O Movimento Anarcopunk e a luta anti-fascista no Brasil – Parte 1: anos 90

Postado em MAP-SP, Movimento Anarcopunk de São Paulo, 26 de fevereiro de 2015

Sem Título-1* por Imprensa Marginal

O Movimento Anarco Punk no Brasil é fruto de uma crescente politização dentro de parte da cena punk que se dá em meados dos anos 80 e início dos 90. Uma de suas principais bandeiras de luta, desde os primórdios, foi o combate ao nazi-fascismo, o racismo e o preconceito. Em muitas das localidades onde se formou o Movimento Anarco Punk, desenvolveu-se também um trabalho dentro da luta anti-fascista e anti-racista. Tal bandeira de luta já era levantada anteriormente no meio anarquista em diversas partes do mundo desde o surgimento das primeiras tentativas de ascensão de ideologias de extrema direita como o fascismo e o nazismo. No Brasil não foi diferente, e o surgimento do integralismo gerou um fervoroso combate por parte do movimento anarquista que a partir da década de 30 ganha muita intensidade.

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O início dos anos 90 é marcado pela ocorrência de diversos casos de agressão e violência protagonizados por grupos de skinheads White Powers, Carecas do Subúrbio e Carecas do ABC. Esse contexto contava também com a aparição e evidência na mídia de políticos de extrema direita como Armando Zanini Junior, presidente do Partido Nacionalista Revolucionário Brasileiro (PNRB). Assim, desde o final dos anos 80 vão se intensificando cada vez mais as relações entre skinheads e organizações políticas integralistas e nazistas, culminando na entrada de Carecas nos quadros do PNRB e em ações públicas como, por exemplo, o evento de homenagem ao aniversário de cem anos do nascimento de Hitler, que ocorreu em 1989 com participação de Carecas do Subúrbio, Carecas do ABC, Ação Integralista e integrantes de outros partidos nacionalistas na Praça da Sé.

Em meio a este forte processo de tensão e buscando formas efetivas de combater a ação nazi-fascista destes grupos, anarcopunks partiram em busca de contatos com outros movimentos sociais e agrupações que também pudessem estar de alguma forma envolvidas no combate ao avanço da extrema direita. Surgia a percepção de que somente por meio desta parceria poderiam fazer frente à crescente ação dos grupos de extrema direita e desenvolver uma ação efetiva de combate. Em 1992, ante ao ataque de skinheads White Power à Rádio Atual, de programação dirigida à comunidade nordestina em São Paulo, e logo após a realização de uma edição do programa “Documento Especial” que deu voz aos neonazistas de São Paulo, diversos movimentos sociais anti-racistas se reúnem para uma discussão conjunta no mês de outubro. Entre novembro e dezembro o Movimento Anarcopunk realiza pedágios de rua para conseguir dinheiro para confecção de faixas e panfletos para uma campanha anti-fascista, e no dia 12 de dezembro é organizada uma passeata. Pouco depois, em 1993, com a morte do estudante negro Fábio dos Santos em Santo André, em decorrência de espancamento por 30 skinheads, este processo de atuação política do Movimento Anarco Punk se amplia, ocorrendo com maior força os contatos com outros movimentos sociais para parcerias de combate. Vai tomando corpo a criação de um fórum contra a ação dos neonazistas, com participação tanto de anarcopunks, quanto de diversos outros grupos, como movimentos negros, de mulheres, nordestinos, organizações judaicas, grupos de pesquisa, movimentos populares, entre outros. A reunião ocorreu no Conselho Participativo da Comunidade Negra de São Paulo, e o resultado foi uma grande passeata com cerca de 4 mil pessoas no dia 13 de maio de 1993. Grupos e movimentos punks, negros, feministas, e de atuação artística, cultural e política se reuniram em frente à embaixada sul-africana na Av. Paulista/MASP, para uma passeata anti-racista. A passeata passou pela Av. Brigadeiro e foi até a Praça da Sé, acabando com apresentação musical de diversas bandas.  No decorrer de todo o ato foram feitas muitas falas contra a atuação de grupos nazi-fascistas de Carecas e White Powers. Infelizmente, passado algum tempo, a dimensão inicial do fórum anti-racista foi esvaziado, e os meios de comunicação iam deixando de divulgar o caso.

