Murray Bookchin: “Este Planeta Merece um Destino Melhor…”

Postado em Portal Anarquista, Ex-Colectivo Libertário de Évora, em 8 de fevereiro de 2015

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As ideias libertárias de Murray Bookchin ganharam recentemente uma nova actualidade aos serem adoptadas na organização dos territórios curdos no norte da Síria e reivindicadas pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão. São elas que animam e vivificam as milícias que ainda não há muitos dias libertaram Kobane e centenas de aldeias do avanço do chamado Estado Islâmico. Daí que exista também um renovado interesse por conhecer quer o libertário norte-americano M. Bookchin (1921-2006), quer as suas ideias assentes no municipalismo libertário. Em boa hora, António Cândido Franco traduziu para o ‘Portal Anarquista’ e para ‘A Batalha’, a parte final de um dos seus mais importantes livros, “The Ecology of Freedom”.

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A ECOLOGIA DA LIBERDADE – “EPÍLOGO”

Murray Bookchin publicou em 1984 The Ecology of Freedom, um dos seus livros mais densos e revolutivos, que, de forma enciclopédica tanto recorre ao domínio da biologia, da ecologia e da astrofísica como ao da história, da antropologia, do pensamento político e da filosofia. O livro constitui assim a súmula do pensamento de Bookchin e a peça mais significativa do ponto de vista daquilo que se chama ecologia social. A sua visão actualiza e desenvolve, como nenhuma outra, o pensamento libertário do século XIX, sobretudo o de Kropotkine, com o qual tem fundas afinidades, desde logo ao defender que nos organismos vivos a organização e a cooperação são muito mais essenciais do que a hierarquia e a dominação. O livro de 1984 pode com facilidade, pela originalidade das perspectivas e a vastidão dos saberes implicados, ombrear com as melhores obras teóricas do final do século XX e do início do século XXI. Ainda por traduzir em Portugal, apresentamos n’ A Batalha e no Portal Anarquista o epílogo do livro, que funciona em poucas páginas como um condensado das suas principais ideias e propósitos. [A.C.F.]

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bookchin008-2Neste livro tentei abalar em termos teóricos o mundo, como a seu modo tentaram no seu tempo os Digger, os Leveller, os Ranter. Intentei sacudi-lo com força e tentei analisar os traços mais significativos da sua evolução. Os meus esforços terão sido bem sucedidos se consegui demonstrar que a maldição da dominação impregnou quase todo o empreendimento humano depois do declínio da primeira sociedade orgânica. Quase nenhuma realização, no campo institucional, técnico, científico, ideológico, artístico, a própria racionalidade, se salvou desta praga. Distintamente da tendência, muito em moda hoje, de procurar a origem desta na luta doselvagem contra a natureza, encontrei-a eu no esforço sinistro da elite emergente em reduzir à escravatura os seres humanos. Sublinhei o papel potencialmente libertador da arte e da imaginação ao dar expressão ao que é autenticamente humano, utópico e livre na natureza humana.

Ao contrário de Marx e Freud, que identificaram “civilização” e “progresso” com auto-controle repressivo, defendi que a antropologia e a história dão uma imagem da humanidade em tudo adversa à de Hobbes. A mentalidade do sacrifício chegou com o conflito social e com a repressão que acompanham o aparecimento da hierarquia, não com a razão e a técnica. Os baixos-relevos egípcios e mesopotâmicos revelam um mundo no qual os seres humanos eram constrangidos a negarem não apenas os seus desejos e os seus impulsos mais humanos como ainda o mais elementar sentido da personalidade. Eva, a serpente e o fruto da árvore do conhecimento não foram a causa da dominação mas as suas vítimas. A sociedade, entendida como obra de laços maternos e logo de interdependência humana, está aí para nos recordar que o paraíso terrestre foi em muitos aspectos uma realidade concreta e que o verdadeiro “pecado original” corresponde à ideia gnóstica de “auto-transgressão”.

Não creio que se possa regressar ao Éden original, onde teve lugar esta violação. A história dá-nos uma esperança de solução para os problemas da hierarquia e da dominação. O conhecimento, a gnosis, quer dizer, conhecer e transcender o nosso primeiro acto de auto-transgressão, é o primeiro passo na terapia duma patologia pessoal de natureza repressiva. O pensamento sem a acção, a teoria sem a prática, significariam, porém, abdicar de qualquer responsabilidade social.

Viu-se no nosso tempo a dominação cobrir um tal âmbito colectivo que doravante parece estar fora do controle humano. Os milhares de bilhões de dólares gastos, depois da segunda guerra mundial, pelos vários Estados em meios de destruição e de controle – aquele armamento aterrador que figura em qualquer “orçamento de defesa” – são a expressão recente duma secular ansiedade de dominação que tomou por ora proporções demenciais. No confronto com esta monumental mobilização de matérias-primas, dinheiro, inteligência e trabalho humano, com fins exclusivamente destrutivos, os resultados obtidos em qualquer outro campo de acção empalidecem e quase se tornam irrelevantes. A arte, a ciência, a medicina, a literatura, a música ou a filantropia aparecem como meras migalhas caídas duma mesa sobre a qual, em sucessivos e sangrentos banquetes, se concentra a atenção dum sistema cuja fome de dominação não parece conhecer limite. É impossível não desconfiar dos actos de “generosidade” dum tal sistema, já que por detrás dos seus desígnios aparentemente meritórios – a tecnologia, a cibernética, os programas espaciais, o desenvolvimento agrícola, as inovações energéticas – se escondem motivações destrutivas e de sujeição da humanidade, através da violência, do medo e da ameaça.

1_2-216x300Este livro tentou dar um panorama da dominação a partir das suas origens numa oculta pré-história da hierarquia, que precedeu de muito a estratificação das classes económicas. A hierarquia esconde-se não só na pré-história da humanidade como ainda no mais profundo da nossa psique. Por esse motivo toda a riqueza da palavra liberdade parece ter sido traída no seio dos processos de socialização e no mais íntimo das nossas experiências. Esta traição vem ao de cima na forma como tratamos as crianças e as mulheres, nas relações interpessoais, na conduta física, nos pensamentos íntimos, na vida quotidiana e até no modo inconsciente com que organizamos a percepção da realidade. É uma traição que não se cumpre só nas instituições políticas e económicas mas no quarto, na cozinha, na escola, nos lugares de divertimento e nos centros de educação moral como as igrejas ou os círculos de terapia psíquica. A hierarquia e a dominação chegam até a presidir a movimentos de emancipação, como é o caso do marxismo nas suas formas mais vulgarizadas e convencionais, nas quais a organização autónoma das “massas” é vista com desconfiança e frequentemente denunciada como “desvio anárquico”.

A hierarquia desforra-se da nossa pretensão de termos superado a “animalidade”, atingindo a “liberdade” e a “individualidade”. Nos instrumentos que usamos para salvar vidas humanas, para criarmos belos objectos, que tornam mais aprazível o mundo que nos rodeia, há sempre qualquer coisa de desafinado que faz com que mesmo as nossas acções mais criativas acabem por ser percepcionadas como “triunfos”, tornando a “obra-prima” correlata à dominação. A grandeza da tradição dadaísta, a partir do gnosticismo ofita até à sua moderna expressão surrealista, é ter possibilitado, com a exaltação do direito à insubordinação, à imaginação, ao jogo, à fantasia, à inovação, à iconoclastia, ao prazer e à criatividade do não consciente, a ascensão e a consciência de tudo aquilo que a hierarquia nos ocultou. Fê-lo muito mais implacavelmente e lealmente do que os mais sofisticados jogos teóricos no campo hermenêutico, estruturalista e semiótico, tão em voga nas universidades da sociedade ocidental contemporânea.

Um mundo assim contaminado pela hierarquia, organizando-se do comando à obediência, exprime o seu espírito autoritário no modo como fomos habituados a ver-nos: como objectos a manobrar, coisas a usar. A nossa concepção de realidade, partindo desta imagem de nós próprios, alargou-se à imagem que temos da natureza “exterior”, assim se revelando que fomos encarando de forma cada vez mais mineral e inorgânica quer a nossa natureza quer a “exterior”. Simplificámos de forma tão perigosa a natureza, a sociedade e a personalidade, que comprometemos seriamente a integridade das formas complexas de vida, a riqueza das formas sociais e o ideal duma personalidade poliédrica.

Num tempo em que o mecanicismo materialista tem como concorrente um espiritualismo não menos mecânico, sublinhei a necessidade de prestar atenção à diversidade, visando alimentar uma noção de totalidade como princípio unificante duma ecologia da liberdade. Um tal acento é muito diverso daquilo que se acentua como “unitariedade”. Ao opor-me às tentativas correntes de dissolver a diversidade em denominadores comuns, materiais ou espirituais, exaltei a riqueza da variedade no desenvolvimento natural, social e pessoal. Propus uma interpretação, algo hegeliana, em que a história dum fenómeno – trate-se de subjectividade, de ciência ou de técnica – define esse fenómeno. Em cada um destes âmbitos, encontramos sempre vários graus e aspectos de compreensão, de intuição e de engenho, que devem ser sempre requeridos, caso se queira tomar a realidade nas suas várias graduações e aspectos. Ao invés, o pensamento ocidental procurou compreender a experiência e agir na realidade por meio dum único modo de subjectividade, de ciência e de técnica. Tendemos a fundar as nossas noções de realidade sobre bases reciprocamente exclusivas: económica num caso, técnica noutro, cultural noutro ainda. Destarte, linhas evolutivas fundamentais foram classificadas, da perspectiva dum limitado nível de desenvolvimento da evolução natural ou humana, como “basilares” ou “contingentes”, “estruturais” ou “supra-estruturais”.

municipalismo-libertarioTentei evidenciar que cada uma destas “linhas” ou de cada uma destas “super-estruturas” tinha a sua autenticidade e um direito histórico à sua identidade, sem dúvida interdependente com outras linhas evolutivas mas rica duma integridade só dela. O problema singular que mais me preocupou foi a interacção entre a evolução da dominação e a evolução da liberdade. Por liberdade não entendo só a diferença dos diferentes, mas também o alargamento das nossas noções de subjectividade, técnica, ciência e ética, com o reconhecimento da história delas e da capacidade de penetração que delas deriva a respeito dos vários estádios de desenvolvimento. Tentei mostrar não só como estes aspectos da liberdade formam um mosaico cada vez mais rico e completo, que apenas uma sensibilidade ecológica pode abalroar, mas também como esses aspectos interagem entre si, sem perderem, na multiforme variedade de tudo, a sua unidade. Não há uma “base” económica que reja a cultura, como não há uma “base” cultural que reja a economia. Na realidade, os próprios termos “base” e “supra-história” são estranhos à perspectiva que permeia este livro. Redutores e simplistas, estas palavras tendem a reflectir visões ingénuas duma realidade cuja riqueza desafia qualquer interpretação esquemática e estática.

Se a história pré-capitalista mostra alguma coisa é o facto dramático dos homens e das mulheres terem feito sacrifícios invulgares, por vezes até o da própria vida, pela crença na virtude, na justiça e na liberdade – crença que não se explicam apenas por interesses materiais e de estatuto social. A extraordinária história dos judeus, uma história de perseguições quase ininterruptas durante cerca de dois mil anos, a dos irlandeses no último século, e a dos movimentos populares revolucionários, da Reforma até à Comuna de Paris, estão aí a testemunhar a força dos ideais religiosos, nacionais ou sociais, capazes de empurrarem centenas de milhões de pessoas para actos de incrível heroísmo. Dizer que na “base” esses homens e essas mulheres foram empurrados por “factores económicos” de que não tinham consciência, quer dizer, manobrados pela dialéctica “económica” da história, significa presumir que estes factores eram de facto dominantes, quando na verdade ainda está sequer por provar que, em alguns casos, eles tenham sequer existido. Ainda quando esses factores pareçam evidentes, a sua importância nos actos humanos é tudo menos óbvia. Quando John Ball ou Gerrard Winstanley descrevem a avidez da classe dominante do seu tempo, sente-se que a sua crítica é menos guiada por interesses materiais do que por ideais de justiça e de liberdade.

A aversão à injustiça fervia no coração dos oprimidos não tanto por causa duma condição social particularmente pesada mas por via dum flagrante contraste entre as regras morais relativas à justiça e a sua transgressão no dia-a-dia. A história do cristianismo está impregnada desta contradição, que explica o papel catalisador que ele tantas vezes representou na história humana, gerando movimentos milenaristas revolucionários. Só quando o capitalismo contaminou a história com a ideia de “escassez”, fazendo dum mesquinho espírito de competição o motor de qualquer avanço social, é que grande parte destes ideais de virtude, de justiça e de liberdade degeneraram em grosseiros interesses materiais. Até os primeiros movimentos a favor duma redistribuição aparecem menos como grandes movimentos de saque e mais como esforços de reabilitação dum modo de vida revoluto, uma ordem social tradicional em que os hábitos de partilha e de não acumulação eram as normas prevalecentes. Muitas vezes estes movimentos destruíram não só os registos legais que legitimavam a autoridade e a propriedade do escol como ainda os palácios, as herdades, as mobílias e até os celeiros que pareciam encarnar o poder.

A revolução francesa, como notou Hannah Arendt (On Revolution, Viking Press, New York, 1965, pp. 36-52), assinala uma inversão das finalidades na mudança social: da aspiração ética passa-se a uma consciência da “questão social” expressa em termos de necessidades materiais. Na realidade esta alteração de perspectiva só parece ter chegado mais tarde, porventura já no nosso século. Marx exultou com este novo “realismo” ou “materialismo economicista”, mas o resultado é que, espartilhados entre a “fetichização das necessidades” e o desejo de significado ético e comunitário, acabámos por nos tornar produtos esquizofrénicos dum mundo condenado à imobilidade da sensação de impotência pessoal e social. Inventámos uma mística das “leis históricas” e do “socialismo científico” que serve mais, como construção, para compensar os nossos frustrados impulsos comunitários e a nossa malograda necessidade de sentido ético do que para explicar o motivo pelo qual comunidade e ética estão tão assentes no real e tão longe como fins.

