já é hora de elaborar uma estratégia para cada um destes níveis, pois eles se condicionam mutuamente. De que serviria, por exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização antiautoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos superativos, se eles se comportam com os militantes dos outros grupos, no interior de seu próprio grupo, com seus próximos ou cada um consigo mesmo, como perfeitos canalhas, perfeitos carolas? De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? Os fins políticos são pessoas desencarnadas. Eles acham que se pode e se deve poupar as preocupações neste domínio para mobilizar toda a sua energia em objetivos políticos gerais. Estão muito enganados! Pois na ausência de desejo a energia se auto-consome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia. E pelo tempo que já estão nessa, já podiam ter se dado conta destas coisas por si mesmos!


A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica – a libido – em objetivos de luta social. É fácil reduzir tudo às famosas contradições principais. É demasiadamente abstrato. É até mesmo um meio de defesa, um troço que ajuda a desenvolver phantasias (3) de grupo, estruturas de desconhecimento, um troço de burocratas; se entrincheirar sempre atrás de alguma coisa que está sempre atrás, sempre em outro lugar, sempre mais importante e nunca ao alcance da intervenção imediata dos interessados; é o princípio da “causa justa”, que serve para te obrigar a engolir todas as mesquinharias, as míseras perversões burocráticas, o prazerzinho que se tem em te impor – “pela boa causa” – caras que te enchem o saco, em forçar tua barra para ações puramente sacrificiais e simbólicas, para as quais ninguém está nem aí, a começar pelas próprias massas. Trata-se de uma forma de satisfação sexual desviada de seus objetivos habituais. Este gênero de perversão não teria a menor importância se incidisse em outros objetos que não revolução – e olha que não faltam objetos! O que é chato é que estes monomaníacos da direção revolucionária conseguem, com a cumplicidade inconsciente da “base”, enterrar o investimento militante em impasses particularistas. É meu grupo, é minha tendência, é meu jornal, a gente é quem tem razão, a gente tem a linha da gente, a gente se faz existir se contrapondo às outras linhas, a gente constitui para si uma pequena identidade coletiva encarnada em seu líder local… A gente não se enchia tanto em Maio de 68! Enfim, tudo ocorreu mais ou menos bem até o momento em que os “porta-vozes” disto ou daquilo conseguiram voltar à tona. Como se a voz precisasse de portador. Ela se porta bem sozinha e numa velocidade louca no seio das massas, quando ela é verdadeira. O trabalho dos revolucionários não é ser portador de voz, mandar dizer as coisas, transportar, transferir modelos e imagens; seu trabalho é dizer a verdade lá onde eles estão, nem mais nem menos, sem tirar nem por, sem trapacear. Como reconhecer este trabalho da verdade? É simples, tem um troço infalível: está havendo verdade revolucionária, quando as coisas não te enchem o saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer, correndo até o risco de morte. A verdade, a vimos atuando em Maio de 68; todo mundo a entendia de cara. A verdade não é a teoria nem a organização. É depois dela ter surgido que a teoria e a organização têm de se virar com ela. Elas sempre acabam se situando e recuperando as coisas, mesmo que para isso tenham de deformá-la e mentir. A autocrítica cabe à teoria e à organização e nunca ao desejo.


O que está em questão agora, é o trabalho da verdade e do desejo por toda parte onde pinte encanação, inibição e sufoco. Os grupelhos de fato e de direito, as comunas, os bandos, tudo que pinta no esquerdismo tem de levar um trabalho analítico sobre si mesmo tanto quanto um trabalho político fora. Senão eles correm sempre o risco de sucumbir naquela espécie de mania de hegemonia, mania de grandeza que faz com que alguns sonhem alto e bom som em reconstituir o “partido de Maurice Thorez” ou o de Lenin, de Stalin ou de Trotsky, tão chatos e por fora quanto seus Cristos ou de Gaulles, ou qualquer um desses caras que nunca acabam de morrer.


Cada qual com seu congressinho anual, seu mini-Comitê Central, seu super-birô político, seu secretariado e seu secretário-ge(ne)ral e seus militantes de carreira com seu abono por tempo de serviço, e, na versão trotskista, tudo isso duplicado na escala internacional (congressos mundiais, comitê executivo internacional, seção internacional, etc.).


Por que os grupelhos, ao invés de se comerem entre si, não se multiplicam ao infinito? Cada um com seu grupelho! Em cada fábrica, cada rua, cada escola. Enfim, o reino das comissões de base! Mas grupelhos que aceitassem ser o que são, lá onde são. E, se possível, uma multiplicidade de grupelhos que substituiriam as instituições da burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo, etc. Grupelhos que não temessem, além de seus objetivos de luta revolucionária, se organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam.


Ah, então trata-se de anarquia! Nada de coordenação, nada de centralização, nada de estado-maior… Ao contrário! Tomem o movimento Weathermen nos Estados Unidos: eles estão organizados em tribos, em gangues, etc., mas isto não os impede de se coordenar e muitíssimo bem.


O que é que muda se a questão da coordenação, ao invés de se colocar para indivíduo, se coloca para grupos de base, famílias artificiais, comunas?… O indivíduo tal como foi moldado pela máquina social dominante é demasiado frágil, demasiado exposto às sugestões de toda espécie: droga, medo, família, etc. Num grupo de base, pode-se esperar recuperar um mínimo de identidade coletiva, mas sem megalomania, com um sistema de controle ao alcance da mão; assim, o desejo em questão poderá talvez fazer valer sua palavra, ou estará talvez mais em condições de respeitar seus compromissos militantes. É preciso antes de mais nada acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico, uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contingência, sua finitude e para seus objetivos de luta. O movimento revolucionário deve portanto construir para si uma nova forma de subjetividade que não mais repouse sobre o indivíduo e a família conjugal. A subversão dos modelos abstratos secretados pelo capitalismo, e que continuam caucionados até agora, pela maioria dos teóricos, é um pré-requisito absoluto para o reinvestimento pelas massas de luta revolucionária.


Por enquanto, é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não, quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados.

[editar]NOTAS

1. No original, groupuscule. Corresponde ao “grupelho” no Brasil, nome dado aos grupos de dissidência do partido comunista, da década de 60 – anarquistas, trotskistas, guevaristas, maoístas -, época da desestalinização que o PCF parece ter ignorado. O termo grupelho traz em si um sentido pejorativo, pois desde a perspectiva do PC, perspectiva adotada na época pelos próprios esquerdistas uns contra os outros, ser minoritário era ser facção insignificante, marginal, acometida pela “doença infantil do comunismo”, justificativa suficiente para sua exclusão, como medida sanitária, visão aliás compartilhada pela direita: em junho de 68, de Gaulle, já no controle da situação, através de seu ministro do Interior, proibiu a existência desses grupelhos, baseando-se numa lei da Frente Popular contra as milícias fascistas armadas e paramilitares.

Ora, o autor retoma aqui a própria idéia de grupelho como afirmação de uma posição política. “Somos todos grupelhos”: a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define um grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. É neste devir que a luta se generaliza. “Saúde infantil” do político, que se contrapõe à tendência a generalizar a luta em torno de uma representação totalizadora, sua “doença senil”. Desta perspectiva, tamanho não é documento, e um pequeno grupo também pode ser acometido de “doença senil”.

A noção de grupelho pode ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de “grupo sujeito”, contraposto a “grupo sujeitado” (cf. nota 7 de “A Transversalidade”), à idéia de “agenciamento coletivo de enunciação” e, na década de 70, ao conceito de “molecular”, contraposto a “molar”. (N. do Trad.).

2. O intéressement, pedra de toque da doutrina social do gaullismo, designa uma modalidade de participação dos operários nos lucros da empresa, através de uma remuneração que se acrescenta ao salário fazendo com que o trabalhador se “interesse” pela produtividade da empresa. Esta doutrina, considerada mistificadora pela esquerda francesa, foi por ela amplamente denunciada. (N. do T.).

3. No original alemão Phantasie, traduzido em francês por fantasme. Na tradução de Freud para o português (edição da Standard), optou-se por “fantasia”, de acordo com as traduções inglesa (fantasy ou phantasy, o primeiro consciente e o segundo inconsciente, segundo proposta de Susan Isaacs) e espanhola (fantasia). Preferimos adotar o termo “phantasia”, sugerido na tradução para o português dos Escritos de Lacan (Perspectiva, SP, 1978), que preserva o arcaísmo do termo francês fantasme (cf. nota 14 dos Escritos). (N. do T.).

Tradução de Suely Rolnik

Fontes: GUATTARI, Félix. Revolução Molecular. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 13-19.

Predefinição:Origem-sabotagem

Reforma política é segunda demão no estado

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Por Gilson Moura Henrique Junior

O uso pelos partidos da ordem e pela esquerda partidária da reforma política como panaceia para a solução dos problemas do país esconde uma preguiça intelectual fortemente aliada ao oportunismo eleitoreiro.

O primeiro problema das propostas de reforma política que ela não é política em seu inteiro teor, ela é uma reforma eleitoral, e tímida. Enquanto reforma não abrange sequer outras formas de políticas fora do eixo eleitoral, mas ainda dentro da institucionalidade, como a expansão dos comitês e conselhos que já existem na esfera municipal, para além de conselhos consultivos ou expansão para as esferas estaduais e federais com ganho de poderes e capilaridade. Enquanto política as propostas de reforma sequer tangenciam uma discussão sobre o caráter democrático do estado e a necessária repactuação deste para que o exercício do poder não seja platônico, onde uma elite dirigente quase intocável conduz a população conforme foi eleita para fazer, nas palavras de Eduardo cunha, presidente da câmara.

E isso ainda sendo discutida a reforma política nos parâmetros reformistas do estado conforme se propõe a esquerda partidária e os partidos da ordem, sequer comecei a debater o problema sob a luz da superação do sistema e do estado, coisa que pelo menos superficialmente os partidos da oposição de esquerda se dizem desejosos.

Sob o ponto de vista para além do estado é preciso dizer que o que se deveria exigir é mais que reforma do estado, que nada mais é que uma segunda demão na pintura exterior do aparato estatal ampliando direitos e deveres sob o ponto de vista eleitoral reduzindo pontual e mediocremente a questão política à financiamento público de campanha, recall e plebiscito.

Até por exigência ecológica é preciso que se exija uma descentralização absoluta do processo decisório sobre economia, energia e gestão a ponto de obrigar a um repensar de produção e consumo a níveis radicais, não por uma preferência ideológica descolada da realidade, mas por absoluta necessidade de manutenção da vida na terra.

Enquanto a economia não for lógica ou ecológica, enquanto a gestão de recursos entendê-los ainda como infinitos e ignorar resíduos, ignorar a ruptura metabólica causada pela extração de recursos e pela geração de resíduos, em escala geométrica e reproduzida de forma praticamente infinitesimal, enquanto a compreensão da casa (oykos+logos) for secundarizada pela administração da casa (oykos+nomos), correremos o risco da casa cair.

E é esse o eixo que grita a necessidade de ir além da reforma da casa, ou de parte dela ou de parte superficial de parte dela, é fundamental que se grite a obrigatoriedade da exposição á população do risco do modelo em curso de gestão da vida das pessoas e recursos para a vida no planeta, para a existência das civilizações e a partir disto é fundamental horizontalizar os processos decisórios, torná-los comunais, organizados de rua a rua, bairro a bairro, vila a vila, cidade a cidade, estado a estado, para que cada ponto onde a ação econômica atinge e afeta, produzindo danos ambientais, sociais, comunitários,etc, tenha poder para decidir sobre seus rumos, para decidir sobre como é afetado, para além da decisão distante de gestores que sequer sabem da existência dos pontos atingidos por suas ações.

Se nem como reforma isso é posto em perspectiva, diante da absoluta necessidade de por em prática uma gestão democrática radical da produção de alimentos, da produção industrial, de energia, e do consumo disso tudo, inclusive sob o ponto de vista da saúde, se isto não é visto como política e parte do que se propõe como reforma para a política, que reforma e que política é essa?

Que política e essa onde diante da absoluta necessidade de, por exemplo, discutirmos a produção de alimentos centralizada e cujo resultado dela percorre milhares de quilômetros para chegar às mesas dos consumidores, recebendo para isso uma carga absoluta de produtos químicos para sua conservação até lá e com eles afetando a saúde dos consumidores, o que ocorre é a omissão, o silêncio e a troca disso por plebiscitos aqui e ali e um recall ou outro?

Que política é essa onde transgênicos e agrotóxicos são naturalizados e entendidos como algo externo à população que no máximo que se terá de acesso á decisão é se um dia vier, no fantástico mundo da institucionalidade, a plebiscito? E como viria? Por que o inteiro teor das leis não pode ser discutido por quem sofre com elas?

Cadê a política dessas reformas?

A grande reforma que daria solução para os problemas do país, dos países, com a democracia só pode ser a reforma definitiva do estado, que é sua superação e substituição por processos horizontais de decisão, organizados em confederações de conselhos organizadas em cantões, pela descentralização da própria ideia artificial de nação, de Brasil, França ou seja lá o que os estados nacionais tomam pra si como se fossem proprietários da população que reside entre as cercas embandeiradas que separam quintais. População esta forçada a se entender como parte de uma ficção, por vezes na base da porrada, que não tem nenhuma raiz na constituição coletiva além de elementos políticos externos à ela, construído nos altos fornos das elites políticas.

Pra que perder tempo com reformas desta ficção? Não é melhor criar uma outra estória, um outro riso, uma outra peça, um outro poema, uma outra canção?

Escuta, Marxista!

