Socialismo, Igualdade de Gênero e Ecologia Social nas Montanhas do Curdistão

FONTE: “PORTAL ANARQUISTA – EX-COLECTIVO LIBERTÁRIO DE ÉVORA
7/01/15

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KCK (Koma Civakên Kurdistán, União de Comunidades do Curdistão) é o nome dado a esta organização social. O nome – e a preparação do seu quadro teórico – foi proposto pelo líder do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), Abdullah Öcalan, na sua cela da prisão da ilha Imrali, na Turquia; apesar disto, tanto Öcalan como o PKK reconhecem, sem qualquer dúvida, os indispensáveis e inestimáveis contributos proporcionados por Murray Bookchin.

Giran Ozcan

A KCK é uma organização “guarda-chuva”, democrática, confederal, livre de Estado, da hierarquia e da exploração, do Curdistão Livre.

No interior da organização social KCK existente nas montanhas do Curdistão o conceito de dinheiro é supérfluo. As necessidades econômicas dos habitantes são satisfeitas internamente através da gestão partilhada dos recursos. Não obstante, o dinheiro é utilizado nas relações comerciais com o exterior; internamente o dinheiro é impensável. Ninguém, nem nenhuma comunidade no interior da KCK tem necessidade de gerar reservas de dinheiro ou de recursos. As reservas são distribuídas constantemente e, deste modo, utilizadas. Relativamente às sociedades pré-hierárquicas e pré-exploração a organização KCK acrescenta a cultura do dar mais do que a do trocar.

A gestão partilhada da agricultura assegura uma produção e um autoconsumo auto-suficiente dos recursos humanos, tornando irrelevantes as reservas, o valor de troca e a mercantilização dos bens.

A tentativa de emancipação feminina por parte dos membros do PKK e dos seus dirigentes começou com a “destruição da virilidade”. Um ataque aos conceitos de falsa virilidade inoculada nos sujeitos masculinos por parte do sistema patriarcal. Esta falsa virilidade funcionava de forma a que, enquanto cada homem era oprimido e explorado pelo sistema capitalista em cada célula do seu corpo, não se coibia de explorar a sua própria mãe, irmã, filha ou esposa.

Esta estratégia deriva das interrogações teóricas de Abdullah Öcalan, que chegou a dizer que “as mulheres são as primeiras colônias” e que a primeira exploração não foi produzida sobre a classe trabalhadora, mas sim sobre a mulher. Este é o motivo pelo qual a igualdade de gênero nas montanhas do Curdistão foi obtida através de esforços paralelos de reforço dos poderes da mulher e de purificação dos homens das doenças do patriarcado e da organização hierárquica da sociedade.

As consequências práticas deste facto são: a representação equitativa das mulheres em todas as instâncias administrativas através de um sistema copresidencial e a organização ideológica, política, social e militar das mulheres numa organização autônoma: a KBJ (A União Suprema de Mulheres).

No interior do Curdistão livre, as comunidades estão organizadas de modo a não serem consideradas uma ameaça para o meio-ambiente. Sempre que possível são favorecidas as fontes de emergia renováveis; por suas vez, os recursos energéticos como a a água e o gás são consumidos de modo conjugado a fim de tornarem sustentáveis tanto a sociedade como o meio-ambiente.

O vegetarianismo foi promovido e a caça foi completamente proscrita, assim como a desflorestação (só é permitido queimar ramos e árvores secos). Tudo isto baseia-se na premissa de que o meio-ambiente não é uma fonte de negócio, mas sim de vida; a utilização do meio-ambiente como origem de lucros sucumbe face ao seu reconhecimento como fonte de vida.

Os acontecimentos em Rojava (norte da Síria) mostram que a filosofia do líder do PKK, Abdullah Öcalan, em vez de tornar mais moderadas as reivindicações, põe a fasquia cada vez mais alta. Este é o motivo pelo qual em Rojava não se está a combater apenas para proteger a actual organização social dos grupos extremistas, mas também para se protegerem dos ataques do sistema do capitalismo global como o KDP (Partido Democrático do Curdistão), do governo turco, do regime de Assad e do ensurdecedor silêncio do Ocidente!

O movimento de libertação do Curdistão, dirigido pelo PKK, já não está a exigir um Estado nacional curdo, que apenas iria reproduzir a exploração, as estruturas hierárquicas e a desigualdade de gênero; está a fazer um chamamento para um sistema alternativo de organização social no qual a questão curda seja resolvida em paralelo com as questões da exploração, da emancipação de gênero e da libertação de todos os seres humanos. Neste sentido, a sua proposta é a KCK, a União de Comunidades do Curdistão.

https://www.nodo50.org/tierraylibertad/318articulo6.html

“Não. Isto é uma verdadeira revolução” Entrevista com David Graeber sobre Rojava

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Fonte: Jornal MAPA

traduzido a partir de ZNET (entrevista originalmente publicada pelo diário Evrensel na Turkia)


O anarquista e professor de Antropologia (London School of economics), David Graeber, escreveu em Outubro passado um artigo para o Guardian, durante a primeira semana dos ataques do ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) a Kobane (norte da Síria), onde perguntava porque é que o mundo estava a ignorar os Kurdos Sírios revolucionários.

Mencionando o seu pai, que se voluntariou para lutar nas Brigadas Internacionais na república espanhola em 1937, perguntou:

“ Se existe hoje um paralelo com os assassinos falangistas, superficialmente devotos de Franco, quem será senão o ISIS? Se existe hoje um paralelo com as Mujeres Libres de Espanha, quem será senão as corajosas mulheres que defendem as barricadas de Kobane? Vai o mundo – e desta vez mais escandalosamente, a esquerda internacional- ser condescendente em deixar que a história se repita?

De acordo com Graeber, a região autónoma de Rojava declarada com um “contracto social” em 2011, como três cantões anti-estado, anti-capitalistas, foi também uma notável experiência democrática desta área.

No início de Dezembro, com um grupo de 8 pessoas, estudantes, activistas e académicos de diferentes partes da Europa e dos EUA, passou 10 dias em Cizire – um dos cantões de Rojava. Tiveram a hipótese de observar a prática da “democracia autónoma” no local e colocar várias questões.

Graeber descreve agora a sua impressão desta viagem com questões maiores e explica por que é que esta “experiência” dos curdos sírios está a ser ignorada pelo mundo inteiro.

No artigo para o Guardian perguntaste por que é que o mundo ignora a “experiencia democrática” dos curdos sírios. Depois da experiência de 10 dias, tens uma nova questão ou talvez uma resposta para isso?