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Este momento marcou também o início dos trabalhos do projeto ACR – Anarquistas Contra o Racismo, que com o passar do tempo teve formação  de núcleos em diversas localidades para além de São Paulo – como Santos, Criciúma, Rio de Janeiro e Curitiba. A proposta era, dentro da cena punk, incitar a politização no que se refere à questão anti-fascista e, para muito além, estreitar laços com outros movimentos sociais e ampliar a rede de combate ao fascismo de forma concreta. Neste período há forte relação com movimentos LGBT, negros e judaicos, e realização de atividades diversas sobre a questão. Respeitavam-se as peculiaridades específicas de cada movimento, buscando construir a partir dos pontos de afinidade parcerias, compartilhamento de informações e apoio em ações de combate aos grupos e instituições nazi-fascistas nas diversas localidades.

Já era claro para o Movimento Anarco Punk e o Projeto ACR que o combate ao fascismo não poderia se limitar apenas a grupos skinheads, que em última instância eram apenas uma pequena parte de um problema muito maior, que envolvia setores diversos da sociedade com atuação em muitos âmbitos diferentes. O Projeto ACR também não acreditava no simples uso da violência como estratégia de combate, visto que a apologia e uso da violência, o culto à força física e a intolerância extremada são características próprias destes grupos de skinheads nazi-fascistas, e não seria possível combate-los a partir de práticas semelhantes. Ainda assim, as táticas de auto-defesa à esses grupos sempre estiveram em pauta, mas para além disso anarcopunks buscaram construir parcerias com vários setores da sociedade, para que em conjunto fossem traçadas estratégias eficientes para coibir a ação da extrema direita e combater as manifestações cotidianas de racismo na sociedade, propondo o respeito, a valorização da diversidade e da liberdade.

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Diversos eventos públicos foram organizados nesta época, com mostras de vídeos, debates, palestras, panfletagens e ciclos de atividades anti-fascistas. Em novembro de 1994, por exemplo, foi organizado o Ciclo Anti-Fascista, uma série de três eventos com apresentações de bandas anarcopunks, palestras com a Unegro, Ben Abrahan (comunidade judaica ), passeata de rua e outras atividades. Foi um importante evento de discussão da luta anti-fascista que ia se tornando cada vez mais concreta e consistente.  Outro ciclo de atividades e debates sobre a questão foi organizado em 1995 em Curitiba pelo Grupo Anarquista Via Direta de Ação (GRAVIDA), contando com seis palestras, debates, exposições e outras atividades de 30 de outubro a 02 de dezembro. Também foram organizadas, no decorrer dos anos 90, diversas atividades de vídeo-debate anti-fascistas e eventos musicais contra o racismo.

Os núcleos ACR de cada localidade mantinham contato frequente entre si, realizando encontros gerais periódicos e fazendo circular os informes locais mensalmente, e organizaram diversas manifestações públicas e atividades de debate, editaram boletins e materiais de denúncia, produziram dossiês, e ainda criaram um forte canal de diálogo com a imprensa e outros movimentos. Agindo localmente, cada um dos grupos articulava materiais de denúncia e dossiês, realizava manifestações públicas e outras atividades; em conjunto, também organizavam campanhas coletivas, materiais impressos e outras ações que ultrapassavam as fronteiras de cada localidade. Dentre os casos que tiveram forte mobilização nos anos 90 estão a morte de Fábio dos Santos em Santo André em 1993; o assassinato de Carlos Adilson Siqueira por skinheads Carecas do Brasil em 1996 na cidade de Curitiba; a realização de um encontro neonazista de skinheads do Paraná também em 1996; dentre tantos outros. Em março de 96, alguns punks foram abordados pela polícia e, enquanto eram revistados, o moicano de um dos punks foi arrancado à faca por um policial que gritava “Oi!” e “Skin!”, dizendo “não gosto de punks e muito menos de negros”. Depois que os policiais saíram, alguns punks tiraram foto do camburão, prestaram queixa dos policiais e denunciaram na imprensa. O punk agredido levou vinte pontos na cabeça e dois dos policiais foram afastados conforme nota da imprensa oficial. O ACR desenvolveu campanha de denúncia sobre esta agressão.