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Fonte: Protopia

Murray Bookchin

«Um dos mais conhecidos panfletos de Murray Bookchin, Escuta, Marxista! visava predominantemente estudantes influenciados pelo Maoist Progressive Labor Party[1] que estava fortemente ativo (altamente destrutivo)  no movimento de massa Estudantes para uma Sociedade Democrática nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970. Suas críticas ao “marxismo” e à terminologia marxista não são aplicáveis ao marxismo por inteiro, mas algumas se aplicam às políticas cruas do PLP. A despeito dessa significativa incompletude, reproduzimos o documento aqui devido a sua importância em termos de esquerda e de esquerda libertária nos EUA»

Toda a velha bobagem dos anos trinta está novamente de volta à besteira sobre a “linha de classe”, o “papel da classe trabalhadora”, o “revolucionário profissional treinado”, o “partido de vanguarda”, e a “ditadura do proletariado”. Tudo está de volta novamente, e de uma forma mais vulgarizada que nunca. O Maoist Progressive Labor Party não é o único exemplo, é somente o pior. Alguns cheiram à mesma besteira em vários descendentes da SDS[2], e nos clubes marxistas e socialistas em campi, sem falar nos grupos trotskistas, os Clubes da Internacional Socialista e a Juventude contra Guerra e Fascismo.

Nos anos trinta, isso ao menos era compreensível. Os Estados Unidos estavam paralisados por uma crise econômica crônica, a mais profunda e mais longa de sua história. As únicas forças vivas que pareceram estar batendo nos muros do capitalismo foram as grandes organizações dirigidas do CIO [Congresso de Organizações Industriais], com suas dramáticas greves sentadas, sua militância radical, e seus confrontos sangrentos com a polícia. A atmosfera política através do mundo inteiro estava carregada pela eletricidade da Guerra Civil Espanhola, a última das revoluções clássicas de trabalhadores, quando todo setor radical na esquerda americana podia se identificar com suas próprias colunas de milícia em Madri e Barcelona. Isso foi há trinta anos. Era um tempo em que qualquer um que gritasse “Faça amor, não guerra” seria tido como louco; o grito de então era “Faça empregos, não guerra”; o grito de uma idade atormentada pela escassez, quando o alcance do socialismo requeria “sacrifícios” e um “período de transição” para uma economia de abundância material. Para um jovem de dezoito anos em 1937 o próprio conceito de cibernética teria parecido com a mais fantástica ficção científica, uma fantasia comparável a visões de viagens espaciais. Aquele jovem de dezoito anos atingiu agora cinquenta anos de idade, e suas raízes estão fixadas em uma era tão remota a ponto de diferir qualitativamente das realidades do presente período nos Estados Unidos. O próprio capitalismo mudou desde então, introduzindo crescentes formas estratificadas que poderiam ser antecipadas somente obscuramente trinta anos atrás. E agora estão nos pedindo para voltarmos atrás para a “linha de classe”, as “estratégias”, os “revolucionários profissionais” e as formas organizacionais daquele distante período em quase óbvia ignorância dos novos assuntos e possibilidades que emergiram.

Quando diabos vamos criar finalmente um movimento que olhe para o futuro ao invés do passado? Quando começaremos a aprender do que está nascendo ao invés do que está morrendo? Marx, pelo seu crédito que perdura, tentou fazer isso no seu próprio tempo; ele tentou evocar um movimento futurista no movimento revolucionário dos anos 1840 e 1850. “A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro da viva”, ele escreveu em “O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”. “E quando elas parecem estar engajadas em revolucionar a si mesmas e as coisas, em criar algo inteiramente novo, precisamente em tais épocas de crise revolucionária, eles ansiosamente conjuram os espíritos do passado a seu serviço e pegam emprestado seus nomes, gritos de guerra e costumes para apresentar a nova cena da história do mundo nessa fantasia saudosista e linguagem emprestada. Assim como Lutero usou a máscara do Apóstolo Paulo, a revolução de 1789 a 1814 se vestiu alternativamente como a República Romana e o Império Romano, e a revolução de 1848 não soube nada mais que parodiar, por sua vez, 1789 e a tradição de 1793 a 1795… A revolução social do século dezenove não pode buscar sua poesia no passado, mas apenas no futuro. Ela não pode começar consigo mesmo antes de se ver sem toda superstição relativa ao passado… Para chegar ao seu conteúdo, a revolução do século dezenove tem de deixar os mortos enterrarem seus mortos. Lá a frase ia além do seu conteúdo, aqui o conteúdo vai além da frase”.

O problema é algo diferente hoje, quando chegamos ao século vinte? Mais uma vez os mortos estão caminhando entre nós – ironicamente, cobertos com o nome de Marx, o homem que tentou enterrar os mortos do século dezenove. Assim a revolução de nossos dias não pode fazer nada melhor que uma paródia, sucessivamente, da Revolução de Outubro de 1917 e da Guerra Civil de 1918-1920, com sua “linha de classe”, seu “Partido Bolchevique”, sua “ditadura do proletariado”, sua moralidade puritana, e até mesmo sua frase, “poder soviético”. A revolução completa, de todos os lados de nossos dias, pode finalmente resolver a “questão social”, “histórica”, nascida de escassez, dominação e hierarquia, segue a tradição das revoluções parciais, incompletas, de apenas um lado do passado, a qual meramente mudou a forma da “questão social”, substituindo um sistema de dominação e hierarquia por outro. Em uma época em que a própria sociedade burguesa está no processo de desintegrar todas as classes sociais que uma vez deram-lhe estabilidade, ouvimos as vazias exigências de uma “linha de classe”. Em uma época em que todas as instituições políticas da sociedade hierárquica estão entrando em um período de profunda decadência, ouvimos as vazias exigências de um “partido político” e um “estado dos trabalhadores”. Em uma época em que a hierarquia como tal está sendo trazida à discussão, ouvimos as vazias exigências de “revolucionários profissionais”, “vanguardas” e “líderes”. Em uma época em que centralização e estado têm sido trazidos ao mais explosivo ponto de negatividade histórica, ouvimos as vazias exigências de um “movimento centralizado” e um “ditadura do proletariado”.

Essa perseguição de segurança no passado, essa tentativa de encontrar em abrigo em um dogma fixo e em uma hierarquia organizacional como substitutos do pensamento e práticas criativas é uma triste prova de quão pouco tantos revolucionários são capazes de “revolucionar a si mesmos e as coisas”, muito menos do que revolucionar a sociedade como um todo. O conservadorismo profundamente enraizado dos “revolucionários” do PLP [3] é na maior parte dolorosamente evidente; o líder autoritário e a hierarquia substituem o patriarcado e a burocracia escolar; a disciplina do movimento substitui a disciplina da sociedade burguesa; o código autoritário de obediência política substitui o estado; a crença na “moralidade proletária” substitui as tradições de puritanismo e a ética de trabalho. A velha essência de sociedade exploradora reaparece em novas formas, coberta com uma bandeira vermelha, decorada com retratos de Mao (ou Castro ou Che) e adornada com o pequeno “Livro Vermelho” e outras ladainhas sagradas.

A maior parte das pessoas que permanecem no PLP hoje merecem isso. Se eles podem viver com um movimento que cinicamente dubla seus próprios slogans em fotografias de piquetes do DRUM[4]; se eles podem ler uma revista que pergunta se Marcuse é um “fujão ou um tira”; se eles podem aceitar uma “disciplina” que os reduz a autômatos programados e inexpressivos; se eles podem usar as técnicas mais repulsivas (técnicas pegas emprestadas da cloaca das operações de negócios burguesas e do parlamentarismo) para manipular outras organizações; se eles podem virtualmente parasitar cada ação e situação para meramente promover o crescimento de seu partido – mesmo que isso signifique serem derrotados pela própria ação – então eles estão abaixo de qualquer crítica. Para essas pessoas, para todos eles comunistas e atacá-los dizendo que são comunistas é uma forma de macarthismo ao contrário. Para parafrasear a viva descrição de Trótski sobre o stalinismo, eles são a sífilis do movimento jovem radical hoje. E para a sífilis há um único tratamento – um antibiótico, não um argumento.


Nossa preocupação aqui é com aqueles honestos revolucionários que se voltaram ao marxismo, leninismo ou trotskismo porque eles seriamente procuram uma perspectiva social coerente e uma estratégia eficiente de revolução. Nós também estamos preocupados com aqueles que são intimidados pelo repertório teórico da ideologia marxista e estão dispostos a ter interesse passageiro por alternativas mais sistemáticas. A essas pessoas nos dirigimos como irmãos e irmãs e pedimos uma discussão séria e uma ampla reavaliação. Acreditamos que o marxismo parou de ser aplicável à nossa época não porque é muito visionário ou revolucionário, mas porque não é visionário ou revolucionário o bastante. Acreditamos que ele nasceu em uma era de escassez e foi apresentado como uma brilhante crítica daquela era, especificamente do capitalismo industrial, e que uma era está nascendo, a qual o marxismo não abarca adequadamente e cujos contornos ele apenas parcialmente antecipou. Argumentamos que o problema não é “abandonar” o marxismo, ou “anulá-lo”, mas transcendê-lo dialeticamente, como Marx transcendeu a filosofia hegeliana, a economia ricardiana e as táticas e modos de organização blanquistas. Devemos argumentar que em um estágio mais avançado do capitalismo que aquele com que Marx lidou um século atrás, e em um estágio mais avançado de desenvolvimento tecnológico do que Marx jamais poderia ter claramente antecipado, uma nova crítica é necessária, a qual por sua vez produz novos modos de luta, ou organização, de propaganda e estilo de vida. Chame esses novos modos do que quiser. Escolhemos chamar essa nova abordagem pós-escassez de anarquismo, por várias forçadas razões que se tornarão mais evidentes nas páginas que seguem.

Tabela de conteúdo

 [esconder]

[editar]Os limites históricos do marxismo

A ideia de que um homem cujas grandes contribuições teóricas foram feitas entre 1840 e 1880 poderia “antever” a dialética inteira do capitalismo é, a julgar pela aparência, completamente absurda. Se ainda podemos aprender muito das compreensões de Marx, podemos aprender até mesmo mais dos erros inevitáveis de um homem que era limitado por uma era de escassez material e uma tecnologia que mal envolvia o uso da energia elétrica. Podemos aprender o quão diferente nossa própria era é daquela de toda história do passado, o quão qualitativamente novas são as potencialidades que nos confrontam, o quão únicas são as questões, análises e práticas que estão diante de nós se estamos para fazer uma revolução e não um outro aborto histórico.

O problema não é que o marxismo é um “método” que tem de ser reaplicado a “novas situações” ou que o “neo-marxismo” tem de ser desenvolvido para superar as limitações do “marxismo clássico”. A tentativa de resgatar a linhagem do marxismo enfatizando o método mais que o sistema ou acrescentar “neo” a uma palavra sagrada é pura mistificação se todas as conclusões práticas do sistema contradizem esses esforços.[5] Ainda hoje isso é precisamente o estado das coisas na exegese marxista. Os marxistas apoiam-se no fato de que o sistema provê uma brilhante interpretação do passado enquanto propositadamente ignora suas características completamente enganosas no lide com o presente e com o futuro. Eles citam a coerência que o materialismo histórico e a análise de classe dão à interpretação da história, as compreensões econômicas que o Capital provê dentro do desenvolvimento do capitalismo industrial, e a inteligência das análises de Marx das primeiras revoluções e das conclusões táticas que ele estabeleceu, sem outrora reconhecer que qualitativamente surgiram novos problemas que nunca existiram nos dias dele. É concebível que problemas históricos e métodos de análise de classe baseados inteiramente em uma escassez inevitável possa ser transportado para uma nova era de abundância em potencial? É concebível que uma análise econômica focada primariamente em um sistema “livremente competitivo” do capitalismo industrial possa ser transferida para um sistema gerenciado de capitalismo, onde estado e monopólios unem-se para manipular a vida econômica? É concebível que um repertório estratégico e tático formulado em período em que aço e carvão constituíam a base da tecnologia industrial possam ser transferidos para uma época baseada novas fontes de energia radicalmente novas, na eletrônica e na cibernação?

Como resultado dessa transferência, um corpo teórico que era libertador um século atrás torna-se uma camisa de força hoje. Pedem-nos para focar na classe trabalhadora como o “agente” da mudança revolucionário no momento em que o capitalismo visivelmente antagoniza e produz revolucionários virtualmente em todos os estratos da sociedade, particularmente entre os jovens. Pedem-nos para guiarmos nossos métodos táticos por uma visão de uma “crise econômica crônica”, apesar do fato de que tal crise esteve iminente nos últimos trinta anos.[6] Pedem-nos para aceitar uma “ditadura do proletariado” – um longo “período de transição” cuja função não é meramente a supressão de contrarrevolucionário, mas, acima de tudo o desenvolvimento de uma tecnologia de abundância – em um período em que uma tecnologia de abundância está ao alcance da mão. Pedem-nos para orientarmos nossas “estratégias” e “táticas” entre pobreza e miséria material em um período em que o sentimento revolucionário está sendo gerado pela banalidade da vida sob condições de abundância material. Pedem-nos para estabelecer partidos políticos, organizações centralizadas, hierarquias e elites “revolucionárias”, e um novo estado em um período em que instituições políticas como tais são decadentes e em que centralismo, elitismo e o estado estão sendo trazidos à tona em uma escala que nunca ocorreu antes na história da sociedade hierárquica.

Pedem-nos, em suma, para retornar ao passado, para diminuir ao invés de crescer, para forçar a palpitante realidade de nossos tempos, com nossas esperanças e promessas, aos decadentes preconceitos de uma idade ultrapassada. Pedem-nos para operar com princípios que foram ultrapassados não apenas teoricamente, mas pelo próprio desenvolvimento da sociedade. A história não estancou desde Marx, Engels, Lênin e Trótski morreram, nem seguiu a direção simplista que foi traçada pelos pensadores – mesmo que brilhantes – cujas mentes ainda tem raízes no século XIX ou nos primeiros anos do XX. Vimos o próprio capitalismo realizar muitas das tarefas (incluindo o desenvolvimento de uma tecnologia de abundância) que eram tidas como socialistas; vimos-no “nacionalizar” a propriedade, fundir a economia com o estado sempre que necessário. Vimos a classe trabalhadora neutralizada como o “agente da mudança revolucionária”, embora ainda lutando com uma estrutura burguesa por mais salário, menos horas e pequenos benefícios. A luta de classes no sentido clássico não desapareceu; ela teve um destino pior sendo cooptada pelo capitalismo. A luta revolucionária dentro dos países de capitalismo avançado tornou-se historicamente um novo terreno: ela tornou-se uma luta entre uma geração de jovens que não conheceram crise econômica crônica, e a cultura, valores, e instituições de uma geração mais antiga e conservadora cujas perspectivas de vida foram moldadas pela escassez, culpa, renúncia, o trabalho ético e a busca de segurança material. Nossos inimigos não são somente a burguesia visivelmente entrincheirada e o aparato estatal, mas também uma perspectiva que encontra seu apoio entre liberais, social-democratas, os subordinados de uma mídia de massa corrupta, os partidos “revolucionários” do passado, e, doloroso como possa ser para os acólitos do marxismo, o trabalhador dominado pela hierarquia da fábrica, pela rotina industrial, e pela ética do trabalho. A questão é que as divisões agora virtualmente suprimem todas as linhas de classe tradicionais e levantam um espectro de problemas que nenhum dos marxistas, baseando-se em analogias com sociedades da escassez, poderia prever.