Bem, se alguém tinha dúvidas se isto era uma verdadeira revolução, ou só alguma “sombra”, diria que esta visita tira todas as dúvidas. Ainda existem pessoas a dizer: “Isto é só uma frente do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), na verdade são só uma organização autoritária estalinista, que apenas finge ter adoptado uma democracia radical”. Não. Isto é mesmo a sério. É uma revolução genuína. Mas de certa maneira, é exactamente esse o problema. Os grandes poderes têm-se entregado a uma ideologia que diz que as verdadeiras revoluções já não podem acontecer. Entretanto, muita da esquerda, mesmo a radical, parece tacticamente ter adoptado a política que assume o mesmo, apesar de parecerem superficialmente revolucionários. Assumem um tipo de “anti-imperialismo” puritano que assume que os únicos jogadores importantes são os governos e capitalistas, e que esse é o único jogo que vale a pena discutir. O jogo onde se batalha, se criam vilões míticos, se agarra petróleo e outros recursos, montam-se redes de patrocínios; é o único jogo da cidade. O povo de Rojava diz: “Nós não queremos jogar esse jogo. Queremos criar um novo”. Muita gente acha isto confuso e perturbador, então escolhem acreditar que não está a acontecer, ou que essas pessoas estão iludidas, são desonestas ou ingénuas.

Desde Outubro que vemos uma crescente solidariedade vinda de vários movimentos políticos de todo o mundo. Houve uma grande e deveras entusiástica cobertura da resistência em Kobane pelos média mainstream internacionais. A posição política perante Rojava mudou no Ocidente, de certa forma. Existem sinais significativos mas estar-se-á a discutir suficientemente a autonomia democrática e as experiências nos cantões de Rojava? Que parte de “algumas pessoas corajosas a lutar contra o grande mal desta era, o ISIS” não estará a dominar esta aprovação e este fascínio? Acho que é notável que tanta gente no Ocidente olhe para estes quadros de feministas armadas, por exemplo, e nem sequer pense nas ideias por trás delas. Apenas se apercebem que assim aconteceu, por algum motivo. “Penso que é uma tradição curda”. De certo modo, claro que se trata de orientalismo, ou simplesmente racismo. Nunca lhe ocorreu que as pessoas no Curdistão possam estar também a ler Judith Butler. Na melhor das hipóteses pensam: “Oh, estão a tentar alcançar os padrões ocidentais da democracia e dos direitos das mulheres. Será que é a sério ou será só para os estrangeiros verem”. Não lhes ocorre que eles podem estar a levar as coisas bem mais longe que os “padrões ocidentais” alguma vez levaram; que acreditam genuinamente nos princípios que os Estados ocidentais apenas professam.

Mencionaste a aproximação da esquerda sobre Rojava. Como é isso recebido nas comunidades anarquistas internacionais?

A reacção da comunidade anarquista internacional tem sido decididamente diversa. De certa maneira, acho difícil de entender. Existe um grupo substancial de anarquistas – normalmente os elementos mais sectários – que insiste que o PKK ainda é um grupo nacionalista autoritário estalinista, que adoptou Bookchin, e outros partidários da esquerda libertária, para cortejar a esquerda anti autoritária na Europa e América. Parece-me uma das ideias mais parvas e narcisistas que já ouvi. Mesmo que a premissa estivesse correcta, e que um grupo Marxista-Leninista decidisse fingir uma ideologia para obter apoio estrangeiro, por que raio é que iriam escolher ideias anarquistas desenvolvidas por Murray Bookchin? Isso seria a jogada mais estúpida de sempre. Obviamente fingiriam ser islamitas ou liberais, já que são esses que conseguem armas e apoio material. De qualquer maneira, penso que muita gente na esquerda internacional, incluindo a esquerda anarquista, não quer basicamente ganhar. Não conseguem imaginar que uma revolução realmente acontecesse, e, secretamente, nem sequer a querem, uma vez que isso significaria partilhar o seu clube “fixe” com pessoas comuns; já não seriam especiais. Assim, até é útil para separar os verdadeiros revolucionários dos “poseurs”. Mas os verdadeiros revolucionários têm-se mantido firmes.

Qual foi a coisa mais impressionante que testemunhaste em Rojava nos termos práticos desta autonomia democrática?

Existem tantas coisas impressionantes. Acho que nunca ouvi falar de nenhum outro lado do mundo onde tenha existido uma situação de dualidade de poder, onde as mesmas forças políticas criaram ambos os lados. Existe a “auto-administração democrática”, onde existem todas as formas e armadilhas de um Estado – Parlamento, ministros, e por aí – mas foi criada para ser cuidadosamente separada dos meios do poder coercivo. Depois há o TEV-DEM (o Movimento da Sociedade Democrática) dirigido de raiz instituições de democracia directa. No final – e isto é fulcral – as forças de segurança respondem perante as estruturas que seguem uma abordagem de cima para baixo, e não de baixo para cima. Um dos primeiros locais que visitámos foi a academia de polícia (Asayis). Todos tiveram que frequentar cursos de resolução de conflitos não violenta e de teoria feminista antes de serem autorizados a pegar numa arma. Os co-directores explicaram-nos que o seu objectivo final é dar seis semanas de treino policial a toda a gente no país, para que em última análise se possa eliminar a polícia.

O que responderias às várias críticas em torno de Rojava? Por exemplo: “Eles nunca fariam isto em tempos de paz. É por causa do estado de guerra”

Bem, penso que a maioria dos movimentos, perante as condições horrendas da guerra, não iria no entanto abolir imediatamente a pena capital, dissolver a polícia secreta e democratizar o exército. As unidades militares, por exemplo, elegem os seus oficiais.

E existe outra crítica, bastante popular nos círculos pro-governo aqui na Turquia: “O modelo que os Curdos – na linha do PKK e PYD (o Partido Curto de União Democrática) – estão a tentar promover não é na verdade seguido por todas as pessoas que lá vivem. Essa multi-… estrutura existe apenas à superfície, nos símbolos”

Bem, o presidente do cantão de Cizire é árabe, é de facto o chefe da maior tribo local. Suponho que se possa dizer que ele é só uma figura. No sentido que todo o governo o é. Mas ao olhando para as estruturas organizadas de baixo para cima, é certo que não são só os curdos que estão a participar. Disseram-me que o único problema a sério é com algumas aldeias do “cinto árabe”, pessoas trazidas de outras partes da Síria pelos Baathistas nos anos 50 e 60, como parte de uma política de marginalização e assimilação dos curdos. Algumas dessas comunidades afirmaram-se bastante hostis à revolução. Mas os árabes cujas famílias já lá estão há várias gerações, ou os assírios, quirguizes, arménios, chechenos, mostram-se entusiasmados. Os assírios com quem falámos disseram que, após uma longa e difícil relação com o regime, sentiram que finalmente lhes era permitida autonomia cultural e religiosa. Provavelmente, o maior problema pode ser o da libertação das mulheres. O PYD e o TEV-DEM vêem-no como absolutamente central na sua ideia de revolução, mas também enfrentam o problema de lidar com alianças maiores com comunidades árabes que sentem que isto viola princípios religiosos básicos. Por exemplo, enquanto aqueles que falam siríaco têm a sua própria união de mulheres, os árabes não, e as raparigas árabes interessadas em organizar-se em torno de questões de género ou até assistir a seminários feministas têm de se juntar com os assírios ou mesmo com os curdos.