Se não há um único aspecto da realidade, seja económico ou outro, que por generalização possa explicar a evolução social, se não existem leis sociais que orientem a nossa aproximação mental aos fenómenos, em que base e com que coordenadas podemos então interpretar os comportamentos sociais? Em meu entender o quadro de maior significado em que decorre a aventura humana está na distinção entre autoritário e libertário. Não quero com isto dizer que estes termos exprimam um sentido teleológico da história, nem tão pouco que estão isentos de ambiguidade. Não somos por certo nós que afirmaremos ou negaremos que exista na história humana um ponto de chegada, que possa corresponder ao “absoluto” hegeliano, ao “comunismo” marxista… ou então à extinção definitiva. É pura figura de estilo dizer que a “verdadeira história” da humanidade só começará no momento em que a “questão social” ficar resolvida. Por outro lado a crença iluminista no progresso tecnológico é o sistema menos fiável de que dispomos. Hoje, no mais tecnicizado dos mundos, em que a própria ética foi acoplada ao qualificativo “instrumental”, estamos dispostos a reconhecer que até os nossos projectos mais cativantes, não obstante os atributos que ostentam, “conviviais”, “apropriados” ou outros, possam ser empregues para criar estratégias “alternativas” à violência.

Nunca é de mais sublinhar que as palavras “libertário” e “autoritário” não se referem só a formas institucionais, técnicas e científicas antagónicas, mas sobretudo a sensibilidades e valores, em suma a epistemologias opostas. A definição que dou do termo “libertário” aparece modelada pela definição que dou de ecossistema: unidade na diversidade, espontaneidade e relações de complementaridade, em que está ausente qualquer forma de hierarquia e dominação. Com o termo “autoritário” refiro-me à hierarquia e à subordinação nas suas várias formas sociais: gerontocracia, patriarcado, relações de classe, elites de vários tipos e por fim o Estado, incluídas as suas várias formas socialmente mais parasitárias: o capitalismo de Estado. Mas se não incluirmos aí também as formas contrárias de sensibilidade, ciência, técnica e ética e as contrárias formas de razão aí implícitas, as palavras “libertário” e “autoritário” reduzem-se a termos meramente institucionais. Devem-se pois explicitar ao máximo aquelas implicações, e de igual modo as do arco de qualquer outra experiência, caso se queira que o seu recíproco antagonismo tenha um sentido dinâmico e transformador.

Reconheça-se à razão, na tensão que a disputa entre o autoritário e o libertário, o direito a uma racionalidade libertária. Do ponto de vista filosófico insistimos talvez até de mais que uma racionalidade libertária deve fundar-se em cânones de verdade e de coerência, mas também de intuição e de contradição, que invalidam por inteiro as pretensões de verdade do pensamento formal e analítico. Dado que intuição e contradição podem servir fins autoritários, como se vê na filosofia fascista e no materialismo dialéctico estalinista, e que ao invés a razão analítica teve momentos que serviu a liberdade de pensamento, não temos, além dos nossos critérios éticos, nenhum guia seguro e exclusivo, que garanta frutos indiscutíveis de emancipação ao nosso pensar. As figuras de Buda e de Cristo tanto foram usadas com propósitos de autoritarismo ou de liberdade. O misticismo e o espiritualismo radicais tanto se mostraram anti-naturais e anti-humanos como ecológicos e milenaristas. Aquilo que é decisivo no ajuizar dos critérios da razão, ou para ser mais preciso no modelar duma nova aproximação à subjectividade, é a forma como é ou não é impulsionado um modelo ético biologicamente variado, baseado na fecundidade da vida e na qualidade da complementaridade, resultado dum mosaico de experiências sempre mais ricas e acima duma concepção piramidal e hierarquizada da experiência. Nem sequer é preciso renunciar aoOrganum de Aristóteles, que durante tantos séculos serviu de base aos princípios lógicos do pensamento ocidental, ou à teoria dos sistemas, com o seu conceito de causalidade circular. Devemos apenas modelar a razão, linear ou circular que seja, sobre uma ética pessoal e socialmente emancipadora. A razão, cuja demolição por Horkheimer e Adorno, suscitou tanto pessimismo entre os colegas deles, pode ser devolvida à ética libertária, uma ética aberta à riqueza da sensibilidade humana, enquanto encarnação da faculdade mesma de sentir a todos os níveis da evolução da orgânica social.

Há uma base sobre a qual é possível edificar esta ética libertária, uma área que dá uma direcção e um significado que não dependem nem dos caprichos da opinião e do gosto nem da fria eficácia instrumental. À parte os lugares-comuns sobre o povo, a raça ou as “inevitáveis leis dialécticas”, parece existir na natureza uma espécie de direcção latente, uma evolução da auto-organização, que dá lugar à subjectividade e cujo termo final parece ser a auto-reflexão característica dos seres humanos. Semelhante visão pode constituir um preconceito antropormófico, prestando-se a um relativismo arbitrário, muito parecido à razão subjectiva, ou instrumentalismo, criticada por Horkheimer. Todavia, até a pretensão filosófica dum princípio sem pressupostos é um pressuposto da mente. Ainda não se concluiu que a antiga crença de que há valores intrínsecos na evolução natural é mais discutível do que a imagem russeliana da vida e da consciência humana como puros produtos do acaso.

Será fantasia avançar a hipótese que o nosso ser seja só por si uma epistemologia e uma ontologia, quer dizer, uma filosofia do organismo capaz de responder às acusações de antropomorfismo? A forma não é menos essencial à natureza do movimento e à finalidade da função. Qualquer coisa que se escolha por natural implica como função seja a forma seja o movimento. Invocar o acaso puro como deus ex machina dum desenvolvimento estupendamente organizado, que se presta a uma demonstração sintética matemática, é usar o acidental como túmulo da explicação. Argumentando com perspicácia a favor duma aproximação teleológica, Hans Jonas perguntou-se se uma análise estritamente psico-química da estrutura do olho e do seu estímulo tinha sentido e se não era correlata ao acto de ver. Diz Hans Jonas (The phenomenon of life, Delta Books, Nova Iorque, 1966: p. 90; sublinhados meus): Sempre se encontrará a intencionalidade do organismo enquanto tal e a sua ânsia de vida: presente já em cada tendência vegetativa estes atributos ganham a primeira forma de consciência nos reflexos indistintos, na reactiva excitabilidade, dos organismos inferiores, consciência que se avoluma nos impulsos, nos esforços e na ânsia da vida animal, atingindo a máxima clareza na sensibilidade, na vontade e no pensar humanos. Reflexos, impulsos, consciência… todos são aspectos essenciais do lado teleológico da “matéria” (…). Em cada caso, a estrutura e o comportamento teleológicos dos organismos não configuram simplesmente um modo alternativo de os descrever: são, e prova-o a consciência orgânica de cada um deles, a manifestação exterior da natureza íntima da substância. O que carreia que não exista organismo sem teleologia, que não exista teleologia sem essa natureza íntima e que só a vida possa conhecer a vida.

Poder-se-á acrescentar que só se conhece a vida como resultado da vida. Esta não pode nunca, pela sua natureza mesma, ser dissociada da sua capacidade potencial de conhecer. Poder-se-iam juntar muitas outras sequências às considerações de Jonas sobre teleologia. Pode-se conceber por exemplo a teleologia como actualização duma potencialidade, mais precisamente como o resultado final da tendência imanente para a auto-realização, uma tensão que deixa espaço à casualidade e à incerteza. Neste sentido, a teleologia expressa a auto-organização dum fenómeno para ser aquilo que é, sem certeza à partida que assim será. O nosso conceito de teleologia não necessita de nascer em linha recta de nenhuma “férrea necessidade”, de nenhum auto-desenvolvimento linear e preciso, que “inevitavelmente” assegure a realização final dum fenómeno a partir do seu ponto de partida. Não obstante um fenómeno não poder auto-constituir-se por acaso, a casualidade pode impedir a auto-realização. O seu “telos” apresenta-se assim como consequência duma tensão vitoriosa e não como uma necessidade inevitável.

rojavaO mais cativante, porém, que está hoje acontecendo é o facto de ser a própria natureza a escrever a filosofia e a ética natural, não os lógicos, os positivistas, os sociobiologistas, os místicos ou os herdeiros do cientismo de Galileu. É cada vez mais óbvio que não estamos sozinhos no universo, nem mesmo no vazio do espaço. Graças a uma revolução muito recente na astrofísica, talvez só equiparável às descobertas de Copérnico e Kepler, o entendimento do cosmos exige um volta-face especulativo da mente e uma aproximação mais qualitativa aos fenómenos naturais. Torna-se dia a dia mais plausível que o universo inteiro seja o berço da vida e não apenas o nosso planeta ou planetas de condições idênticas. O “big-bang”, a grande explosão, cujos ecos distantes, atravessando mais de quinze mil milhões de anos, ainda hoje são perceptíveis pelos instrumentos dos astrofísicos, pode ser a prova, mais que incidente casual, de uma forma de “respiração” cósmica, cujas expansões e contracções se estendem por um tempo infinito. Se assim é, e situamo-nos no plano das meras conjecturas, estamos diante de processos cósmicos, mais do que ante um episódio singular, na formação do universo. Se estes processos exprimem uma forma sem fim de história universal, nós, que estamos irrevogavelmente fechados na era cósmica que nos é própria, não estaremos nunca em condições sérias de interpretar a realidade e o significado deles. Não é porém despropositado perguntar se é dum vasto e contínuo desenvolvimento do universo que se trata ou se dum género de respiração rítmica universal.

Tudo isto se passa no campo das conjecturas, dizíamos, conquanto a formação de todos os elementos do hidrogénio e do hélio, a sua combinação em pequenas moléculas e depois a sua auto-formação em grandes, e por fim a organização destas nos componentes da vida e da mente, seguem uma sequência que desafia a imagem russeliana duma humanidade como faúlha acidental num vácuo privado de sentido. Certos passos desta sequência põem fortemente em dúvida tais concepções em que a palavra “acaso” se torna um cauteloso substituto duma substancial inevitabilidade. Um universo disseminado por um pó composto de hidrogénio, carbono, azoto e oxigénio pareceria inevitavelmente destinado à formação de moléculas orgânicas. Os radio-astrónomos encontraram no espaço inter-estelar cianogénio, óxido de carbono, ácido cianídrico, formaldeído, ácido fórmico, álcool metílico, acetal e formato de metilo. A imagem clássica do espaço como vácuo está, em suma, ultrapassada e dá lugar à imagem dum espaço como lugar de incessante actividade química e genética, a favor duma surpreendente sequência de compostos orgânicos cada vez mais complexos.

Daqui até à auto-organização de moléculas que constituam formas rudimentares de vida o passo é curto. A análise dos meteoritos com pequenas inclusões carbonáceas evidenciou a existência de hidrocarbonetos aromáticos de cadeia longa, como ácidos gordos, aminoácidos e porfirinas, isto é, compostos de que é feita a clorofila. Num conjunto de experiências de laboratório, iniciadas pela conhecida “spark.gap” de Miller Urey, produziram-se aminoácidos simples fazendo passar descargas eléctricas através dum recipiente que continha gás presumivelmente idêntico, enquanto combinação, à atmosfera terrestre primitiva. Modificando o gás a partir de teorias sobre a atmosfera originária, outros investigadores conseguiram obter aminoácidos complexos, precursores do ADN.

Sempre de modo hipotético, mas com um impressionante número de provas, é agora possível imaginar como os microrganismos anaeróbios puderam desenvolver membranas simples e como, num crescendo de complexidade, emergiram formas distintas de vida capazes de processos metabólicos altamente desenvolvidos. Outras hipóteses, nas conjecturas sobre a formação das estruturas genéticas, revelam num modo ainda mais impressionante a gradativa continuidade entre inorgânico e orgânico. Tais conjecturas conduzem-nos à característica central da vida mesma: a capacidade que tem um complexo mosaico de macro moléculas orgânicas de se reproduzir e, o que é mais, de o fazer com mutações suficientemente significativas para permitir a evolução. Já em 1944, Erwin Schrodinger tinha fornecido uma definição da reprodução e da evolução orgânica. No livro What is life? Mind and matter (Cambridge University Press, Nova Iorque, 1944: 5) este ilustre físico observava que “a parte essencial da célula viva – o cromossoma – podia ser definido como um cristal aperiódico”. Este na verdade não se limita a crescer por adição, como um periódico, mas modifica-se de modo significativo, dando lugar a formas evolutivas novas, mutações que iniciam e desenvolvem dados hereditários.

Rojava011Graham Cairns-Smith avançou uma outra hipótese, uma das muitas que hoje são avançadas, que pode ajudar a esclarecer a natureza dos primitivos processos reprodutivos. O  ADN é demasiado instável quimicamente, sublinha Cairns-Smith, para poder ter sobrevivido às radiações e às altas temperaturas a que estava exposta na origem a superfície terrestre. Com uma analogia, Cairns-Smith equipara o ADN a um “nastro magnético: é muito eficiente se provido dum ambiente protector indicado, de matérias-primas adequadas e dum complexo sistema de registo”. Estes atavios, sustém ele, podem-se até encontrar no mundo inorgânico (Genes Made of Clay, “The new scientist”, 24 de Outubro de 1974, p. 276): Em conjunto com numerosas outras considerações, isto leva a pensar num processo de cristalização como mecanismo de reprodução, um qualquer defeito nos cristais torna-se o modelo de formação dos novos modelos. Certas argilas de mica parecem-me oferecer cruciais e  promissoras possibilidades.