[editar]O mito do proletariado

Coloquemos de lado todos os fragmentos ideológicos do passado e olhemos para as raízes teóricas do problema. Para a nossa época, a maior contribuição de Marx ao pensamento revolucionário é sua dialética do desenvolvimento social. Marx desnudou o grande movimento desde o comunismo primitivo através da propriedade privada até o comunismo na sua mais elevada forma – uma sociedade comunal apoiada em uma tecnologia libertadora. Nesse movimento, de acordo com Marx, o homem passa da dominação do homem pela natureza para a dominação do homem pelo homem, e finalmente à dominação da natureza pelo homem[7] e da dominação social dela. Dentro desta dialética maior, Marx examina a dialética do próprio capitalismo – um sistema social que constitui o último “estágio” histórico na dominação do homem pelo homem. Aqui, Marx não somente faz profundas contribuições ao pensamento revolucionário contemporâneo (particularmente em sua brilhante análise da relação da mercadoria), mas também exibe as limitações de tempo e lugar que têm um papel tão restritivo em nossa própria época.

A mais séria dessas limitações emerge da tentativa de Marx de explicar a transição do capitalismo para o socialismo, de uma sociedade de classes para uma sociedade sem classes. É vitalmente importante enfatizar que essa explicação tinha origem quase que inteiramente na analogia com a transição do feudalismo para o capitalismo – isto é, de uma sociedade de classes para outra sociedade de classes, de um sistema de propriedade para outro. Do mesmo modo, Marx aponta que assim como a burguesia desenvolveu-se dentro do feudalismo como resultado da cisão entre cidade e campo (mais precisamente, entre ofício e agricultura), assim o proletariado moderno desenvolveu-se dentro do capitalismo como resultado do avanço da tecnologia industrial. Ambas as classes, disseram-nos, desenvolveram interesses sociais próprios – de fato, interesses sociais revolucionários que as lançam contra a antiga sociedade na qual foram geradas. Se a burguesia obteve controle sobre a vida econômica muito antes de destruir a sociedade feudal, o proletariado, por sua vez, obtém seu próprio poder revolucionário pelo fato de ser “disciplinado, unido, organizado” pelo sistema da fábrica.[8] Em ambos os casos, o desenvolvimento de forças produtivas torna-se incompatível com o sistema tradicional de relações sociais. “O revestimento está rompido”. A nova sociedade é substituída pela nova.

A questão crítica com que nos deparamos é a seguinte: podemos explicar a transição de uma sociedade de classes para uma sociedade sem classes através da mesma dialética que considera a transição de uma sociedade de classes para outra? Esse não é um problema teórico que envolve o julgamento de abstrações lógicas, mas um assunto muito real e concreto para nossa época. Há diferenças profundas entre o desenvolvimento da burguesia sob o feudalismo e o desenvolvimento do proletariado sob o capitalismo que Marx ou falhou por antecipar ou nunca encarou claramente. A burguesia controlava a vida econômica muito antes de tomar o poder estatal; ela tornou-se a classe dominante material, cultural e ideologicamente, antes de afirmar sua dominação política. O proletariado não controla a vida econômica. A despeito de seu papel indispensável no processo industrial, a classe trabalhadora industrial não é nem mesmo a maioria da população, e sua posição econômica estratégica está diminuindo pela cibernação e outros avanços tecnológicos.[9] Por isso, é preciso um ato de alta consciência para o proletariado usar seu poder para alcançar uma revolução social. Até agora, o alcance dessa consciência foi bloqueado pelo fato de que o meio da fábrica é uma das mais entrincheiradas arenas da ética do trabalho, de sistemas hierárquicos de gestão, de obediência a líderes, e, em tempos recentes, de produção empenhada a mercadorias supérfluas e armamentos. A fábrica não serve apenas para “disciplinar”, “unir” e “organizar” os trabalhadores, mas também para fazê-lo de um modo completamente burguês. Na fábrica, a produção capitalista não apenas renova as relações sociais do capitalismo com cada dia de trabalho, como observou Marx, ela ainda renova a psique, ideias, valores e ideologias do capitalismo.

Marx percebeu suficientemente esse fato para procurar razões mais fortes que o mero fato da exploração ou que conflitos sobre salários e horas de trabalho para impulsionar o proletariado à ação revolucionária. Em sua teoria geral de acumulação capitalista, ele tentou delinear as severas e objetivas leis que forçam o proletariado a assumir um papel revolucionário. Do mesmo modo, ele desenvolveu sua famosa teoria da imiseração: a competição entre capitalistas leva-os a diminuir os preços dos outros, o que, por sua vez, leva a uma contínua redução de salários e ao absoluto empobrecimento dos trabalhadores. O proletariado é compelido a se revoltar porque, com o processo de competição e de centralização do capital, “cresce a massa de miséria, opressão, escravidão e degradação”.[10]

Mas o capitalismo não estancou desde os tempos de Marx. Escrevendo em meados do século XIX, não se pode esperar que Marx compreendesse todas as consequências de seus entendimentos sobre a centralização do capital e o desenvolvimento da tecnologia. Não se pode esperar que ele tivesse previsto que o capitalismo se desenvolveria não somente do mercantilismo para a forma industrial dominante de seu tempo – dos monopólios comerciais ajudados pelo Estado para unidades industriais altamente competitivas – mas mais, que com a centralização do capital, o capitalismo retornasse às suas origens mercantilistas em um nível mais alto de desenvolvimento e reassumisse a forma monopolista com ajuda estatal. A economia tende a se fundir com o Estado e o capitalismo começa a “planejar” seu desenvolvimento, ao invés de deixá-lo exclusivamente para a interação de competição das forças do mercado. Para estar seguro, o sistema não abole a luta de classes tradicional, mas manobra para contê-la, usando seus imensos recursos tecnológicos para assimilar as partes mais estratégicas da classe trabalhadora.

Assim, o impulso inteiro da teoria da miséria é diminuído e, nos Estados Unidos, a luta de classes tradicional falha em se tornar a guerra de classes. Ela permanece inteiramente dentro de dimensões burguesas. O marxismo, na verdade, torna-se uma ideologia. É assimilado pelas mais avançadas formas de movimento de Estado capitalista –particularmente a Rússia. Por uma ironia incrível da história, o “socialismo” marxista torna-se, em grande parte, o verdadeiro Estado capitalista que Marx não conseguiu antecipar na dialética do capitalismo.[11] O proletariado, ao invés de desenvolver-se como uma classe revolucionária dentro do ventre do capitalismo, torna-se um órgão dentro do corpo da sociedade burguesa.

A pergunta que devemos fazer neste recente momento da história é se uma revolução social que pretende alcançar uma sociedade sem classes pode emergir de um conflito entre classes tradicionais em uma sociedade de classes, ou se tal revolução social pode emergir somente da decomposição das classes tradicionais, realmente da emergência de uma “classe” inteiramente nova cuja verdadeira essência é que ela é uma não-classe, um crescente estrato de revolucionários. Na tentativa de responder essa questão, podemos aprender mais retornando à dialética mais ampla que Marx desenvolveu para a sociedade humana como um todo do que do modelo que ele pegou emprestado da passagem da sociedade feudal para a capitalista. Assim como os clãs de consanguinidade começaram a se dividir em classes, em nossos dias há uma tendência de as classes se decomporem em subculturas inteiramente novas que têm semelhança com formas não capitalistas de relacionamentos. Elas não mais são grupos econômicos estritamente; refletem, na verdade, a tendência do desenvolvimento social transcender as categorias econômicas da sociedade da escassez. Elas constituem, com efeito, uma pré-formação crua e ambígua do movimento da sociedade da escassez para a da pós-escassez.

O processo da decomposição de classe tem de ser entendido em todas as suas dimensões. A palavra “processo” tem de ser enfatizada aqui: as classes tradicionais não desaparecem, nem a luta de classe. Somente uma revolução social pode remover a estrutura da classe prevalecente e as causas do conflito. A questão é que a luta de classes tradicional deixa de ter implicações revolucionárias; ela se revela como a fisiologia da sociedade prevalente, não como as dores de trabalho de parto. Na realidade, a luta de classes tradicional estabiliza a sociedade capitalista “corrigindo” seus abusos (em salários, horas de trabalho, inflação, emprego etc.). Os sindicatos, na sociedade capitalista, constituem um “contramonopólio” em relação aos monopólios industriais e são incorporados à economia estatizada neomercantil como um Estado. Dentro desse Estado, há conflitos maiores ou menores, mas, tomados como um todo, os sindicatos fortalecem o sistema e servem para perpetuá-lo.

Reforçar essa estrutura de classe tagarelando sobre o “papel da classe trabalhadora”, reforçar a luta de classes tradicional dando-lhe um caráter “revolucionário”, infectar o novo movimento revolucionário de nossa época com “trabalhite” é tornar o núcleo reacionário. O quão frequentemente as doutrinas marxistas têm de ser lembradas que a história da luta de classes é a história de uma doença, das feridas abertas pela famosa “questão social”, do desenvolvimento monofacetado do homem na tentativa de obter controle sobre a natureza e dominar seu companheiro homem? Se o efeito colateral dessa doença foi avanço tecnológico, os efeitos principais foram repressão, um horrível derramamento de sangue humano e uma aterrorizante distorção da psique humana.

À medida que a doença se aproxima de seu fim, que a ferida começa a curar em seus mais profundos recônditos, o processo agora se desdobra em direção à totalidade; as implicações revolucionárias da luta de classes tradicional perdem seu significado como construções teóricas e como realidade social. O processo de decomposição envolve não somente a estrutura tradicional de classes, mas também a família patriarcal, modos autoritários de aceitação, a influência da religião, as instituições do Estado, e as tradições construídas ao redor de trabalho, renúncia, culpa e sexualidade reprimida. O processo de desintegração, em suma, agora se torna generalizado e virtualmente afeta todas as classes, valores e instituições. Ele cria questões inteiramente novas, modos de luta e formas de organização e chamadas para uma abordagem inteiramente nova à teoria e prática.

O que isso significa concretamente? Deixe-nos contrastar duas abordagens, a marxista e a revolucionária. A doutrina marxista teria nos mostrado o trabalhador – ou melhor, “entrado” na fábrica – e feito proselitismo a ele em “preferência” a qualquer outra pessoa. O objetivo? Formar a “consciência de classe” do trabalhador. Para citar os exemplos mais neandertais da velha esquerda, corta-se o cabelo, arruma-se em roupas esportivas convencionais, troca-se maconha por cigarros e cerveja, dança-se convencionalmente, aparentam-se maneirismos rudes, e se desenvolve uma aparência sem humor, inexpressiva e jactanciosa.[12]

Essa pessoa torna-se, em resumo, o trabalhador em sua pior caricaturização: não um “burguês trivial degenerado”, verdade, mas um burguês degenerado. Essa pessoa torna-se uma imitação do trabalhador na medida em que o trabalhador é uma imitação de seus mestres. Sob a metamorfose do estudante para o “trabalhador” se esconde um cinismo depravado. Essa pessoa tenta usar a disciplina inculcada pelo ambiente da fábrica para disciplinar o trabalhador para o ambiente do partido. Essa pessoa tenta usar o respeito do trabalhador pela hierarquia industrial para ligar o trabalhador à hierarquia partidária. Esse processo lamentável, que, se bem-sucedido, pode levar somente à substituição de uma hierarquia por outra, é alcançado pela preocupação fingida com as reivindicações econômicas cotidianas do trabalhador. Mesmo a teoria marxista é degradada para concordar com essa imagem falsificada do trabalhador. (Veja quase toda cópia do Challenge – o National Enquirer da esquerda. Nada chateia mais o trabalhador do que esse tipo de literatura.) No final, o trabalhador é inteligente o suficiente para saber que obterá melhores resultados na luta de classes cotidiana através de sua burocracia sindical que através de uma burocracia partidária marxista. Os anos quarenta revelaram isso tão dramaticamente que, em um ou dois anos, com apenas algum protesto de seus membros, os sindicatos conseguiam expulsar milhares de “marxistas” que fizeram os trabalhos pioneiros por mais de uma década, até mesmo ascendendo à liderança da velha CIO internacional.

O trabalhador torna-se um revolucionário não tornando-se mais um trabalhador, mas desfazendo seu “trabalhidade”[13]. E nisso ele não está sozinho; o mesmo se aplica ao fazendeiro, ao soldado, ao burocrata, ao profissional – e ao marxista. O trabalhador não é menos um “burguês” que o fazendeiro, o estudante, o caixeiro, o soldado, o burocrata, o profissional – e que o marxista. Sua “trabalhidade” é a doença de que ele sofre, a aflição social encaixada em dimensões individuais. Lênin entendeu isso em Que fazer?, mas ele o introduzir na velha hierarquia sob uma bandeira vermelha e alguma verborreia revolucionária. O trabalhador começa a tornar-se revolucionário quando desfaz sua “trabalhidade”, quando vem a detestar seu status de classe aqui e agora, quando começa a largar exatamente essas características que o marxismo mais preza nele – sua ética de trabalho, sua estrutura de caráter derivada da disciplina industrial, seu respeito pela hierarquia, sua obediência a líderes, seu consumismo, seus vestígios de puritanismo. Nesse sentido, o trabalhador torna-se um revolucionário no grau em que larga seu status de classe e alcança uma consciência de não classe. Ele degenera – e ele degenera magnificamente. O que ele está abandonando são precisamente aquelas amarras de classe que o ligam a todos os sistemas de dominação. Ele abandona esses interesses de classe que o escravizam ao consumismo, à vida suburbana e uma visão mercantil da vida.[14]

O desenvolvimento mais promissor nas fábricas hoje em dia é a emergência dos jovens trabalhadores que fumam maconha, estão se fodendo para seus trabalhos, entram e saem das fábricas, deixam o cabelo crescer, exigem mais lazer ao invés de mais salários, roubam, acossam todas as figuras de autoridade, vão a greves não aprovadas pelo sindicato e incitam seus companheiros trabalhadores. Ainda mais promissora é a emergência desse tipo humano nas escolas vocacionais[15] e ensino médio, o suprimento da classe trabalhadora industrial por vir. Ao nível que trabalhadores, estudantes vocacionais e estudantes de ensino médio ligam seus estilos de vida a vários aspectos da cultura anárquica jovem, nesse nível o proletariado será transformado de uma força de conservação da ordem estabelecida para uma força revolucionária.