Não é necessário estar preso no “quadro anti-imperialista puritano” que mencionaste antes, mas o que dirias em relação ao comentário que o Ocidente/imperialismo irá um dia exigir aos curdos sírios um pagamento pelo seu apoio? O que é que o Ocidente pensa exactamente sobre este modelo anti-estado e anti-capitalista? É apenas uma experiência que pode ser ignorada durante um estado de guerra, enquanto os curdos se aceitam voluntariamente combater um inimigo criado pelo Ocidente?

É absolutamente verdade que os EUA e a Europa irão fazer o que poderem para subverter a revolução. Nem é preciso dizer nada. As pessoas com quem falei estão bem cientes disso. Mas não fazem grande diferenciação entre a liderança de poderes regionais como na Turquia, Irão ou Arábia Saudita, e poderes Euro-americanos como por exemplo França ou EUA. Assumem que são todos capitalistas e estadistas e portanto anti-revolucionários, que podem no melhor dos casos ser convencidos a apoiarem-nos mas que, em última análise, não estão do seu lado. Depois existem questões ainda mais complicadas da estrutura da chamada comunidade internacional, o sistema global de instituições como a ONU ou FMI, corporações, ONG’s, organizações humanitárias, em que todas presumem uma organização estadista, um governo que pode passar leis e detém o monopólio da aplicação coerciva dessas leis. Só existe um aeroporto em Cizire e está sobre o controlo do governo Sírio. Podem tomá-lo a qualquer altura, dizem. E há uma razão para não o fazerem: como iria um não-Estado dirigir um aeroporto? Tudo o que se faz num aeroporto é sujeito a regulamentos internacionais, o que presume um Estado.

Tens uma resposta para o porquê da obsessão do ISIS com Kobane?

Bem, eles não podem ser vistos a perder. Toda a sua estratégia de recrutamento é baseada na ideia que eles são imparáveis, e que a sua contínua vitória é a prova que representam a vontade de Deus. Serem derrotados por um monte de feministas seria a humilhação final. Enquanto estiverem a lutar em Kobane, podem dizer que os média mentem e que estão a avançar verdadeiramente. Quem pode provar o contrário? Se recuassem seria admitir a derrota.

Tens resposta para o que Tayyip Erdogan e o seu partido estão a tentar a fazer na Síria e o Médio Oriente em geral?

Posso apenas imaginar. Parece que Erdogan passou de uma política anti-Assad e anti-curda para uma estratégia quase puramente anti-curda. Repetidamente tem mostrado vontade de se aliar com fascistas pseudo-religiosos para atacar qualquer experiência de democracia radical inspirada no PKK. Ele vê claramente, como o próprio Daesh (ISIS), que o que está a ser feito é uma ameaça ideológica, talvez a única alternativa ideológica viável face ao islamismo de direita que se avizinha, e tudo fará para a eliminar.

De um lado existem os curdos iraquianos com uma ideologia bem diferente em termos de capitalismo e noção de independência. Por outro lado, existe este exemplo alternativo em Rojava. E existem os curdos da Turquia que tentam manter um processo de paz com o governo… Pessoalmente, como vês o futuro do Curdistão a curto e a longo prazo?

Quem pode dizer? Neste momento as coisas parecem surpreendentemente boas para as forças revolucionárias. O KDG até desistiu da enorme vala que estava a construir através da fronteira de Rojava, após o PKK intervir e salvar Erbil e outras cidades dos avanços ISIS, em Agosto. Um elemento do KNK disse-me que isso teve um grande impacto na consciência popular; que um mês criou tanta consciência como 20 anos. Os jovens estavam particularmente impressionados pelo facto de os seus próprios Peshmerga abandonarem o campo de batalha mas as mulheres do PKK não. Mas é difícil de imaginar como é que o território de KRG será contudo revolucionado num futuro próximo. Nem o poder internacional o permitiria.

Apesar de a autonomia democrática não parecer estar em cima da mesa de negociações na Turquia, o Movimento Político Cudo tem estado a trabalhar nisso, especialmente ao nível social. Tentam encontrar soluções em termos legais e económicos para possíveis modelos. Quando comparamos, digamos, a estrutura de classes e o nível de capitalismo no Curdistão Ocidental (Rojava) e no Norte (Turquia), o que pensas sobre as diferenças destas duas lutas para uma sociedade anti-capitalista – ou para um capitalismo minimizado, como o descrevem?

Penso que a luta curda é explicitamente anti-capitalista em ambos os países. É o seu ponto de partida. Conseguiram uma espécie de fórmula: não eliminar o capitalismo sem eliminar o Estado, e não podemos eliminar o Estado sem eliminar o patriarcado. No entanto, o povo de Rojava tem a questão simplificada em termos de classes porque a verdadeira burguesia, tal como existia numa região maioritariamente agrícola, desapareceu com o colapso do regime de Baath. Enfrentarão um problema a longo prazo se não trabalharem no sistema educativo, para assegurar que um estrato tecnocrata de desenvolvimento não tente eventualmente tomar poder, mas entretanto, é compreensível que se foquem de imediato nas questões de género. Na Turquia não sei tanto, mas tenho a sensação que as coisas são muito mais complicadas.

Durante os dias em que as pessoas do mundo não podiam respirar por razões óbvias, a tua viagem a Rojava inspirou-te sobre o futuro? Qual achas que é o “remédio” para as pessoas respirarem?

Foi extraordinário. Passei a minha vida a pensar em como poderíamos fazer coisas como estas num futuro remoto e a maioria das pessoas pensa que sou louco por imaginar que isto alguma vez vai acontecer. Estas pessoas estão a fazê-lo agora. Se eles provarem que pode ser feito, que uma sociedade genuinamente igualitária e democrática é possível, isto irá transformar completamente a noção de possibilidades humanas. Pessoalmente, sinto-me dez anos mais novo só de ter lá passado dez dias.

Com que cena te irás recordar da tua viajem a Cizire?