A primeira edição da Parada Gay em São Paulo, em 1997, também teve participação ativa do Movimento Anarcopunk, que ficou diretamente envolvido na questão da segurança do evento no combate a possíveis ataques durante a manifestação.

Outra campanha que teve ampla e ativa participação dos núcleos ACR e anarcopunks da época foi a questão de Mumia Abu-Jamal, militante negro afro-americano que foi injustamente acusado pelo assassinato de um policial branco e, após um julgamento pautado em inúmeras inconsistências, permanece preso até os dias de hoje, completando mais de 30 anos no cárcere e a maior parte deste tempo no corredor da morte. Foram realizados eventos, debates, publicações e atividades diversas que pudessem dar visibilidade a este emblemático caso do racismo estatal.

Brasil afora, outros coletivos e iniciativas anti-fascistas foram se formando, como é o caso do Coletivo Monanoz, que surge em 1995 em Florianópolis por anarcopunks que tinham como intuito a formação de um grupo de estudos sexuais e realização de atividades de denúncia e combate à homofobia e ao nazi-fascismo. O frequente intercâmbio entre os grupos anti-fascistas gerou também campanhas conjuntas e parcerias. Em outubro de 1995, um encontro de grupos do Projeto ACR no Rio de Janeiro tem como resultado a união dos materiais de denúncia existentes em cada localidade para criação de um grande dossiê anti-fascista, a ser utilizado como instrumento de combate a ação dos grupos nazi-fascistas. Nessa época também se intensificam as discussões sobre a luta afro-punk e sua importância.

Em meio a esse trabalho ocorreram por diversas vezes casos de ameaças ou violência por parte de grupos neonazistas. Dois dos coletivos anarcopunks que sofreram ameaças foram o KRAP (Koletivo de Resistência Anarco Punk) e o Coletivo Altruísta, ambos tendo recebido cartas de ameaça assinadas por grupos skinheads em meados da década de 90. Houve também casos de agressão física, que tornaram cada vez mais importante a prática da auto-defesa por parte de militantes anarcopunks. Em geral, as ações coletivas de resposta também seguiram politicamente no sentido de tornar públicas as ameaças e agressões sofridas, denunciar o caráter nazi-fascista dos grupos de extrema-direita, e reafirmar o engajamento e comprometimento com a luta anti-fascista e anti-racista, o que gerou apoio direto de diversos grupos e indivíduos.

Por questões diversas, muitos dos núcleos do Projeto Anarquistas Contra o Racismo se dissolveram durante os últimos anos da década de 90, desta época restando ativo o núcleo de Criciúma/SC, que desenvolveu trabalhos ligados a esta questão em escolas, junto a comunidade LGBT, negra, pessoas usuárias de CAPS, entre outros, e possui um grande acervo de materiais anti-fascistas. As experiências que estes núcleos obtiveram no decorrer de seu trabalho, porém, foram grandes contribuições para as movimentações anti-fascistas que surgiriam a seguir. Ainda assim, as discussões e ações de denúncia e combate referentes à luta anti-fascista permaneceram vivas, seja por meio de fanzines e panfletos, discussões e debates, seja por meio de ações de rua e manifestações.