A hipótese de Cairns-Smith sugere no mínimo que a vida, por vias próprias e seguindo a sua própria evolução genética, não se retraiu com os fenómenos do mundo inorgânico. Não quero com isto dizer que a biologia possa ser reduzida à física, tanto como a sociedade não pode ser reduzida à biologia. Aquilo que Cairns-Smith sugere é que, se certos cristais de argila podem ser os precursores das sucessivas e das mais avançadas formas de material hereditário orgânico, a natureza pode ser unificada por algumas tendências comuns. Tais tendências partilhariam uma idêntica origem na realidade do universo, ainda que funcionando de forma diferente e em diversos níveis de auto-organização.

Reside aqui, do meu ponto de vista, o aspecto essencial: a substância e a sua propriedade são inseparáveis da vida. A concepção bergsoniana da biosfera como factor da redução da entropia, num  universo que se presume avançar para a perda de energia e para a desordem crescente, parece atribuir à vida uma razão cósmica para existir. Caso as formas de vida tenham esta função, isso não sugere de todo que a vida tenha sido projectada do exterior por um demiurgo sobrenatural. Sugere antes que a “matéria”, ou substância, tem propriedades auto-organizativas, não menos válidas que a massa e o movimento que a física newtoniana lhe atribui.

Ao modo dos atributos tradicionais da “matéria”, não faltam dados para tornar plausíveis estas novas propriedades. No mínimo a ciência deve ser aquilo que na realidade a natureza é; e a vida na natureza, para usar a terminologia bergsoniana, é uma força que age em sentido contrário à segunda lei da termodinâmica, isto é, como factor de redução entrópica. A auto-organização da substância em formas cada vez mais complexas – e do mesmo modo da forma em correlação com a função e da função com a auto-organização – implica uma incessante actividade para chegar à estabilidade. Pode-se pois supor que a estabilidade, assim como a complexidade, seja um “objectivo” da substância, que a complexidade, e não apenas a inércia, favoreça a estabilidade e que, enfim, a complexidade seja a característica fundamental da evolução orgânica e duma interpretação ecológica das inter-relações bióticas. Todos estas noções são modos de compreender a natureza, não divagações místicas. São elementos probatórios e são-no muito mais do que os preconceitos teóricos que ainda hoje se opõem à ideia de que o universo tenha um significado, um significado moral, atrever-me-ei a dizer.

Parece claro que não nos podemos mais contentar com uma matéria “morta” e passiva que fortuitamente se junta em substância viva. O universo dá testemunho duma substância que está em constante tensão e se desenvolve, e não apenas se movimenta, uma substância cujo atributo dinâmico e criativo é a sua incessante capacidade auto-organizativa em formas sempre mais complexas. A fecundidade natural deriva antes de mais do crescimento, não da deslocação no espaço. Não podemos retirar às formas a sua situação central neste processo de crescimento e de desenvolvimento, nem podemos inferiorizar a função da forma que lhe é correlata. Aquele universo ordenado que torna a ciência um projecto possível e que dá sentido ao uso duma concisa linguagem lógico-matemática supõe esta correlação de forma e função. Nesta perspectiva, a matemática serve não apenas como “língua” da ciência mas também como seu logos. Este logos é sobretudo um projecto possível, já que toma em mãos um motivo que é inerente à natureza, “objecto” da indagação científica.

Uma vez superado o degrau do comportamento meramente instrumental nos embates da “linguagem” das ciências, podemos encontrar outros atributos para aquela substância que chamamos vida. Concebida como uma substância que infinitamente se conserva e se desenvolve, metabolismo incessante, a vida mostra também uma outra característica: a simbiose. Dados recentes confirmam a hipótese do naturalismo cooperante de Pedro Kropotkine não é só aplicável às relações dentro duma mesma espécie e entre espécies, mas ainda dentro das formas celulares complexas e entre elas. Há mais duma década observava já William Trager (Symbiosis, Van Nostrand Reinhold Co., Nova Iorque, 1970: VII): O conflito existente na natureza entre organismos diversos foi largamente divulgado e popularizado pelas expressões “luta pela vida” e “sobrevivência do mais forte”. Poucos se dão conta, porém, que a cooperação entre organismos diferentes – a simbiose – é igualmente  importante e que “o mais forte” pode ser aquele que mais ajuda o outro a sobreviver.

Consciente ou não, esta definição do “mais forte” não é só uma mera conjectura científica dum ilustre biólogo; é também um juízo ético idêntico ao que Kropotkine extraía do seu trabalho de naturalista e do seu ideal de anarquista. Trager sublinha que a integração “quase perfeita” dos “microrganismos simbióticos na economia do hospedeiro (…) levou à hipótese de que certos organismos intracelulares pudessem ter sido na origem microrganismos independentes.” Na verdade os cloroplastas, que desempenham a fotossíntese nas plantas de células eucarióticas, são estruturas definidas que se replicam por divisão, têm um ADN característico, semelhante ao das bactérias cocoformes, sintetizam as suas próprias proteínas e estão envolvidas por uma dupla membrana.

O mesmo se pode dizer das mitocôndrias, “centrais eléctricas” das células eucarióticas. As primeiras investigações neste campo remontam à década de 60 do século XX e foram desenvolvidas com muito entusiasmo por Lynn Margulis (Symbiosis in cell evolution, W. H. Freeman and Co., San Francisco, 1981) em numerosos artigos e livros sobre a evolução celular. Como se percebe a célula eucariótica é a unidade morfológica elementar de todas as formas complexas de vida vegetal e animal. Também os fungos apresentam esta estrutura celular provida de núcleo. As células eucarióticas são aeróbias e incluem várias subclasses claramente definidas. Ao invés, as células procarióticas não têm núcleo, são anaeróbias, menos especializadas e, segundo Margulis, são os antecedentes evolutivos das eucarióticas. As procarióticas são a única forma de vida que podia sobreviver e prosperar na atmosfera terrestre primitiva, onde apenas existia uma quantidade mínima de oxigénio.

Margulis conjecturou e largamente demonstrou que as células eucarióticas consistem numa adaptação simbiótica funcional de procarióticas tornados interdependentes umas com as outras.  Os flagelados eucarióticos tornaram-se espiras anaeróbias; as mitocôndrias fizeram-se bactérias capazes de respiração e de fermentação e os cloroplastídeos deram lugar às algas verde azuis recentemente classificadas como cianobactérias. Esta teoria, amplamente aceite hoje entre os biólogos, retém que os antepassados fagócitos das eucarióticas tinham absorvido, sem os digerir, espiras, protomitocôndrias (que Margulis sugere possam ter invadido os seus hospedeiros) e, no caso das células da fotossíntese, cianobactérias e clorobactérias de forma arredondada. As diversas formas aeróbias de vida teriam assim tido origem num processo simbiótico que integrou uma variedade de microrganismos naquele que pode ser definido como um organismo colónia: a célula eucariótica. O mutualismo cooperante, não predatório, aparece assim como o princípio guia para a evolução das formas da vida aeróbia altamente complexa que hoje conhecemos.

A perspectiva de que a vida e todos os seus atributos estão latentes na substância enquanto tal e de que a evolução biológica esteja profundamente radicada na simbiose e no mutualismo indica como é importante redireccionar a nossa noção de “matéria” como substância activa. Observava Manfred Eigen (Molecular self organization and the early stages of evolution, inQuartely review of biophysis, vol. IV, n.º 2/3, p. 202) que a auto-organização molecular sugere que a evolução “se apresenta como evento inevitável dada a presença duma certa matéria com específicas propriedades auto-catalíticas e dum fluxo limitado de energia livre, isto é, de energia solar, necessária para compensar a produção fixa de entropia.” Com efeito esta actividade auto-organizativa vai além da emergência e da evolução da vida e diz respeito àqueles factores aparentemente inorgânicos que produziram e mantêm “um ambiente bioticamente favorável ao desenvolvimento de formas de vida cada vez mais complexas”. Como sublinha Margulis, sintetizando a hipótese Gaia, elaborada por ela e por James E. Lovelock, não é mais sustentável que a vida haja sido constrangida a adaptar-se a um ambiente independente, geológica e meteorologicamente determinado. Este dualismo entre mundo vivente e não vivente – baseado em mutações casuais e pontuais das formas de vida, que por sua vez determinam quais as espécies que se salvam e as condenadas – aparece substituído pela noção mais estimulante que a vida, como diz Margulis, “produz grande parte do seu ambiente”. E ainda: “certas propriedades da atmosfera, da terra e da hidrosfera são controladas para e pela biosfera.”

Comparando planetas sem vida como Marte ou Vénus com a Terra, Margulis nota que a alta concentração de oxigénio na nossa atmosfera é anómala quando confrontada com o anidrido carbónico dos outros planetas. Demais “a concentração de oxigénio na atmosfera terrestre permanece constante, não obstante a presença de azoto, metano, hidrogénio e outros reagentes potenciais”. Na realidade a vida tem um papel activo na manutenção das moléculas de oxigénio livre na atmosfera. O mesmo se pode dizer para a alcalinidade e do nível moderado de temperatura da superfície terrestre. Diz Margulis (op. cit., pp.348-49): As anomalias da atmosfera terrestre são outra coisa que casualidade. As temperaturas das regiões tropicais e das temperadas divergem dos valores que teríamos por interpolação entre os valores correspondentes de Marte e Vénus e os desvios que têm lugar na maior parte dos organismos. O oxigénio mantém-se em cerca de vinte por cento, a temperatura média dos estratos inferiores da atmosfera é de cerca de 22 graus centígrados e o pH apenas acima de 8. Estas anomalias a escala planetária conservaram-se por longo tempo. A estranha composição química da atmosfera terrestre manteve-se por milhões de anos, apesar do tempo de permanência dos gases reagentes se medirem apenas em meses ou anos. Margulis conclui assim: É altamente improvável que o acaso possa explicar o facto da temperatura, o pH e a concentração de elementos nutritivos hajam sido por grande espaço  de tempo os adequados à vida. Ainda mais improvável, se pensarmos que os principais perturbadores dos gases atmosféricos são os organismos, antes de mais os micróbios. Ao invés, parece mais provável o investimento de energia, por parte dos viventes, numa actividade de conservação destas condições.

Em suma, até a Síntese Moderna, para usar a terminologia empregue por Julian Huxley para definir o modelo neo-darwinista de evolução orgânica introduzido nos anos 40, foi posta em discussão pela sua perspectiva limitada e talvez demasiado mecânica. A imagem dum ritmo evolutivo lento, saído da interacção de pequenas variações seleccionadas pela sua adequação ao ambiente, não se afigura sustentável, como parecia ser, a partir das descobertas fósseis disponíveis. A evolução aparece hoje mais esporádica, muitas vezes intervalada por longos períodos de estagnação. Espécies altamente especializadas tendem a modificar-se ou a desaparecer por causa dos reduzidos nichos ecológicos em que podem sobreviver, enquanto espécies menos especializadas se transformam mais lentamente e desaparecem com menos frequência, graças aos ambientes mais variados em que conseguem sobreviver. Esta hipótese, dita “hipótese de efeito”, adiantada por Elisabeth Vrba (citada por Robert Lewin, “Evolutionary theory under fire”, Science, vol. 210, 1980, p. 885), sugere que a evolução seja mais uma tendência imanente e não tanto o produto de forças selectivas externas. As mutações acasalam mais um mosaico voluntário do que pequenas e casuais modificações na estrutura e nas funções das formas de vida. Como alguém observou, enquanto a selecção das espécies atribui a força evolutiva às condições do ambiente, a “hipótese de efeito” endereça essa forças a parâmetros internos que determinam os níveis de especialização e de extinção.

A ideia de pequenas e graduais mutações casuais, uma teoria que concorda com a concepção vitoriana de transformações evolutivas estritamente fortuitas, pode ser posta em causa apenas por razões de base genética. Não só um gene mas um cromossoma, em mutáveis combinações entre si, podem ser modificados quimicamente e mecanicamente. As transformações genéticas podem ir de “simples” mutações pontuais a novas sistematizações de cromossomas muitos mais consistentes. Demais parece evidente, sobretudo no seguimento de resultados experimentais, serem possíveis trocas de mutações morfológicas geneticamente determinadas. Pequenas modificações genéticas podem dar lugar a transformações morfológicas, relevantes ou irrelevantes, e o mesmo vale para as grandes mutações genéticas.

A observação de Trager de que a espécie “mais adequada” pode ainda ser “aquela que mais ajuda uma outra viver” é uma fórmula excelente para refazer o quadro da evolução natural, vulgarmente pintado como drama insensato de sangrenta competição visando a sobrevivência. Existe uma rica literatura, que, remontando ao fim do século XIX, sublinha o papel desempenhado pela cooperação intra e entre específica na capacidade de sobrevivência das formas de vida no planeta. O famoso Apoio mútuo de Kropotkine sintetizou o conhecimento então disponível e juntou a palavra mutualismo  ao vocabulário biológico. Os primeiros capítulos desse livro resumem trabalhos contemporâneos de Kropotkine, as suas pesquisas na Ásia oriental e ainda uma montanha de dados novos sobre insectos, crustáceos, pássaros, as associações para caça dos “mamíferos carnívoros”, as sociedades de roedores, e outras sequências idênticas. O material é em grande parte intra-específico, mesmo que os biólogos mutualistas de há um século não tivessem ainda evidenciado os sistemas de apoio específico que nós sabemos hoje existirem numa quantidade muito maior do que Kropotkine podia imaginar. Buchner escreveu em 1953 um volume inteiramente dedicado à endo-simbiose dos animais com microrganismos vegetais; Henry, por sua fez,  no meado da década de 60 actualizou o estudo desta questão nos dois volumes de Symbiosis. As provas que este último apresenta sobre esse modo particular de mutualismo que é a simbiose inter-específica são, dizendo pouco, massivas. Ainda mais do que Apoio mútuo de Kropotkine, o trabalho de Henry documenta as relações mutualistas a partir da relação inter-específica entre rhizobium e legumes, passando pelas associações vegetais, pelo comportamento simbiótico entre animais, para chegar ao grande mecanismo homeostático de escala planetária ao nível das relações bioquímicas.