Existem tantas imagens impressionantes, tantas ideias. Gostei da disparidade entre o aspecto das pessoas e as coisas que diziam. Conhece-se alguém, um médico, que parece um militar sírio, vagamente assustador, de casaco de cabedal e expressão austera. Depois fala-se com ele e ele explica: “Bem, sentimos que a melhor abordagem à saúde pública é a prevenção, a maioria das doenças ocorre devido ao stress. Sentimos que se reduzirmos o stress, os níveis de doenças de coração, diabetes, e mesmo o cancro irão diminuir. Assim, o nosso plano final é reorganizar as cidades para terem 70% de espaços verdes…” Existem todos estes planos loucos e brilhantes. Mas depois vai-se ao médico ao lado e explica-nos que, graças ao embargo turco, não conseguem sequer obter equipamento ou medicamentos básicos, que todos os pacientes para diálise que não foram levados dali morreram… Esta disjunção entre as ambições e as incríveis e difíceis circunstâncias. E… A mulher que era efectivamente a nossa guia era uma vice-chanceler chamada Amina. A certa altura, pedimos desculpa por não termos trazido presentes melhores e ajudado a população de Rojava, a sofrer sob o embargo. E ela disse: “No final, isso pouco importa. Temos a única coisa que ninguém nos pode dar. Temos a nossa liberdade. Vocês não. Quem me dera que houvesse uma maneira de vos poder dá-la”.

És por vezes criticado por seres demasiado optimista e entusiasta sobre o que está a acontecer em Rojava. Achas que és? Ou há alguma coisa que não entendem?

Sou optimista de temperamento, procuro situações que carreguem alguma promessa. Não acho que existam garantias que isto resultará no final, que não será esmagado, mas certamente que não será se toda a gente decidir que nenhuma revolução é possível e se recusar a dar-lhe apoio activamente, ou até dedicar esforços a atacá-la ou aumentar o seu isolamento, como muitos fazem. Se existem alguma coisa da qual tenho consciência e os outros não, talvez seja o facto de a história não estar terminada. Os capitalistas têm feito um esforço enorme nos últimos 30 ou 40 anos em convencer as pessoas que os actuais acordos económicos – nem sequer o capitalismo, mas a forma de capitalismo semi-feudal, financializada, peculiar que temos hoje em dia – são o único sistema económico possível. Puserem mais esforços nisto do que em criar um sistema capitalista global viável. Como resultado, o sistema está a despedaçar-se à nossa volta no preciso momento em que toda a gente perdeu a capacidade de imaginar outra coisa. Bem, é bastante óbvio que em 50 anos, o capitalismo sob qualquer forma que conheçamos, e provavelmente sob qualquer outra forma, já não existirá. Terá sido substituído por outra coisa. Essa coisa pode não ser melhor. Pode até ser pior. Por esse mesmo motivo, parece-me que é nossa responsabilidade, enquanto intelectuais, ou simplesmente seres humanos pensantes, de pelo menos pensar como será uma coisa melhor. E se existem pessoas que estão verdadeiramente a tentar criar essa coisa melhor, é nossa responsabilidade ajudá-las.

 

APELO URGENTE DO GOVERNO DO CANTÃO DE KOBANÊ

Situação atual de Kobane

Situação atual de Kobane

Fonte: http://kurdishquestion.com/kurdistan/west-kurdistan/urgent-appeal-from-kobane-canton-government.html
Tradução livre de Maria Joseane Rosa e revisão de Talita Rauber.

Apelo do governo do cantão de Kobane às Nações Unidas e à comunidade internacional

Os ataques do Estado Islâmico em Kobane, cidade curda no norte da Síria, estão em andamento desde 15 de setembro de 2014. Como resultado da guerra, muitas partes da cidade e dos vilarejos ao redor têm sido destruídas e devastadas. A emergência humanitária é agravada devido ao embargo, de fato existente. Uma vez que todas as rotas para Kobane foram bloqueadas, não é possível que os suprimentos humanitários alcancem a cidade. Devido à difícil situação dos refugiados de Kobane, localizados na Turquia, mais e mais pessoas estão retornando para lá. A municipalidade de Kobane é mantida por voluntários.

O maior problema é a falta de água potável. Após o início da revolta popular na Síria, a linha de abastecimento de água para Kobane, que está sendo controlada centralmente pelo estado, tem sido descontinuada. A própria população de Kobane construiu uma linha de água alternativa para lá. Porém, como resultado dos ataques realizados pela milícia terrorista chamada de Estado Islâmico, esta linha de abastecimento de água autoconstruída também foi destruída. Atualmente, as pessoas de Kobane obtêm a sua água dos poucos poços existentes.

No entanto, essa água não se trata de água potável. Por isso, é utilizada apenas para questões de higiene e limpeza. A água potável está disponível apenas em garrafas PET fechadas. Porém, os estoques estão baixos e não será suficiente por muito mais tempo. Da mesma forma, há ausência de alimentos, especialmente de trigo e farinha, com os quais pelo menos as necessidades básicas de subsistência puderam ser cumpridas. O local de produção do pão, que era organizado pela administração da cidade, caiu sob o controle do EI com todo o seu estoque de farinha.

Outro problema é a fonte de energia. Pelo fato de que elas também são direcionadas pelo governo central, tem ocorrido um corte de energia desde 2 anos atrás. Por isso, aque os ataques do Estado Islâmico começassem, a população providenciava eletricidade via geradores. Porém, o EI atacou e destruiu o depósito de combustível para os geradores. A insuficiência de combustível não só causa problema para gerar energia, como também constitui um grave problema para a temporada de inverno que se aproxima, já que o combustível também é utilizado para os aquecedores a óleo. Além disso, há falta de roupas de inverno, especialmente casacos e sapatos. Quando as pessoas fugiram de seus vilarejos, eles tiveram que deixar todos os seus pertences para trás.

Além disso, a assistência médica revela-se um sério problema. Os três hospitais existentes foram todos destruídos. Atualmente, uma casa abandonada funciona como local temporário à assistência aos pacientes e é gerido por apenas um médico voluntário. No entanto, devido à falta de medicamento, não é possível tratar muitas doenças. Embora alguns equipamentos médicos estejam disponíveis, estes não podem ser utilizados em operações importantes, visto que a fonte de energia, a qual é necessária a estes dispositivos, seja inexistente. Como resultado dos desumanos ataques da milícia terrorista, não apenas muitas pessoas foram feridas, como muitos ainda continuam sendo alvos de violência, além de que os cadáveres em decomposição e os bombardeios facilitam o alto risco de epidemias. Por causa dos constantes ataques do EI em curso, e da falta de material técnico, não é possível remover os cadáveres.

Estimamos que o povo de Kobane só pode sobreviver por mais um outro mês* com o estoque existente de alimentos, água e óleo para aquecimento. Entretanto, o fluxo de pessoas que regressam da Turquia para Kobane torna difícil dar um prognóstico detalhado. Ainda, acima de tudo, o abastecimento de água potável representa um enorme problema.

Portanto, nosso objetivo é atrair o público e a comunidade internacional com esta carta.

Exigimos:

A criação de um corredor para a ajuda humanitária sob o controle da ONU.

Delegação internacional de especialistas para analisar a situação em Kobane.