Uma situação qualitativamente nova emerge quando o homem enfrenta a transformação de uma sociedade de classes repressiva, baseada na escassez material, para uma sociedade sem classes libertadora, baseada na abundância material. Da decomposição da estrutura tradicional de classes, um novo tipo humano é criado em números sempre crescentes: o revolucionário. Esse revolucionário começa a desafiar não somente as premissas econômicas e políticas da sociedade hierárquica, mas a hierarquia em si. Ele não somente levanta a necessidade de uma revolução social, mas também tenta viver de uma maneira revolucionária no nível em que isso é possível na sociedade existente.[16] Ele não apenas ataca as formas criadas pelo legado de dominação, mas também improvisa novas formas de libertação que tomam sua poesia do futuro.

Essa preparação para o futuro, essa experimentação com formas libertadoras pós-escassez de relações sociais pode ser ilusória se o futuro envolve uma substituição de uma sociedade de classe por outra; é indispensável, contudo, se o futuro envolve uma sociedade sem classes construída nas ruínas de uma sociedade de classes. O que, então, será o “agente” da mudança revolucionária? Ela será literalmente a grande maioria da sociedade, retirada de todas as diferentes classes tradicionais e fundida em uma força revolucionária comum pela decomposição das instituições, formas, valores e estilos sociais da estrutura de classes prevalente. Tipicamente, seus elementos mais avançados são a juventude – uma geração que não conheceu crise econômica crônica e que está se tornando menos e menos orientada ao mito de segurança material tão disseminado entre a geração dos anos trinta.

Se é verdade que a revolução social não pode ser alcançada sem o apoio ativo ou passivo dos trabalhadores, não é menos verdade que ela não pode ser alcançada sem o apoio ativo ou passivo dos agitadores, técnicos e profissionais. Acima de tudo, uma revolução social não pode ser alcançada sem o apoio da juventude, da qual a classe dominante recruta suas forças. Se a classe dominante retém seu poder armado, a revolução está perdida, não importam quantas greves de trabalhadores em seu apoio sejam feitas. Isso foi vividamente demonstrado não somente pela Espanha dos anos trinta, mas pela Hungria dos anos cinquenta e pela Tchecoslováquia dos anos sessenta. A revolução de hoje – pela sua própria natureza, de fato, por sua perseguição da totalidade – conquista não somente o soldado e o trabalhador, mas a própria geração da qual soldados, trabalhadores, técnicos, fazendeiros, cientistas, profissionais e até mesmo burocratas foram recrutados. Descartando os manuais revolucionários do passado, a revolução do futuro segue o caminho de menor resistência, seguindo seu caminho nas áreas mais suscetíveis da população, independentemente de sua “posição de classe”. Ela é nutrida por todas as contradições na sociedade burguesa, não somente pelas contradições da década de 1860 e de 1917. Assim, ela atrai todos aqueles que sentem o peso da exploração, pobreza, racismo, imperialismo e, sim, aqueles cujas vidas são frustradas por consumismo, vida suburbana, a mídia de massa, a família, a escola, o supermercado e o sistema prevalente de sexualidade reprimida. Aqui a forma da revolução torna-se tão total quanto seu conteúdo – sem classe, sem propriedade, sem hierarquia, e totalmente libertadora.

Cambalear nesse desenvolvimento revolucionário com as receitas gastas do marxismo, tagarelar sobre uma “divisão de classes” e o “papel da classe trabalhadora”, corresponde a uma subversão do presente e do futuro pelo passado. Elaborar essa entediante ideologia tagarelando sobre “revolucionários profissionais”, um “partido de vanguarda”, “centralismo democrático” e a “ditadura do proletariado” é pura contrarrevolução. É a esse assunto da “questão organizacional” – essa contribuição vital do leninismo ao marxismo – a que devemos dar agora alguma atenção.

[editar]O mito do partido

Revoluções sociais não são feitas por partidos, grupos ou profissionais, elas ocorrem como resultado de forças históricas profundamente assentadas e contradições que ativam amplos setores da população. Elas não ocorrem meramente porque as “massas” consideram a sociedade existente intolerável (como argumentou Trótski), mas também por causa da tensão entre o real e o possível, entre o que é e o que poderia ser. Extrema miséria, por si só, não produz revoluções; mais frequentemente, ela produz uma desmoralização sem propósito, ou, pior, uma luta privada e pessoal pela sobrevivência.

A Revolução Russa de 1917 pesa nas mentes dos vivos como um pesadelo, porque ela foi produto amplamente de “condições intoleráveis”, de uma guerra imperialista devastadora. Quaisquer sonhos que ela tivesse foram virtualmente destruídos por uma guerra civil ainda mais sangrenta, pela fome e pela traição. O que emergiu da revolução foram as ruínas não de uma antiga sociedade, mas de quaisquer esperanças existentes de alcançar uma nova. A Revolução Russa falhou miseravelmente; ela substituiu o czarismo pelo Estado capitalista.[17] Os bolcheviques foram as trágicas vítimas de sua própria ideologia e pagaram com suas vidas em grande número durante os expurgos dos anos trinta. Tentar obter alguma sabedoria única dessa revolução da escassez é ridículo. O que podemos aprender das revoluções do passado é o que todas as revoluções têm em comum e suas profundas limitações comparadas às enormes possibilidades que agora nos estão abertas.

O aspecto mais notável das revoluções do passado é que elas começaram espontaneamente. Examinar as fases iniciais da Revolução Francesa de 1789, as revoluções de 1848, a Comuna de Paris, a revolução de 1905 na Rússia, a deposição do czar em 1917, a Revolução Húngara de 1956 ou a greve geral na França em 1968 mostra que os estágios iniciais são geralmente os mesmos: um período de agitação explode espontaneamente em uma insurreição de massa. Se a insurreição é bem-sucedida ou não, depende de sua determinação e de se as tropas são aceitas pelo povo.

O “partido glorioso”, quando há um, quase que invariavelmente ri por trás dos eventos. Em fevereiro de 1917, a organização dos bolcheviques de Petrogrado opôs-se à convocação de greves precisamente na véspera da revolução que estava destinada a destituir o czar. Felizmente, os trabalhadores ignoraram as “diretivas” bolcheviques e fizeram a greve. Nos eventos que se seguiram, ninguém estava mais surpreso com a revolução que os partidos “revolucionários”, incluindo os bolcheviques. Como o líder bolchevique Kayurov lembrou: “Absolutamente nenhuma iniciativa diretiva do partido foi sentida… o comitê de Petrogrado foi preso e o representante do Comitê Central, Camarada Shliapnikov, não podia dar nenhuma diretiva para o dia seguinte”. Talvez tenha sido sorte. Antes do comitê de Petrogrado ser detido, sua avaliação da situação e seu próprio papel foram tão ineptos que, tivessem os trabalhadores seguido suas ordens, é duvidoso que a revolução tivesse ocorrido quando ocorreu.

O mesmo tipo de história pode ser contada sobre as insurreições que antecederam 1917 e aquelas que se seguiram – para citar somente a mais recente, a insurreição e greve geral na França durante maio e junho de 1968. Há uma conveniente tendência de se esquecer que perto de uma dezena de organizações bolcheviques “fortemente centralizadas” existiam em Paris naquele tempo. É raramente mencionado que virtualmente todos desses grupos de “vanguarda” desdenharam da insurreição estudantil de 7 de maio, quando as lutas intensamente estouraram nas ruas. A trotskista Jeunesse Communiste Révolutionnaire [Juventude Comunista Revolucionária] foi uma notável exceção – e saiu-se somente bem, essencialmente seguindo as iniciativas do Movimento 22 de Março.[18] Em 7 de maio, todos os grupos maoístas criticaram a insurreição estudantil, caracterizando-a como periférica e não importante; a trotskista Fédération des Etudiants Révolutionnaires [Federação dos Estudantes Revolucionários] a considerou “aventurosa” e tentou fazer com que os estudantes saíssem das barricadas em 10 de maio; o Partido Comunista, claro, teve um papel completamente traiçoeiro. Longe de liderar o movimento popular, os maoístas e trotskistas foram seus cativos do começo ao fim. Ironicamente, a maioria desses grupos bolcheviques usavam vergonhosamente técnicas manipuladoras na assembleia estudantil na Sorbonne, em uma tentativa de “controlá-la”, introduzindo uma atmosfera disruptiva que desmoralizava o grupo inteiro. Finalmente, para completar a ironia, todos esses grupos bolcheviques puderam tagarelar sobre a necessidade de uma “liderança centralizada” quando o movimento popular colapsou – um movimento que ocorreu apesar de suas “diretivas” e geralmente em oposição a elas.

Revoluções e insurreições dignas de qualquer nota não têm uma fase inicial que seja magnificamente anárquica, mas também tendem a criar espontaneamente suas próprias formas de autogestão revolucionária. As seções parisienses de 1793-94 eram as mais notáveis formas de autogestão a serem criadas por qualquer uma das revoluções sociais na história.[19] Mais familiar na forma eram os conselhos ou “sovietes” que os trabalhadores de Petrogrado estabeleceram em 1905. Apesar de menos democráticos que as seções, os conselhos iriam reaparecer em várias revoluções posteriores. Ainda outra forma de autogestão revolucionária eram os comitês de fábricas que os anarquistas estabeleceram na Revolução Espanhola de 1936. Finalmente, as seções reapareceram como assembleias estudantis e comitês de ação na insurreição de maio e junho e na greve geral de 1968 em Paris.[20]

Neste momento, temos de questionar que papel o partido “revolucionário” exerce em todos esses desenvolvimentos. No começo, como vimos, ele tende a uma função inibitória, não um papel de “vanguarda”. Onde exerce influência, tende a desacelerar o fluxo dos eventos, não “coordenar” as forças revolucionárias. Isso não é acidental. O partido é estruturado em camadas hierárquicas que refletem a mesma sociedade a que eles professam se opor. Apesar de suas pretensões teóricas, é um organismo burguês, um Estado em miniatura, com um aparato e um profissional cuja função é conquistar o poder, não dissolver o poder. Enraizado no período pré-revolucionário, ele assimila todas as formas, técnicas e mentalidade da burocracia. Seus membros são treinados para obedecer e para os preconceitos de um dogma rígido e é ensinado a sempre reverenciar a liderança. A liderança do partido, por sua vez, é treinada em hábitos de comando, autoridade, manipulação e egocentrismo. Essa situação é piorada quando o partido participa das eleições parlamentares. Nas campanhas eleitorais, o partido de vanguarda se modela completamente nas formas burguesas existentes e adquire até mesmo a parafernália do partido eleitoral. A situação assume proporções realmente críticas quando o partido obtém muitos correligionários, sedes custosas, e um grande inventário de periódicos controlados centralizadamente, e desenvolve um “aparato” pago – em resumo, uma burocracia com interesses materiais explícitos.

À medida que o partido cresce, a distância entre liderança e as fileiras invariavelmente aumentam. Seus líderes não somente tornam-se “personalidades”, eles perdem contato com a situação de vida abaixo de si. Os grupos locais, que conhecem melhor sua situação imediata própria que qualquer líder afastado, são obrigados a subordinar suas compreensões a diretivas superiores. A liderança, carecendo de qualquer conhecimento direto de problemas locais, responde lenta e prudentemente. Mesmo assim, ela exalta a “visão ampla”, a grande “competência teórica”, a competência da liderança tende a diminuir à medida que se ascende na hierarquia de comando. Quanto mais se chega ao nível no qual são tomadas as decisões reais, mais conservadora é a natureza do processo de tomada de decisão, mais burocráticos e alheios são os fatores que estão em jogo, mais considerações de prestígio e economia suprimem a criatividade, imaginação e uma dedicação desinteressada por objetivos revolucionários.

Quanto mais o partido procura eficiência por meio de hierarquia, profissionais e centralização, menos eficiente ele fica de um ponto de vista revolucionário. Apesar de todos marcharem conforme a música, as ordens estão normalmente erradas, especialmente quando os eventos começam a se suceder rapidamente e tomam contornos inesperados – como acontece em todas as revoluções. O partido é eficiente em apenas um quesito – moldar a sociedade à sua própria imagem hierárquica se a revolução obtém sucesso. Ele recria a burocracia, a centralização e o Estado. Ele fomenta a burocracia, a centralização e o Estado. Ele fomenta as condições sociais genuínas que justificam esse tipo de sociedade. Desse modo, ao invés de “desaparecer”, o Estado controlado pelo “partido glorioso” preserva as mesmas condições que “necessitavam” da existência de um Estado – e de um partido para “preservá-lo”.

Por outro lado, esse tipo de partido é extremamente vulnerável em períodos de repressão. A burguesia tem apenas de prender sua liderança para destruir o movimento por inteiro. Com seus líderes na prisão ou no exílio, o partido torna-se paralisado; os membros obedientes não têm a quem obedecer e tendem a se atrapalhar. A desmoralização chega rapidamente. O partido se decompõe não somente por causa da atmosfera repressiva, mas também por causa de sua pobreza de recursos internos.