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A década de 90 chegava ao fim e os anos subsequentes não seriam menos problemáticos. Diversos casos de agressão protagonizados por grupos de skinheads e nazi-fascistas se faziam frequentes, e um caso muito emblemático ocorre então em fevereiro de 2000: a morte do adestrador de cães Edson Neris, morto a chutes e golpes de soco inglês por dezenas de Carecas do ABC na Praça da República. O caso, de extrema brutalidade e intolerância, gera reações de repúdio e comoção de diversos grupos lgbt, de direitos humanos, agrupações punks e libertárias, ocorrendo manifestações conjuntas e atos diversos. Na ocasião, anarcopunks participam das mobilizações, organizando atividades de denúncia. A partir deste ano, começa a se formar a Jornada Anti-Fascista, que passa a ser organizada anualmente, durante o mês de fevereiro, e acontece até os dias de hoje. Inicia-se como uma manifestação de um único dia para, com o passar dos anos, tornar-se um mês inteiro de atividades sobre a questão, com apresentação de bandas, debates, palestras, vídeos, atos de rua e outros. Ultrapassando os limites de São Paulo, anarcopunks de outras localidades organizaram também atividades antifascistas durante o mês de fevereiro. A morte de Carlos Adilson em 1996, no mês de março, fará com que posteriormente, sejam organizados em Curitiba atividades do Março Anti-Fascista, com proposta semelhante à Jornada criada em São Paulo.

Continua…

 

‘Está em curso a mais grave ofensiva aos povos indígenas pós-democratização’, diz ex-presidente da Funai

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Indígenas Munduruku ocupam canteiro de obras da usina de Belo Monte em maio de 2013

Matéria de Ana Aranha | Agência Pública | São Paulo – 28/01/2015

Fonte: Opera Mundi

Maria Augusta Assirati, que deixou o cargo em outubro de 2014, comenta interferência política no órgão: ‘tivemos que descumprir compromisso com os Munduruku porque governo deu prioridade a usina de São Luiz do Tapajós’

Maria Augusta Assirati foi presidente interina da Fundação Nacional do Índio (Funai) por um 1 ano e 4 meses, tempo em que ela diz ter vivido com “grande descontentamento e constrangimento”. Na gestão que menos demarcou terras desde José Sarney, ela aponta a interferência política do governo Dilma Rousseff como a maior responsável pela paralisação do trabalho técnico do órgão indigenista. “A orientação é no sentido de que nenhum processo de demarcação em nenhum estágio, delimitação, declaração, ou homologação, tramite sem a avaliação do Ministério da Justiça e da Casa Civil”.

Na primeira entrevista desde que saiu, em outubro de 2014, ela fala sobre o estopim para o seu pedido de exoneração: uma manobra para licenciar a usina de São Luiz do Tapajós, que pode alagar terra Munduruku. Depois de analisar o caso e se comprometer com os indígenas a publicar o relatório que delimita a terra, Assirati diz que foi obrigada a voltar atrás. “Nós tivemos que descumprir esse compromisso em razão da prioridade que o governo deu ao empreendimento. Isso é grave”.

A ex-presidente da Funai fala sobre como tentou apresentar uma alternativa, propondo que se selecionasse outro local para a obra. Mas o governo não teria considerado a solução satisfatória, pois o setor elétrico indicava que o leilão precisava ser lançado ainda em 2014.

De fato, em setembro, o Ministério de Minas e Energia anunciou o leilão da usina de São Luiz do Tapajós. Mas dias depois teve que adiar para uma data não definida, pois o licenciamento da hidrelétrica ainda não estava concluído. A “culpa” do atraso não foi da Funai ou do Ibama. Faltava a conclusão do Estudo de Componente Indígena, avaliação de impactos que é feita pelo grupo de empresas interessadas em construir a hidrelétrica: Eletrobras, Eletronorte, GDF SUEZ, EDF, Neoenergia, Camargo Corrêa, Endesa Brasil, Cemig e Copel.

Hoje com 38 anos, Assirati é formada em direito e trabalhou em gestões municipais do PT em São Paulo. Foi para Brasília em 2007 para integrar a mesa de negociações com servidores públicos do Ministério do Planejamento. Desde então passou pelo Ministério da Saúde, Justiça e Secretaria-Geral da Presidência, sempre em áreas ligadas à interlocução com movimentos sociais.