Garantir água potável e fornecimento de alimentos.

O envio de equipes internacionais de médicos para atendimento.

Equipamento técnico para a reconstrução da cidade.

*Nota de revisãono texto original encontra-se a palavra “moth”(mariposa), a qual acreditamos ter sido digitada errado, devido à falta de sentido. Portanto, pelo contexto, acreditamos que a palavra correta seja “month”(mês).

“Construiremos um Curdistão livre, sob a liderança das mulheres”

kobane

Fontehttp://newrozeuskalkurduelkartea.wordpress.com/2014/11/26/construiremos-un-kurdistan-libre-bajo-el-liderazgo-de-las-mujeres/

Tradução livre por Talita Rauber e revisão por Arthur Dantas

“Construiremos um Curdistão livre, sob a liderança das mulheres”

       Dirigindo-se a milhares de mulheres que marcharam de Dewser até o povoado de Mehsar (província de Urfa), na fronteira com Kobanê, para comemorar o 25 de novembro, Dia da Eliminação da Violência contra as Mulheres, a co-presidente da PYD (Partido da União Democrática), Asya Abdullah disse que elas, como mulheres curdas, davam as boas-vindas mais calorosas a todas as mulheres que haviam se reunido na fronteira em solidariedade com as combatentes das YPJ¹.

A. Abdullah também disse que “sempre se lembrariam de todas aquelas que haviam caído em batalha, salientando que as mulheres curdas, herdeiras de seu exemplo, estavam realizando uma revolução histórica em Rojava. Milhares de mulheres caíram na luta pela liberdade, centenas delas em Sinjar e Kobanê. A revolução das mulheres continua”.
Prosseguiu afirmando que a história está sendo reescrita em Kobanê, e que a resistência das YPJ tem sido a resposta à dominação machista e ao feminicídio, insistindo que a revolução em Rojava é uma chamada a todas as mulheres do mundo.
A co-presidente continuou dizendo que “a resistência em Kobanê segue muito firme, graças ao trabalho das mulheres, não esquecendo da resistência das mulheres em Sinjar. “As mulheres seguem combatendo em todas frentes de batalha, apesar de todos os ataques que têm que enfrentar. Enquanto ainda lutam na linha de frente, por outro lado, contribuem para a construção de uma vida democrática em toda a região do Oriente Médio, dominado pelo machismo. Nenhum ataque pode intimidar as mulheres que estão liderando a marcha para a liberdade nas quatro partes do Curdistão”.
Ela concluiu dizendo o seguinte: “Construiremos um Curdistão livre, sob a liderança das mulheres.”
Fonte ANF.

Nota de tradução:
¹ – YPJ: Unidades de Proteção das Mulheres; em curdo, Yekîneyên Parastina Jinê;

Novas Posições Estratégicas, Filosóficas e Políticas do Movimento de Libertação Curdo – por Abdullah Öcalan

Fragmento textual retirado de “Guerra e Paz no Curdistão – Perspectivas para uma Solução Política da Questão Curda“, por Abdullah Öcalan.

Apelidado de Apo, ele é líder independentista curdo, fundador e secretário-geral do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK – Partiya Karkêren Kurdistan), criado em 1978.

Texto completo no site freedom-for-ocalan.

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“Não é possível detalhar aqui de uma maneira aprofundada todos os elementos estratégicos, ideológicos, filosóficos e políticos que animam o movimento. Os principais fundamentos, no entanto, podem ser resumidos da seguinte maneira:

• A abordagem filosófica, política e ideológica do renovado PKK encontra sua expressão mais adequada através do conceito de “socialismo democrático”.

• O PKK não procura alcançar a criação de um novo estado- nação curdo a partir do direito de autodeterminação de povos. Este direito se entende como a base para o estabelecimento de democracias de base, sem a necessidade de procurar novas fronteiras políticas. É a tarefa do PKK convencer o povo curdo desta sua convicção. O mesmo é válido para o diálogo com os países hegemônicos que influenciam o Curdistão. Esta convicção é a base para a solução dos conflitos existentes.

• Os países atualmente existentes nesta região necessitam sujeitar-se a profundas reformas democráticas. No entanto, a abolição imediata do estado não é uma opção viável, o que não significa que o estado atual deve ser aceito tal qual. A estrutura estatal clássica e sua concepção despótica do poder são inaceitáveis. O estado institucional deve ser sujeito a mudanças democráticas. Ao final deste processo, o estado deve constituir uma instituição política mais modesta, com objetivo de regular funções no campo da segurança e na provisão de serviços sociais. Esta concepção de Estado não tem nada em comum com o caráter autoritário do estado clássico, mas seria concebido como uma autoridade social.

• O movimento curdo pela libertação procura para o Curdistão um sistema de auto-organização democrática em forma de confederação. O Confederalismo Democrático deve ser entendida como um modelo de coordenação de uma nação democrática. Tal sistema proporcionaria os marcos dentro dos quais toda comunidade, grupo confessional, coletivo específico de gênero e/ou grupo étnico minoritário, entre outros, poderia organizar-se de maneira autônoma. O mesmo proporcionaria também os meios de organização para qualquer nação e cultura democráticas. O processo de democratização no Curdistão não se limita, no entanto, a uma questão de forma, mas abrange um amplo projeto social visando a soberania econômica, social e política de todas as partes da sociedade, assim como a criação dos órgãos e instituições necessárias e a elaboração dos instrumentos que possam garantir e possibilitar à sociedade um autogoverno e um controle democrático. É um processo de longo e contínuo. As eleições não são o único meio neste contexto. Ao contrário, este é um processo político dinâmico que necessita intervenções diretas da parte do soberano, o povo. Assim, a população deve estar diretamente envolvida em cada processo decisório da sociedade. Este modelo é construído sobre a autogestão de comunidades locais e é organizado em conselhos abertos, conselhos de município, parlamentos locais e congressos gerais. Os próprios cidadãos são os atores de um autogoverno deste gênero. O principio de uma autogestão confederal não apresenta restrições. Tal sistema poderia até atravessar fronteiras para assim criar estruturas democráticas multinacionais. No seio de um sistema democrático de confederação, somente hierarquias horizontais favoreceriam o processo decisório no nível comunitário.

• O modelo detalhado acima pode ser descrito como um governo democrático de autogestão, onde os direitos ‘soberanos’ do estado seriam limitados. Um tal modelo permite uma implementação mais adequada de valores básicos como liberdade e igualdade em comparação com os modelos administrativos tradicionais. Este novo modelo não é limitado ao caso da Turquia, muito pelo contrário, ele é igualmente aplicável em outras partes do Curdistão. Ele é adequado para a construção de estruturas administrativas confederais em toda região de assentamentos curdos na Síria, Turquia, Iraque e Irã. Deste modo, a construção de estruturas confederais na totalidade do Curdistão é possibilitada, sem que isto signifique um questionamento de fronteiras políticas já existentes.