A história a seguir não é uma série de inferências hipotéticas, é um esquete misto de todos os partidos de massa marxistas do século passado – os social-democratas, os comunistas e o partido trotskista do Ceilão (o único partido de massa desse tipo). Afirmar que esses partidos falharam em levar seus princípios marxistas a sério somente esconde outra questão: em primeiro lugar, por que ocorreu esse fracasso? O fato é que esses partidos foram cooptados pela sociedade burguesa porque eram estruturados em modelos burgueses. A semente da traição existia neles desde o nascimento.

O Partido Bolchevique foi poupado dessa sina entre 1904 e 1917 unicamente por uma razão: era uma organização ilegal durante a maior parte dos anos que antecederam a revolução. O partido estava sendo continuamente rachado e reconstituído, resultando que, até tomar o poder, nunca realmente se solidificou como uma máquina centralizada, burocrática e hierárquica. Além disso, ele foi rachado por facções; a intensa atmosfera faccionária persistiu por todo o ano de 1917, até durante a guerra civil. Contudo, a liderança bolchevique era, como é comum, extremamente conservadora, um traço contra o qual Lênin teve de lutar durante 1917 – primeiro em seus intentos de reorientar o Comitê Central contra o governo provisório (o famoso conflito sobre as “Teses de Abril”), depois guiando o Comitê Central à insurreição em outubro. Em ambos os casos, ele ameaçou renunciar ao Comitê Central e levar suas visões para “fileiras inferiores do partido”.

Em 1918, disputas faccionárias sobre a questão do tratado de Brest-Litovsk[21] quase provocou a cisão em dois partidos comunistas rivais. Grupos bolcheviques rivais como os Centralistas Democráticos e a Oposição Operária promoveram severas brigas dentro do partido em 1919 e 1920, sem falar dos movimentos rivais que se desenvolveram dentro do Exército Vermelho sobre a inclinação de Trótski pela centralização. A completa centralização do Partido Bolchevique – a realização da “unidade leninista”, como foi chamada posteriormente – não ocorreu até 1921, quando Lênin promoveu a persuasão para banir facções no décimo congresso do Partido. Por essa época, a maior parte do Exército Branco tinha sido vencida e os intervencionistas estrangeiros tinham retirado as tropas da Rússia.

Não pode ser muito fortemente enfatizado que os bolcheviques tenderam a centralizar seu partido ao nível de ficarem isolados da classe trabalhadora. Esse relacionamento foi raramente investigado em círculos leninistas posteriores, mesmo que Lênin fosse honesto o suficiente para admiti-lo. A história da Revolução Russa não é meramente a do Partido Bolchevique e seus apoiadores. Por trás da aparência dos eventos oficiais descritos pelos historiadores soviéticos havia outro desenvolvimento, mais básico – o movimento espontâneo dos trabalhadores e camponeses revolucionários, que depois entraram fortemente em choque com as políticas burocráticas dos bolcheviques. Com a deposição do czar em fevereiro de 1917, os trabalhadores estabeleceram espontaneamente comitês de fábricas em praticamente todas elas, fazendo valer direitos nas operações industriais. Em junho de 1917, uma conferência de comitês de fábricas de toda a Rússia teve lugar em Petrogrado e demandou a “organização através do controle do trabalho sobre a produção e distribuição”. As reivindicações dessa conferência são raramente mencionadas em relatos leninistas da Revolução Russa, apesar do fato de ela ter se alinhado aos bolcheviques. Trótski, que descreve os comitês de fábricas como “a mais direta e indubitável representação do proletariado no país inteiro”, aborda-os superficialmente em sua extensa história da revolução. Tão importantes eram esses organismos espontâneos de autogestão que Lênin, desesperado em ganhar os sovietes no verão de 1917, estava preparado para mudar o slogan “Todo o poder para os sovietes” por “Todo o poder para os comitês de fábricas”. Essa reivindicação teria lançado os bolcheviques a uma posição completamente anarcossindicalista, mesmo que seja duvidoso que tivessem continuado assim por muito tempo. Com a Revolução de Outubro, todos os comitês de fábrica tomaram o controle das plantas, expulsando os burgueses e tomando controle completo da indústria. Ao aceitar o conceito de controle dos trabalhadores, o famoso decreto de Lênin de 14 de novembro de 1917 meramente tomou conhecimento de um fato consumado; os bolcheviques não ousaram se opor aos trabalhadores nesse momento inicial. Mas eles começaram a tirar poder dos comitês de fábricas. Em janeiro de 1918, dois meses depois de “decretar” o controle dos trabalhadores, Lênin começava a defender que a administração das fábricas fosse posta sob o controle dos sindicatos. A história de que os bolcheviques experimentaram o controle operário “pacientemente”, somente para achá-lo “ineficiente” e “caótico”, é um mito. Sua “paciência” não durou mais que algumas semanas. Não somente Lênin opôs-se ao controle direto dos trabalhadores em uma questão de semanas depois de decreto de 14 de novembro, mas até mesmo o controle dos sindicatos chegou ao fim brevemente depois de ter sido estabelecido. Pelo verão de 1918, quase toda a indústria russa tinha sido colocada sob formas de gestão burguesas. Como Lênin colocou, a “revolução exige… precisamente nos interesses do socialismo que as massas obedeçam inquestionavelmente a única vontade dos líderes do processo de trabalho”.[22] Consequentemente, o controle operário foi denunciado não somente como “ineficiente”, “caótico” e “impráticável”, mas também como “trivialmente burguês”! Osinsky, da esquerda comunista, atacou asperamente todas essas reivindicações falsas e avisou o Partido: “Socialismo e organização socialista devem ser estabelecidos pelo próprio proletariado, ou não estabelecidos; outra coisa será estabelecer um Estado capitalista” Sob os “interesses do socialismo”, o Partido Bolchevique tirou do proletariado todo domínio que este tinha conquistado por suas próprias forças e iniciativas. O Partido não coordenou a revolução, ou a guiou; ele a dominou. Primeiro o controle operário e depois o controle sindical foram substituídos por uma hierarquia elaborada, tão monstruosa quanto qualquer estrutura que existia em tempos pré-revolucionários. Como os tempos seguintes demonstraram, a profecia de Osinsky tornou-se realidade.

O problema de “quem deve prevalecer” – os bolcheviques ou as “massas” russas – não era de modo algum limitado pelas fábricas. O assunto reapareceu tanto no campo quanto nas cidades. Uma ampla guerra camponesa manteve o movimento dos trabalhadores com apoio. Ao contrário dos relatos oficiais de Lênin, a insurreição agrária não foi de modo algum limitada a uma redistribuição da terra em lotes privados. Na Ucrânia, camponeses influenciados pelas milícias anarquistas de Nestor Makhno e guiados pela máxima comunista “de cada um de acordo com suas possibilidades; para cada um de acordo com suas necessidades”, estabeleceu muitas comunas rurais. Alhures, no norte e na Ásia Soviética, alguns milhares desses organismos foram estabelecidos, parcialmente na iniciativa dos Revolucionários da Esquerda Social e em larga escala como resultado dos impulsos coletivistas tradicionais que vinham das aldeias russas, o mir[23] Pouco importa se essas comunas eram numerosas ou abarcavam grande número de camponeses; a questão é que eram organismos populares autênticos, os núcleos de uma moral e espírito social que ficava muito acima dos valores desumanizantes da sociedade burguesa.

Os bolcheviques viam com desagrado esses organismos desde o começo e, por fim, os condenaram. Para Lênin, a forma de empreendimento agrícola preferida, a mais “socialista” estava representada pela fazenda estatal – uma fábrica agrícola na qual o Estado possuía a terra e os equipamentos, indicando gerentes que contratavam camponeses a um salário base. Vê-se nessas atitudes em relação ao controle operário e às comunas agrícolas essencialmente o espírito e a mentalidade burguesa que permeavam o Partido Bolchevique – espírito e mentalidade que não provieram somente de suas teorias, mas também de seu modo corporativo de organização. Em dezembro de 1918, Lênin lançou um ataque contra as comunas, com o pretexto de que os camponeses estavam sendo “forçados” a ingressar nelas. Na realidade, pouca, se não nenhuma coerção era usada para organizar essas formas comunistas de autogestão. Como Robert G. Wesson, que estudou as comunas soviéticas detalhadamente, conclui: “Aqueles que ingressavam em comunas tinham de tê-lo feito de sua própria vontade”. As comunas não foram suprimidas, mas seu crescimento foi desencorajado até que Stálin desapareceu com o desenvolvimento por inteiro nas coletivizações forçadas no fim dos anos vinte e início dos trinta.

Pela década de 1920, os bolcheviques isolaram-se da classe trabalhadora e campesinato russos. Tomadas juntas, a eliminação do controle operário, a supressão do Makhnovtsy[24], a atmosfera politicamente restritiva no país, a burocracia inflada e a esmagadora pobreza material herdada dos anos de guerra civil geraram uma profunda hostilidade ao comando bolchevique. Com o fim das hostilidades, um movimento surgiu das profundezas da sociedade russa para uma “terceira revolução” – não para restaurar a passada, como reivindicavam os bolcheviques, mas para realizar os verdadeiros objetivos de liberdade, tanto econômica como política, que reuniram as massas ao redor do programa bolchevique de 1917. O novo movimento encontrou sua forma mais consciente no proletariado de Petrogrado entre os marinheiros de Kronstadt. Ele também encontrou expressão no Partido: o crescimento de tendências anticentralistas e anarcossindicalistas entre os bolcheviques chegou a um ponto em que um bloco de grupo de oposição, favorável a essas questões, conquistou cento e vinte e quatro assentos na conferência provincial de Moscou, contra cento e cinquenta e quatro do Comitê Central.

Em 2 de março de 1921, os “marinheiros vermelhos” de Kronstadt se amotinaram, levantando a bandeira de uma “Terceira Revolução dos Troilers[25]”. O programa de Kronstadt centrava-se em demandas de eleições livres para os sovietes, liberdade de expressão e de imprensa para os anarquistas e partidos da esquerda socialista, sindicatos livres, e a libertação de todos os prisioneiros que pertencessem a partidos socialistas. As histórias mais vergonhosas eram fabricadas pelos bolcheviques para relatar essa insurreição, conhecidas em anos posteriores como mentiras descaradas. A revolta era caracterizada como uma “conspiração do Exército Branco”, apesar do fato de que a grande maioria dos membros do Partido Comunista em Kronstadt se juntou aos marinheiros – precisamente como comunistas – ao denunciar os líderes do partido como traidores da Revolução de Outubro. Como observa Robert Vincent Daniels em seu estudo dos movimentos oposicionistas bolcheviques: “Comunistas comuns eram de fato tão inconfiáveis… que o governo não contava com eles, seja no próprio ataque a Kronstadt ou na manutenção da ordem em Petrogrado, onde as esperanças de Kronstadt por apoio especificamente se depositavam. O principal grupo de tropas empregadas eram chekistas[26] e cadetes oficiais das escolas de treinamento do Exército Vermelho. O ataque final a Kronstadt foi liderado pelo funcionalismo superior do Partido Comunista – um grupo grande de delegados do Décimo Congresso do Partido foi deslocado para esse propósito”. Tão fraco era o regime internamente que a elite tinha de fazer ela mesma seu próprio trabalho sujo.

Ainda mais significativo que a revolta de Kronstadt foi o movimento grevista que se desenvolveu entre os trabalhadores de Petrogrado, um movimento que estimulou a insurreição dos marinheiros. Histórias leninistas não contam esse desdobramento criticamente importante. As primeiras greves estouraram em 23 de fevereiro de 1921. Em uma questão de dias, o movimento varreu fábrica após fábrica, até, em 28 de fevereiro, a famosa planta Putilov – o “bastião da Revolução” – entrou em greve. Não foram somente feitas exigências econômicas, os trabalhadores fizeram distintas exigências políticas, antecipando todas as exigências que seriam feitas pelos marinheiros de Kronstadt alguns dias depois. Em 24 de fevereiro, os bolcheviques declararam “estado de sítio” em Petrogrado e prenderam os líderes grevistas, suprimindo as manifestações dos “trabalhadores” com cadetes oficiais. O fato é que os bolcheviques não apenas suprimiram um “motim de marinheiros”; eles esmagaram a própria classe trabalhadora. Foi nesse momento que Lênin demandou o banimento de facções no Partido Comunista Russo. A centralização do Partido agora estava completa – e o caminho estava aberto para Stálin.

Discutimos esses eventos em detalhe porque eles levaram à conclusão de que o grupo recente de marxistas-leninistas tende a evitar: o Partido Bolchevique atingiu seu grau máximo de centralização no tempo de Lênin, não para lograr uma revolução ou suprimir a contrarrevolução do Exército Branco, mas para gerar uma contrarrevolução própria contra as verdadeiras forças sociais que ele professava representar. Facções foram proibidas e um partido monolítico criado não para evitar uma “restauração capitalista”, mas para conter um movimento de massas de trabalhadores pela democracia soviética e liberdade social. O Lênin de 1921 encontrava-se oposto ao Lênin de 1911.

Depois disso, Lênin simplesmente se perdeu. Esse homem que, acima de tudo, queria esconder os problemas de seu partido sob contradições sociais, encontrou-se literalmente apostando em um “jogo de azar” em uma última tentativa de parar a própria burocratização que ele havia criado. Não há nada mais patético e trágico que os últimos anos de Lênin. Paralisado por um grupo simplista de fórmulas marxistas, ele não pode pensar em nenhuma contramedida que não fosse organizacional. Ele propõe a formação de Inspeções de Operários e Camponeses para corrigir reformas burocráticas no Partido e no Estado – e esse grupo rui sob o controle de Stálin e torna-se altamente burocrático por si mesmo. Lênin então sugere que o tamanho das Inspeções de Operários e Camponeses seja reduzido e que ele seja unido à Comissão de Controle. Ele defende aumentar o Comitê Central. E assim vai: esse grupo é aumentado, aquele é juntado a outro, um terceiro é modificado ou abolido. O estanho balé de formas organizacionais continua até sua morte, como se o problema pudesse ser resolvido por meios organizacionais. Como Mosche Lewin, um admirador confesso de Lênin, admite, o líder bolchevique “abordou os problemas de governo mais como um chefe executivo de um pensamento estritamente ‘elitista’”. Ele não aplicou métodos de análise social ao governo e ficou satisfeito em considerá-lo puramente em termos de métodos organizacionais”.