Deixou a Funai em 1º de outubro de 2014, nove dias depois de uma tensa reunião com lideranças Munduruku sobre a terra indígena que pode ser alagada pela usina de São Luiz do Tapajós. Nesse encontro, ela disse aos indígenas que não poderia encaminhar a demarcação porque a hidrelétrica é prioridade de outros setores do governo. Hoje vive em Portugal, onde faz um curso de doutorado em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI.

Em setembro, o Ministério de Minas e Energia anunciou o leilão de São Luiz do Tapajós antes que a Funai pudesse dar seu parecer sobre a usina. Como interpretou esse ato?

Como uma completa desconsideração da presença dos indígenas na área de influência do empreendimento e dos seus respectivos direitos, além de uma desconsideração com o trabalho do órgão indigenista.

A Funai fez um parecer técnico apontando a usina como inconstitucional. Por que esse parecer ainda não entrou como documentação do processo de licenciamento?

A Funai não chegou a emitir o parecer sobre a licença previa de Tapajós, mas houve esse documento da equipe técnica. Assim que concluído o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), expusemos nossa posição institucional, que corrobora esse parecer da equipe técnica. O EIA aponta que um dos impactos é a supressão por alagamento de áreas dentro da terra indígena. Como o alagamento foi identificado, o empreendimento dependeria de remoção da comunidade indígena, o que é proibido pela Constituição Federal. No entanto, o Ministério do Planejamento e o Ministério de Minas e Energia alegam que não há terra indígena ali.

Por que o relatório de delimitação da Sawré Muybu, a terra que seria alagada pela usina, nunca foi publicado pela Funai?

O processo foi levado à consideração do Ministério da Justiça e Casa Civil, que, em virtude da usina, acreditam que a demarcação tem que ser discutida mais profundamente e com outros órgãos de governo.

21ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Política Indigenista

Cacique Marcos Xucurú, membro do Conselho Nacional de Política Indigenista, José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, e Assirati durante reunião em outubro de 2013

Em reunião com os munduruku, a senhora revelou que a usina impedia a demarcação e disse que só permanecia no cargo porque acreditava em uma solução para o caso. Mas, nove dias depois, deixou a presidência da Funai. O que esse caso significou para a senhora? Foi o estopim para a sua saída?

Essa reunião foi um momento muito duro para todos nós: para os indígenas, para nós da Funai, e para mim, pessoalmente. Nós, como Funai, havíamos assumido um compromisso com os Munduruku no sentido da publicação do relatório [de delimitação da Sawré Muybu]. E nós tivemos que descumprir esse compromisso em razão da prioridade que o governo deu ao empreendimento. Isso é grave. Uma situação como essa fragiliza a confiança que deve pautar as relações com os indígenas. Eles já foram muito enganados, por mais de 500 anos. Uma relação de confiança não se constrói só com palavras, exige compromisso e coerência. Por isso procurei explicar a eles o que estava acontecendo, dizer como estávamos buscando solucionar essas questões e quais seriam os próximos passos. Mas a solução que, do ponto de vista da Funai, garante o respeito à legislação brasileira e os direitos indígenas daquele povo foi descartada pelo governo naquele momento. Espero que ela possa ser reconsiderada nesse segundo governo Dilma.

Qual foi a solução apresentada pela Funai?

Solicitei que fossem apresentadas alternativas locacionais para a barragem, que o setor elétrico indicasse outros locais possíveis para a construção, onde a comunidade não fosse afetada dessa forma. A aldeia é uma área de habitação permanente daquela comunidade munduruku. Além do grave impacto que isso geraria aos indígenas, há também um entrave jurídico. Adverti sempre que a remoção daquele local é uma situação que o nosso ordenamento jurídico proíbe.

Como a proposta de mudar o lugar da barragem foi recebida?

Não foi considerada como uma solução satisfatória tendo em vista que, segundo o setor elétrico, havia necessidade de realizar o leilão em 2014.

Quem são os representantes do governo federal que defendem o projeto da usina mesmo com o alagamento de uma terra indígena?