• Um dos fatores que resultaram na queda do real socialismo foi a maneira como os países socialistas utilizaram seu poder interna e externamente, assim como sua concepção errônea da importância da questão do gênero. Mulher e poder parecem, segundo esta ideologia, conceitos quase contraditórios. A questão dos direitos da mulher foi relativamente renegada por regimes socialistas; afirmava-se que esta questão seria resolvida automaticamente uma vez solucionados os problemas econômicos e outros problemas sociais. As mulheres, porém, podem ser consideradas como uma classe ou uma nação oprimida: um gênero oprimido. Enquanto a liberdade e os direitos da mulher não forem discutidos em um contexto histórico e social, enquanto uma teoria adequada não for formulada, tampouco existirá prática adequada. Em vista disso, a liberdade e os direitos da mulher devem constituir uma parte estratégica da luta pela liberdade e democracia no Curdistão.

• Hoje em dia, a democratização da política constitui o desafio mais urgente. Uma política democrática, no entanto, somente poderia existir a partir de partidos democráticos. Enquanto não houverem partidos e instituições afiliadas a partidos cujos interesses vão além da simples execução de ordens ditadas pelo estado, uma democratização do estado sera impossível. Na Turquia, os partidos não passam de ferramentas para a divulgação de propaganda política por parte do estado. Sua transformação em partidos íntegros e engajados exclusivamente com o bem-estar social, assim como o desenvolvimento jurídico adequado neste contexto, constituiriam um avanço importante no sentido de uma verdadeira reforma política. A fundação de partidos políticos exibindo a palavra Curdistão em seu nome é considerada ainda hoje um ato criminoso. Partidos independentes sofrem inúmeras obstruções da parte do estado. Coalizões e partidos relacionados ao Curdistão servem à democratização e não advogam separatismo ou violência.

• Existe a disseminação de um espirito subserviente tanto no nivel individual como institucional, o que representa um grande obstáculo à democratização. A única maneira de superar este sentimento é através da conscientização da sociedade. Cada cidadão deve ser convidado a engajar-se ativamente na causa democrática. Para o povo curdo, isto significa apoiar a construção de estruturas democráticas no Curdistão e em toda região abrigando comunidades curdas, com o objetivo de fomentar a participação ativa na vida política de cada comunidade. Da mesma maneira, minorias residentes no Curdistão devem ser convidadas a participar de tais projetos. O desenvolvimento de estruturas democráticas autóctones assim como a abordagem prática de tais estruturas devem ser tratados como prioridade máxima. As mesmas devem ainda ser vistas como necessárias em regiões onde os direitos básicos de uma democracia não são respeitados, como é o caso do Oriente Médio.

• A política depende da existência de meios de comunicação independentes. Na ausência destes, as estruturas estatais não logram desenvolver uma sensibilidade às questões democráticas. O livre acesso à informação é não somente um direito individual, mas uma questão social essencial. Mídias independentes representam um mandato social. Sua comunicação com o publico deve ser caracterizada por um equilíbrio democrático.

• Instituições feudais como tribos e seitas, resquícios da Idade Média, também representam obstáculos à democratização. Tais instituições parasitárias devem ser instigadas a integrar-se na luta por uma mudança democrática.

• O direito à educação na língua nativa deve ser garantido. Mesmo se as autoridades não desenvolvem tal educação, elas não devem impedir esforços civis visando criar instituições especializadas no ensino da língua e cultura curdas. Além disso, o sistema de saúde deve ser garantido tanto pelo estado como pela sociedade civil.

• Um modelo social ecológico é por essência um modelo socialista. Um equilíbrio ecológico somente será possível durante a fase de transição entre uma sociedade alienada baseada no despotismo e uma sociedade socialista. Seria ilusão acreditar que a preservação do meio ambiente é compatível com o sistema capitalista. Pelo contrário, o sistema capitalista contribui ávidamente para a devastação do meio ambiente. A proteção do meio ambiente deve ser levada em consideração seriamente durante o processo de mudança social.

• A solução para a questão curda deve ser tentada em conjunto com um processo de democratização de todos os países que exercem seu poder sobre o Curdistão de maneira hegemônica. Este processo, porém, não é limitado a tais países, mas deve estender-se por todo o Oriente Médio. A paz no Curdistão está intimamente ligada à democracia no Oriente Médio. Um Curdistão livre somente é concebível como um Curdistão democrático.

• A liberdade individual de expressão e de decisão é imperativa. Nenhum país, nenhum estado, nenhuma sociedade tem o direito de restringir tais liberdades, independentemente das razões alegadas. Sem liberdade individual, a liberdade social não poderá existir, assim como a liberdade pessoal é impossível se a sociedade não for livre.

• Uma redistribuição justa de recursos econômicos que se encontram atualmente nas mãos do estado é igualmente de extrema importância para o processo de liberação social. Abundância econômica não deve transformar-se em uma ferramenta do poder do estado com o objetivo de facilitar o exercício deste poder sobre a população. Riquezas econômicas não são propriedade do estado mas da sociedade.

• Uma economia próxima à população deve ser baseada nesta redistribuição; ela deve ainda ser baseada em benefícios em lugar de visar exclusivamente a acumulação de lucros e o aumento da circulação monetária. Atualmente, as estruturas econômicas locais deterioram tanto a sociedade quanto o meio ambiente. Uma das principais razões da decadência da sociedade é o efeito dos mercados financeiros locais. A produção artificial de bens, a procura interminável por novos mercados de consumo e a cobiça sem limites por lucros cada vez maiores são responsáveis pela diferença cada vez mais abismal entre pobres e ricos, acrescentando diariamente indivíduos ao batalhão dos que vivem abaixo do nível de pobreza e mesmo dos que morrem de fome. Uma política  econômica deste tipo não pode mais ser tolerada. Este é então o maior desafio para a política socialista: implementar uma política econômica alternativa que não vise unicamente o lucro mas sim uma distribuição justa dos recursos e a satisfação das necessidades básicas naturais para todos.