A adaptação raramente tem um significado biológico como pura sobrevivência e adequação ao meio das espécies. Se ficar por este nível de superfície, torna-se apenas uma empresa de adaptação individual que não consegue explicar a necessidade dos sistemas vitais de apoio que todas as espécies têm, seja por sistema autotrófico ou heterotrófico. A teoria evolutiva tradicional tende a abstrair uma espécie do seu ecossistema, isolando-a e considerando a sua sobrevivência de modo muito abstracto. Por exemplo, a interacção de mútuo apoio entre os organismos de fotossíntese e os herbívoros, longe de ser a forma mais simples de acção predatória ou de heterotrofia, é ao invés indispensável até para a fertilidade do solo, graças aos dejectos animais, à disseminação das sementes, à reciclagem dos cadáveres num ecossistema que se enriquece a cada momento. Mesmo os grandes carnívoros, predadores dos herbívoros, têm uma função vital, de controle demográfico selectivo, eliminando os animais doentes ou velhos, para os quais a vida estaria destinada a ser sobretudo sofrimento.

Paradoxalmente se desvalorizamos o significado do verdadeiro sofrimento e da crueldade reduzindo-o a dor e a acção predatória, do mesmo modo desvalorizamos o significado da hierarquia e da dominação roubando-lhes o sentido social e reduzindo-as a relações transitórias entre indivíduos mais ou menos violentos no seio duma específica comunidade gregária animal. O medo, a dor e a morte que um matilha de lobos dá a uma velha rena doente dão testemunho não da crueldade da natureza mas antes dum modo de morrer adequado à renovação orgânica e à estabilidade ecológica. O sofrimento e a crueldade pertencem ao mundo da angústia pessoal, da dor inutilmente infligida, da degradação moral de quem atormenta a vítima. Estas noções não são aplicáveis à eliminação dum organismo que já não pode funcionar a um nível que torna a vida tolerável. É perverso associar qualquer dor a sofrimento, qualquer acção predatória com crueldade. Sofrer a angústia da fome, os traumas psicológicos, a insegurança, o abandono, a solidão, a morte na guerra, as doenças incuráveis, nada disto pode ser comparado com a breve dor duma morte quase insciente dum acto predatório. As aflições da natureza são raramente tão cruéis como os sofrimentos sistemáticos e organizados infligidos pela sociedade humana aos seres vivos, animais ou homens, de perfeita saúde, sofrimento que só a mente humana pode conceber.

daf_in_kobaneNem a dor, nem a crueldade, nem a agressão, nem a competição explicam de forma satisfatória o aparecimento e o desenvolvimento da vida. Para uma melhor explicação devíamos tomar em consideração o mutualismo e um conceito de “adaptação” que reforce os sistemas de mútuo apoio e que responsabilize o mais adaptado. Se estamos dispostos a reconhecer a natureza auto-organizativa da vida, o papel decisivo do mutualismo e a sua dinâmica evolutiva impõem-nos a redefinição de “adaptação” em termos de ecossistema. E se estamos dispostos a ver a vida como um fenómeno que pode modelar e conservar aquele mesmo “ambiente” que se considera como fonte selectiva da sua evolução, uma pergunta crucial se impõe: faz sentido continuar a falar de “selecção natural” como força motriz da evolução biológica? Não precisaremos antes de falar em “interacção natural” para darmos conta de forma plena do papel da vida no criar e no orientar as forças que explicam a sua evolução? A biologia contemporânea dá-nos um quadro de interdependências muito mais importante na modelação das formas de vida do que tudo aquilo que um Darwin, um Huxley ou os autores da Síntese Moderna poderiam ter previsto. A vida é necessária não apenas em termos de auto-conservação mas até por causa da sua auto-formação. “Gaia” e a subjectividade são mais que efeitos da vida: são os seus atributos integrais. A grandeza duma autêntica sensibilidade ecológica, bem diferente do “ambientalismo” superficial hoje dominante, é que ela nos dá a possibilidade de generalizar de modo radical as inter-relações mutualistas, fazendo da variedade em que assenta o fundamento da estabilidade. A sensibilidade ecológica dá-nos uma perspectiva coerente que explica a realidade no sentido pleno do termo, dando-lhe uma explicitação ética.

Desde a longínqua idade helénica até ao primeiro Renascimento a “natureza” foi vista sobretudo como bússola de orientação ética, graças à qual o pensamento humano encontra o seu sentido e a sua coerência. A natureza não humana não era externa à natureza humana e à sociedade. Ao invés, a mente era apenas uma parcela dum logos cósmico que fornecia critérios objectivos para os conceitos pessoais e sociais de bem e de mal, justo e injusto, belo e feio, amor e ódio e, em suma, para todo um conjunto de valores, graças aos quais era possível caminhar em direcção da virtude e duma existência feliz. As palavras dike e andike – justiça e injustiça – compunham a cosmologia dos filósofos gregos da natureza. Sobraram até hoje traços desses valores em numerosa terminologia da moderna linguagem das ciências da natureza, por exemplo em palavras como “atracção” ou “repulsa”.

O erro da cosmologia antiga não reside na sua orientação ética mas na sua aproximação dualista à natureza. Por causa da maior importância atribuída à especulação sobre a experimentação, a antiga cosmologia cometeu o seu maior erro ao tentar ligar uma natureza fecunda auto-organizada com uma força vital alheia ao mundo natural. A dike de Parménides é, como o élan vital de Bergson, um substituto das propriedades auto-organizantes da natureza, não é uma força interna à natureza, uma força que explique a ordem do mundo. Até nas cosmologias monísticas que procuram juntar eticamente a humanidade e a natureza existe um dualismo latente, um deus ex machina que corrige os desníveis, seja num universo desequilibrado, seja numa sociedade insensata. A verdade tem uma coroa invisível, é uma espécie de verdade de Deus ou do Espírito, já que do mesmo modo que não se confia no desenvolvimento espontâneo da natureza também se espera que o Estado, como herança da “civilização”, funcione.

Estes arcaísmos, com as suas vagas teologias e as suas teleologias rigidamente elaboradas, foram justamente avaliados como armadilhas socialmente reaccionárias. Contaminaram as obras de Aristóteles e de Hegel, como magnetizaram as mentes escolásticas medievais. Mas os erros da antiga filosofia da natureza não residem tanto na tentativa de colher uma ética da natureza mas antes no espírito de dominação que desde o princípio a envenenaram, com a imposição dum “arbítrio” sobrenatural, quase sempre autoritário, que avaliava e corrigia os desequilíbrios ou injustiças que tinham lugar na natureza. Por isto os deuses antigos estavam sempre presentes, por muito racionais que estas primeiras cosmologias pudessem querer ser. Mereciam eles, os deuses, ser exorcismados para que se pudesse construir um contínuo mais significativo e democrático entre natureza e humanidade. Tragicamente, o pensamento do Renascimento tardio não foi mais democrático do que o pensamento anterior; nem Galileu na ciência, nem Descartes na filosofia conseguiram de modo satisfatório esta operação cirúrgica. Eles e os seus herdeiros separaram a natureza da mente, recriando outras divindades, sob a forma de preconceitos científicos e epistemológicos, não menos infectados pela dominação do que a tradição anterior que haviam demolido.

Encontramo-nos hoje ante a possibilidade da natureza – não como dike, justitia, Deus, Espírito ou mesmo élan vital – mostrar eticamente os seus próprios termos. O mutualismo é um bem em si, em virtude da sua função de estímulo à evolução da variedade natural. Não temos necessidade de nenhuma dike nem de nenhum cânone de “objectividade científica” para afirmar a esperança natural e social da vida e do seu papel. Do mesmo modo, a liberdade é um bem em si: a sua reivindicação funda-se naquela que Hans Jonas chamou com finura a “íntima natureza” das formas de vida, a sua “identidade orgânica”, a “aventura da forma”. O esforço visível de auto-identificação que qualquer ser vivo, no decurso da sua continuidade metabólica, para se conservar, põe em prática revela, até nos mais rudimentares organismos, um sentido de identidade e de actividade selectiva que Jonas apropriadamente viu como provas duma “liberdade embrionária”.

Enfim, a crescente complexidade e variedade que, através do curso da evolução, transforma as partículas subatómicas naquelas formas conscientes e auto-reflexivas que chamamos seres humanas, não pode senão levar-nos a reflectir sobre a existência dum telos, entendido este em sentido largo, e sobre uma subjectividade latente na substância que por fim dá lugar à mente e à inteligência. Na reactividade da substância, na sensibilidade dos microrganismos menos desenvolvidos, na formação dos nervos, dos gânglios, da espinal medula, no desenvolvimento estratificado do cérebro, percebe-se uma evolução da mente tão irresistivelmente coerente que a tentação de a definir, ao modo de Manfred Eigen, como “inevitável” é grande. É difícil acreditar que a casualidade pura possa explicar a capacidade que as formas de vida têm para responder neurologicamente aos estímulos, de desenvolver sistemas nervosos altamente organizados, de prever, ainda que de forma confusa, os resultados do seu comportamento e por fim  de conceptualizar de forma clara e simbólica esta antecipação. Uma verdadeira história da mente deveria começar com os atributos da substância, talvez logo nos obscuros esforços dos cristais mais simples para se perpetuarem, na evolução do ADN de fontes químicas ignoradas até ao momento em que manifesta a seu modo aquele princípio de replicação já presente no mundo inorgânico, e na diferenciação de moléculas orgânicas vivas ou não vivas como resultado daquelas características intrínsecas de auto-organização que definimos como propriedade da vida.

O estudo da natureza – deixando de lado todos os preconceitos das epistemologias antigas – mostra uma modelação autónoma da evolução, uma “semente”, por assim dizer, implicitamente ética. O mutualismo, a liberdade e a subjectividade não são valores exclusivamente humanos; estão presentes, ao menos de forma embrionária, nos mais amplos processos cósmicos e orgânicos, que não necessitam de ser movidos por nenhuma divindade aristotélica e não precisam de ser revivificados por nenhum espírito hegeliano. Se a ecologia social conseguir perspectivar de forma coerentemente unitiva o mutualismo, a liberdade e a subjectividade como aspectos duma sociedade cooperativa, livre de dominação e orientada pela reflexão e pela razão, conseguirá então remover as taras que envenenaram desde o início a ética naturalista e dar uma voz ética comum à natureza e à humanidade. Não teremos mais necessidade do dualismo cartesiano ou do mais recente dualismo neo-kantiano que deixa muda a natureza e isola a mente do vasto mundo que a rodeia. Desgastar a comunidade, paralisar a espontaneidade, que, no coração mesmo da realidade auto-organizada, se move em direcção a uma crescente complexidade e racionalidade, limitar a liberdade, tudo isto significa negar a “semente” da natureza, negar a nossa hereditariedade nos processos evolutivos, negar a nossa função no mundo da vida. Se não formos bem sucedidos na criação duma sociedade ecológica e na articulação duma ética ecológica, ficará em jogo, não entrando sequer em linha de conta com as péssimas consequências para o ambiente, nada menos do que a nossa legitimidade ética.

O mutualismo, a auto-organização, a liberdade e a subjectividade, sustentados pelos princípios ecológicos de unidade na diversidade, de espontaneidade e de relações não hierárquicas, são assim fins em si mesmos. À parte a responsabilidade ecológica que estes fins delegam na nossa espécie enquanto voz auto-reflexiva da natureza, eles definem-nos literalmente. A natureza não existe para nosso uso, ela limita-se a legitimar a nossa existência ecológica e a nossa unidade. Como a noção de ser, estes princípios de ecologia social não têm necessidade de explicações, apenas de verificações. São elementos dumaontologia ética, não regras dum jogo que possam ser mudadas para adequar exigências pessoais.

Uma sociedade que nega o núcleo essencial desta ontologia levanta o problema da sua realidade mesma como entidade significativa e racional. A “civilização” deixou-nos em herança uma concepção de alteridade como “polarização” e “desafio” e da essência orgânica, visando a identificação pessoal, como “guerra” permanente. Tais concepções arriscam-se a minar por inteiro a legitimidade ecológica da humanidade e a realidade da sociedade como dimensão potencialmente catalisadora do mundo que nos rodeia. Bombardeados por falsas percepções duma natureza em constante oposição à humanidade, redefinimos de tal modo a nossa essência humana que a guerra passou a ser o preço da paz, o controle o preço da consciência, a dominação o preço da liberdade, o antagonismo o preço da reconciliação. Num tal contexto auto-destrutivo, estamos a construir um Valhalla que por certo se tornará uma mina para as labaredas devoradoras de Ragnarok.

Não obstante, dos conceitos de alteridade e de essência da vida, pode tirar-se um sistema filosófico e social completamente distinto. Se tivermos uma ampla visão ecológica da natureza e concebermos um mundo benigno que a vida plasmou no curso da evolução, podemos então formular uma ética da complementaridade que se alimenta da diversidade em lugar duma ética que tutela a essência individual por meio duma alteridade ameaçadora e invasora. Na verdade a essência da vida pode ser vista como expressão de equilíbrio mais do que como mera resistência à entropia e ao fim de qualquer actividade. A própria entropia pode ser vista como uma das características dum mais vasto metabolismo cósmico, de que a vida é só a dimensão anabólica mais visível. Um tal metabolismo geral pode ser visto como resultante da integração, da comunidade e do apoio mútuo, sem que por isso se diminua a identidade individual e a espontaneidade singular.