É um projeto prioritário do PAC, essas prioridades são definidas junto ao Palácio. Além do setor elétrico, há uma dedicação especial do Ministério do Planejamento. Como é um projeto caro à própria presidenta, vira um projeto prioritário para todo o centro de governo.

Como o governo federal pretende driblar a Constituição?

Como presidenta da Funai quando no governo e como ex-presidenta e cidadã hoje, eu não acho que a Constituição tem que ser driblada. Acho que tem que ser respeitada, e o parágrafo 5º do artigo 231 diz: “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, garantido o retorno imediato logo que cesse o risco”. Essa proibição foi expressamente colocada na Constituição para evitar que qualquer interesse se sobreponha ao direito dos indígenas de viverem em suas terras e impedir que fossem removidos sob quaisquer pretextos, como era permitido antes de 88. Hoje uma remoção forçada é mais difícil, justamente porque há uma proteção normativa.

Como o governo planeja viabilizar a usina apesar desse impedimento constitucional?

O parágrafo 3º do artigo 231 diz que o aproveitamento dos recursos hídricos em terras indígenas só pode ser efetivado com “autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados”. Como não há lei regulamentando isso, há quem ache fundamental a proposição de um projeto de lei dizendo como se dará a exploração desses recursos dentro de terra indígena.

Eu acho que isso vai ser muito prejudicial nesse contexto político em que está em curso a mais grave ofensiva aos povos indígenas pós-democratização. Regulamentar nesse momento é afirmar que os recursos naturais são mais importantes que os próprios indígenas. E pergunto: os povos indígenas serão consultados sobre isso? Terão participação nesse debate? Depois, mesmo que regulamentado esse parágrafo, a vedação do parágrafo 5º continuará existindo e, portanto, proibindo que os Munduruku sejam removidos.

Essa tentativa de mudança é um caso isolado? Como ela se assemelha ao PLP 227 (projeto que regulamenta situações em que não-índios podem explorar terras indígenas)?

Tudo isso vem no bojo dessa ofensiva anti-indígena: PEC 215 [pretendia transferir ao Legislativo a decisão final sobre a demarcação], regulamentação de artigos da Constituição, mudanças no procedimento de demarcação. Quando estava na Funai apresentamos uma nota técnica manifestando nossa posição contrária a esse projeto e as razões. Esse PLP cria situações que reduzem as possibilidades de demarcação de terras. Só por isso já é impróprio.

Há ainda a portaria 303 da Advocacia Geral da União (estende para todas as demarcações as condicionantes criadas em Raposa Serra do Sol, como por exemplo proibir a extensão de terras já demarcadas). Qual o contexto político em que essa norma foi aprovada?

Um dia cheguei para trabalhar e essa portaria estava publicada no Diário Oficial. Não tive acesso a nenhuma informação prévia à aprovação, pois sequer sabia que a AGU tomaria uma medida como essa. Não sei se foi discutida com alguém ou com algum órgão de governo antes da publicação. Ela afeta muito negativamente os direitos territoriais indígenas. Inclusive diz que haveria revisão de processos de demarcação já concluídos. Isso é um absurdo político e jurídico.

O governo Dilma foi o que menos demarcou terras desde José Sarney. Como a senhora viveu isso na presidência da Funai?

Com grande descontentamento e constrangimento. Acho esse número lastimável para um governo que se diz democrático e que teve um importante apoio de setores populares.

Caiu também o número de delimitações de terras indígenas, processo que depende apenas da Funai. Há orientação para que o órgão segure esses processos?

A orientação é no sentido de que nenhum processo de demarcação em nenhum estágio, delimitação, declaração, ou homologação, tramite sem a avaliação do Ministério da Justiça e da Casa Civil. Isso é, nada mais, nesse momento, “depende apenas da Funai”.

O governo Dilma está operando um processo de desconstrução da Funai?