• Embora a tradição curda valorize altamente a família, esta última segue sendo uma entidade onde a liberdade não é garantida. Carência de recursos financeiros assim como o difícil acesso à educação e aos serviços de saúde não deixam espaço para o desenvolvimento da unidade familiar. A situação de crianças e mulheres é desastrosa. Assassinatos “de honra” de mulheres da família ilustram este desastre. Mulheres podem virar o alvo de uma noção de honra arcaica que reflete a decadência da sociedade como tal. A frustração masculina em relação as condições existentes é dirigida contra o suposto membro “frágil” da família: a mulher. A família como instituição social está em crise. A solução desta crise familiar, assim como de outras crises detalhadas acima, se encontra no contexto de uma democratização completa.”
Abdullah Öcalan

Erdoğán e Barzani buscam enganar a imprensa

Turkey Kurds

Os Estados Unidos têm pressionado a Turquia, país membro da OTAN, durante semanas para que faça mais por Kobane

Por Michael Rubin 
6 de novembro de 2014

Fonte: Diário Siglo XXI 

Tradução: Coletivo Anarquia ou Barbárie

Os peshmerga curdos iraquianos atravessaram a Turquia a caminho de Kobane, o cantão curdo-sírio atualmente sitiado pelo Estado Islâmico. O The New York Times informa que os “Líderes curdos sírios de Kobane afirmam que pequenos grupos de guerrilheiros não são suficientes para reverter a situação atual”, mas a Turquia tem o benefício da dúvida, e continua:

Os Estados Unidos têm pressionado a Turquia, país membro da OTAN, durante semanas para que faça mais. Mas a Turquia tem se esforçado em solicitar que a intervenção americana busque depor o presidente sírio Bashar al-Assad, manifestando grandes reservas quanto à ajuda às minorias curdas da Síria e Iraque, alinhadas com as suas próprias populações curdas descontentes. Os grupos que combatem pelo município de Kobane entendem a política por trás da recente decisão turca de lhes ajudar a repelir o Estado Islâmico. Os analistas apontam que a minimização desse descontentamento na Turquia seja importante.”

Tais matérias interpretam mal a dinâmica curda ou os reais interesses do presidente turco, Erdoğán. Quando Erdoğán pensa a Síria, o inimigo número um a bater é Assad, o número dois são os curdos sírios e, apenas num distante terceiro lugar, o Estado Islâmico. Durante os últimos meses, Erdoğán esperava que o Estado Islâmico fizesse o trabalho sujo por ele, derrotando os curdos sírios. Entretanto, duas coisas aconteceram: as Unidades Populares da resistência em Kobane (YPG e YPJ) não apenas não se renderam como também poderiam até ter revertido a situação; e os Estados Unidos decidiram ignorar a proibição de cooperar com tais Unidades e as abasteceu, na prática, armando pela primeira vez o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Erdoğán jogou suas cartas, e os EUA, por fim, viu a luz no fim do túnel. Ao permitir que os curdos cruzem sua fronteira – mesmo como um gesto simbólico – a intenção de Erdoğán não é exatamente ver uma vitória dos curdos, mas sim impedir que os EUA voltem a colaborar com o PKK.

Erdoğán não é o único a se mostrar hostil aos curdos sírios. O presidente do Curdistão iraquiano, Massoud Barzani, também. Barzani desfaz-se em elogios ao nacionalismo curdo, porém os antecedentes pesam. Barzani almeja, antes de tudo, aumentar seu poder pessoal. É totalmente a favor do nacionalismo curdo desde que seja ele quem mande. Contudo, preferiria ver o fracasso da empreitada curda ao se ver substituído por um rival. Em 1996, por exemplo, ele arriscou tudo o que os curdos haviam conquistado até então, ao chamar a Erbil ( capital do Curdistão iraquiano) a Guarda Republicana do então Presidente Saddam Hussein para que este o apoiasse em seu enfrentamento ao líder curdo rival, Jalal Talabani. Atenção: apenas oito anos após o regime de Saddam ter utilizado seu arsenal de armas químicas contra os curdos.

Barzani considera os curdos sírios como rivais políticos, tendo em vista que estes pendem mais para o lado do líder do PKK, Abdullah Öcalan, do que ao seu. Em visita ao Curdistão sírio no início deste ano, Barzani bloqueou ativamente a ajuda humanitária requerida pelos curdos sírios. Toneladas de medicamentos doadas em solidariedade aos curdos de país vizinho foram “esquecidas” em seus armazéns. Todavia, a salvação dos yazidis de Shingal por parte das Unidades Populares – depois que os próprios peshmerga de Barzani tinham fugido – não fez senão destacar ainda mais a relevância das Unidades Populares aos olhos dos curdos. Em outras palavras, se o Estado Islâmico cortasse as asas das Unidades Populares, Barzani não derramaria sequer uma lágrima.

O envio de um contingente simbólico de peshmergas curdos a Kobane é simplesmente o plano de contingencia de Erdoğán e de Barzani. Para as Unidades não faz nenhuma diferença, e a sua defesa de Kobane apenas tem aumentado sua fama. Adicionar os peshmerga iraquianos à mistura não vai mudar os rumos do combate, mas permitirá que Erdoğán e Barzani reivindiquem a vitória dos curdos sírios caso as Unidades consigam realizar tal façanha. Basicamente, Erdoğán e Barzani esperam se beneficiar da ação das Unidades Populares e compartilhar sua glória.

Os EUA podem querer derrotar o Estado Islâmico, mas não devemos ter dúvidas: o Estado Islâmico não teria chegado até aqui se não fosse pela cumplicidade da Turquia e, mais especificamente, do próprio Erdoğán. Seria um erro fatal dos legisladores estadunidenses, ao tratar de Kobane, supor que o resto da região compartilha do nosso programa. Isso não significa que não podemos ter aliados de conveniência, mas não devemos vê-los como algo que não são.

Ideias e movimentos de organização anarquista hoje – Um papo sobre municipalismo libertário.

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Por Gilson Moura Henrique Junior

Para discutir teoricamente sobre organização e prática anarquista, é de bom tom ter em mente que, em relação aos movimentos e organizações de cunho socialista, o movimento anarquista parte de pontos organizativos, digamos assim, menos sólidos. Esta ausência de solidez não parte de diferenças qualitativas entre métodos de organização e sim da capilaridade relacionada ao socialismo e ao anarquismo. Esta diferença na penetração das ideias anarquistas em relação às socialistas não tem outra raiz senão a história de cada movimento: a perseguição a anarquistas, desde o fim do século XIX até os primeiros vinte anos do século XX; a cooptação que o movimento socialista levou a cabo junto aos movimentos anarquistas após a revolução russa de 1917; as duas severas ditaduras que reprimiram todo o espectro de esquerda, mas atingiram em cheio o movimento anarquista, que também era combatido pela esquerda, a partir de grupos alinhados ao partido comunista, que perseguia com ferocidade tudo o que fugisse da órbita soviética, como se viu na guerra civil espanhola.

Levando tudo isso em conta, temos diante de nós, nos últimos vinte anos, uma retomada do processo de organização anarquista e uma busca de protagonismo dessa vertente ideológica, que tem encontrado vasto sucesso e campo de atuação na juventude brasileira. Esse sucesso, no entanto, esbarra nas fragilidades organizativas do anarquismo, o que é típico nas organizações mais horizontais e cuja ausência de centralidade e centralismo exige menos unidade que a imposição das organizações socialistas de linha marxista-leninista. Uma dessas fragilidades é a dificuldade de formação, especialmente uma formação unitária, que leve em conta o maior grupo possível de pensadores anarquistas – e são muitos – de modo a ampliar a percepção da anarquia para além da ideia romântica de rebeldia momentânea, que acaba não refletindo sobre o que é preciso transformar, no presente, em cada indivíduo, para além da aparência externa e da simbologia anarquista utilizada.

Essa dificuldade de formação é combatida com muita competência por portais como o Protopia, que fornece um amplo número de textos dos mais diversos pensadores e que auxilia assim aos neófitos a entenderem mais da anarquia. Outros espaços são a Anarcopedia e o Instituto de Teoria e História Anarquista, que atuam divulgando ideias, base teórica e a história do movimento.

Essa fragilidade, embora seja um ônus, é parte dos riscos da horizontalidade e que precisa ser visto dessa forma. Assim como na ecologia a diversidade é mãe dileta da manutenção das espécies, na anarquia a diversidade, pluralidade e ausência de centralismo é mãe dileta da liberdade e da manutenção da ideologia em curso.

Diante desas colocações, a ideia de organização anarquista que perpassa pra quem observa de fora é extremamente diversificada e propõe uma gama de soluções para os dilemas da luta de classes que lidam com os mais diversos autores e propostas, na maior parte atuam como ferramenta de organização periférica, onde os partidos não atuam e formando focos de rebelião nas localidades onde os partidos passeiam apenas com o discurso de fomento eleitoral e com menos participação concreta na organização da população para um enfrentamento organizado ao estado. Essa fórmula de organização propõe o fortalecimento da organização de base, que consolide uma alternativa ao viés eleitoralista que acaba por, na hora H, trair o discurso de construção da revolução em nome da construção de aparatos.

Essa ideia de ação anarquista propõe uma solução viável e em curso de alternativa concreta à lógica partidária e que fomenta a organização popular, a questão é o passo adiante da tomada de poder e de empoderamento pelos coletivos organizados nas periferias. Que passo se dá para a ocupação dos espaços que o estado não ocupa?

Óbvio que seria muita arrogância propor de fora soluções às uma gama de coletivos organizados e com problemas práticos in loco, porém sugerir não dói. E a sugestão é que se integre as ações locais com a formação de conselhos coletivos de empoderamento local para a transformação de bairros em focos de comunas. A partir disso a constituição de um lastro de poder local criando uma rede coletiva horizontal que confronte o estado em nome da revolução no modo de vida dos bairros e ruas dentro do município.

Claro que isso tem em mente uma objetificação ideal da ação de coletivos inteiros e que não tem como medir os dramas diários de cada coletivo organizado nas periferias do país afora para compreender as dinâmicas internas que se se fazem presentes, os problemas e os enfrentamentos ao estado, especialmente em favelas, onde ele se mostra em uma face mais dura do que os intelectuais de classe média, entre os quais e me incluo pela casse e não pelo intelecto, cogitam compreender para além da formulação empática.

Só que é fundamental perceber o avanço da ocupação de espaço por coletivos anarcos ou autonomistas onde não se vê o discurso partidário, ocupadíssimo em conquistar CAS, DCEs, Grêmios, e não muito em organizar meios de enfrentamento político onde o estado não vai, e nem quem o busca ocupar para “fazer a revolução”, e tentar a partir disso auxiliar à construção de redes de transformação social que construam ferramentas revolucionárias de combate ao racismo ambiental, à criminalização da pobreza, ao racismo etnocida de estado, a partir do empoderamento simbólico e concreto dos moradores de periferia que a partir de suas associações (Não necessariamente associações formais) podem formar conselhos locais de percepção e resolução de problemas, que utilizem menos o aparato do estado e mais o cotidiano das ruas e vielas para tensionar o estado rumo à construção de alternativas de desenvolvimento local não paroquiais.

Essa ideia não se prende apenas nas periferias, as usa pela percepção de ocupação destes espaços pro coletivos autonomistas e anarquistas, e parte da ideia de Municipalismo Libertário criada por Murray Bookchin. E a proposta é incitar o debate sobre as táticas propostas por este pensador no cotidiano das cidades, atuando de forma a construir meios de reduzir o poder central do estado e combatê-lo rua a rua, bairro a bairro, cidade a cidade.

É fundamental entendermos também que essa proposta foi posta em prática no cotidiano do autor Murray Bookchin e hoje é praticada na Turquia pelos partidários do PKK e atual Curdistão Sírio pelo PYD (com o apoio do PKK), o que nos fornece meios práticos de percepção de suas implicações práticas, tão caras aos críticos.

A cidade independente de Kobane, membro do cantão de Rojava, que equivale ao Curdistão Sírio, é alvo tanto dos fundamentalistas islâmicos do Estado Islâmico (ISIS em Inglês) e das potências da OTAN, quanto dos islamistas moderados turcos do AKP, partido do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que ao negar a entrada de combatentes curdos ligados ao PKK pelas fronteiras turcas, permitindo apenas a entrada dos pershmerga do Curdistão Iraquiano, que não praticam o confederalismo democrático, buscam enfraquecer o crescimento da atuação do PKK em território turco, abatendo o bastião da prática libertária me Rojava.

foto-2-eduardinhoEsse exemplo dá uma ideia de quão perigosa é a ideia de uma confederação de cantões ou cidades livres, o quão é perigosa a ideia de bairros, ruas, favelas, livres e organizadas em conselho se pondo a enfrentar o estado a partir de conselhos de jovens, mulheres, velhos, de artesãos, de donas de casa, que se propõem a construir soluções práticas para enfrentar a ditadura do estado, que promete a paz, mas fornece uma paz sem voz, garantida no medo das unidades de polícia pacificadora (UPP) e na garantia de lei e ordem (GLO) com as digitais das forças armadas, as mesmas forças armadas que prenderem, mataram, torturaram marxistas na década de 1970, e mataram indígenas, camponeses e quilombolas, que jamais receberam tanto holofote quanto os membros das organizações comunistas e socialistas (muitos hoje no poder mantendo as ocupações militares e as unidades de “pacificação”).

É por isso que entendemos que uma boa sugestão é a percepção dos meios pelos quais se organizaram os curdos e propõe Murray Bookchin como meio de agir de forma revolucionária na construção cotidiana adaptando as experiências propostas pelo anarquista estadunidense e postas em práticas pelos curdos à realidade brasileira, atuando de um jeito onde se construam ferramentas concretas de superação do estado e das formas de organização hierárquicas, fornecendo alternativas concretas pra resolução de problemas cotidianos sem a intermediação de líderes paroquiais e de vereadores, desta forma fortalecendo a percepção do poder popular e empoderando os envolvidos na sua construção.