Se é verdade que nas revoluções burguesas a “expressão ia além do conteúdo”, na revolução bolchevique as formas substituíram o conteúdo. Os sovietes substituíram os trabalhadores e seus comitês de fábricas, o Partido substituiu os sovietes, o Comitê Central substituiu o Partido, e o Departamento Político substituiu o Comitê Central. Em suma, meios substituíram fins. Essa incrível substituição de forma por conteúdo é um dos traços mais característicos do marxismo-leninismo. Na França, durante os eventos de maio e junho, todas as organizações bolcheviques estavam preparadas para destruir a assembleia estudantil da Sorbonne para aumentar sua influência e número de membros. Sua preocupação principal não era a revolução ou as formas sociais autênticas criadas pelos estudantes, mas o crescimento de seus próprios partidos.

Somente uma força poderia ter parado o crescimento da burocracia na Rússia: uma força social. Tivesse o proletariado e o campesinato russos o domínio de autogestão através do desenvolvimento de comitês de fábricas viáveis, comunas rurais e sovietes livres, a história do país talvez sofresse uma alteração dramaticamente diferente. Não pode haver dúvidas de que o fracasso das revoluções socialistas na Europa depois da Primeira Guerra Mundial levou ao isolamento da revolução na Rússia. A pobreza material da Rússia, juntamente com a pressão do mundo capitalista, claramente militou contra o desenvolvimento de uma sociedade socialista ou consistentemente libertária. De modo algum foi determinado que a Rússia tivesse de desenvolver-se com contornos de estado capitalista; ao contrário das expectativas iniciais de Lênin e Trótski, a revolução foi derrotada por forças internas, não pela invasão dos exércitos estrangeiros. Tivesse o movimento restaurado a partir de baixo as realizações da Revolução de 1917, um estrutura social multifacetada poderia ter se desenvolvido, baseada no controle operário da indústria, em uma economia de livre desenvolvimento camponês na agricultura, e em uma viva interação de ideias, programas e movimentos políticos. No mínimo, a Rússia não teria sido aprisionada em correntes totalitaristas e o stalinismo não teria envenenado o movimento revolucionário, abrindo caminho para o fascismo e a Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento do Partido Bolchevique, contudo, impediu esse desenvolvimento – apesar das “boas intenções” de Lênin e Trótski. Destruindo o poder dos comitês de fábricas na indústria e esmagando o Makhnovtsy, os trabalhadores de Petrogrado e os marinheiros de Kronstadt, os bolcheviques garantiram virtualmente o triunfo da burocracia na sociedade russa. O partido centralizado – uma instituição completamente burguesa – tornou-se refúgio da contrarrevolução em sua forma mais sinistra. Essa foi uma contrarrevolução coberta que se vestia com a bandeira vermelha e a terminologia de Marx. Por último, o que os bolcheviques suprimiram em 1921 não foi uma “ideologia” ou uma “conspiração do Exército Vermelho”, mas uma luta fundamental do povo russo para se libertar de suas algemas e “tomar o controle de seu próprio destino”.[27] Para a Rússia, isso significava o pesadelo da ditadura stalinista; para a geração dos anos trinta, significava o horror do fascismo e a traição dos partidos comunistas na Europa e nos Estados Unidos.

[editar]As duas tradições

Seria uma ingenuidade incrível supor que o leninismo foi produto de um único homem. A doença encontra-se muito mais profundamente, não nas limitações da teoria marxista, mas nas limitações da era social que produziu o marxismo. Se isso não for claramente entendido, permaneceremos tão cegos à dialética de eventos hoje em dia como Marx, Engels, Lênin e Trótski eram em suas épocas. Para nós, essa cegueira será repreensível com maior razão, porque atrás de nós se situa uma riqueza de experiência que faltava a esses homens no desenvolvimento de suas teorias.

Karl Marx e Friedrich Engels eram centralizadores – não somente política, mas também social e economicamente. Eles nunca negaram esse fato e seus escritos estão cheios de entusiasmados louvores à centralização política, organizacional e econômica. Como em março de 1850, em sua famosa “Mensagem da Direção Central da Liga Comunista”, eles convocam os trabalhadores a lutar não somente pela “única e indivisível república alemã, mas também lutar nela pela mais resoluta centralização de poder nas mãos da autoridade estatal”. Para que a reivindicação não seja superficialmente tomada, é repetida continuamente no mesmo parágrafo, que conclui: “Como na França de 1793, assim hoje na Alemanha a realização da centralização estrita é a tarefa do verdadeiro partido revolucionário”.

O mesmo tema reaparece continuamente em anos seguintes. Com a deflagração da Guerra franco-prussiana, por exemplo, Marx escreve a Engels: “A França precisa de uma surra. Se os prussianos vencerem, a centralização de poder estatal será útil para a centralização da classe trabalhadora alemã”.

Marx e Engels, contudo, não eram centralizadores por acreditar nas virtudes da centralização por si só. Pelo contrário: o marxismo e o anarquismo sempre concordaram com uma sociedade libertada e comunista vinculada a uma ampla descentralização, à dissolução da burocracia, à abolição do Estado, e à dispersão das cidades grandes. “A abolição da antítese entre cidade e campo simplesmente não é possível”, escreve Engels em Anti-Düring. “Ela se tornou uma necessidade direta… o presente envenenamento do ar, água e solo somente pode ter um fim com a fusão da cidade e do campo…”. Para Engels, isso envolve uma “distribuição uniforme da população pelo país inteiro” – em suma, a descentralização física das cidades.

As origens da centralização marxista estão entre os problemas que surgem da criação do Estado nacional. Até meados da segunda metade do século XIX, Alemanha e Itália estavam divididas em ducados, principados e reinos independentes. A consolidação dessas unidades geográficas em nações unificadas, acreditavam Marx e Engels, era uma condição sine qua non[28] para o desenvolvimento da indústria moderna e do capitalismo. Seu elogio à centralização não foi produzido por alguma mística centralizadora, mas pelos eventos do período em que viveram – o desenvolvimento de tecnologia, comércio, uma classe trabalhadora unificada, e o Estado nacional. Sua preocupação com esse assunto, em suma, é com a emergência do capitalismo, com as tarefas da revolução burguesa em uma era de inevitável escassez material. Por outro lado, a abordagem de Marx para a “revolução proletária”é notadamente diferente. Ele exaltava entusiasticamente a Comuna de Paris como um “modelo para todos os centros industrias franceses”. “Esse regime”, escreve, “uma vez estabelecido em Paris e nos centros secundários, o velho governo centralizado teria de, também nas províncias, dar lugar ao autogoverno dos produtores.” A unidade da nação, verdade, não desapareceria, e um governo central existiria durante a transição para o comunismo, mas suas funções seriam limitadas.

Nosso objetivo não é alternar entre citações de Marx e Engels, mas enfatizar como princípios chave do marxismo – que são aceitos até hoje tão passivamente – eram na realidade o produto de uma era que foi há muito ultrapassada pelo desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Em sua época, Marx não estava preocupado somente com os problemas de uma “revolução proletária”, mas também com os problemas da revolução burguesa em Alemanha, Espanha, Itália e Europa Ocidental. Ele tratou de problemas de transição do capitalismo para o socialismo em países que não tinham avançado muito além da tecnologia do carvão e aço da Revolução Industrial, e com os problemas de transição do feudalismo para o capitalismo em países que tinham escassamente avançado além de artesanato e das corporações de ofício. Para expressar essas preocupações mais amplamente, Marx estava, acima de tudo, mais ocupado com as pré-condições de liberdade (desenvolvimento tecnológico, unificação nacional, abundância material) do que com as condições de liberdade (descentralização, a formação de comunidades, a escala humana, democracia direta). Suas teorias estavam ainda baseadas no campo da sobrevivência, não no campo da vida.

Uma vez que isso seja compreendido, é possível colocar o legado teórico de Marx em uma perspectiva significativa – separar suas ricas contribuições de suas algemas historicamente limitadas, até mesmo paralisantes, de sua época. A dialética marxista, as muitas compreensões seminais providas pelo materialismo histórico, a ótima crítica da relação mercantil, muitos elementos das teorias econômicas, e, acima de tudo, a noção de que a liberdade tem pré-condições materiais – essas são contribuições permanentes ao pensamento revolucionário.

Contudo, a ênfase Marx no proletariado industrial como o “agente” da mudança revolucionária, sua “análise de classe” ao explicar a transição de uma sociedade de classes para uma sem classes, seu conceito de “ditadura do proletariado”, sua ênfase na centralização, sua teoria de desenvolvimento capitalista (que tende a misturar estado capitalista com socialismo), sua defesa de ação política através de partidos eleitorais – esses e muitos conceitos relacionados são falsos no contexto de nosso tempo e iludem, como devemos ver, mesmo em nossos próprios dias. Eles emergem das limitações de sua visão – mais propriamente, das limitações de seu tempo. Eles fazem sentido somente se se lembrar que Marx considerava o capitalismo como historicamente progressista, como um estágio indispensável para o desenvolvimento do socialismo, e têm aplicação prática somente para um tempo em que a Alemanha em particular era confrontada por objetivos burgueses-democráticos e pela unificação nacional. (Não estamos tentando dizer que Marx estava correto em manter essa abordagem, somente que essa abordagem faz sentido quando vista em seu próprio tempo e local).

Assim como a Revolução Russa incluía um movimento subterrâneo das “massas” que conflitavam com o bolchevismo, existe um movimento subterrâneo na história que conflita como todos os sistemas de autoridade. Esse movimento chegou a nosso tempo sob o nome de “anarquismo”, apesar de nunca ter sido abarcado por uma única ideologia ou conjunto de textos sagrados. O anarquismo é um movimento libidinoso da humanidade contra a coerção sob qualquer forma, remontando aos tempos da própria emergência da sociedade proprietária, de domínio de classe e do Estado. Desse período em diante, os oprimidos resistiram a todas as formas de procurar aprisionar o desenvolvimento de ordem social espontânea. O anarquismo veio a primeiro plano da arena social em períodos de maior transição de uma era histórica para outra. O declínio do mundo antigo e feudal testemunhou a insurreição de movimentos de massa, em alguns casos de caráter imoderadamente dionisíaco, que exigiram o fim de todos os sistemas de autoridade, privilégio e coerção.

Os movimentos anárquicos do passado fracassaram em grande medida porque a escassez material, em função da tecnologia rudimentar, contaminou uma harmonização orgânica de interesses humanos. Qualquer sociedade que pôde prometer materialmente um pouco mais que a igualdade na pobreza invariavelmente provocou que tendências profundamente assentadas reconstituíssem um novo sistema de privilégios. Na ausência de uma tecnologia que pudesse reduzir consideravelmente o dia de trabalho, a necessidade de trabalhar contaminou instituições sociais baseadas na autogestão. Os girondinos da Revolução Francesa notaram astutamente que poderiam usar o dia de trabalho contra a Paris revolucionária. Para tentar excluir os elementos radicais das seções, eles tentaram decretar uma lei que terminaria todas as assembleias antes das dez horas da noite, o horário em que os trabalhadores parisienses deixavam seus empregos. De fato, não foram somente as técnicas manipuladoras e a traição das organizações de “vanguarda” que deram cabo às fases anárquicas das revoluções do passado, foram também os limites materiais das eras passadas. As “massas” sempre foram compelidas a retornar a uma vida de trabalho pesado e foram raramente livres para estabelecer órgãos de autogestão que pudessem durar além da revolução.

Contudo, anarquistas como Bakunin e Kropotkin não estavam errados de modo algum ao criticar Marx por sua ênfase na centralização e suas noções elitistas de organização. A centralização era absolutamente necessária para avanços tecnológicos no passado? O Estado-nação era indispensável para a expansão do comércio? O movimento operário se beneficiou da emergência de empreendimentos econômicos altamente centralizados e do Estado “indivisível”? Tendemos a aceitar essas doutrinas do marxismo muito passivamente, em grande parte porque o capitalismo se desenvolveu em uma arena política centralizada. Os anarquistas do século passado avisaram que a abordagem centralizadora de Marx, até o ponto em que afetou os eventos da época, fortaleceria tanto a burguesia e o aparato estatal que a destruição do capitalismo se tornaria extremamente difícil. O partido revolucionário, reproduzindo essas características centralizadoras e hierárquicas, reproduziria a hierarquia e o centralização na sociedade pós-revolucionária.

Bakunin, Kropotkin e Malatesta não eram tão ingênuos para acreditar que o anarquismo pudesse ser estabelecido da noite para o dia. Ao atribuir essa opinião a Bakunin, Marx e Engels distorceram propositadamente as visões dos anarquistas russos. Os anarquistas do século passado também não acreditavam que a abolição do Estado envolveria “baixar armas” imediatamente após a revolução, para usar a escolha obscurantista de termos de Marx, repetida continuamente por Lênin em Estado e Revolução. Na verdade, muito do que se passa por “marxismo” em Estado e Revolução é puro anarquismo – por exemplo, a substituição de milícias revolucionárias por grupos armados profissionais e a substituição de órgãos de autogestão por grupos parlamentares. O que é a autenticamente marxista no panfleto de Lênin é a reivindicação de “centralização estrita”, a aceitação de uma “nova burocracia”, e a identificação dos sovietes com um Estado.

Os anarquistas do século passado estavam profundamente preocupados com a questão de realizar a industrialização sem esmagar o espírito revolucionário das “massas” ou criar novos obstáculos à emancipação. Eles temiam que a centralização reforçasse a capacidade de resistência da burguesia à revolução e instilasse nos trabalhadores um senso de obediência. Eles tentaram resgatar todas as formas comunais pré-capitalistas (como a mir russa e o pueblo espanhol) que pudessem prover uma rampa para uma sociedade livre, não somente em um sentido estrutural, mas também em espiritual. Assim, eles enfatizaram a necessidade da descentralização mesmo sob o capitalismo. Em contraste aos partidos marxistas, suas organizações davam atenção considerável ao que eles chamavam de “educação integral” – o desenvolvimento de um homem inteiro – para neutralizar a influência degradante e banalizadora da sociedade burguesa. Os anarquistas tentaram viver sob valores do futuro na medida em que isso era possível sob o capitalismo. Eles acreditavam na ação direta para promover a iniciativa das “massas”, para preservar o espírito de revolta, para encorajar a espontaneidade. Eles tentaram desenvolver organizações baseadas em ajuda mútua e fraternidade, nas quais o controle seria exercido de baixo para cima, não de cima para baixo.

Temos de parar aqui para examinar a natureza de formas organizacionais anarquistas em detalhes, somente porque o assunto foi obscurecido por uma espantosa quantidade de besteiras. Anarquistas, ou, ao menos, anarcocomunistas, aceitam a necessidade de organização.[29] É tão absurdo ter de repetir essa questão quanto discutir sobre se Marx aceitava a necessidade da revolução social.

A verdadeira questão em debate aqui não é organização versus não organização, mas mais que tipo de organização os anarcocomunistas tentam estabelecer. O que os diferentes tipos de organizações anarcocomunistas têm em comum são os desenvolvimentos orgânicos a partir de baixo, não são corpos planejados a partir de cima. Eles são movimentos sociais, combinando um estilo de vida revolucionário criativo com uma teoria revolucionária criativa, não partidos políticos cujo modo de vida é indistinguível do ambiente burguês ao redor e cuja ideologia é reduzida a rígidos “programas experimentados e testados”. Tanto quanto é humanamente possível, eles tentam refletir a sociedade libertada que procuram realizar, não reproduzir escravamente o sistema prevalente de hierarquia, classe e autoridade. Eles são construídos ao redor de íntimos grupos de irmãos e irmãs – grupos de afinidade – cuja capacidade de agir em comum é baseada em iniciativa, em convicções livremente atingidas, e em profundo envolvimento pessoal, não ao redor de um aparato burocrático engrossado por uma militância submissa e manipulada a partir de cima por uma porção de líderes oniscientes.

Os anarcocomunistas não negam a necessidade de coordenação entre grupos, de disciplina, de planejamento meticuloso e de unidade na ação. Mas eles acreditam que coordenação, disciplina, planejamento e unidade na ação devem ser alcançados voluntariamente, por meio de uma autodisciplina fomentada por convicção e entendimento, não por coerção e obediência absoluta e inquestionável de ordens superiores. Eles procuram alcançar a efetividade imputada à centralização por meio de voluntariedade e compreensão, não pelo estabelecimento de uma estrutura hierárquica e centralizada. Dependendo das necessidades ou circunstâncias, os grupos de afinidade podem alcançar essa efetividade através de assembleias, comitês de ação e conferências locais, regionais ou nacionais. Ele eles se opõem vigorosamente ao estabelecimento de uma estrutura organizacional que se torne um fim em si, de comitês que se demoram depois que suas tarefas práticas foram completadas, de uma “liderança” que reduz o “revolucionário” a um robô estúpido.

Essas conclusões não são resultado de impulsos levianos “individualistas”; pelo contrário, elas emergem de um estudo minucioso das revoluções passadas, do impacto que partidos centralizados tiveram no processo revolucionário, e da natureza da mudança social em uma era de potencial abundância material. Anarcocomunistas procuram preservar e estender a fase anárquica que abre todas as grandes revoluções sociais. Ainda mais que os marxistas, reconhecem que as revoluções são produzidas por profundos processos históricos. Nenhum comitê central “faz” uma revolução social; no melhor dos casos, ele pode promover um golpe de estado, substituindo uma hierarquia por outra – ou pior, barrar um processo revolucionário se exercer alguma influência muito disseminada. Um comitê central é um órgão para adquirir poder, criar poder, para pegar para si o que as “massas” realizam por seus próprios esforços revolucionários. É necessário ser cego para tudo que aconteceu nos dois séculos passados para não se reconhecer esses fatos essenciais.

No passado, os marxistas podiam fazer uma inteligível (ainda que inválida) reivindicação de um partido centralizado, porque a fase anárquica da revolução era anulada pela escassez material. Economicamente, as “massas” sempre foram compelidas a retornar a uma vida diária de trabalho duro. A revolução fechada às dez da noite, exatamente ao lado das intenções reacionárias dos girondinos de 1793, foi barrada pelo baixo nível da tecnologia. Hoje, mesmo essa justificativa foi excluída pelo desenvolvimento de uma tecnologia pós-escassez, notadamente nos EUA e Europa Ocidental. Chegou um ponto em que as “massas” podem começar, quase da noite para o dia, a expandir drasticamente o “campo da liberdade”, no sentido marxista – para adquirir o tempo livre necessário para atingir o mais alto nível de autogestão.

O que os eventos de maio e junho na França demonstraram não foi a necessidade de um partido tipo bolchevique, mas a necessidade de maior consciência entre as “massas”. Paris demonstrou que uma organização é necessária para propagar ideias sistematicamente – e não ideias sozinhas, mas ideias que promovam o conceito de autogestão. O que faltou às “massas” francesas não foi um comitê central para organizar ou comandá-las, mas a convicção de que elas poderiam ter operado as fábricas, ao invés de ocupá-las somente. Vale a pena ressaltar que nem um único partido tipo bolchevique reivindicou a autogestão. A reivindicação foi feita somente pelos anarquistas e situacionistas.

Há uma necessidade por uma organização revolucionária – mas sua função deve ser sempre mantida claramente em mente. Sua primeira tarefa é a propaganda, para “explicar pacientemente”, como colocou Lênin. Em uma situação revolucionária, a organização revolucionária apresenta as mais avançadas reivindicações: ela está preparada para toda mudança de eventos para formular – na forma mais concreta – a tarefa imediata que deve ser desempenhada para o processo revolucionário avançar. Ela fornece os elementos mais nítidos em ação e nos órgãos de tomada de decisão da revolução.

De que modo, então, grupos anarcocomunistas diferem do tipo bolchevique de partido? Certamente não nas em questões como a necessidade de organização, planejamento, coordenação, propaganda em todas as suas formas ou na necessidade de um programa social. Fundamentalmente, eles diferem do tipo bolchevique de partido em sua crença de que revolucionários genuínos devem funcionar dentro de estruturas de formas criadas pela revolução, não pelo partido. O que isso significa é que seu comprometimento se dá aos órgãos revolucionários de autogestão, não à “organização” revolucionária; às formas sociais, não às formas políticas. Anarcocomunistas buscam persuadir os comitês de fábricas, assembleias ou sovietes para fazerem-se órgãos genuínos de autogestão popular, não dominá-los, manipulá-los ou prender todos a um partido político onisciente. Anarcocomunistas não buscam criar uma estrutura estatal sobre esses órgãos revolucionários populares, mas, pelo contrário, dissolver todas as formas organizacionais desenvolvidas no período pré-revolucionário (incluindo as suas próprias) para dar lugar a esses órgãos genuinamente revolucionários.

Essas diferenças são decisivas. A despeito de sua retórica e slogans, os bolcheviques russos nunca acreditaram nos sovietes; eles os consideravam instrumentos do Partido Bolchevique, uma atitude que os trotskistas franceses lealmente reproduziram em suas relações com a assembleia de estudantes da Sorbonne, os maoístas franceses com os sindicatos franceses, e os grupos da Velha Esquerda com o SDS. Por volta de 1921, os sovietes estavam virtualmente mortos, e todas as decisões eram tomadas pelo Comitê Central Bolchevique e do Departamento Político. Os anarcocomunistas não buscam somente evitar que os partidos marxistas repitam isso; eles também desejam evitar que sua própria organização tenha um papel similar. Do mesmo modo, eles tentam evitar que burocracia, hierarquia e elites dominem seu meio. Não menos importante, eles tentam refazer-se; extirpar de suas personalidades aqueles traços autoritários e propensões elitistas que são assimiladas na sociedade hierárquica quase desde o nascimento. O interesse do movimento anarquista com o estilo de vida não é meramente uma preocupação com sua própria integridade, mas com a integridade da própria revolução.[30]

No meio de todas essas confusas correntes ideológicas de nosso tempo, uma questão sempre permanece em primeiro plano: para que diabos estamos tentando fazer uma revolução? Estamos tentando fazer uma revolução para criar novamente hierarquia, mantendo um futuro sombrio de liberdade futura diante dos olhos da humanidade? É para promover mais avanços tecnológicos, criar uma abundância ainda maior de bens que a hoje existente? É para levar o PL ao poder? Ou o Partido Comunista? Ou o Partido Socialista dos Trabalhadores? É para emancipar abstrações como “O Proletariado”, “O Povo”, “História”, “Sociedade”?

Ou é para finalmente dissolver a hierarquia, domínio de classe e coerção – para fazer possível que cada indivíduo ganhe controle de sua vida cotidiana? É para fazer cada momento tão maravilhoso quanto possa ser e a extensão de vida de cada indivíduo uma experiência totalmente consumada? Se o verdadeiro objetivo da revolução é levar o homem neandertal do PL ao poder, não vale a pena fazê-la. Precisamos discutir bastante as inócuas questões de se o desenvolvimento individual pode ser separado do desenvolvimento social e comunal; obviamente os dois se dão juntos. A base para um ser humano completo é uma sociedade bem acabada; a base para um ser humano livre é uma sociedade livre.

Com essas questões de lado, ainda encaramos a questão que Marx levantou em 1850: quando começaremos a pegar nossa poesia do futuro, ao invés de do passado? Deve ser permitido que o morto enterre o morto. O marxismo está morto porque é baseado em uma era de escassez material, limitada em suas possibilidades pela carência material. A mais importante mensagem do marxismo é que a liberdade tem pré-condições materiais – devemos sobreviver para viver. Com o desenvolvimento de uma tecnologia que não poderia ter sido concebida nem pela mais mirabolante ficção científica nos dias Marx, a possibilidade de uma sociedade pós-escassez agora se encontra à nossa frente. Todas as instituições da sociedade proprietária – domínio de classe, hierarquia, a família patriarcal, burocracia, a cidade, o Estado – se exauriram. Hoje, a descentralização não é somente desejável como meio de restaurar a escala humana, é necessária para criar novamente uma ecologia viável, para proteger a vida neste planeta de poluentes destrutivos e erosão do solo, para preservar uma atmosfera respirável e o equilíbrio da natureza. A promoção de espontaneidade é necessária se a revolução social deve colocar cada indivíduo no controle de sua vida cotidiana.

As antigas formas de luta não desaparecem totalmente com a decomposição da sociedade de classes, mas estão sendo ultrapassadas pela discussão de uma sociedade sem classes. Não pode haver nenhuma revolução social sem atingir os trabalhadores, por isso eles têm de ter nossa solidariedade ativa em toda luta que empreendem contra a exploração. Lutamos contra crimes sociais onde quer que ocorram – e exploração industrial é um crime social completo. Mas assim são o racismo, a negação do direito de autodeterminação, o imperialismo e a pobreza – e assim são a poluição, a urbanização sem condições, a perniciosa socialização dos jovens e a repressão sexual. No que diz respeito ao problema de ganhar a classe trabalhadora para a revolução, devemos ter em mente que uma pré-condição para a existência da burguesia é o desenvolvimento do proletariado. O capitalismo como um sistema social pressupõe a existência de ambas as classes e é perpetuado pelo desenvolvimento de ambas as classes. Começamos a minar as premissas de domínio de classe na medida em que libertamos as classes não burguesas, ao menos institucionalmente, psicologicamente e culturalmente.

Pela primeira vez na história, a fase anárquica que abriu todas as grandes revoluções do passado pode ser preservada como uma condição permanente pelo avanço da tecnologia de nosso tempo. As instituições anárquicas dessa fase – as assembleias, os comitês de fábrica – podem ser estabilizados como os elementos de uma sociedade libertada, como os elementos de um novo sistema de autogestão. Construiremos um movimento que possa defendê-las? Podemos criar uma organização de grupos de afinidades que seja capaz de dissolver-se dentro dessas instituições revolucionárias? Ou construiremos um partido hierárquico, centralizado e burocrático que tentará dominá-las, suplantá-las e, ao final, destruí-las?

Escuta, marxista: a organização que tentamos construir é o tipo de sociedade que nossa revolução criará. Ou largamos o passado – em nós mesmos, assim como em nossos grupos – ou simplesmente não haverá futuro para conquistar.


Nova Iorque

Maio de 1969

Notas

  1.  Partido estadunidense que pode ser traduzido por Partido Progressista Trabalhador Maoísta, cuja sigla é PLP (muita usada por Bookchin e que será mantida na forma original nesta tradução). Fundado em 1961 por uma dissidência do Partido Comunista dos EUA, existe até hoje (N. do T.).

  2.  Students for a Democratic Society, Estudantes por uma Sociedade Democrática, movimento estudantil estadunidense de esquerda (a chamada New Left) existente nos anos 1960. (N. do T.)

  3.  Essas linhas foram escritas quando o Partido Progressista Trabalhador (PLP) exercia uma grande influência na SDS. Apesar de o PLP ter perdido agora a maior parte de sua influência no movimento estudantil, a organização ainda é um bom exemplo da mentalidade e dos valores prevalentes na Velha Esquerda. A caracterização acima é igualmente válida para a maior parte dos grupos marxista-leninistas, assim essa passagem e outras referências ao PLP não foram substancialmente alteradas.

  4.  Dodge Revolutionary Union Movement, parte da Liga dos Trabalhadores Negros Revolucionários de Detroit.

  5.  O marxismo é acima de tudo uma teoria de prática, ou, para colocar esta relação em sua perspectiva correta, uma prática de teoria. Esse é o verdadeiro significado das transformações da dialética por Marx, que tomou isso da dimensão subjetiva (para a qual os Jovens Hegelianos ainda tentaram confinar a visão de Hegel) para o objetivo, de uma crítica filosófica para ação social. Se a teoria e a prática se separarem, o marxismo não será morto, ele cometerá suicídio. Essa é a mais admirável e digna característica. As tentativas dos cretinos que seguem o caminho de Marx de manter vivo o sistema com retalhos e emendas, exegese, e “conhecimento” meia-boca à la Maurice Dobb e George Novack são degradantes insultos ao nome de Marx e uma repulsiva poluição de tudo que ele sustentava.

  6.  Na verdade, os marxistas façam pouco sobre a “crise [econômica] crônica do capitalismo” hoje em dia – apesar do fato de esse conceito compor o foco das teorias econômicas de Marx.

  7.  Por razões ecológicas, não aceitamos a noção da “dominação da natureza pelo homem” no sentido simplista que foi transmitido por Marx um século atrás. Para uma discussão desse problema, ver Ecologia e Pensamento Revolucionário.

  8.  É irônico que os marxistas que falam sobre o “poder econômico” do proletariado estejam, na verdade, ecoando a opinião dos anarcossindicalistas, uma opinião a que Marx se opôs asperamente. Marx não estava preocupado com o “poder econômico” do proletariado, mas com seu poder político; particularmente com o fato de que ele se tornou a maioria da população. Ele estava convencido de que os trabalhadores industriais seriam guiados à revolução primeiramente pela destituição material que sucederia a tendência de acumulação capitalista; de modo que, organizado pelo sistema da fábrica e disciplinado por uma rotina industrial, eles seriam capazes de constituir sindicatos e, acima de tudo, partidos políticos, que em alguns países seriam obrigados a usar métodos insurrecionários e, em outros (Inglaterra, Estados Unidos e, anos depois, acrescentou Engels, França) poderiam chegar ao poder através de eleições e legislar para colocar em prática o socialismo. Distintamente, o Progressive Labor Party esteve com os leitores do Challenge [jornal bi-semanal do PLP (N. do T.)], deixando observações importantes não traduzidas, ou distorcendo grosseiramente a intenção de Marx.

  9.  Este é um bom local para descartar a noção de que qualquer um é um “proletário” que não tem nada a vender, exceto seu poder de trabalho. É verdade que Marx definiu o proletariado nesses termos, mas ele também elaborou uma dialética histórica sobre o desenvolvimento do proletariado. O proletariado se desenvolve a partir de uma classe explorada e sem propriedades, alcançando sua mais avançada forma no proletariado industrial, que corresponde à mais avançada forma de capital. Nos anos seguintes de sua vida, Marx veio a desprezar os trabalhadores parisienses, que estavam comprometidos principalmente na produção de bens de luxo, citando “nossos trabalhadores alemães” – o tipo mais robô da Europa – como o proletariado “modelo” do mundo.

  10.  A tentativa de descrever a teoria da imiseração em termos internacionais, ao invés de nacionais (como o fez Marx), é puro subterfúgio. Em primeiro lugar, esse truque teórico simplesmente tenta colocar à parte a questão de por que a imiseração não ocorreu dentro dos baluartes do capitalismo, as únicas áreas que formam um ponto de partida tecnologicamente adequado para uma sociedade sem classes. Se prendermos nossas esperanças no mundo colonial como “o proletariado”, essa posição esconde um perigo muito real: genocídio. Os Estados Unidos e sua recente aliada, a Rússia, têm todos os meios técnicos para colocar o mundo subdesenvolvido em submissão por seu poder bélico. Uma ameaça espreita no horizonte histórico – o desenvolvimento dos Estados Unidos como um império verdadeiramente fascista do tipo nazista. É besteira absoluta dizer que este país é um “tigre de papel” [expressão usada por Mao Tse-Tung se referindo aos EUA, em 1956 (N. do T.)]. Ele é um tigre termomolecular e a classe dominante americana, carecendo de qualquer limitação moral, é capaz até mesmo de ser mais cruel que a alemã.

  11.  Lênin o percebeu e descreveu “socialismo” como “nada mais que um monopólio do estado capitalista feito para beneficiar todo o povo”. Essa é uma afirmação extraordinária, se se estudam suas implicações, e uma grande contradição.

  12.  Sobre essa questão, a Velha Esquerda projeta sua própria imagem neandertal no trabalhador americano. Na verdade, essa imagem se aproxima mais do personagem do burocrata sindical ou do comissário stalinista.

  13.  No original, “workerness”, entre aspas. Deve ser entendido como um neologismo que se refere ao trabalho. (N. do T.)

  14.  O trabalhador, nesse sentido, começa a se aproximar dos tipos humanos socialmente transicionais que proveram a história com seus elementos mais revolucionários. Geralmente, o “proletariado” foi mais revolucionário em períodos transicionais, quando ele era menos “proletarizado” psiquicamente pelo sistema industrial. Os grandes focos das resoluções clássicas dos trabalhadores foram Petrogrado e Barcelona – lá os trabalhadores foram diretamente desarraigados de uma prática camponesa – e Paris – lá eles ainda se baseavam em ofícios, ou vinham diretamente de uma prática de ofícios. Esses trabalhadores tinham a maior dificuldade em se aclimatar à dominação industrial e se tornaram uma fonte contínua de inquietação social e revolucionária. Por outro lado, a classe trabalhadora hereditariamente estável tendia a ser surpreendentemente não revolucionária. Mesmo no caso de trabalhadores alemães que eram citados por Marx e Engels como modelos para o proletariado europeu, a maioria não apoiava os espartaquistas de 1919. Eles retornaram como ampla maioria de social-democratas no Congresso de Conselhos de Trabalhadores, e no Reichstag anos depois, e se reuniam consistentemente sob o Partido Social Democrata em 1933.

  15.  Escolas que ensinam certas características para ter certos empregos. Semelhante a um curso técnico. (N. do T.)

  16.  Esse estilo de vida revolucionário pode se desenvolver nas fábricas assim como nas ruas, em escolas assim como em crash pads [tipo de habitação coletiva parecida com okupas, e squats (N. do T.)], nos subúrbios assim como no leste da área da baía de San Francisco. Sua essência é a rebeldia, e uma “propaganda pelo ato” pessoal que corrói todas as tradições, instituições e lemas de dominação. À medida que a sociedade começa a se aproximar do princípio do período revolucionário, as fábricas, escolas e bairros tornam-se a verdadeira arena da “brincadeira” revolucionária – uma “brincadeira” que tem um núcleo muito sério. Greves tornam-se uma condição crônica e são convocadas por seu próprio interesse de quebrar a aparência da rotina, para desafiar a sociedade quase de hora em hora, para quebrar o ânimo da normalidade burguesa. Esse novo ânimo dos trabalhadores, estudantes e pessoas dos bairros é um precursor vital ao verdadeiro momento da transformação revolucionária. Sua mais consciente expressão é a reivindicação de “autogestão”; o trabalhador recusa-se a ser um ser “gestionado”, um ser de classe. Esse processo foi mais evidente na Espanha, às vésperas da revolução de 1936, quando trabalhadores em quase todo município e cidade convocaram greves “por prazer” – para expressar sua independência, seu senso de despertar, sua quebra com a ordem social e com as condições de vida burguesas. Foi também uma característica essencial da greve geral de 1968 na França.

  17.  A característica mais impressionante das revoluções do passado é que […]. Um fato que Trótski nunca compreendeu. Ele nunca investigou satisfatoriamente as consequências de seu conceito próprio de “desenvolvimento combinado” às suas conclusões lógicas. Ele viu (um pouco corretamente) que a Rússia czarista, o último país no desenvolvimento burguês europeu, necessariamente obteve as mais avançadas formas industriais e de classe ao invés de começar o desenvolvimento burguês desde o início. Ele negligenciou considerar aquela Rússia, dilacerada por grandes sublevações internas, pudesse correr à frente do desenvolvimento capitalista de algum lugar da Europa. Hipnotizado pela fórmula “propriedade nacionalizada é igual a socialismo”, ele falhou em reconhecer que o próprio capitalismo monopolista tende a se juntar ao Estado por sua própria dialética interna. Os bolcheviques, tendo acabado com as formas tradicionais de organização burguesas (que ainda agem como controle no desenvolvimento do Estado capitalista na Europa e na América), inadvertidamente prepararam o terreno para o desenvolvimento “puro” de um estado capitalista no qual o Estado finalmente torna-se a classe dominante. Carecendo de apoio de uma Europa tecnologicamente avançada, a Revolução Russa tornou-se uma contrarrevolução interna; a Rússia Soviética tornou-se uma forma de estado capitalista que não “beneficia todo o povo”. A analogia de Lênin entre “socialismo” e capitalismo de estado torna-se uma aterrorizante realidade com Stálin. A despeito de seu núcleo humanista, o marxismo falhou em compreender o quanto seu conceito de “socialismo” se aproxima de um estágio avançado do próprio capitalismo – o retorno de formas mercantis em um nível industrial mais alto. O fracasso de entendimento desse desenvolvimento levou a uma confusão teórica devastadora no movimento revolucionário contemporâneo, como testemunha de rachas entre os trotskistas a respeito dessa questão.

  18.  O Movimento 22 de Março funcionou como um agente catalisador nos eventos, não como liderança. Ele não comandou; ele instigou, deixando um livre desenrolar para os acontecimentos. Esse livre desenrolar, que permitiu aos estudantes agirem em seu próprio momento, foi indispensável para a dialética da insurreição, pois, sem ele, não haveria barricadas em 10 de maio, que, por sua vez, impulsionaram a greve geral dos operários.

  19.  Ver “The Forms of Freedom” (“As Formas de Liberdade”).

  20.  Como uma arrogância sublime, que é tributável parcialmente à ignorância, alguns grupos marxistas queriam nomear de “sovietes” praticamente todas as formas de autogestão acima. A tentativa de trazer todas essas diferentes formas sob um único nome não é o único engano intencionalmente obscurantista. Os verdadeiros sovietes eram as formas menos democráticas da revolução e os bolcheviques os usavam astutamente para transferir poder a seu próprio partido. Os sovietes não eram baseados em democracia cara a cara, como as seções parisienses ou as assembleias estudantis de 1968. Nem eram baseados em autogestão econômica, como os comitês de fábricas espanhóis anarquistas. Os sovietes formavam, na verdade, um parlamento de trabalhadores, um órgão hierárquico que retirava sua representação de fábricas e, depois, de unidades militares e aldeias camponesas.

  21.  Tratado de paz entre o governo bolchevique e os países da Tríplice Aliança, marcando a saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial. (N. do T.)

  22.  V. I. Lenin, “The Immediate Tasks of the Soviet Government,” em Obras Selecionadas, vol. 7 (International Publishers; New York, 1943), p. 342. Nesse ríspido artigo, publicado em abril de 1918, Lênin abandonava completamente a perspectiva libertária a que tinha avançado no ano anterior em “Estado e Revolução”. Os temas principais do artigo são a necessidade de “disciplina”, de controle autoritário sobre as fábricas, e da instituição do sistema Taylor [Taylorismo, sistema para aumentar a produção industrial (e os lucros, originalmente) (N. do T.)] (um sistema que Lênin denunciara antes, pois escravizaria o homem à máquina). O artigo foi escrito durante um período relativamente pacífico do governo bolchevique, cerca de dois meses depois da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, e um mês antes da revolta da Legião Tcheca no Ural – a revolta que começou a guerra civil em larga escala e abriu o período de intervenção direta dos Aliados na Rússia. Por fim, o artigo foi escrito perto de um ano antes da derrota da revolução alemã. Seria difícil ter em conta as “Tarefas Imediatas” somente em termos da guerra civil russa e do fracasso da revolução européia.

  23.  ”Mir”, em russo, pode significar “sociedade”. Eram comunidades agrárias camponesas. (N. do T.)

  24.  Exército Insurrecionário Revolucionário da Ucrânia, de tendência anarcocomunista, liderado por Nestor Makhno.(N. do T.)

  25.  Corrente política também conhecida como dos Trudoviks. (N. do T.)

  26.  Braço militar do governo bolchevique, responsável, entre outras coisas, pela perseguição aos adversários políticos, torturas e repressão em geral.(N. do T.)

  27.  Ao interpretar esse movimento fundamental dos operários e camponeses russos como uma série de “conspirações do Exército Branco”, “atos de resistência kulak [fazendeiros relativamente ricos (N. do T.)]” e “conspirações do capital internacional”, os bolcheviques atingiram uma baixeza teórica incrível e não enganaram ninguém, exceto a si mesmos. Um desgaste espiritual desenvolveu-se dentro do partido, o que abriu caminho para os políticos da polícia secreta, para assassinato político, e, finalmente, para os julgamentos de Moscou e a aniquilação do antigo revolucionário profissional bolchevique. Vê-se o retorno dessa mentalidade odiosa em artigos do PL [Progressive Labor, partido marxista-leninista estadunidense (N. do T.)] em artigos como “Marcuse: Fujão ou Tira?” – cujo tema é estabelecer Marcuse como agente da CIA (Ver o Progressive Labor de fevereiro de 1969). O artigo tem uma legenda sob uma fotografia de parisienses protestando que diz: “Marcuse foi a Paris muito tarde para parar a ação de maio”. Oponentes do PLP são invariavelmente descritos por esse jornaleco como “anticomunistas” ou “antitrabalhadores”. Se a esquerda americana não repudiar essa abordagem policial e o assassinato político, ela vai pagar caro nos próximos anos.

  28.  Termo em latim que significa “indispensável”, “fundamental”. (N. do T.)

  29.  O termo “anarquista” é uma palavra genérica, como o termo “socialista”, e há provavelmente tantos anarquistas diferentes quanto socialistas. Em ambos os casos, o espectro varia de indivíduos cujas visões derivam de uma extensão do liberalismo (os “anarquistas individualistas”, os social-democratas) a comunistas revolucionários (os anarcocomunistas, os marxistas, leninistas e trotskistas revolucionários).

  30.  É esse objetivo, podemos acrescentar, que motiva o dadaísmo anarquista, a loucura anarquista que produz as rugas de preocupação nas tolas faces dos tipos do PLP. A loucura anarquista tenta quebrar os valores internos inerentes à sociedade hierárquica, explodir a rigidez instilada pelo processo de socialização burguesa. Em suma, é uma tentativa de romper o superego que exerce um efeito tão paralisante sobre a espontaneidade, imaginação e sensibilidade e restaurar um senso de desejo, possibilidade e do maravilhoso – revolução como um festival libertador e jubiloso.


De “Anarquismo Pós-Escassez”, 1971.

Traduzido por oceano