O que sei é que a Funai está sendo desvalorizada e sua autonomia totalmente desconsiderada. Ela precisa ser fortalecida, e ter o mínimo de condições para sua sobrevivência e bom funcionamento. Não tem recebido a atenção que merece do ponto de vista administrativo e político. Não foi realizado ou sequer aprovado um concurso público, o orçamento é insuficiente. Sob o aspecto político-institucional, esse apoio também não vem. A Fundação segue com um dirigente interino enquanto ruralistas afirmam publicamente que os processos da Funai são fraudulentos, o que é uma grande calúnia, e não há defesa por parte de setores importantes do governo.

Em 2013, a então ministra-chefe da Casa Civil Gleisi Hoffmann pediu a suspensão de demarcações com base em estudo da Embrapa. Logo depois o governo anunciou que demarcações seriam submetidas a outros órgãos. O que essa mudança significa?

A Funai já tem a prerrogativa de consultar outros órgãos e já faz isso sempre que necessário. Isso não sou eu que digo, basta olhar os processos: consulta-se o Incra, a Fundação Palmares, o ICMBio, o Ibama, o Iphan. Mas não vejo como a imposição da obrigatoriedade de consultar outros órgãos, como o Ministério da Agricultura, a Embrapa e o Planejamento pode contribuir para concluir um estudo de identificação de terra indígena. Que elementos técnicos imprescindíveis esses órgãos podem produzir acerca da identificação de um território tradicional ou de sua delimitação? Sua participação, em meu entender, seria de ordem política, com vistas à defesa de interesses que estão fora do âmbito dos direitos constitucionalmente garantidos aos povos indígenas.

Como a Constituição mudou os processos de demarcação?

Antes das atuais garantias constitucionais, a Funai fazia o estudo de identificação com base em elementos técnicos, apresentava uma delimitação e esse trabalho era submetido a uma apreciação de um colegiado, que ficou conhecido como “grupão”. Em Brasília, o “grupão” definia, segundo critérios políticos, qual seria o limite da terra indígena. Mas, com os parâmetros estabelecidos a partir de 88, isso é impensável.

Como é hoje?

A partir da Constituição de 88 e da atual legislação, os processos se aperfeiçoaram e se sofisticaram. As esquipes se especializam continuamente, há profissionais competentes nessa área. Claro que se pode colocar em análise algum aspecto jurídico, para isso há análise pela AGU e Ministério da Justiça. A legislação também prevê um prazo para que qualquer interessado conteste, apresente novos elementos e questione aspectos técnicos e jurídicos. Ao fim, quem decide sobre a declaração da área como terra indígena é o Ministro da Justiça. Caso precise de novos elementos, ele ainda pode solicitar a realização de diligências. E, depois disso tudo, ainda há uma análise da Casa Civil. Portanto, a legislação atual já traz instrumentos suficientes para a efetivação segura de um processo de demarcação.

Qual será o impacto dessa série de mudanças propostas pelo governo?

Uma efetiva política indigenista pública precisa de um órgão plenamente capaz de coordená-la e implementá-la. Hoje, a ação indigenista ainda não faz parte da preocupação e atuação de um grande número de órgãos públicos, federais, estaduais e municipais. Isso significa que, em certos casos, se a ação da Funai não chegar aos indígenas, nenhuma outra ação pública vai chegar a eles. Por isso, o desempenho da Funai é fundamental para a sobrevivência de muitos indígenas. Um funcionamento inadequado pode significar perdas irreparáveis. A desconsideração de comunidades indígenas por parte do Estado pode permitir ou acarretar a perda de vidas indígenas, ou até o desaparecimento de todo um povo indígena, o que equivale a um genocídio.

A Secretaria-Geral da Presidência coordena o processo de consulta aos Munduruku sobre as usinas no rio Tapajós. As demandas dos indígenas estão sendo ouvidas?

Não dá para fazer consulta como se ela fosse mera etapa burocrática ou obrigação processual apenas. O que está em questão são vidas que serão modificadas para sempre em função dessa intervenção [usinas]. Não dá para encarar como se os indígenas fossem um empecilho ou um fator de atraso no cronograma de um empreendimento. A intervenção é que interrompe, dificulta ou impede as práticas das comunidades indígenas. A demanda dos munduruku é, primeiro, entender o que se passa. Querem um diálogo respeitoso, esclarecedor e num tempo que permita verdadeiramente isso. Os momentos de diálogo que ocorreram durante o período em que eu estive na Funai não foram suficientes para esclarecer as questões que o povo munduruku tem sobre o assunto.