Destarte duas alternativas estão neste momento frente a frente. Podemos tentar apaziguar o espírito guerreiro de Odin, pacificando-o a ele e à sua corte, abrindo o Valhalla ao vento da reflexão e da ponderação. Tentaremos então remendar os esfarrapados pactos que outrora sustinham precariamente em conjunto o mundo e passar com eles a melhores e mais benévolas situações. Podemos até esperar que Odin se convença a arrumar a lança, a guardar a armadura e a prestar ouvidos às doces vozes que aconselham o diálogo e a compreensão. Em alternativa os nossos esforços podem dar lugar a uma reviravolta radical: arruinar Odin, de cuja senilidade testemunha uma sociedade abortada. Abandonaremos então os mitos contratuais que “harmonizam” um mundo intrinsecamente dividido, esses mitos mantidos de pé pela épica nórdica com o exílio e as cadeias. O nosso desafio será então criar um novo mundo e uma nova sensibilidade, a partir duma base de reflexão pessoal e duma ética de que somos herdeiros enquanto resultado do incessante movimento evolutivo em direcção à consciência. Temos a possibilidade de nos legitimar como expressão acabada da mente no mundo da natureza, como racionalidade que favorece a diversidade natural e integra os processos naturais com sucesso, uma certeza e uma direcção que são porém incompletos na natureza não humana.

A “civilização” tal como a conhecemos hoje é mais muda do aquela natureza em nome da qual ela, a civilização, pretende falar e mais cega do que aquelas forças elementares que pretende controlar. Esta “civilização” vive mergulhada no ódio ao mundo que a rodeia e no ódio por si. As suas cidades estão feridas, esventradas, as terras degradadas, a água e o ar envenenados; a sua mesquinha cobiça é uma acusação diária à sua imoralidade odiosa. Um mundo assim empobrecido é talvez irrecuperável, ao menos no quadro das suas actuais estruturas institucionais e éticas. Se o fogo de Ragnarok purificou o mundo nórdico, o apocalipse nuclear que ameaça engolir o planeta poderá deixá-lo irremediavelmente inútil para a vida, cadáver testemunhando um fracasso cósmico. Este planeta merece um destino melhor do que aquele que parece esperá-lo no futuro – já que a sua história, incluída a humana, se não mais houvesse, foi rica de promessas, de esperanças, de criatividade.

MURRAY BOOKCHIN

[tradução de A. Cândido Franco]

[Curdistão] A primeira Kobanê, por Janet Biehl

Moradoras de Sere Kaniye

Moradoras de Sere Kaniye


Postado em Resistência Curda, por , em 12 de fevereiro de 2015

Originalmente postado em Ecology or Catastrophe, 1 de fevereiro de 2015
Tradução geral por Pedro Faria

Escrito por Janet Biehl

Em 7 de dezembro de 2014, a delegação de acadêmicos[1] viajou para Serê Kaniyê, onde visitaram o centro de comando local das Unidades de Proteção Popular (YPG) e do Partido de União Democrática (PYD), um bairro que fora um campo de batalha, e a área de fronteira com a Turquia.

O recente sucesso do YPG e do YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres) na libertação de Kobanê merece todos os elogios que tem recebido, mas Kobanê não foi a primeira vez que as forças de defesa de Rojava venceram os jihadistas fanáticos e assassinos. Em novembro de 2012, Jabhat al Nusra, um grupo derivado da Al Qaeda, atacou e ocupou a cidade de Serê Kaniyê, na fronteira oeste do cantão de Cirize. Assim como em Kobanê, o YPG derrotou as forças ocupantes e libertou a cidade.

Com 50 mil habitantes, em sua maioria curdos, mas também Chechênios, Armênios e Arameus e Árabes, Serê Kaniyê se situa exatamente na fronteira com a Turquia, que a separa da cidade de Ceylanpınar. As duas cidades foram separadas no fim da primeira guerra mundial, quando as potências vencedoras da guerra criaram os estados da Síria e da Turquia a partir das ruínas do Império Otomano.

As duas cidades permaneceram divididas depois de quase um século de relações tensas entre Síria e Turquia. “A fronteira nos separa de nossos parentes”, diz o guia à delegação. “As pessoas ainda se referem a Ceylanpinar como a Serê Kaniyê acima da linha, enquanto nós somos a Serê Kaniyê abaixo da linha”.
A revolta síria começou na primavera de 2011 e desenvolveu-se rapidamente para uma guerra civil brutal, com vários grupos radicais islâmicos dentre os grupos lutando contra o regime de Assad. Antes do amanhecer de 8 de Novembro de 2012, um desses grupos, a Frente Al Nusra, entrou num dos bairros residenciais de Serê Kaniyê, o som de metralhadores e helicópteros quebrando o silêncio. As centenas de invasores tomaram casas de habitantes locais e transfomaram-nas em bases militares.

Apesar de Al Nusra ser parte da oposição ao regime de Bashar al-Assad, os invasores entraram em Serê Kaniyê não pelo sul, mas pelo norte, a partir da Turquia — cruzaram a fronteira sem maiores problemas. Como apontou a co-presidenta do PYD, Asiya Abdullah, “os ataques estão vindo da Turquia, numa clara violação do direito internacional. Nós requisitamos a todos os Estados e à ONU que condenem o governo turco por essa violação dos direitos humanos”. No entanto, o apelo não recebeu respostas e foi pouco noticiado pelos grandes meios de comunicação internacionais.

Aviões do regime de Assad bombardearam a cidade, buscando atingir as posições dos jihadistas, mas as bombas mataram também ao menos dez civis, além de terem deixado outros setenta feridos. Cinquenta casas tiveram que ser demolidas e alguns milhares de residentes fugiram para o leste em um ou dois dias. O YPG começou a se mobilizar para defender a cidade.

Sete dias após o ataque inicial, em 19 de novembro, uma coalizão de partidos curdos chamou uma marcha para protestar contra a ocupação. Civis de Dirbespiye, Qamişlo e Amude — outras cidades de Rojava — tomaram as estradas que levam à Serê Kaniyê, mas se depararam com barreiras montadas pelo Al Nusra. O co-líder do conselho popular local, Abid Xelil, apareceu acompanhado de forças de segurança curdas (Asayiş) e exigiu que os extremistas armados removessem as barreiras e permitissem a continuação da marcha. Como respostas, os jihadistas abriram fogo, matando Xelil e um outro manifestante.

De acordo com a co-presidenta Abdullah, Xelil era tido como “uma figura simbólica da compreensão inter-étnica” em Serê Kaniyê. “Aqui, árabes, arameus, armênios e curdos vivem juntos harmoniosamente. […] A Turquia tentar destruir essa convivência harmoniosa e provocar uma guerra entre árabes e curdos”.

IMG_2451Em 20 de Novembro, o exército turco ajudou a invasão do Al-Nursa através de disparos de mísseis de curto alcance a partir do outro lado da fronteira. Os jihadistas em Sere Kaniyê deram aos turcos as coordenadas das posições do YPG, para melhor acertá-las.

Durante a resposta do YPG à ocupação da cidade, observadores notaram que os jihadistas feridos era levados em ambulâncias turcas para o lado norte da fronteira, em direção aos hospitais de Ceylanpinar, enquanto os feridos curdos eram impedidos de cruzar a fronteira para receber cuidados no mesmo hospital. Diante desses fatos, é difícil acreditar que a invasão de Serê Kaniyê não tenha sido uma operação turca, com ordens de Ancara e operada a partir de Ceylanpinar.

No dia 21 de novembro, cinco tanques turcos atravessaram a fronteira, mais uma vez para apoiar Al Nusra. Naquele momento, os jihadistas já ocupavam quase toda a cidade, exceto os distritos de Hawarna e Xiraba. No entanto, o YPG resistiu ao avanço até que, na manhã do dia 23, os jihadistas pediram uma trégua. Apesar de alguns pequenos combates, a trégua persistiu por dois meses.

Dois meses depois, em 16 de janeiro, mais ou menos 1500 jihadistas utilizaram novamente o território turco para entrar em Serê Kaniyê, dessa vez com vários tanques. O YPG resistiu bravamente mais uma vez, destruindo três tanques e matando entre 100 e 120 jihadistas e com apenas alguns mártires do nosso lado. O Al Nusra recebeu novos reforços e tentou investir sobre a estação de polícia, o palácio de governo e uma igreja cristã assíria. Mas nesse momento o YPG já havia liberado diversos bairros, inclusive o posto de fronteira com a Turquia. Em 30 de janeiro, o Al Nusra havia sido basicamente expulso da cidade.

IMG_2473O YPG e o Exército Livre da Síria (FSA) acordaram um cessar-fogo em 17 de Fevereiro, também aceito pelo Al Nusra. O acordo previa a saída de grupos armados de Serê Kaniyê e a constituição de um conselho civil, composto por representantes dos diversos povos sírios, que controlaria o posto de fronteira. Salih Muslim, co-presidente do PYD, afirmou que “o lado curdo está plenamente sustentando plenamente o acordo… Nós temos que formular e garantir os direitos dos diversos grupos étnicos e religiosos, assim como os das mulheres, por meio de uma constituição democrática.

Mas os invasores — apoiados pelos turcos — se recusaram a desistir e, em 16 de julho, os jihadistas atacaram Serê Kaniyê novamente. Dessa vez a resistência do YPG foi rápida e eficiente: os invasores foram repelidos em dois dias e o controle sobre a cidade foi restabelecido. Alguns passaportes turcos foram encontrados em áreas anteriormente ocupadas pelo Al Nusra.

Relegado às áreas rurais ao redor de Serê Kaniyê, o Al Nusra, agora com apoio do estado islâmico (ISIS), dedicou-se à pilhagem, ao sequestro e à execução de civis, tanto curdos quanto árabes. Entre o dia primeiro e o dia 5 de Novembro, o YPG efetuou uma operação de liberação das vilas rurais. Na medida em que as vilas eram liberadas, foram recuperados veículos, munição e armas, além de material logístico. Bens pilhados pelos jihadistas foram retornados aos seus donos e o conselho popular distribuiu pão aos habitantes. Os residentes árabes estavam tão aliviados quantos os curdos diante da liberação, expressando o alívio com slogans de “Long Live the YPG”.

O Centro de comando do YPG

Quando a delegação de acadêmicos chegou em Serê Kaniyê, a vida cotidiana já havia sido retomada, apesar da continuidade dos enfrentamentos contra o estado islâmico a 25km da cidade. No centro administrativo e de comunicação do YPG em Serê Kaniyê, um porta-voz nos contou que “o Deash [ISIS] está em uma posição defensiva… mantivemos uma operação contra eles nas últimas duas semanas… e até mesmo alguns de seus comandantes de alto escalão foram mortos. Agora estamos nos aproximando do centro da posição inimiga.”

At the YPG Command Center

 

O YPG e a sua contraparte feminina, o YPJ, se autodenominam “unidades de defesa popular”, explicou o porta-voz, Dr. Huseyin Koçer: eles defendem uma sociedade e não um estado, pois Rojava é auto-governada por meio de uma democracia popular. “Nós estamos aqui pelo povo, pela sociedade, é assim que nos compreendemos”. Mesmo assim, Dr. Koçer enfatizou que “a mobilização que vemos aqui é mais forte do que aquela que veríamos em dez Estados juntos!”

A cooperação inter-religiosa e inter-étnica entre curdos, assírios, árabes, aramaicos e outros grupos é crucial para a a auto-defesa popular: “Somente assim podemos derrotar aqueles que nos atacam, tentam nos expulsar e colocar uma comunidade contra a outra, disse o Dr. Koçer. Ao invés de discriminar contra as minorias não-curdas, a vontade comum das comunidades auto-governadas, expressa pelo YPG, é proteger os valores culturais e as tradições das minorias. “Centenas de árabes participam do YPG e do YPJ”, ele adicionou, e os assírios formaram uma milícia, chamada Sutoro, que opera sob a liderança do YPG. Um combatente chechênio nos contou também no centro de comando que seu povo chegou na região algumas gerações antes, “mas nós já nos tornamos um povo dessa região, assim como os outros. Aderimos às forças do YPG e do YPJ e juntos protegemos a região”.

“O que acontece quando o YPG e o YPJ liberam uma vila árabe?”, perguntamos.
“Muitos dos habitantes árabes apoiam o Daesh”, respondeu o Dr. Koçer, “mas nós não os atacamos… Sabemos que muitos não gostam do Daesh, mas sentem-se obrigados a apoiá-los por medo. O Daesh rouba e pilha onde quer que estejam… Dizem cometer esses crimes em nome do Islã, mas eles não tem nada em comum com o Islã… Nós tentamos fortalecer a capacidade de mobilização dos habitantes árabes… Tentamos criar consciência da liberdade e da liberação; tentamos comunicar a necessidade de auto-organização, não apenas para sustentar a vida cotidiana, mas também a vida política.”

O YPG, disse o porta-voz, está tentando levar o auto-governo democrático para as vilas árabes: “o conselho popular de Serê Kaniyê vai até as vilas que liberamos para ajudar e organizar e às vezes nós nos juntamos a eles… Nós ajudamos e apoiamos os habitantes locais a estabelecer conselhos em suas comunidades… Discutimos com eles e propomos nosso projeto democrático e seus objetivos”.

“E como eles recebem sua presença? Eles não aderem por medo também?”, perguntamos. “Nós não vamos a esses lugares para fazê-los parecidos conosco. Queremos nos assegurar que eles possam expressar sua própria vontade política. Por meio de discussões, nós tentamos criar uma consciência libertadora. Muitas vilas acabam nos apoiando e por fim aderindo ao YPG”.

Após a vitória sobre o Daesh em Serê Kaniyê e o progresso feito em Kobanê, a moral do YPG está em alta, nos diz Dr. Koçer, “não importa quantas vezes eles nos ataquem, nós não mais aceitaremos nenhuma ocupação… por nenhum grupo… Estamos preparados para ser ser o túmulo de todos aqueles que nos atacarem”. “O Daesh é um grupo que comete crimes contra toda a humanidade”, ele continuou, “eles representam uma ameaça a todas as comunidades do mundo. Nós resistimos a essa força: aqui e agora, mas em qualquer outro lugar no futuro”.

Apesar de toda a força da resistência, ela sofre com a falta de meios materiais, pois Rojava está sob um embargo político e econômico da Turquia e, com algumas exceções, do KRG (Governo Regional Curdo, que controla as áreas curdas no norte do Iraque). Por isso, “não podemos tratar os feridos adequadamente: temos médicos, mas não temos medicamentos… É extremamente necessário suspender esse embargo. Queremos ser vizinhos da Turquia, mas o estado turco se mobiliza ativamente contra nós, dando apoio e facilitando os ataques do Daesh”.

O porta-voz pediu à delegação acadêmica para levar ao mundo ocidental a mensagem de que é necessário pressionar a Turquia para afrouxar as restrições ou pelo menos abrir um corredor humanitário para Rojava para que medicamentos e armas possam alcançar as regiões curdas. Aqueles que se comprometem a lutar contra o terrorismo devem fazer ao menos isso em apoio a um aliado corajoso, aos combatentes-democratas de Rojava.

O relato da batalha de liberação de Serê Kaniyê é baseado em relatos de Firat, Civaka Azad e Rojava Report. Os comentários do YPG foram reduzidos para manter o texto conciso.

[1]Delegação de professores e estudantes que visitou Rojava em Desembro de 2014. Para o comunicado conjunto da delegação, acesse o link (inglês): http://roarmag.org/2015/01/statement-academic-delegation-rojava/

As Comunas e Conselhos de Rojava – Janet Biehl

Fonte: Resistência Curda

kobani

As Comunas e Conselhos de Rojava

No Sábado, 6 de Dezembro, a Delegação Acadêmica para Rojava reuniu-se em Qamislo com dois representantes de Tev-dem, o movimento por uma Sociedade Democrática. Abdulkerim Omar e Çınar Salih primeiramente nos deram uma contextualização do pensamento de Rojava sobre Estado e Democracia. Então, eles explicaram a estrutura da democracia auto-governada – as comunas e o sistema de conselhos – e ouviram nossas perguntas. Falando por meio de tradutores, Salih foi quem mais falou.

Nós construímos nossa democracia para que pessoas de várias nacionalidades vivam juntas. Nós somos novos, e cometemos erros, e nós estamos tentando impedir o Daesh [i.e Estado Islâmico]de entrar em Rojava. Outras delegações vieram aqui, mas nos agrada receber vocês aqui. Seu projeto está nos dando esperanças. Ainda não conquistamos a liberdade, mas aprendemos a lutar.

O sistema que estamos vivendo existe há cinco mil anos. Diferentes estágios da história têm dado-o diferentes nomes, mas em seu núcleo tem se mantido o mesmo, e seu pilar principal é o Estado. Isto precisa ser bem compreendido. Nos últimos cem anos as pessoas têm lutado contra o Estado, e elas conseguiram atingir independência historicamente, mas elas não atingiram a liberdade, porque elas não se emanciparam do Estado. Seu conceito de liberdade se encontra dentro dos limites do Estado.

O atual sistema de Estados-Nacionais abriu os portões para a grande crise que estamos vendo. Os Curdos também tiveram um papel nessa região – como nossos amigos arqueólogos descobriram, eles deixaram uma marca na história e na cultura. Nós entendemos enquanto Curdos que nossos problemas não serão resolvidos criando num novo Estado-Nacional. Como podemos superar esse caos com o mínimo de derramamento de sangue possível? Como arrumar uma solução apesar da existência das fronteiras de Estado?

Ao invés de independência de Estado, nós preferimos autonomia. A solução tem de ser mais profunda. O sistema de Estados Nacionais criou grandes prejuízos, então, as pessoas pensam que Árabes, Curdos e Turcos não se dão bem. Esta ideia tem sido reforçada pelo sistema de Estados Nacionais. Foi fixado nos cérebros das pessoas, com péssimas consequências. Isto excluiu condições de coexistência e cooperação entre os povos. Nós estamos lutando para nos livrar desses prejuízos e criar condições para a vida em comum.

Nós acreditamos que o sistema equivale à destruição sistemática das mulheres, e que a autonomia democrática equivale à liberação das mulheres. Por isto nossa revolução de Rojava é uma revolução das mulheres. Em Rojava não existe nenhum lugar na vida no qual as mulheres não tomem papel ativo. Uma das nossas maiores conquistas tem sido quebrar esse dogma predominante no Oriente Médio de que as mulheres são fracas e dependentes [lacking, usado como adjetivo no original], como é expressado de maneiras diferentes como nas leis da Sharia. Mas este é apenas um dos resultados da nossa revolução. Nós acreditamos que uma revolução que não abre caminhos para a libertação das mulheres não é uma revolução. Houveram revoluções na Líbia, Egito e Tunísia – houveram novos governos –, mas o mesmo status para as mulheres persistiu.

Nosso sistema se baseia nas Comunas, constituídas por vizinhanças de 300 pessoas. As Comunas têm co-presidentes, e há co-presidentes em todos os níveis, da Comuna à Administração do Canton*. Em cada Comuna há cinco ou seis comitês. As Comunas trabalham em duas funções. Primeira, elas resolvem problemas rápido e com antecedência – por exemplo, um problema técnico ou um problema social. Alguns trabalhos podem ser feitos em cinco minutos, mas você o banda para o Estado, e fica preso na burocracia. Assim, nós conseguimos resolver problemas rápido. A segunda função é política. Se nós falamos democracia verdadeira, decisões não podem ser tomadas de cima para baixo, elas tem que ser tomadas na base e então subirem os degraus. Há também Conselhos de Distrito [District Councils] e Conselhos Municipais [City Councils], até o Canton. O princípio é “poucos problemas, muitas soluções”.

Então, para que o governo não fique pairando no ar, nós tentamos preencher sua base. Existem perguntas sobre como esse sistema realmente se organiza. Então, vocês podem fazer perguntas.

Q: É um conceito muito interessante, e provavelmente existem tensões e desafios dentro desse sistema. Um é a tensão entre decisões de baixo e necessidades imediatas em nível de todo Canton. Por exemplo, provavelmente vocês têm de decidir de maneira centralizada que vocês precisam construir um moinho para fazer farinha. Ou vocês precisam decidir construir uma refinaria. Estrategicamente, estas coisas altamente importantes. Por outro lado, vocês têm este sistema de baixo para cima vindo das Comunas. Não é útil estabelecer infraestruturas semelhantes e muitas Comunas ou muitas Cidades. Então, vocês precisam de algum tipo de coordenação entre as Comunas e os Conselhos Municipais. Quem os coordena?

Nós também estamos discutindo estes problemas – não existe uma fórmula pronta para aplicar. Falando em números pode ajudar. Qamişlo possui seis distritos diferentes. Cada distrito tem 18 Comunas, e cada Comuna é composta por 300 pessoas.

Agora, cada Comuna possui 2 co-presidentes. E cada Comuna possuem comitês diferentes. Os dois co-presidentes eleitos de cada Comuna se juntam para constituir o Conselho Popular daquele Distrito.

Então, cada um desses Conselhos Populares do Distrito elegem dois co-presidentes. Então, dos 6 distritos de Qamişlo, 12 pessoas constituem o Conselho Popular Municipal. Mas apenas 12 pessoas não podem constituir o conselho – ele deveria ter 200. Então, somado a estas 12 pessoas, as outras são diretamente eleitas. Mesmo que você não esteja num comitê, ou tenha sido eleito numa Comuna, você pode colocar seu nome e potencialmente ser eleito.

O Canto de Cizîre consiste em 12 cidades. Delegados do Conselho Popular do Canton são alocados de acordo com a população. Qamişlo é a maior cidade, então possui mais delegados que outras – possui 20. Eles determinam isso pelo número da população. Os co-presidentes já fazem parte deste grande Conselho; então Qamişlo possui mais 18. Cada Conselho Popular Municipal elege quem irá para o Conselho Popular do Canton. No final você possui um Conselho Popular em nível de todo o Canton. É como um parlamento, mas os laços entre Comunas e Conselhos não cortados.

Q: Cada Comuna vota em delegados que vão para os níveis superiores?

Sim.

Q: Qamişlo possui mais delegados – Quem decide quantos delegados cada cidade possui?

É baseado na população.

Q: De acordo com qual censo?

O que estiver em vigor. Agora, o Conselho Popular do Canton não existe ainda. O censo está sendo feito agora. Mas todas as Comunas nas cidades estão trabalhando nele. Este conselho nem possui um nome ainda – pode ser chamado de parlamento.

Cada Comuna possui comitês, como, digamos, um comitê de saúde, e há comitês similares em níveis acima. Assim é que asseguram que o comitê de saúde da administração do canton tenha conexão direta com as necessidades da Comuna.

Q: Qual é o papel do Tev-Dem?

Tev-Dem coordena e mobiliza pessoas na base e carrega a conexão para o parlamento. Isto garante a conexão da democracia direta ao governo. Ele mobiliza e coordena, mas também senta no parlamento, onde representa os interesses do povo. É uma dupla identidade.

Q: Os Conselhos das Mulheres existem paralemamente aos Conselhos Populares, nos quais as mulheres possuem 40% de representação. Isto existe em todos os níveis, e em todos existe o poder de veto sobre questões das mulheres?

Sim. Os Conselhos das Mulheres existem em todos os níveis, a Comuna, o Distrito, a Cidade e o Canton. Os Conselhos das Mulheres não decidem sobre assuntos gerais – é para isto que existem os Conselhos Populares. Eles discutem questões que são especificamente sobre as mulheres. Se há disputa social, como conflitos interpessoais. Um comitê tenta resolver um problema entre pessoas. O Conselho das Mulheres também possui um comitê como esse. Então, se elas verem neste comitê um problema que importe às mulheres, como uma disputa sobre violência doméstica, e elas discordem do Conselho Popular, e dizem não, o não do Conselho das Mulheres será aceito. Elas têm poder de veto sobre questões referentes às mulheres.

Q: É sempre claro o que são questões das mulheres?

Nós seguimos uma base de caso a caso. Não há fórmula pronta. Sempre que o Conselho das Mulheres veta alguma coisa, esse veto é aceito. Se um problema não pode ser resolvido nos baixos níveis, esses problemas são levados à corte. Mas essas questões, como todas as questões em Rojava, são resolvidas localmente se possível.

*A tradutora referiu utilizar o termo original em inglês da unidade territorial para antecipar possível confusões, mas por analogia com o sistema político brasileiro, o Canton parece equivaler a um Estado Federativo.

Tradução: Mariana Miotto

Fonte: http://kurdishquestion.com/index.php/kurdistan/west-kurdistan/rojava-s-communes-and-councils.html

O Processo Revolucionário em Rojava

Ativista curdo pede solidariedade e apoio para o processo revolucionário de Rojava

Por Roberta Fofonka/Sul21

POSTADO EM Sul21, 27 de Janeiro de 2015

Samir Oliveira

Os curdos são a mais numerosa etnia do mundo sem Estado: são mais de 26 milhões de pessoas que vivem em regiões da Turquia, da Síria, do Iraque e do Irã. Desde 2012, com a intensificação da guerra civil na Síria, os curdos da região têm se organizado para defender seus territórios das forças do governo de Bashar al-Assad e dos terroristas do Estado Islâmico (também conhecido como ISIS).

Em 2013, os curdos da Síria anunciaram a organização de três regiões administrativas no norte do país, chamadas de “cantões”: Afrin, Jazira e Kobani. Separados geograficamente em meio a um território conflagrada pela guerra, os cantões formam a região de Rojava – palavra que, em curdo, significa “oeste”.

 Rojava possui uma população de cerca de 3 milhões de pessoas, espalhadas por doze cidades. Enquanto se organizam para lutar contra o Estado Islâmico e unificar os cantões, os curdos estão criando uma própria forma de organização social, política e econômica na região, baseada no confederalismo democrático, com premissas anti-Estado e anticapitalistas inspiradas no programa político do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) – organização criada na década de 1970 e considerada “terrorista” pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pela Turquia, país onde seu principal líder, Abdullah Öcalan, encontra-se em prisão perpétua desde a década de 1990.

Nesta entrevista ao Sul21, o ativista curdo Giran Ozcan fala sobre o processo revolucionário em Rojava e dá mais detalhes sobre a situação na região. Giran edita o site Kurdish Question e esteve em Porto Alegre nesta semana para falar sobre o assunto com organizações de esquerda.

Na entrevista, ele fala ainda sobre o funcionamento das forças de combate de Rojava, que estão divididas basicamente em das brigadas: as Unidades de Proteção do Povo (YPG) e as Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ) – esta última, composta e comandada por mulheres curdas.

“O desafio é tornar Rojava, os cantões e o povo curdo reconhecidos pela comunidade internacional”

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Como está a situação agora em Rojava?
Giran Ozcan –
A luta na Síria começou há quatro anos e há quase três anos os curdos anunciaram que vão se autogovernar em três cantões. Depois deste anúncio, o Estado Islâmico (ISIS) começou a atacar os curdos. Embora isto só esteja sendo divulgado pela mídia desde Kobani região de Rojava na Síria, que está cercada pelo Estado Islâmico], ISIS e os curdos estão lutando há quase três anos na Síria. Atualmente, depois de capturar armamento pesado dos exércitos iraquiano e sírio, eles novamente atacaram os curdos, há cerca de quatro meses, em Kobani. Enquanto os exércitos da Síria e do Iraque estão fugindo do Estado Islâmico em várias regiões, os curdos estão resistindo, lutando e fazendo eles recuarem. É isso que vem ocorrendo em Rojava nos últimos meses. Hoje, mesmo após o ISIS atacar Kobani com todas as suas forças, a cidade não caiu. Os curdos estão mostrando ao mundo que são capazes de se autogovernar e de se defender. Estão oferecendo uma alternativa à região. A luta ainda está ocorrendo em Kobani, o ISIS ainda não foi completamente derrotado, mas já foi expulso da cidade. Nos outros dois cantões o autogoverno continua sendo implementado e desenvolvido. O desafio é tornar Rojava, os cantões e o povo curdo reconhecidos pela comunidade internacional.

Sul21 – Quem está controlando Kobani hoje?
Ozcan –
Hoje Kobani é controlada pelos combatentes curdos do YPG. Cerca de 98% da cidade está sob controle do YPG. Há dois dias, eles conquistaram a colina de Minstenur. Atualmente, o ISIS está apenas na periferia da cidade.

Sul21 – O Estado Islâmico é a principal ameaça para Rojava e a causa curda atualmente?
Ozcan – ISIS é ameaça que está batendo diretamente na porta. Mas Rojava está enfrentando um embargo de todos os lados, porque é um sistema alternativo aos imperialistas e às forças regionais. Por isso, o povo em Rojava está tentando se autossustentar, porque não recebendo ajuda de ninguém. Economicamente, estão tentando criar um novo sistema. Então existem duas ameaças: obviamente o Estado Islâmico e o embargo internacional.

“Os cantões são governados pelo povo através das assembleias populares”

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Como foi possível que o Estado Islâmico crescesse tanto na região?
Ozcan –
O ISIS está lá há pelo menos seis anos. Antes de o ISIS crescer, o governo central do Iraque se aproximava do Irã e se distanciava dos Estados Unidos. Barzani (presidente do Governo Regional Curdo no Iraque) falava em declarar independência e o regime de Assad (presidente da Síria) estava fortalecido. Todos se encaminhavam contra o Ocidente na região. De repente, do nada, o Estado Islâmico começa a ganhar tanta força que o governo iraquiano precisou se aproximar dos Estados Unidos novamente. Barzani parou de falar em independência e a guerra se intensificou na Síria. Se analisarmos objetivamente, quem se beneficiou do crescimento do Estado Islâmico foram os Estados Unidos. Não podemos provar que os Estados Unidos fortaleceram o ISIS, mas o empoderamento deles definitivamente beneficiou os planos dos Estados Unidos para a região.

Sul21 – Como é a relação entre a luta que ocorre entre os curdos e o Estado Islâmico e o regime de Assad, que governa a Síria?
Ozcan –
Os curdos querem que o regime sírio reconheça sua autonomia. Eles querem que o regime respeite a vontade do povo. Até então, Assad nunca havia concedido cidadania aos curdos. Centenas de milhares de curdos não podiam ir à escola, comprar terras ou ter empregos formais. Atualmente a situação está equilibrada: os curdos querem seus direitos reconhecidos e não vão atacar o regime sírio, mas não vão hesitar em defender o que já foi conquistado.

Sul21 – O governo sírio não está combatendo o Estado Islâmico também?
Ozcan –
Está, em certas regiões. Mas os principais opositores do ISIS são os curdos. Embora eles digam a todos que estão lutando contra o governo e tentando estabelecer um Estado islâmico, os principais antagonistas que eles enfrentam são os curdos.

“As mulheres participam da vida política e possuem seu próprio exército, que está lutando contra o Estado Islâmico”

Sul21 – E os revolucionários sírios que lutam contra o regime não estão do lado de vocês, combatendo também o Estado Islâmico?
Ozcan –
Não podemos mais falar em apenas uma FSA (Exército Livre da Síria), porque se trata de uma coalizão muito ampla — o ISIS inclusive fazia parte do grupo anteriormente. É uma plataforma da luta contra Assad, mas é uma coalizão revolucionária? Isso está aberto ao debate. Há muitos extremistas islâmicos na FSA, mas também há revolucionários. Eles não se identificam mais como FSA, porque a coalizão ficou tão ampla que não pode mais ser chamada de coalizão. Em Kobani há grupos da FSA lutando junto com os curdos, mas em outros cantões há grupos da FSA lutando contra nós.

Foto: Reprodução

Sul21 – Quais são as forças políticas que comandam Rojava?
Ozcan –
O PYD é um partido político curdo que já existia junto ao sistema sírio e está se aliando à ideologia do PKK e de Öcalan. Essa é a organização com mais apoio popular em Rojava. Mas as pessoas têm seu próprio sistema, suas assembleias populares, onde o partido político não está presente. O chamado Movimento Democrático do Povo realiza as assembleias locais e comanda os cantões, que não são governados pelo PYD. Os cantões são governados pelo povo através das assembleias populares. Há uma co-presidência para cada cantão, composta por um homem e uma mulher. Rojava é um grande processo revolucionário porque, na cultura daquela região, a mulher não possuía participação política. A ideologia do PKK foi gradualmente mudando isso. Agora, as mulheres participam da vida política e possuem seu próprio exército, que está lutando contra o Estado Islâmico. Trata-se de uma das maiores revoluções sociais da região.

Sul21 – Como os governos dos cantões são escolhidos?
Ozcan –
Através de eleições. As primeiras ocorreram há seis meses. Não é um sistema representativo, é uma democracia direta. A qualquer momento o povo pode retirar do poder quem eles elegeram. O Poder Executivo é mais um coordenador do processo, porque existem assembleias populares em cada comunidade. As decisões locais são tomadas pelas pessoas que moram nas comunidades. Em cada comunidade existem três assembleias: a local, a de jovens e a de mulheres. É um outro modelo, não haverá eleições a cada quatro anos. Sempre e quando o povo precisar, o governo permanecerá ou será mudado.

“Não existe nenhum outro lugar no Oriente Médio onde cristãos e muçulmanos estejam governando juntos”

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Não existe um governo central dos três cantões?
Ozcan –
Atualmente, cada cantão é separado. Não existe coordenação entre eles. Quando falamos sobre Rojava, estamos falando sobre os três cantões, mas não existe um representante de Rojava. Isso se deve a problemas práticos, já que os três cantões estão fisicamente distantes e separados, e também porque o projeto político ainda está sendo discutido. Ainda está aberto ao debate a forma como essa coordenação central será construída.

Sul21 – Como os três cantões se comunicam e realizam trocas entre si?
Ozcan –
A região inteira é uma zona de guerra, então há limitações práticas para isso. Estão sendo criadas academias econômicas para se discutir o tipo de economia que será criada quando os cantões se unificarem. Uma das nossas funções na América Latina é entender melhor as experiências econômicas da região, com cooperativas e economias comunitárias criadas ao longo da história de processos revolucionários no continente.

Sul21 – Quando falamos sobre Rojava, sobre quantas pessoas e cidades estamos falando?
Ozcan –
Estamos falando sobre algo entre 2,5 milhões e 3 milhões de pessoas e cerca de 12 cidades. Não são cidades muito grandes, porque as administrações dos cantões são diferentes do mapa político da Síria. Por exemplo, de acordo com a Síria, a cidade de Kobani pertence a Aleppo, mas para os curdos, é uma cidade livre. A maior cidade é Qamislo.

“O sucesso de um projeto anticapitalista, especialmente no Oriente Médio, é uma grande ameaça ao sistema”

Sul21 – Qamislo é a capital de Rojava?
Ozcan –
A ideologia do confederalismo democrático não prevê a existência de uma capital. Eles não precisam de uma capital, que é um instrumento de um Estado – e eles querem evitar isso.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Como está sendo a implantação do confederalismo democrático em Rojava?
Ozcan –
É tudo muito novo, então não posso dizer que não estejam ocorrendo problemas. Mas pela primeira vez estamos implantando o confederalismo democrático como um sistema prático. O povo está muito animado, porque estamos resolvendo os problemas da causa curda, mas também estão resolvendo o problema da exploração, do governo, do socialismo e da vida social. É uma revolução em muitas dimensões e aspectos. Muitos olhos pairam sobre Rojava agora, porque não existe nenhum outro lugar no Oriente Médio onde cristãos e muçulmanos estejam governando juntos. Os cristãos podem governar a si próprios se eles quiserem, esse direito está garantido na Constituição de Rojava. Os cristãos têm seu próprio mecanismo de auto-defesa. É um sistema secular, por isso está atraindo tanta atenção.

Sul21 – Como o processo revolucionário está resolvendo as necessidades imediatas do povo, principalmente no que diz respeito a saúde e educação?
Ozcan –
As assembleias populares estão criando academias. É um sistema muito novo, então tudo está tendo que ser autogestionado. As pessoas precisam fazer tudo e construir seu próprio sistema de forma coletiva. Escolas primárias, secundárias e até mesmo universidades estão sendo criadas pelo povo. O problema principal em relação a Rojava é que, por ser uma alternativa ao sistema, o sistema não a apoia. É por isso que tudo precisa ser feito de dentro para fora.

Sul21 – É um modelo anticapitalista também.
Ozcan –
A economia está sendo organizada através de cooperativas. Em Rojava, o princípio básico é: “o que pertence ao povo sempre pertencerá ao povo e será compartilhado pelo povo”. Há muita oliva e petróleo na região, por isso que muitas companhias internacionais querem saber qual é a política econômica do PKK. O PKK diz que nenhuma companhia pode se aproximar da região com a ambição de lucrar, porque o partido é contra monopólios e privatizações. Os recursos da região serão compartilhados pelo povo. Se obtivermos sucesso, será um modelo para o mundo inteiro. O sucesso de um projeto anticapitalista, especialmente no Oriente Médio, é uma grande ameaça ao sistema.

“Devido à censura da mídia, ninguém sabia que o PKK tem mulheres combatendo e liderando suas fileiras há mais de 35 anos”

Sul21 – E o que acontece com a iniciativa privada que existe na região, com os comércios e empresas das cidades?
Ozcan –
Por causa do preconceito de Assad contra o povo curdo, não havia muito comércio e capital privado sendo investido na região. Agora isso é uma coisa boa, porque, caso contrário, ocorreria uma oposição interna na região ao processo revolucionário. Isso não está ocorrendo porque o povo de Rojava mora em vilas, são trabalhadores, não é uma região dividia em classes. Essa era a natureza da região, mesmo antes da revolução, então a transição não está sendo difícil.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Para uma revolução ser bem sucedida, o povo precisa apoiá-la. A região de Rojava não possuía uma classe média ou uma burguesia capazes de opor resistência?
Ozcan –
Para o confederalismo democrático, as academias são muito importantes. O povo precisa estar a par do que está acontecendo, do tipo de revolução que está ocorrendo e das ameaças do sistema. O PKK foi criado em 1978. Depois que Öcalan teve que deixar a Turquia, ele foi para Rojava, em 1979. Ele viveu no Curdistão sírio por 20 anos, então o povo curdo da Síria conhece muito bem suas ideias. Milhares de jovens de Rojava se juntaram ao PKK nos anos 1980 e 1990. Milhares morreram na luta contra a Turquia. O povo de Rojava conhece muito bem a ideologia do PKK.

Sul21 – Como é a relação entre Rojava e o Governo Regional Curdo do Iraque?
Ozcan –
Não muito boa, porque Barzani e o Governo Regional Curdo são um satélite completamente dependente do Ocidente. Rojava é uma revolução contra o sistema e Barzani é parte do sistema. Ao fim e ao cabo, talvez a maior revolução de Rojava seja contra Barzani, porque ele é a parte do sistema que mais se aproxima de Rojava, é o principal representante do sistema na região. Muita gente compreendeu que a Turquia estava conduzindo um embargo contra Rojava, mas ninguém entendeu porque Barzani estava reforçando esse embargo contra o povo curdo. Ele queria sufocar a revolução também, por isso que reforçou o embargo nas fronteiras que o Governo Regional Curdo possui com Rojava.

“A resistência em Kobani contra o Estado Islâmico foi liderada por uma mulher”

Sul21 – Isso pode estar enfraquecendo a popularidade de Barzani junto aos curdos?
Ozcan –
Definitivamente, porque o Ocidente quer que Barzani seja uma alternativa a Öcalan e ao PKK. Após atacarem Kobani, o Estado Islâmico atacou Sinjar, onde os curdos Yazidi vivem. Eles não são muçulmanos, são curdos que pertencem a uma religião muito típica e antiga. Quando eles foram atacados, as forças de Barzani, os Peshmergas, fugiram, deixando os Yazidi sozinhos e desarmados. Por isso cerca de 3 mil mulheres Yazidi foram capturadas pelo ISIS e estão sendo vendidas como escravas sexuais. É por isso que o povo curdo está muito crítico em relação a Barzani. Se o PKK não tivesse descido das montanhas e defendido os Yazidis em Sinjar, teria havido um massacre massivo. Em todas as cidades governadas por Barzani que estão sob sítio do ISIS, quem está combatendo não são os Peshmergas, mas a guerrilha do PKK. O mundo inteiro está vendo as guerrilhas assumirem a luta e os Peshmergas recuarem, isso está abalando muito a popularidade de Barzani.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – É possível haver uma mudança política no comando do Governo Regional do Curdistão e um aliado do PKK assumir o poder?
Giran – O partido-irmão do PKK no Governo Regional do Curdistão foi banido das eleições. Nas últimas eleições, Barzani fez 38% dos votos. Agora existe o movimento Gorran, que é uma nova força política de oposição e está com 29% das intenções de voto. Então há espaço para mudança no Governo Regional do Curdistão.

Sul21 – O que isso iria significar para Rojava?
Giran –
Significaria que pelo menos uma certa parte do Curdistão estaria livre. Embora o Governo Regional do Curdistão possua uma autonomia “de facto” desde a década de 1990, ninguém enxerga a região como uma parte livre do Curdistão, porque ela está completamente dependente do Ocidente. Os curdos estão dizendo agora que Rojava é o primeiro território livre do Curdistão. A próxima eleição no Governo Regional do Curdistão será somente em três anos, mas acredito que muita coisa vá mudar até lá. No momento os curdos estão numa posição defensiva, lutando contra o Estado Islâmico, então não estão falando muito sobre mudanças políticas. Mas as guerrilhas do PKK estão nas cidades do Governo Regional do Curdistão. Antes, para ir lá, eles teriam que lutar com os Peshmergas, e ninguém quer ver os curdos lutando uns contra os outros. Agora o povo está vendo as guerrilhas todos os dias. As coisas irão mudar nas próximas eleições, o governo já não pode mais banir o PKK de participar no processo.

“A luta não está sendo conduzida dentro de uma lógica militarista, mas, sim, de autodefesa”

Sul21 – Como se deu o surgimento das brigadas comandadas e compostas por mulheres em Rojava?
Giran –
O movimento de libertação das mulheres está contemplado na ideologia do PKK. Devido à censura da mídia, ninguém sabia que o PKK tem mulheres combatendo e liderando suas fileiras há mais de 35 anos. Desde a criação do PKK, no primeiro congresso do partido, as mulheres estavam presentes. Nos anos 1980, nas primeiras guerrilhas do PKK, havia brigadas femininas. Öcalan sempre dizia que nenhuma sociedade pode ser livre enquanto as mulheres não forem livres. Para ele, o nível de liberdade de uma sociedade pode ser medido pelo nível de liberdade das mulheres. Por isso que a revolução em Rojava é uma revolução de mulheres. Embora as YPJ tenham sido criadas há apenas três anos, elas vêm de uma história de 35 anos. A principal comandante de Kobani era uma mulher, Narin Afrin. A resistência em Kobani contra o Estado Islâmico foi liderada por uma mulher. As pessoas costumam dizer que o Oriente Médio é uma região muito conservadora, mas, no centro do Oriente Médio, mulheres estão na linha de frente da vanguarda por libertação. E a maioria delas são muçulmanas, que é a religião predominante entre os curdos.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Isso contraria o estereótipo que se costuma ter no Ocidente quanto às mulheres muçulmanas, como se a opressão de gênero e o islamismo fossem duas coisas intrinsecamente ligadas.
Giran –
Há muitas leituras diferentes do Islã, a do ISIS é apenas uma delas e tem suas raízes no wahhabismo. Através do PKK, o povo curdo passou a ter um entendimento completamente diferente a respeito das mulheres. Não é uma característica curda, mas uma característica do socialismo defendido pelo PKK, que foi rompendo com as opressões em relação às mulheres naquela região.

Sul21 – O militarismo costuma ser um fenômeno bastante machista. Como as mulheres estão desconstruindo isso em Rojava?
Giran –
Nos anos 1980, acredito que qualquer mulher militante do PKK teria muitos relatos para fazer a respeito das dificuldades em enfrentar o machismo em uma organização predominantemente masculina. Öcalan escreveu um livro sobre a necessidade de se romper com o machismo, porque viu que mesmo na sua organização isso era um problema. Atualmente, em grande medida isso já foi superado. A luta não está sendo conduzida dentro de uma lógica militarista, mas, sim, de autodefesa. E as mulheres são uma parte desta autodefesa.

“O governo turco deixa suas fronteiras abertas para o Estado Islâmico e fecha as portas para a solidariedade revolucionária em relação a Rojava”

Sul21 – Como está a solidariedade internacional em relação a Rojava?
Giran –
Há dois períodos: antes e depois da conquista de Kobani. Antes de Kobani a mídia ocidental não falava sobre Rojava, porque a resistência foi inacreditável. O Estado Islâmico tomou Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, em 24 horas. Mas não conseguiram conquistar Kobani, uma cidade com 200 mil habitantes e não mais do que 5 mil combatentes. Depois disso, houve um despertar internacional em relação ao que ocorre em Rojava, as pessoas estão debatendo o sistema político que está sendo criado lá. Esperamos que as pessoas se solidarizem e acompanhem esse experimento socialista e revolucionário que está ocorrendo em Rojava. Ainda é um experimento. Somente com a ajuda e a solidariedade das pessoas ao redor do mundo, especialmente na América Latina, esse experimento poderá ser bem sucedido.



Sul21 – O que esse processo revolucionário significa para a esquerda, de uma forma geral?
Giran –
Embora o capitalismo esteja afundando em uma grande crise, a esquerda ainda não foi capaz de mostrar um modelo concreto ao mundo. Agora temos um experimento em Rojava ao qual podemos nos espelhar e dizer ao mundo: “É assim que queremos que as pessoas vivam”. Cabe a nós, pessoas de esquerda e revolucionárias, mostrar ao mundo que o modelo desenvolvido em Rojava pode ser bem sucedido e que o socialismo pode ser tão bom na prática quanto é na teoria. Acredito que a esquerda não irá perder essa oportunidade.

Sul21 – Como Rojava está se abrindo para o mundo neste momento? Organizações e pessoas estrangeiras podem ir para lá?
Giran –
O governo turco deixa suas fronteiras abertas para o Estado Islâmico e fecha as portas para a solidariedade revolucionária em relação a Rojava. Muitos europeus já se juntaram ao YPG, vários latino-americanos também já se juntaram a Rojava. Há maneiras de garantir contatos, o PYD tem escritórios na Europa. Rojava espera pela visita das pessoas, porque tem algo a mostrar ao mundo.

“A mídia ocidental não demonstra a realidade da revolução, não fala sobre seu caráter anticapitalista”

Sul21 – Qual o papel das potências ocidentais em relação ao que ocorre em Rojava?
Giran –
O Ocidente está dizendo que aceitará Rojava se for igual ao Governo Regional do Curdistão. Se Rojava for mais aberta ao Ocidente e às grandes corporações, receberá apoio das potências ocidentais. É por isso que o povo não está esperando que esse apoio venha.

Sul21 – Como tu vês a cobertura da mídia sobre Rojava?
Giran – Há diferentes abordagens. É claro que a revolução quer ser conhecida e vista pelo mundo, mas ela quer ser mostrada pelo que realmente é. A gente vê fotos de mulheres combatendo em Rojava, mas não sabemos por que elas estão lutando. Não vemos na mídia tradicional a informação de que o PKK é uma organização socialista, de que a economia em Rojava é baseada em cooperativas.

Curdistão: YPJ forma nova divisão em Shingal

ypj-sengal

 

POSTADO EM Rojava Report, 8 de Janeiro de 2015
Tradução livre do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Uma nova divisão das Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ) está sendo formada como uma parte dos esforços para construir as Unidades de Defesa de Shingal (YBŞ) de acordo com um novo artigo por Rojin Deniz e Sara Xwinda para JINHA News que apareceu em Özgür Gündem. A decisão de constituir uma divisão separada, uma YPJ-Shingal, foi tomada por aproximadamente 50 mulheres Yazidi que já estão lutando com o YBŞ. Um comunicado divulgado pela liderança do recém-formado YPJ-Shingal, seguido da decisão, diz: Nós estamos chamando a todo o povo Yazidi para apoiar a reforçar essa luta, e em particular às jovens mulheres Yazidi para serem sensíveis à nossa luta”.

Para As Sagradas Montanhas de Shingal
O comunicado das YPJ-Shingal continua: “Mulheres de dentro das fileiras das YBŞ têm se organizado através de uma nova identidade, as YPJ-Shingal (Yekîneyên Parastina Jin ê Şengalê). As YPJ-Shingal declararam que seu objetivo fundamental é permitir que as pessoas que vivam em Shingal, as mulheres, as montanhas de Shingal que são sagradas para o povo Yazidi, e a fé Yazidi e a cultura, que vivam livremente em consonância com o democrático, ecológico, feminista e emancipatório paradigma do líder Apo. A organização YPJ-Shingal tem como princípio a organização, de acordo com uma consciência de auto-defesa, de mulheres que vivam em Shingal. Elas lutam para a libertação de Shingal e para manter viva a memória de mulheres curdas Yazidi que foram mortas na luta pela liberdade, e para abraçar a mulheres que perderam suas vidas ao realizarem essa tarefa.

Às fileiras das YPJ-Shingal
Após o anúncio de sua formação, o comando do YPJ-Shingal pediu apoio, dizendo: Nós estamos convidando todas as pessoas Yazidi a apoiar o fortalecimento desta luta, e em particular as jovens mulheres Yazidis a serem sensíveis à nossa luta a se juntarem às fileiras do YPJ-Shingal, a fim de lembrar @s noss@s amig@s Viyan, Evrim, Armanc, Jiyanda, Roni, Dilgeş, Canpolat, Zinar, Ezdin, Kasım e Serdar, que morreram na luta para libertar Shingal, da mesma forma como @s camaradas Ş. Berivan (Binevş Agal), and Ş. Xane.”

“Prometemos às mulheres do mundo que venceremos”

POSTADO EM: Comitè de Solidariedad con Rojava y el Pueblo Kurdo, 13 de Janeiro de 2015.
Tradução livre do Coletivo Anarquia ou Barbárie.
Gülistan Kobanê, comandante das YPJ.

 

Uma das comandantes das YPJ (Unidades de Proteção da Mulher) em Kobane, Gülistan Kobanê, avaliou os ataques do EI (Estado Islâmico) contra o cantão, que começaram em 15 de setembro de 2014, dizendo o seguinte: “O lema das YPJ a este respeito é que enquanto defendermos Kobane, Kobane não cairá. Nesses quatro meses, cumprimos com o prometido contra todo o prognóstico inicial”.

Ela acrescentou que Kobane ainda não caiu e que as YPJ, em um esforço conjunto com as YPG (Unidades de Proteção do Povo), têm evitado que o EI avance em qualquer frente. “As YPJ demonstraram que nem o EI nem nenhuma força poderá com o povo curdo enquanto as YPJ continuarem presentes”.

A comandante recordou que as YPJ também se formaram para combater a mentalidade opressora predominante dos homens em relação às mulheres; seu inimigo por excelência, o EI e seu fascismo islâmico, tem sofrido severos golpes. “A resistência apresentada pelas YPJ contra os crimes do EI deram lugar ao surgimento da esperança entre as mulheres do mundo todo”.

As YPJ dão honra e identidade às mulheres, elas estão lutando heroicamente na linha de frente contra o EI, e os homens combatentes antifascistas professam um grande respeito a elas”.

Nunca pensamos que Kobane fosse cair. Combatentes como Dicle, Delila, Hevi, Nuda e Arîn Mîrkan se negaram a permitir que o inimigo avançasse e sacrificaram suas vidas heroicamente. Essas camaradas têm se convertido em um símbolo de liberdade para as mulheres curdas e do mundo todo”.

Além do mais, a comandante assegura que “a ilusão criada pelo EI tem sido esmagada”, posto que as YPJ tem sido temidas pelos terroristas do EI, fazendo alusão ao desmoronamento do principal fator de recrutamento do EI (o acesso ao paraíso e a concessão de 40 mulheres virgens após a morte na Guerra Santa), o qual está vedado àquele homem que morra em combate contra uma mulher, de acordo com os rumores entre os fascistas.

Gülistan conclui dizendo que “[…] nossa resistência e o combate continuarão. Prometemos às mulheres do mundo que, em memória às camaradas caídas, venceremos”.

“Construiremos um Curdistão livre, sob a liderança das mulheres”

kobane

Fontehttp://newrozeuskalkurduelkartea.wordpress.com/2014/11/26/construiremos-un-kurdistan-libre-bajo-el-liderazgo-de-las-mujeres/

Tradução livre por Talita Rauber e revisão por Arthur Dantas

“Construiremos um Curdistão livre, sob a liderança das mulheres”

       Dirigindo-se a milhares de mulheres que marcharam de Dewser até o povoado de Mehsar (província de Urfa), na fronteira com Kobanê, para comemorar o 25 de novembro, Dia da Eliminação da Violência contra as Mulheres, a co-presidente da PYD (Partido da União Democrática), Asya Abdullah disse que elas, como mulheres curdas, davam as boas-vindas mais calorosas a todas as mulheres que haviam se reunido na fronteira em solidariedade com as combatentes das YPJ¹.

A. Abdullah também disse que “sempre se lembrariam de todas aquelas que haviam caído em batalha, salientando que as mulheres curdas, herdeiras de seu exemplo, estavam realizando uma revolução histórica em Rojava. Milhares de mulheres caíram na luta pela liberdade, centenas delas em Sinjar e Kobanê. A revolução das mulheres continua”.
Prosseguiu afirmando que a história está sendo reescrita em Kobanê, e que a resistência das YPJ tem sido a resposta à dominação machista e ao feminicídio, insistindo que a revolução em Rojava é uma chamada a todas as mulheres do mundo.
A co-presidente continuou dizendo que “a resistência em Kobanê segue muito firme, graças ao trabalho das mulheres, não esquecendo da resistência das mulheres em Sinjar. “As mulheres seguem combatendo em todas frentes de batalha, apesar de todos os ataques que têm que enfrentar. Enquanto ainda lutam na linha de frente, por outro lado, contribuem para a construção de uma vida democrática em toda a região do Oriente Médio, dominado pelo machismo. Nenhum ataque pode intimidar as mulheres que estão liderando a marcha para a liberdade nas quatro partes do Curdistão”.
Ela concluiu dizendo o seguinte: “Construiremos um Curdistão livre, sob a liderança das mulheres.”
Fonte ANF.

Nota de tradução:
¹ – YPJ: Unidades de Proteção das Mulheres; em curdo, Yekîneyên Parastina Jinê;