O governo trata a consulta como “mera etapa burocrática”?

A meu ver, parte do governo, em especial a parte que considera apenas a importância de empreendimentos de infraestrutura, trata assim. Mas há uma parte que não trata. A Ministra Tereza Campello fez questão que o Ministério de Desenvolvimento Social realizasse uma consulta prévia à realização de uma pesquisa em comunidades indígenas.

Em entrevista ao El País, a procuradora Thais Santi denunciou o não cumprimento das condicionantes em Belo Monte, o que provocou impactos profundos e irreversíveis entre os indígenas. Por que a Funai não exigiu que a Norte Energia cumprisse o plano?

A Funai cobrou inúmeras vezes o cumprimento das condicionantes. Eu mesma assinei muitos documentos nesse sentido. Mas exigir é uma medida que está bastante distante das possibilidades da Funai. Lembrando, inclusive, que o órgão licenciador é o Ibama, que também já recebeu muitos ofícios da Funai nesse sentido.

A procuradora descreve os impactos de Belo Monte como etnocídio e aponta a senhora, quando presidente da Funai, como uma das responsáveis. Como responde a essa acusação?

Reconheço e respeito a importância do trabalho do Ministério Publico. Mas estar na posição de presidente da Funai é bem diferente, bem mais difícil. Primeiro porque não compete à Funai conceder, negar ou suspender licenças de empreendimentos. Isso é competência do Ibama. Se o Ibama não considera o descumprimento de certas condicionantes apontadas pela Funai (e pelo MPF) como razão para rediscutir a licença de um empreendimento, não é a Funai quem vai reverter administrativamente essa situação. O que compete à Funai é cobrar do empreendedor e do Ibama. E isso nós fizemos sempre, inclusive em Belo Monte. Mas, se nem o próprio judiciário solucionou a questão nos mais de dez processos judiciais a que esse empreendimento foi submetido, parece que nada é tão simples como na compreensão da Dra. Thais. Não se resolve apenas a partir de aspectos administrativos e jurídicos.

A Funai ainda é capaz de desempenhar seu papel de defesa dos direitos indígenas no Brasil?

A Funai é, sem dúvida, a instituição pública comprometida com a defesa dos direitos indígenas no Brasil. Essa é a sua missão institucional, mas tem sido cada vez mais difícil desempenhar esse papel com a qualidade e especificidade que os povos indígenas demandam e merecem. A Funai precisa ser fortalecida. O movimento indígena e outros segmentos da sociedade civil têm tido um papel importante, é fundamental que continue a mobilização social em favor dos direitos indígenas. Mas não dá para desconsiderar que garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas no Brasil é uma obrigação inequívoca do Estado. Ou o governo olha com respeito para a Funai e para a importância de sua missão, ou deixará claro que não se importa nem se responsabiliza pelo futuro dos povos indígenas no Brasil.

Entrevista originalmente publicada no site da Agência Pública.

 

20 de Novembro – DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA

Sugar Children, 1996 (Vik Muniz) Imagem do site http://dacc.univasf.edu.br/obrasanteriores.html

Sugar Children/Crianças de Açúcar, 1996 (Vik Muniz)
Imagem do site http://dacc.univasf.edu.br/obrasanteriores.html
OBS: Nesta obra, Vik problematiza a contradição entre uma infância “doce”, da qual toda criança teria direito, e a escravização de crianças negras na produção de açúcar.

Hoje é o DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA então postamos aqui o link do texto “Consciência Negra como construção social e a ilusão da consciência humana” de Gabriela Moura, postado por BlogueirasNegras.org.
Texto: http://blogueirasnegras.org/2014/11/18/consciencia-negra-como-construcao-social-e-a-ilusao-da-consciencia-humana/
E, para fechar, alguns vídeo-clips: