A Sociedade Contra O Estado, por Pierre Clastres

"Methods of sieging and attacking"/"Métodos de cerco e ataque" Theodore de Bry, Séc. XVI

“Methods of sieging and attacking”/”Métodos de cerco e ataque” Theodore de Bry, Séc. XVI

POSTADO EM Arte e Anarquia

As sociedades primitivas são sociedades sem Estado: esse julgamento de fato, em si mesmo correto, na verdade dissimula uma opinião, um juízo de valor, que prejudica então a possibilidade de constituir uma antropologia política como ciência rigorosa. O fato que se enuncia é que as sociedades primitivas estão privadas de alguma coisa – o Estado – que lhes é, tal como a qualquer outra sociedade – a nossa, por exemplo – necessária. Essas sociedades são, portanto, incompletas. Não são exatamente verdadeiras sociedades – não são policiadas -, e subsistem na experiência talvez dolorosa de uma falta – falta do Estado – que elas tentariam, sempre em vão, suprir. De um modo mais ou menos confuso, é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade sem o Estado, o Estado é o destino de toda sociedade. Descobre-se nessa abordagem uma fixação etnocentrista tanto mais sólida quanto é ela, o mais das vezes, inconsciente. A referência imediata, espontânea ‘é, se não aquilo que melhor se conhece, pelo menos o mais familiar. Cada um de nós traz efetivamente em si, interiorizada como a fé do crente, essa certeza de que a sociedade existe para o Estado. Como conceber então a própria existência das sociedades primitivas, a não ser como espécies à margem da história universal, sobrevivências anacrônicas de uma fase distante e, em todos os lugares há muito ultrapassada? Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, a convicção complementar de que a história tem um sentido único, de que toda sociedade está condenada a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria, conduzem à civilização “Todos os povos policiados foram selvagens”, escreve Raynal. Mas o registro de uma evolução evidente de forma alguma fundamenta uma doutrina que, relacionando arbitrariamente o estado de civilização com a civilização do Estado, designa este último como termo necessário atribuído a toda sociedade. Pode-se então indagar o que manteve os últimos povos ainda selvagens.

Por trás das formulações modernas, o velho evolucionismo permanece, na verdade, intacto. Mais delicado para se dissimular na linguagem da antropologia, e não mais na da filosofia, ele aflora contudo ao nível das categorias que pretendem ser científicas. Já se percebeu que, quase sempre, as sociedades arcaicas são determinadas de maneira negativa, sob o critério da falta: sociedades sem Estado, sociedades sem escrita, sociedades sem história. Mostra-se como sendo da mesma ordem a determinação dessas Sociedades no plano econômico: sociedades de economia de subsistência. Se, com isso, quisermos significar que as sociedades primitivas desconhecem a economia de mercado onde são escoados os excedentes da produção, nada afirmamos de modo estrito, e contentamo-nos em destacar mais uma falta, sempre com referência ao nosso próprio mundo: essas sociedades que não possuem Estado, escrita, história, também não dispõem de mercado. Todavia, pode objetar o bom senso, para que serve um mercado, se não há excedentes? Ora a idéia de economia de subsistência contém em si mesma a afirmação de que, se as sociedades primitivas não produzem excedentes, é porque são incapazes de fazê-lo, inteiramente ocupadas que estariam em produzir o mínimo necessário à sobrevivência, à subsistência. Imagem antiga, sempre eficaz, da miséria dos selvagens. E, a fim de explicar essa incapacidade das sociedades primitivas de sair da estagnação de viver o dia-a-dia, dessa alienação permanente na busca de alimentos, invocam-se o subequipamento técnico, a inferioridade tecnológica.

O que ocorre na realidade? Se entendermos por técnica o conjunto dos processos de que se munem os homens, não para assegurarem o domínio absoluto da natureza (isso só vale para o nosso mundo em seu insano projeto cartesiano cujas conseqüências ecológicas mal começamos a medir), mas para garantir um domínio do meio natural adaptado e relativo às suas necessidades, então não mais podemos falar em inferioridade técnica das sociedades primitivas: elas demonstram uma capacidade de satisfazer suas necessidades pelo menos igual àquela de que se orgulha a sociedade industrial e técnica. Isso equivale a dizer que todo grupo humano chega a exercer, pela força, o mínimo necessário de dominação sobre o meio que ocupa. Até agora não se tem conhecimento de nenhuma sociedade que se haja estabelecido, salvo por meio de coação e violência exterior, sobre um espaço natural impossível de dominar: ou ela desaparece ou muda de território. O que surpreende nos esquimós e nos australianos é justamente a riqueza, a imaginação e o refinamento da atividade técnica, o poder de invenção e de eficácia demonstrada pelas ferramentas utilizadas por esses povos. Basta fazer uma visita aos museus etnográficos: o rigor de fabricação dos instrumentos da vida cotidiana faz praticamente de cada modesto utensílio uma obra de arte. Não existe portanto hierarquia no campo da técnica, nem tecnologia superior ou inferior; só se pode medir um equipamento tecnológico pela sua capacidade de satisfazer, num determinado meio, as necessidades da sociedade. E, sob esse ponto de vista, não parece de forma alguma que as sociedades primitivas se mostraram incapazes de se proporcionar os meios de realizar esse fim. Essa potência de inovação técnica testemunhada pelas sociedades primitivas desdobra-se sem dúvida no tempo. Nada é fornecido de uma só vez, há sempre o paciente trabalho de observação e de pesquisa, a longa sucessão de ensaios, erros, fracassos e êxitos. Os historiadores da pré-história nos dão notícia de quantos milênios foram necessários para que os homens do paleolítico substituíssem os grosseiros bifaces pelas admiráveis lâminas do solutreano. Segundo outro ponto de vista, observa-se que a descoberta da agricultura e a domesticação das plantas são quase contemporâneas na América e no velho Mundo. E impõe-se constatar que os ameríndios em nada se mostram inferiores, muito pelo contrário, no que se refere à arte de selecionar e diferençar, múltiplas variedades de plantas foram úteis.

Detenhamo-nos por um momento no funesto interesse que levou os índios a quererem instrumentos metálicos. Com efeito, ele está diretamente relacionado com a questão da economia nas sociedades primitivas, mas não da maneira que se poderia acreditar. Essas sociedades estariam, segundo se afirma, condenadas à economia de subsistência em razão da inferioridade tecnológica. Como acabamos de ver, esse argumento não tem fundamento em direito nem em fato. Nem em direito, porque não existe escala abstrata pela qual se possam medir as “intensidades” tecnológicas: o equipamento técnico de uma sociedade não é diretamente comparável àquele de uma sociedade diferente, e de nada serve opor o fuzil ao arco. Nem em fato, uma vez que a arqueologia, a etnografia, a botânica etc. nos demonstram precisamente a potência de rentabilidade e de eficácia das tecnologias selvagens. Por conseguinte, se as sociedades primitivas repousam numa economia de subsistência, não é por lhes faltar uma habilidade técnica. A verdadeira pergunta que se deve formular é a seguinte: a economia dessas sociedades é realmente uma economia de subsistência? Precisando o sentido das expressões: se por economia de subsistência não nos contentamos em entender economia sem mercado e sem excedentes – o que seria um simples truísmo, o puro registro da diferença – então com efeito se afirma que esse tipo de economia permite à sociedade que ele funda tão somente subsistir; afirma-se que essa sociedade mobiliza permanentemente a totalidade de suas forças produtivas para fornecer a seus membros o mínimo necessário à subsistência.

Existe aí um preconceito tenaz, curiosamente co-extensivo à idéia contraditória e não menos corrente de que o selvagem é preguiçoso. Se em nossa linguagem popular diz-se “trabalhar como um negro”, na América do Sul, por outro lado, diz-se “vagabundo como um índio”. Então, das duas uma: ou o homem das sociedades primitivas, americanas e outras, vive em economia de subsistência e passa quase todo o seu tempo à procura de alimento, ou não vive em economia de subsistência e pode portanto se proporcionar lazeres prolongados fumando em sua rede. Isso chocou claramente os primeiros observadores europeus dos índios do Brasil. Grande era a sua reprovação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam se empetecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regarem com suor as suas áreas cultivadas. Tratava-se, portanto, de povos que ignoravam deliberadamente que é preciso ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Isso era demais, e não durou muito: rapidamente se puseram os índios para trabalhar, e eles começaram a morrer. Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidental desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é necessário trabalhar. Os índios, efetivamente, só dedicavam pouco tempo àquilo a que damos o nome de trabalho. E apesar disso não morriam de fome. As crônicas da época são unânimes em descrever a bela aparência dos adultos, a boa saúde das numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos alimentares. Por conseguinte, a economia de subsistência das tribos indígenas não implicava de forma alguma a angustiosa busca, em tempo integral, de alimento. Uma economia de subsistência é, pois, compatível com uma considerável limitação do tempo dedicado às atividades produtivas. Era o que se verificava com as tribos sul americanas de agricultores, como os Tupi-Guarani, cuja ociosidade irritava igualmente os franceses e os portugueses. A vida econômica desses índios baseava-se sobretudo na agricultura, e, acessoriamente, na caça, na pesca e na coleta. Uma mesma área de cultivo era utilizada por um período ininterrupto de quatro a seis anos. Em seguida, era abandonada, por esgotar-se o solo ou, mais provavelmente, em virtude da invasão do espaço destacado por uma vegetação parasitária de difícil eliminação. O grosso do trabalho, efetuado pelos homens, consistia em arrotear, por meio de um machado de pedra e com auxílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa, realizada no fim da estação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo o resto do processo agrícola – plantar, mondar, colher -, em conformidade com a divisão sexual do trabalho, era executado pelas mulheres. Donde a seguinte conclusão feliz: os homens, isto é, a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em cada quatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradas não como trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu gosto apaixonado pela guerra.

Ora, esses dados maciços, qualitativos, impressionistas, encontram uma brilhante confirmação em pesquisas recentes – algumas em curso – de caráter rigorosamente demonstrativo, já que medem o tempo de trabalho nas sociedades com economia de subsistência. Quer se trate de caçadores-nômades do deserto do Kalahari ou de agricultores sedentários ameríndios, os números obtidos revelam uma divisão média do tempo diário de trabalho inferior a quatro horas por dia. Jacques Lizot, que vive há muitos anos entre os índios Yanomami da Amazônia venezuelana, estabeleceu, cronometricamente, que a duração média do tempo, que os adultos dedicam todos os dias ao trabalho, incluídas todas as atividades, mal ultrapassa três horas. Não chegamos, pessoalmente, a realizar cálculos desse gênero entre os Guayaki, caçadores nômades da floresta paraguaia. Mas pode-se assegurar que os índios – homens e mulheres – passavam pelo menos a metade do dia em quase completa ociosidade, uma vez que a caça e a coleta se efetuavam, e não todos os dias, entre, mais ou menos, 6 e 11 horas da manhã. É provável que estudos desse gênero, levados a efeito entre as últimas populações primitivas, resultassem – consideradas as diferenças ecológicas – em resultados muito parecidos.

Estamos portanto bem longe da miserabilidade que envolve a idéia de economia de subsistência. Não só o homem das sociedades primitivas não está de forma alguma sujeito a essa existência animal que seja a busca permanente para assegurar a existência, como é ao preço de um tempo de atividade notavelmente curto que ele alcança – e até ultrapassa -. esse resultado. Isso significa que as sociedades primitivas dispõem, se assim o desejarem, de todo o tempo necessário para aumentar a produção dos bens materiais. O bom senso questiona: por que razão os homens dessas sociedades quereriam trabalhar e produzir mais, quando três ou quatro horas diárias de atividade são suficientes para garantir as necessidades do grupo? De que lhes serviria isso? Qual seria a utilidade dos excedentes assim acumulados? Qual seria o destino desses excedentes? É sempre pela força que os homens trabalham além das suas necessidades. E exatamente essa força está ausente do mundo primitivo: a ausência dessa força externa define inclusive a natureza das sociedades primitivas. Podemos admitir, a partir de agora, para qualificar a organização econômica dessas sociedades, a expressão economia de subsistência, desde que não a entendamos no sentido da necessidade de um defeito, de uma incapacidade inerentes a esse tipo de sociedade e a sua tecnologia, mas, ao contrário, no sentido da recusa de um excesso inútil da vontade de restringir a atividade produtiva à satisfação das necessidades. E nada mais. Tanto mais que, para examinar as coisas mais de perto, há efetivamente produção de excedentes nas sociedades primitivas: a quantidade de plantas cultivadas produzidas (mandioca, milho, fumo, algodão etc.) sempre ultrapassa o que é necessário ao consumo do grupo, estando essa produção suplementar, evidentemente incluída no tempo normal de trabalho. Esse excesso, obtido sem sobre-trabalho, é consumido, consumado, com finalidades propriamente políticas, por ocasião de festas, convites, visita de estrangeiros etc. A vantagem de um machado de metal sobre um machado de pedra é evidente demais para que nela nos detenhamos: podemos, no mesmo tempo, realizar com o primeiro talvez dez vezes mais trabalho que com o segundo; ou então executar o mesmo trabalho num tempo dez vezes menor. E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais curto. Mas foi exatamente o contrário que se verificou, pois, com os machados metálicos, irromperam no mundo primitivo dos índios a violência, a força, o poder, impostos aos selvagens pelos civilizados recém-chegados.

As sociedades primitivas são, como escreve Lizot ao propósito dos Yanomami, sociedades de recusa do trabalho: “O desprezo dos Yanomami pelo trabalho e o seu desinteresse por um progresso tecnológico autônomo é certo”1 Primeiras sociedades do lazer, primeiras sociedades da abundância, na justa e feliz expressão de Marshall Sahlins. Se o projeto de constituir uma antropologia econômica das sociedades primitivas como disciplina autônoma tem um sentido, este não pode advir da simples consideração da vida econômica dessas sociedades: permanecemos numa etnologia da descrição, na descrição de uma dimensão não-autônoma da vida social primitiva. É muito antes, quando essa dimensão do “fato social total” se constitui como esfera autônoma, que a idéia de uma antropologia econômica parece fundamentada: quando desaparece a recusa ao trabalho, quando o sentido do lazer é substituído pelo gosto da acumulação, quando, em síntese, surge no corpo social essa força externa que evocamos antes, essa força sem a qual os selvagens não renunciariam ao lazer e que destrói a sociedade como sociedade primitiva; essa força é a potência de sujeitar, é a capacidade de coerção, é o poder político. Mas, em conseqüência disso, a antropologia deixa desde então de ser econômica, e perde de alguma forma o seu objeto no próprio instante em que crê agarrá-lo, e a economia torna-se política. Para o homem das sociedades primitivas, a atividade de produção é exatamente medida, delimitada pelas necessidades que têm de ser satisfeitas, estando implícito que se trata essencialmente das necessidades energéticas: a produção é projetada sobre a reconstituição do estoque de energia gasto. Em outros termos, é a vida como natureza que – com exceção dos bens consumidos socialmente por ocasião das festas – fundamenta e determina a quantidade de tempo dedicado a reproduzi-la. Isso equivale a dizer que, uma vez assegurada a satisfação global das necessidades energéticas, nada poderia estimular a sociedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, a alienar o seu tempo num trabalho sem finalidade, enquanto esse tempo é disponível para a ociosidade, o jogo, a guerra ou a festa. Quais as condições em que se podem transformar essa relação entre o homem primitivo e a atividade de produção? Sob que condições essa atividade se atribui uma finalidade diferente da satisfação das necessidades energéticas? Temos aí levantada a questão da origem do trabalho como trabalho alienado.

Na sociedade primitiva, sociedade essencialmente igualitária, os homens são senhores de sua atividade, senhores da circulação dos produtos dessa atividade: eles só agem para si próprios, mesmo se a lei de troca dos bens só mediatiza a relação direta do homem com o seu produto. Tudo se desarruma, por conseguinte, quando a atividade de produção se afasta do seu objetivo inicial quando em vez de produzir apenas para si mesmo, o homem primitivo produz também para os outros, sem troca e sem reciprocidade. Só então é que podemos falar em trabalho: quando a regra igualitária de troca deixa de constituir o “código civil” da sociedade, quando a atividade de produção visa a satisfazer as necessidades dos outros, quando a regra de troca é substituída pelo terror da dívida. Na verdade, é exatamente aí que se inscreve a diferença entre o selvagem amazônico e o índio do império inca. O primeiro produz, em suma, para viver, enquanto o segundo trabalha, de mais a mais, para fazer com que outros vivam – os que não trabalham, os senhores que lhe dizem: cumpre que tu pagues o que nos deves; impõe-se que tu eternamente saldes a dívida que conosco contraíste.

Quando, na sociedade primitiva, o econômico se deixa identificar como campo autônomo e definido, quando a atividade de produção se transforma em trabalho alienado, contabilizado e imposto por aqueles que vão tirar proveito dos frutos desse trabalho, é sinal de que a sociedade não é mais primitiva, tornou-se uma sociedade dividida em dominantes e dominados, em senhores e súditos, e de que parou de exorcizar aquilo que está destinado a matá-la: o poder e o respeito ao poder. A principal divisão da sociedade, aquela que serve de base a todas as outras, inclusive sem dúvida a divisão do trabalho, é a nova disposição vertical entre a base e o cume, é o grande corte político entre detentores da força, seja ela guerreira ou religiosa, e sujeitados a essa força. A relação política do poder precede e fundamenta a relação econômica de exploração. Antes de ser econômica, a alienação é política, o poder antecede o trabalho, o econômico é uma derivação do político, a emergência do Estado determina o aparecimento das classes.

Inacabamento, incompletude, falta: não é absolutamente desse lado que se revela a natureza das sociedades primitivas. Ela impõe-se bem mais como positividade, como domínio do meio ambiente natural e do projeto social, como vontade livre de não deixar escapar para fora de seu ser nada que possa alterá-lo, corrompê-lo e dissolvê-lo. É a isso que nos devemos prender com firmeza: as sociedades primitivas não são os embriões retardatários das sociedades ulteriores, dos corpos sociais de decolagem “normal” interrompida por alguma estranha doença; elas não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que conduz diretamente ao termo inscrito de antemão, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social. (Se a história é essa lógica, como podem ainda existir sociedades primitivas?) Tudo isso se traduz, no plano da vida econômica, pela recusa das sociedades primitivas em se deixarem tragar pelo trabalho e pela produção, através da decisão de limitar os estoques às necessidades sociopolíticas, da impossibilidade intrínseca da concorrência – de que serviria, numa sociedade primitiva, ser rico entre os pobres? – em suma, pela proibição, não formulada ainda que dita, da desigualdade.

O que é que determina que numa sociedade primitiva a economia não seja política? Isso se dá, como se vê, devido ao fato da economia nela não funcionar de maneira autônoma. Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, as sociedades primitivas são sociedades sem economia por recusarem a economia. Mas deve-se então classificar também como ausência a existência do político nessas sociedades? É preciso admitir que, por se tratar de sociedades “sem lei e sem rei ” o campo político lhes falta? E não tornaríamos dessa forma a cair na rotina clássica de um etnocentrismo para o qual a falta assinala em todos os níveis as diferentes sociedades?

Abordemos pois a questão do político nas sociedades primitivas. Não se trata simplesmente de um problema “interessante”, de um tema reservado apenas à reflexão dos especialistas, pois a etnologia ganha as dimensões de uma teoria geral (a construir) da sociedade. A extrema diversidade dos tipos de organização social, a abundância, no tempo e no espaço, de sociedades dessemelhantes, não impedem entretanto a possibilidade de uma ordem na descontinuidade, a possibilidade de uma redução dessa multiplicidade infinita de diferenças. Redução maciça, uma vez que a história só nos oferece, de fato, dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao outro, duas macro-classes, cada uma das quais reúne em si sociedades que, além de suas diferenças, têm em comum alguma coisa de fundamental. Existem por um lado as sociedades primitivas ou sociedades sem Estado; e, por outro lado, as sociedades com Estado. É a presença ou a ausência da formação estatal (suscetível de assumir múltiplas formas) que fornece a toda sociedade o seu elo lógico, que traça uma linha de irreversível descontinuidade entre as sociedades. O aparecimento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre selvagens e civilizados, e traçou uma indelével linha de separação além da qual tudo mudou, pois o Tempo se torna História. Tem-se freqüentemente descoberto – e com razão – no movimento da história mundial duas acelerações decisivas do seu ritmo. O motor da primeira foi o que se denomina a revolução neolítica (domesticação dos animais, agricultura, descoberta das artes da tecelagem e da cerâmica, sedentarização conseqüente dos grupos humanos etc.). Estamos ainda vivendo, e cada vez mais (se nos é lícita a expressão) no prolongamento da segunda aceleração, a revolução industrial do século XIX.

Evidentemente não há dúvida de que a linha de separação neolítica alterou de modo considerável as condições de existência material dos povos outrora paleolíticos. Mas essa transformação teria sido tão radical a ponto de afetar em sua mais extrema profundidade a essência das sociedades? Pode-se falar em um funcionamento diferente dos sistemas sociais, conforme sejam eles pré-neolíticos ou pós-neolíticos? A experiência etnográfica indica antes o contrário. A passagem do nomadismo à sedentarização seria a conseqüência mais rica da revolução neolítica, no sentido de que permitiu, pela concentração de uma população estabilizada, a formação das cidades e, mais adiante, dos aparelhos de Estado. Mas determina-se que, ao fazer isso, todo “complexo” tecnocultural desprovido de agricultura está necessariamente fadado ao nomadismo. Eis o que é etnograficamente inexato: uma economia de caça, pesca e coleta não exige obrigatoriamente um modo de vida nômade. Vários exemplos, tanto na América como em outros lugares, o atestam: a ausência de agricultura é compatível com o sedentarismo. Isso permitiria supor, então, que, se certos povos não chegaram a possuir agricultura, no momento em que ela era ecologicamente possível, não foi por incapacidade, atraso tecnológico, inferioridade cultural, porém, mais simplesmente, porque dela não tinham necessidade.

A história pós-colombiana da América apresenta o caso de populações de agricultores sedentários que, sob o efeito de uma revolução técnica (conquista do cavalo e, acessoriamente, das armas de fogo), preferiram abandonar a agricultura para se dedicarem de maneira quase exclusiva à caça, cujo rendimento era multiplicado pela mobilidade dez vezes maior proporcionada pelo cavalo. A partir do momento em que se tornaram eqüestres, as tribos das planícies da América do Norte ou as do Chaco, na América do Sul, intensificaram e estenderam os seus deslocamentos: contudo, estamos aí bem longe do nomadismo em que recaem geralmente os bandos de caçadores-coletores (como os Guayaki do Paraguai), e o abandono da agricultura não se traduziu, para os grupos em questão, pela dispersão demográfica, nem pela transformação da organização social anterior. Que nos é ensinado por esse movimento de maioria de sociedades que passaram da caça à agricultura e pelo movimento inverso, de algumas outras, que, partindo da agricultura, chegaram à caça? É que isso parece efetivar-se sem que ocorra qualquer mudança na natureza da sociedade; que esta permanece idêntica a si mesma enquanto se transformam apenas as suas condições de existência material; que a revolução neolítica, se por um lado afetou consideravelmente, e sem dúvida facilitou, a vida material dos grupos humanos de então, por outro lado não acarreta de maneira automática uma perturbação da ordem social. Em outros termos, e no que tange às sociedades primitivas, a mudança no plano do que o marxismo chama a infra-estrutura econômica não determina de modo algum o seu reflexo conseqüente a superestrutura política, já que esta surge independente da sua base material. O continente americano ilustra claramente a autonomia respectiva da economia e da sociedade. Grupos de caçadores-pescadores-coletores, nômades ou não, apresentam as mesmas propriedades sociopolíticas que os seus vizinhos agricultores sedentários: “infraestruturas” diferentes, “superestrutura” idêntica. Inversamente, as sociedades mesoamericanas – sociedades imperiais, sociedades com Estado – eram tributárias de uma agricultura que, mais intensiva que alhures, não ficava muito longe, do ponto de vista de seu nível técnico, da agricultura das tribos “selvagens” da Floresta Tropical: “infraestrutura” idêntica, “superestruturas” diferentes, uma vez que, num dos casos, se trata de sociedades sem Estado, e, no outro, de Estados acabados.

É então a ruptura política – e não a mudança econômica – que é decisiva. A verdadeira revolução, na proto-história da humanidade, não é a do neolítico, uma vez que ela pode muito bem deixar intacta a antiga organização social, mas a revolução política: é essa aparição misteriosa, irreversível, mortal para as sociedades primitivas, que conhecemos sob o nome de Estado. E caso haja desejo de conservar os conceitos marxistas de infra-estrutura e de superestrutura, então talvez seja necessário reconhecer que a infra-estrutura é o político e que a superestrutura é o econômico. Somente uma convulsão estrutural, abissal pode transformar, destruindo-a como tal, a sociedade primitiva: aquilo que faz surgir em seu seio, ou do exterior, aquilo cuja ausência mesma define essa sociedade, a autoridade da hierarquia, a relação de poder, a dominação dos homens, o Estado. Seria vão procurar sua origem numa hipotética modificação das relações de produção na sociedade primitiva, modificação que, dividindo pouco a pouco a sociedade em ricos e pobres, exploradores e explorados, conduziria mecanicamente à instauração de um órgão de exercício do poder dos primeiros sobre os segundos, ao aparecimento do Estado.

Hipotética, essa modificação da base econômica é ainda mais impossível. Para que, numa dada sociedade, o regime de produção se transforme no sentido de uma maior imensidade de trabalho que visa a uma produção acrescida de bens, é necessário ou que os homens dessa sociedade desejem essa transformação de seu gênero de vida tradicional, ou que, mesmo não a desejando, eles se vejam obrigados por uma violência externa. No segundo caso, nada advém da própria sociedade, que sofre a agressão de uma força externa em beneficio da qual o regime de produção vai modificar-se: trabalhar e produzir mais para satisfazer as necessidades dos novos senhores do poder. A opressão política determina, chama, permite a exploração. Mas a evocação de uma tal “encenação” não serve de nada, uma vez que ela coloca uma origem externa, contingente, imediata, da violência estatal, e não a lenta realização das condições internas, socioeconômicas, de seu aparecimento. O Estado, dizem, é o instrumento que permite à classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classes dominadas. Que seja. Para que haja o aparecimento do Estado, é necessário pois, que exista antes divisão da sociedade em classes sociais antagônicas, ligadas entre si por relação de exploração. Por conseguinte, a estrutura da sociedade – a divisão em classes – deveria preceder a emergência da máquina estatal. Observemos de passagem a fragilidade dessa concepção puramente instrumental do Estado. Se a sociedade é organizada por opressores capazes de explorar os oprimidos, é que essa capacidade de impor a alienação repousa sobre o uso de uma força, isto é, sobre o que faz da própria substância do Estado “monopólio da violência física legítima”. A que necessidade responderia desde então a existência de um Estado, uma vez que sua essência – a violência – é imanente à divisão da sociedade, já que é, nesse sentido, dada antecipadamente na opressão exercida por um grupo social sobre os outros? Ele não seria senão o inútil órgão de uma função preenchida antes e alhures.

Articular o aparecimento da máquina estatal com a transformação da estrutura social leva somente a recuar o problema desse aparecimento. É então necessário perguntar por que se produz, no seio de uma sociedade primitiva, isto é, de uma sociedade não-dividida, a nova divisão dos homens em dominantes e dominados. Qual é o motor dessa transformação maior que culminaria na instalação do Estado? Sua emergência sancionaria a legitimidade de uma propriedade privada previamente surgida, e o Estado seria o representante e o protetor dos proprietários. Muito bem. Mas por que se teria o surgimento da propriedade privada num tipo de sociedade que ignora, por recusá-la, a propriedade? Por que alguns desejaram proclamar um dia: isto é meu, e como os outros deixaram que se estabelecesse assim o germe daquilo que a sociedade primitiva ignora, a autoridade, a opressão, o Estado? O que hoje se sabe das sociedades primitivas não permite mais procurar no nível econômico a origem do político. Não é nesse solo que se enraíza a árvore genealógica do Estado. Nada existe, no funcionamento econômico de uma sociedade primitiva, de uma sociedade sem Estado, que permita a introdução da diferença entre mais ricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranho desejo de fazer, possuir, parecer mais que seu vizinho. A capacidade, igual entre todos, de satisfazer as necessidades materiais, e a troca de bens e serviços, que impede constantemente o acúmulo privado dos bens, tornam simplesmente impossível a eclosão de um tal desejo, desejo de posse que é de fato desejo de poder. A sociedade primitiva, primeira sociedade de abundância, não deixa nenhum espaço para o desejo de superabundância.

As sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque, nelas, o Estado é impossível. E entretanto todos os povos civilizados foram primeiramente selvagens: o que fez com que o Estado deixasse de ser impossível? Por que os povos cessaram de ser selvagens? Que formidável acontecimento, que revolução permitiram o surgimento da figura do Déspota, daquele que comanda os que obedecem? De onde provém o poder político? Mistério, talvez provisório, da origem.

Se parece ainda possível determinar as condições de aparecimento do Estado, podemos em troca precisar as condições de seu não-aparecimento, e os textos que foram aqui reunidos tentam cercar o espaço do político nas sociedades sem Estado. Sem fé, sem lei sem rei: o que no século XVI o Ocidente dizia dos índios pode estender-se sem dificuldade a toda sociedade primitiva. Este pode ser mesmo o critério de distinção: uma sociedade é primitiva se nela falta o rei, como fonte legítima da lei, isto é, a máquina estatal. Inversamente, toda sociedade não-primitiva é uma sociedade de Estado: pouco importa o regime socioeconômico em vigor. É por isso que podemos reagrupar numa mesma classe os grandes despotismos arcaicos – reis, imperadores da China ou dos Andes, faraós – as monarquias mais recentes – O Estado sou eu – ou os sistemas sociais contemporâneos, quer o capitalismo seja liberal corno na Europa ocidental, ou de Estado como alhures… Portanto, a tribo não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado. O que significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar urna ordem. O chefe não é um comandante, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder, e a figura (mal denominada) do “chefe” selvagem não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. Certamente não é da chefia primitiva que se pode deduzir o aparelho estatal em geral.

Em que o chefe da tribo não prefigura o chefe de Estado? Em que uma tal antecipação do Estado é impossível no mundo dos selvagens? Essa descontinuidade radical – que torna impensável uma passagem progressiva da chefia primitiva à máquina estatal – se funda naturalmente nessa relação de exclusão que coloca o poder político no exterior da chefia. O que se deve imaginar é um chefe sem poder, uma instituição, a chefia, estranha à sua essência, a autoridade. As funções do chefe, tal como foram analisadas acima, mostram perfeitamente que não se trata de funções de autoridade. Essencialmente encarregado de eliminar conflitos que podem surgir entre indivíduos, famílias e linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, do prestÍgio que lhe reconhece à sociedade. Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra: não para arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é um juiz e não pode se permitir tomar partido por um ou por outro, mas para, armado apenas de sua eloqüência, tentar persuadir as pessoas da necessidade de se apaziguar, de renunciar às injúrias, de imitar os ancestrais que sempre viveram no bom entendimento. Empreendimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois a palavra do chefe não tem força de lei. Se o esforço de persuasão fracassa, então o conflito corre o risco de se resolver pela violência e o prestígio do chefe pode muito bem não sobreviver a isso, uma vez que ele deu provas de sua impotência em realizar o que se espera dele.

Em função de que a tribo estima que tal homem é digno de ser um chefe? No fim das contas, somente em função de sua competência “técnica”: dons oratórios, habilidade como caçador, capacidade de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma a sociedade deixa o chefe ir além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se transformar em autoridade política. O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma – verdadeiro lugar do poder – que exerce como tal sua autoridade sobre o chefe. É por isso que é impossível para o chefe alterar essa relação em seu proveito, colocar a sociedade a seu próprio serviço, exercer sobre a tribo o que denominamos poder: a sociedade nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota. Grande vigilância. de certo modo, a que a tribo submete o chefe, prisioneiro em um espaço do qual ela não o deixa sair. É possível que um chefe deseje ser chefe? Que ele queira substituir o serviço e o interesse do grupo pela realização do seu próprio desejo? Que a satisfação do seu interesse pessoal ultrapasse a submissão ao projeto coletivo? Em virtude do estreito controle a que a sociedade – por sua natureza de sociedade primitiva e não, é claro, por cuidado consciente e deliberado de vigilância – submete, como todo o resto, a prática do líder, raros são os casos de chefes colocados em situação de transgredir a lei primitiva: tu não és mais que os outros. Raros certamente, mas não inexistentes: acontece às vezes que um chefe queira bancar o chefe, e não por cálculo maquiavélico, mas antes porque definitivamente ele não tem escolha, não pode fazer de outro modo. Expliquemonos. Em regra geral, um chefe não tenta (ele nem mesmo sonha) subverter a relação normal (conforme às normas) que mantém com seu grupo, subversão que, de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relação normal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro de uma tribo Abipione do Chaco argentino, a definiu perfeitamente na resposta que deu a um oficial espanhol que queria convencê-lo ~ levar sua tribo a uma guerra que ela não desejava: “Os Abipiones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade e não de acordo com a do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado e não temido por eles” E, não duvidemos, a maior parte dos chefes indígenas teria sustentado o mesmo discurso.

Existem entretanto exceções quase sempre ligadas à guerra. Sabemos com efeito que a preparação e a condução de uma expedição militar são as únicas circunstâncias em que o chefe pode exercer um mínimo de autoridade, fundada somente, repitamo-lo, em sua competência técnica de guerrear. Uma vez as coisas terminadas, e qualquer que seja o resultado do combate, o chefe guerreiro volta a ser um chefe sem poder, e em nenhuma hipótese o prestígio decorrente da vitória se transforma em autoridade. Tudo se passa precisamente sobre essa separação mantida pela sociedade entre poder e prestígio, entre a glória de um guerreiro vencedor e o comando que lhe é proibido exercer. A fonte mais apta para saciar a sede de prestígio de um guerreiro é a guerra. Ao mesmo tempo, um chefe cujo prestígio está ligado à guerra não pode conservá-lo e reforçá-lo senão na guerra: é uma espécie de fuga impulsiva para a frente que o faz querer organizar sem cessar expedições guerreiras das quais ele conta retirar os benefícios (simbólicos) aferentes à vitória. Enquanto seu desejo de guerra corresponder à vontade geral da tribo, em particular dos jovens para os quais a guerra é também o principal meio de adquirir prestígio, e enquanto a vontade do chefe não ultrapassar a da sociedade, as relações habituais entre o segundo e o primeiro manter-se-ão inalteradas. Mas o risco de uma ultrapassagem do desejo da sociedade pelo desejo do seu chefe, o risco para ele de ir além do que deve, de sair do estreito limite determinado à sua função, é permanente. O chefe às vezes aceita corrê-lo, tenta impor à tribo seu projeto individual tenta substituir o interesse coletivo por seu interesse pessoal. Alterando a relação normal que determina o líder como meio a serviço de um fim socialmente definido, ele tenta fazer da sociedade o meio de realizar um fim puramente privado: a tribo a serviço do chefe, e não mais o chefe a serviço da tribo. Se isso funcionasse, então teríamos aí a terra natal do poder político, como coerção e violência, teríamos a primeira encarnação da figura mínima do Estado. Mas isso nunca funciona.

No belíssimo relato dos vinte anos que passou entre os Yanomami,2 Helena Valero fala longamente de seu primeiro marido, o líder guerreiro Fousiwe. Sua história ilustra perfeitamente o destino da chefia selvagem quando ela é, por força das coisas, levada a transgredir a lei da sociedade primitiva que, verdadeiro lugar do poder, recusa cedê-lo, recusa delegá-lo. Fousiwe foi então reconhecido como “chefe” por sua tribo em virtude do prestígio que adquiriu como organizador e condutor de ataques vitoriosos contra os grupos inimigos. Ele dirige conseqüentemente guerras desejadas por sua tribo, coloca à disposição de seu grupo sua competência técnica de homem de guerra, sua coragem, seu dinamismo, e é o instrumento eficaz de sua sociedade. Mas a infelicidade do guerreiro selvagem é que o prestígio adquirido na guerra se perde rapidamente, se não se renovam constantemente as fontes. A tribo, para a qual o chefe é apenas “um instrumento apto a realizar sua vontade”, esquece facilmente as vitórias passadas do chefe. Para ele, nada é definitivamente adquirido e, se ele quer devolver às pessoas a memória tão facilmente perdida de seu prestígio e de sua glória, não é apenas exaltando suas antigas façanhas que o conseguirá, mas antes suscitando a ocasião de novos feitos bélicos. Um guerreiro não tem escolha: ele está condenado a desejar a guerra. É exatamente aí que se dá o limite do consenso que o reconhece como chefe. Se seu desejo de guerra coincide com o desejo de guerra da sociedade, esta continua a segui-lo. Mas se o desejo de guerra do chefe tenta se estabelecer sobre uma sociedade animada pelo desejo de paz – com feito, nenhuma sociedade deseja sempre guerrear -, então a relação entre o chefe e a tribo se modifica, o líder tenta utilizar a sociedade como instrumento de seu objetivo individual, como meio de sua meta pessoal. Ora, não o esqueçamos, o chefe primitivo é um chefe sem poder: como poderia ele impor a lei de seu desejo a uma sociedade que o recusa? Ele é ao mesmo tempo prisioneiro de seu desejo de prestígio e de sua impotência em realizá-lo. O que pode então ocorrer? O guerreiro está destinado a solidão, a esse combate duvidoso que só o conduz à morte. Tal foi o destino do guerreiro sul-americano Fouiswe. Por ter querido impor aos seus uma guerra que eles não desejavam, foi abandonado por sua tribo. Só restava lutar sozinho nessa guerra, e ele morreu crivado de flechas. A morte é o destino do guerreiro, pois a sociedade primitiva é tal que não permite que a vontade de poder substitua o desejo de prestígio. Ou, em outros termos, na sociedade primitiva, o chefe, como possibilidade de vontade de poder, está antecipadamente condenado à morte. O poder político isolado é impossível na sociedade primitiva; nela não há lugar, não há vazio que o Estado pudesse preencher. Menos trágica em sua conclusão, mas muito semelhante no seu desenvolvimento é a história de um outro líder indígena, infinitamente mais célebre que o obscuro guerreiro amazônico, uma vez que se trata do famoso chefe apache Gerônimo. A leitura de suas Memórias3 , se bem que bastante futilmente recolhidas, se revela muito instrutiva. Gerônimo não passava de um jovem guerreiro como os outros quando os soldados mexicanos atacaram o acampamento de sua tribo e massacraram mulheres e crianças. A família de Gerônimo foi inteiramente exterminada. As diversas tribos Apache se aliaram para se vingar dos assassinos e Gerônimo foi encarregado de conduzir o combate. Sucesso completo para os Apache, que eliminaram a guarnição mexicana. O prestígio guerreiro de Gerônimo, principal artífice da vitória, foi imenso. E, desde esse momento, as coisas mudaram, alguma coisa se passou em Gerônimo, alguma coisa sucedeu. Pois se, para os Apache, satisfeitos com uma vitória que realizou perfeitamente seu desejo de vingança, o caso estava de alguma forma acabado, para Gerônimo, os rumores eram outros: ele queria continuar a se vingar dos mexicanos e considerou insuficiente a sangrenta derrota imposta aos soldados. Mas ele não pôde, é claro, atacar sozinho as aldeias mexicanas. Tentou pois, convencer os seus a fazer uma nova expedição. Inutilmente. A sociedade Apache, uma vez realizado o objetivo coletivo – a vingança – aspirava ao repouso. O objetivo de Gerônimo foi, portanto, um objetivo individual para cuja realização ele pretendeu arrastar a tribo. Ele quis fazer da tribo o instrumento de seu desejo, ao passo que antes ele foi, em função de sua competência como guerreiro, o instrumento da tribo. Evidentemente, os Apache jamais quiseram seguir Gerônimo, da mesma forma que os Yanomami se recusaram a seguir Fousiwe. Quando muito o chefe Apache conseguia (por vezes, ao preço de mentiras) convencer alguns jovens ávidos de glória e de saque. Para uma dessas expedições, o exército de Gerônimo, heróico e ridículo compunha-se de dois homens! Os Apache, que, em função das circunstâncias, aceitavam a liderança de Gerônimo em virtude da sua habilidade de combatente, sistematicamente lhe davam as costas quando ele queria fazer sua guerra pessoal. Gerônimo foi o último grande chefe de guerra norte-americano, que passou trinta anos de sua vida querendo “bancar o chefe” e não conseguiu…

A propriedade essencial (quer dizer, que toca a essência) da sociedade primitiva é exercer um poder absoluto e completo sobre tudo que a compõe, é interditar a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos internos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social nos limites e na direção desejados pela sociedade. A tribo manifesta, entre outras (e pela violência se for necessário), sua vontade de preservar essa ordem social primitiva, interditando a emergência de um poder político individual, central e separado. Sociedade à qual nada escapa, que nada deixa sair de si mesma, pois todas as saídas estão fechadas. Sociedade que, por conseguinte, deveria eternamente se reproduzir sem que nada de substancial a afete através do tempo. Há contudo um campo que, parece, escapa, ao menos em parte, ao controle da sociedade: é um “fluxo” ao qual ela só parece poder impor uma “codificação” imperfeita. Trata-se do domínio demográfico, domínio regido por regras culturais, mas também por leis naturais, espaço de desdobramento de uma vida enraizada tanto no social quanto no biológico, lugar de uma “máquina” que funciona talvez segundo uma mecânica própria e que estaria, em seguida, fora de alcance da empresa social.

Sem sonhar em substituir um determinismo econômico por um determinismo demográfico, em inscrever nas causas – o crescimento demográfico – a necessidade dos efeitos – transformação da organização social – é entretanto necessário constatar, sobretudo na América, o peso sociológico do número da população, a capacidade que possui o aumento das densidades de abalar – não dissemos destruir a sociedade primitiva. Com efeito é bastante provável que uma condição fundamental da existência da sociedade primitiva consista numa fraqueza relativa de seu porte demográfico. As coisas só podem funcionar segundo o modelo primitivo se a população é pouco numerosa. Ou, em outros termos, para que uma sociedade seja primitiva, é necessário que ela seja pequena em número. E, de fato, o que se constata no mundo dos selvagens é um extraordinário esfacelamento das “nações”, tribos, sociedades em grupos locais que tratam cuidadosamente de conservar sua autonomia no seio do conjunto do qual fazem parte, com o risco de concluir alianças provisórias com seus vizinhos “compatriotas”, se as circunstâncias – guerreiras em particular – o exigem. Essa atomização do universo tribal é certamente um meio eficaz de impedir a constituição de conjuntos sóciopolíticos que integram os grupos locais, e, mais além um meio de proibir a emergência do Estado que, em sua essência, é unificador.

Ora, é perturbador constatar que os Tupi-Guarani parecem, na época que a Europa os descobre, afastar-se sensivelmente do modelo primitivo habitual, e em dois pomos essenciais: a taxa de densidade demográfica de suas tribos ou grupos locais ultrapassa claramente a das populações vizinhas; por outro lado, o porte dos grupos locais não tem medida comum com o das unidades sociopolíticas da Floresta Tropical. Evidentemente, as aldeias tupinambá, por exemplo, que reuniam vários milhares de habitantes, não eram cidades; mas deixavam igualmente de pertencer ao horizonte “clássico” da dimensão demográfica das sociedades vizinhas. Sobre essa base de expansão demográfica e de concentração da população se destaca – fato também inabitual na América dos selvagens, ao menos na dos impérios – a tendência evidente das chefias em obter um poder desconhecido alhures. Os chefes tupi-guarani não eram certamente déspotas, mas não eram mais de modo algum chefes sem poder. Não cabe aqui empreender a longa e complexa tarefa de analisar a chefia entre os Tupi-Guarani. Baste-nos simplesmente revelar, num extremo da sociedade, se é possível dizer, o crescimento demográfico, e, no outro, a lenta emergência do poder político. Sem dúvida não cabe à etnologia (ou ao menos a ela sozinha) responder às questões das causas da expansão demográfica numa sociedade primitiva. Em compensação, incumbe a essa disciplina a articulação do demográfico e do político, a análise da força que o primeiro exerce sobre o segundo através do sociológico.

Não cessamos, ao longo deste texto, de proclamar a impossibilidade interna do poder político separado numa sociedade primitiva, a impossibilidade de uma gênese do Estado a partir do interior da sociedade primitiva. E eis que, ao que parece, evocamos nós mesmos, contraditoriamente, os Tupi-Guarani como um caso de sociedade primitiva onde começava a surgir o que poderia ter podido se tornar o Estado. Incontestavelmente se desenvolvia, nessas sociedades, um processo, sem dúvida, em curso já há muito tempo, de constituição de uma chefia cujo poder político não era negligenciável. a ponto mesmo de os cronistas franceses e portugueses da época não hesitarem em atribuir aos grandes chefes de federações de tribos os títulos de “reis de província” ou “régulos. Esse processo de transformação profunda da sociedade tupi-guarani teve uma interrupção brutal com a chegada dos europeus. Quererá isso dizer que, se o descobrimento do Novo Mundo tivesse sido adiado de um século por exemplo, uma formação estatal seria imposta às tribos indígenas do litoral brasileiro? Sempre é fácil, e arriscado, reconstruir uma história hipotética que nada viria desmentir. Mas, no presente caso, pensamos poder responder com firmeza pela negativa: não foi a chegada dos ocidentais que cortou a emergência possível do Estado entre os Tupi-Guarani, e sim um sobressalto da própria sociedade enquanto sociedade primitiva, um sobressalto, uma sublevação de alguma forma dirigida, se não explicitamente contra as chefias, ao menos, por seus efeitos, destruidor do poder dos chefes. Queremos falar desse estranho fenômeno que, desde os últimos decênios do século XV, agitava as tribos tupi-guarani a predicação inflamada de alguns homens que, de grupo em grupo, concitavam os índios a tudo abandonar para se lançarem na procura da Terra sem Mal, do paraíso terrestre.

Chefia e linguagem estão, na sociedade primitiva, intrinsecamente ligadas; a palavra é o único poder concedido ao chefe: mais do que isso a palavra é para ele um dever. Mas há uma outra palavra, um outro discurso, articulado não pelos chefes, mas por esses homens que, nos séculos XV e XVI, arrastavam atrás de si milhares de índios em loucas migrações em busca da pátria dos deuses: é o discurso dos karai, é a palavra profética, palavra virulenta eminentemente subversiva que chama os índios a empreender o que se deve reconhecer como a destruição da sociedade. O apelo dos profetas pra o abandono da terra má, isto é, da sociedade tal como ela era, para alcançar a Terra sem Mal, a sociedade da felicidade divina, implicava a condenação à morte da estrutura da sociedade e do seu sistema de normas. Ora, a essa sociedade se impunha cada vez mais fortemente a marca da autoridade dos chefes, o peso de seu poder político nascente. Talvez então possamos dizer que, se os profetas, surgidos no coração da sociedade, proclamavam mau o mundo em que os homens viviam, é porque eles revelavam a infelicidade, o mal, nessa morte lenta à qual a emergência do poder condenava num prazo mais ou menos longo, a sociedade tupi-guarani, como sociedade primitiva, como sociedade sem Estado. Habitados pelo sentimento de que o amigo mundo selvagem tremia em seu fundamento, perseguidos pelo pressentimento de uma catástrofe sócio-cósmica, os profetas decidiram que era preciso mudar o mundo, abandonar o dos homens e ganhar o dos deuses.

Palavra profética ainda viva, como o testemunham os textos “Profetas na selva” e “Do Um sem o Múltiplo”. Os 3 ou 4 mil índios Guarani que subsistem miseravelmente nas florestas do Paraguai gozam ainda da riqueza incomparável que os karai lhes oferecem. Estes não são mais – duvidamos – condutores de tribos, como seus ancestrais do século XVI, não é mais possível a procura da Terra sem Mal. Mas a falta de ação parece ter permitido uma embriaguez do pensamento, um aprofundamento sempre mais tenso da reflexão sobre a infelicidade da condição humana. E esse pensamento selvagem que quase cega por tanta luz, nos diz que o lugar de nascimento do Mal, da fonte da infelicidade, é o Um.

Talvez seja preciso dizer um pouco mais e se perguntar o que o sábio guarani designa sob o nome de Um. Os temas favoritos do pensamento guarani contemporâneo são os mesmos que inquietavam, há mais de quatro séculos, aqueles a quem já se chamava karai, os profetas. Por que o mundo é mau? O que podemos fazer para escapar ao mal? Questões que ao cabo de gerações esses índios não cessam de se colocar: os karai de agora se obstinam pateticamente em repetir o discurso dos profetas de outros tempos. Estes sabiam, pois, que o Um é o mal; eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoas os seguiam na procura do Bem, na busca do não-Um. Temos, portanto, entre os Tupi-Guarani do tempo do Descobrimento, de um lado uma prática – a migração religiosa – inexplicável se não vemos nela a recusa da via em que a chefia engajava a sociedade, a recusa do poder político isolado, a recusa do Estado; do outro, um discurso profético que identifica o Um como a raiz do Mal e afirma a possibilidade de escapar-lhe. Em que condições é possível pensar o Um? É preciso que, de algum modo, sua presença, odiada ou desejada, seja visível. É por isso que o Um é o Estado. O profetismo tupi-guarani é a tentativa heróica de uma sociedade primitiva para abolir a infelicidade na recusa radical do Um como essência universal do Estado. Essa leitura “política” de uma constatação metafísica deveria então incitar a colocar uma questão, talvez sacrílega: não se poderia submeter a semelhante leitura toda a metafísica do Um? Que acontece ao Um como Bem, como objeto preferencial, que, desde sua aurora, a metafísica ocidental impõe ao desejo do homem? Detenhamo-nos nesta perturbadora evidência: o pensamento dos profetas selvagens e aquele dos gregos antigos pensam a mesma coisa, o Um; mas o índio Guarani diz que o Um é o Mal, ao passo que Heráclito diz que ele é o Bem. Em que condições é possível pensar o Um como Bem? Voltemos, para concluir, ao mundo exemplar dos Tupi-Guarani. Eis uma sociedade primitiva que, atravessada, ameaçada pela irresistível ascensão dos chefes, suscita em si mesma e libera forças, capazes, mesmo ao preço de um quase-suicídio coletivo, de fazer fracassar a dinâmica da chefia, de impedir o movimento que poderia levar à transformação dos chefes em reis portadores de leis. De um lado os chefes; do outro, e contra eles os profetas: tal é, traçado segundo suas linhas essenciais, o quadro da sociedade tupi-guarani no final do século XV. E a “máquina” profética funcionava perfeitamente bem, uma vez que os karai eram capazes de se fazer seguir por massas surpreendentes de índios fanatizados, diríamos hoje, pela palavra desses homens, a ponto de acompanhá-los até na morte.

O que quer isso dizer? Os profetas, armados apenas de seus logos, podiam determinar uma “mobilização” dos índios, podiam realizar esta coisa impossível na sociedade primitiva: unificar na migração religiosa a diversidade múltipla das tribos. Eles conseguiram realizar, de um só golpe, o “programa” dos chefes! Armadilha da história? Fatalidade que apesar de tudo consagra a própria sociedade primitiva à dependência? Não se sabe. Mas, em todo o mais poder do que os segundos detinham. Então talvez seja preciso retificar a idéia da palavra como oposto da violência. Se o chefe selvagem é obrigado a um dever de palavra inocente, a sociedade primitiva pode também, evidentemente em condições determinadas, se voltar para a escuta de uma outra palavra, esquecendo que essa palavra é dita como um comando: é a palavra profética. No discurso dos profetas jaz talvez em germe o discurso do poder, e sob os traços exaltados do condutor de homens que diz o desejo dos homens se dissimula talvez a figura silenciosa do Déspota.

Palavra profética, poder dessa palavra: teríamos nela o lugar originário do poder, o começo do Estado no Verbo? Profetas conquistadores das almas antes de serem senhores dos homens? Talvez. Mas, mesmo na experiência extrema do profetismo (porque sem dúvida a sociedade tupi-guarani tinha atingido, por razões demográficas ou outras, os limites extremos que determinam uma sociedade como sociedade primitiva), o que os selvagens nos mostram é o esforço permanente para impedir os chefes de serem chefes e a recusa da unificação; é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dos povos que têm um história é, diz-se, a história da luta de classes. A história dos povos sem história é, dir-se-á como ao menos tanta verdade, a história da sua luta contra o Estado.

Notas

1 Jaques Lizot, “Economie ou sociéte? Quelques thêmes à propos de l’étude d’une communauté d’Amérindiens.”Journal de Ia Sociiti des Amiricanistes, n. 9, 1973, pp 137-75.

2 Ettore Biocca, Yanoama (Paris: Pkm, [9(9)’

3 Mimoires de Géronimo (Paris: Maspero, 197:1.).

Título Original: Lê Societé contre I’Etat

Tradução: Theo Santiago

Data Publicação Original: 1974

Capítulo da obra:

A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

A Organização, por Errico Malatesta

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Fractal: Conjunto de Mandelbrot

 Fonte: Arte e Anarquia

A ORGANIZAÇÃO I
(Agitazione de Ancone, 04/07/1897.)

Há anos que muito se discute entre os anarquistas esta questão. E como freqüentemente acontece quando se discute com ardor à procura da verdade, acredita-se, em seguida, ter razão. Quando as discussões teóricas são apenas tentativas para justificar uma conduta inspirada por outros motivos, produz-se uma grande confusão de idéias e de palavras.

Lembraremos, de passagem, sobretudo para nos livrarmos delas, as simples questões de frases empregadas, que, às vezes, atingiram o cúmulo do ridículo, como por exemplo: “Não queremos a organização, mas a harmonização”, “Opomo-nos à associação, mas a admitimos”, “Não queremos secretário ou caixa, porque é um sinal de autoritarismo, mas encarregamos um camarada para se ocupar do correio e outro do dinheiro”; passemos a discussão séria.

Se não pudermos concordar, tratemos pelo menos de nos compreender.

Antes de mais nada, distingamos, visto que a questão é tripla: a organização em geral, como princípio e condição da vida social, hoje, e na sociedade futura; a organização das forças populares, e, em particular, a das massas operárias, para resistir ao governo e ao capitalismo.

A necessidade de organização na vida social – direi que organização e sociedade são quase sinônimos – é coisa tão evidente que mal se pode acreditar que pudesse ter sido negada.

Para nos darmos conta disso, é preciso lembrar que ela é a função específica, característica do movimento anarquista, e como homens e partidos estão sujeitos a se deixarem absorver pela questão que os interessa mais diretamente, esquecendo tudo o que a ela se relaciona, dando mais importância à forma que ao conteúdo e, enfim, vendo as coisas somente de um lado, não distinguindo mais a justa noção da realidade.

O movimento anarquista começou como uma reação contra o autoritarismo dominante na sociedade, assim como todos os partidos e organizações operárias, e se acentuou com os adventos de todas as revoltas contra as tendências autoritárias e centralistas.

Era natural, em conseqüência, que inúmeros anarquistas estivessem como que hipnotizados por esta luta contra a autoridade e que eles combatem, para resistir à influência da educação autoritária, tanto a autoridade quanto a organização, da qual ela é a alma.

Na verdade, esta fixação chegou ao ponto de fazer sustentar coisas realmente incríveis. Combateu todo o tipo de cooperação e de acordo porque a associação é a antítese da anarquia. Afirma-se que sem acordos, sem obrigações recíprocas, cada um fazendo o que lhe passar pela cabeça, sem mesmo se informar sobre o que fazem os outros, tudo estaria espontaneamente em harmonia: que a anarquia significa que cada um deve bastar-se a si mesmo e fazer tudo que tem vontade, sem troca e sem trabalho em associação. Assim, as ferrovias poderiam funcionar muito bem sem organização, como acontecia na Inglaterra (!). O correio não seria necessário: alguém de Paris, que quisesse escrever uma carta a Petersburgo… Podia ele próprio levá-la (!!) etc.

Dir-se-á que são besteiras, que não vale a pena discuti-las. Sim, mas estas besteiras foram ditas, propagadas: foram autêntica das idéias anarquistas. Servem sempre como armas de combate aos adversários, burgueses ou não, que querem conseguir uma fácil vitória sobre nós. E, também, estas “besteiras” não são sem valor, visto que são a conseqüência lógica de certas premissas e que podem servir como prova experimental da verdade, ou pelo menos dessas premissas.

Alguns indivíduos, de espírito limitado, mas providos de espírito lógico poderoso, quando aceitam premissas, extraem delas todas as conseqüências até que, por fim, e se a lógica assim o quer, chegam, sem se desconcertar, aos maiores absurdos, à negação dos fatos mais evidentes. Mas há outros indivíduos mais cultos e de espírito mais amplo que encontram sempre um meio de chegar a conclusões mais ou menos razoáveis, mesmo ao preço da violentação da lógica. Para eles, os erros teóricos têm pouca ou nenhuma influência na conduta prática. Mas, em suma, desde que não se haja renunciado a certos erros fundamentais, estamos sempre ameaçados por silogismos exagerados, e voltamos sempre ao começo.

O erro fundamental dos anarquistas adversários da organização é crer que não há possibilidade de organização sem autoridade. E uma vez admitida esta hipótese, preferem renunciar a toda organização, ao invés de aceitar o mínimo de autoridade.

Agora que a organização, quer dizer, a associação com um objetivo determinado e com as formas e os meios necessários para atingir este objetivo, é necessária à vida social, é uma evidência para nós. O homem isolado não pode sequer viver como um animal: ele é impotente (salvo em regiões tropicais, e quando a população é muito dispersa) e não pode obter sua alimentação; ele é incapaz, sem exceção, de ter uma vida superior àquela dos animais. Conseqüentemente, é obrigado a se unir a outros homens, como a evolução anterior das espécies o mostra, e deve suportar a vontade dos outros (escravidão), impor sua vontade aos outros (autoritarismo), ou viver com os outros em fraternal acordo para o maior bem de todos (associação). Ninguém pode escapar dessa necessidade. Os antiorganizadores mais imoderados suportam não apenas a organização geral da sociedade em que vivem, mas também em seus atos, em sua revolta contra a organização, eles se unem, dividem a tarefa, organizam-se com aqueles que compartilham suas idéias, utilizando os meios que a sociedade coloca à sua disposição; com a condição de que estes sejam fatos reais e não vagas aspirações platônicas.

Anarquia significa sociedade organizada sem autoridade, compreendendo-se autoridade como a faculdade de impor sua vontade. Todavia, também significa o fato inevitável e benéfico que aquele que compreende melhor e sabe fazer uma coisa, consegue fazer aceitar mais facilmente sua opinião. Ele serve de guia, quanto a esta coisa, aos menos capazes que ele.

Segundo nossa opinião, a autoridade não é necessária à organização social, mais ainda, longe de ajudá-la, vive como parasita, incomoda a evolução e favorece uma dada classe que explora e oprime as outras. Enquanto há harmonia de interesses em uma coletividade, enquanto ninguém pode frustrar outras pessoas, não há sinal de autoridade. Ela aparece com a luta intestina, a divisão em vencedores e vencidos, os mais fortes confirmando a sua vitória.

Temos esta opinião e é por isso que somos anarquistas, caso contrário, afirmando que não pode existir organização sem autoridade, seremos autoritários. Mas ainda preferimos a autoridade que incomoda e desola a vida, à desorganização que a torna impossível.

De resto, o que seremos nos interessa muito pouco. Se é verdade que o maquinista e o chefe de serviço devem forçosamente ter autoridade, assim como os camaradas que fazem para todos um trabalho determinado, as pessoas sempre preferirão suportar sua autoridade a viajar a pé. Se o correio fosse apenas esta autoridade, todo homem são de espírito a aceitaria para não ter de levar, ele próprio, suas cartas. Se se recusa isto, a anarquia permanecerá o sonho de alguns e nunca se realizará.

A ORGANIZAÇÃO II

(Agitazione de Ancone, 11/07/1897.)

Estando admitida a existência de uma coletividade organizada sem autoridade, isto é, sem coerção, caso contrário, a anarquia não teria sentido, falemos da organização do partido anarquista.

Mesmo nesses casos, a organização nos parece útil e necessária. Se o partido, ou seja, o conjunto dos indivíduos que têm um objetivo em comum e se esforçam para alcançá-lo, é natural que se entendam, unam suas forças, compartilhem o trabalho e tomem todas as medidas adequadas para desempenhar esta tarefa. Permanecer isolado, agindo ou querendo agir cad um por sua conta, sem se entender com os outros, sem preparar-se, sem enfeixar as fracas forças dos isolados, significa condenar-se à fraqueza, desperdiçar sua energia em pequenos atos ineficazes, perder rapidamente a fé no objetivo e cair na completa inação.

Mas isto parece de tal forma evidente que, ao invés de fazer sua demonstração, responderemos aos argumentos dos adversários da organização.

Antes de mais nada, há uma objeção, por assim dizer, formal. “Mas de que partido nos falais? Dizem-nos, nem sequer somos um, não temos um programa”. Este paradoxo significa que as idéias progridem, evoluem continuamente, e que eles não podem aceitar um programa fixo, talvez válido hoje, mas que estará com certeza ultrapassado amanhã.

Seria perfeitamente justo se se tratasse de estudantes que procuram a verdade, sem se preocuparem com as aplicações práticas. Um matemático, um químico, um psicólogo, um sociólogo podem dizer que não há outro programa senão o de procurar a verdade: eles querem conhecer, mas sem fazer alguma coisa. Mas a anarquia e o socialismo não são ciências: são proposições, projetos que os anarquistas e os socialistas querem por em prática e que, conseqüentemente, precisam ser formulados como programas determinados. A ciência e a arte das construções progridem a cada dia. Mas um engenheiro, que quer construir ou mesmo demolir, deve fazer seu plano, reunir seus meios de ação e agir como se a ciência e a arte tivessem parado no ponto em que as encontrou no início de seu trabalho. Pode acontecer, felizmente, que ele possa utilizar novas aquisições feitas durante seu trabalho sem renunciar à parte essencial de seu plano. Pode acontecer do mesmo modo que as novas descobertas e os novos meios industriais sejam tais que ele se veja na obrigação de abandonar tudo e recomeçar do zero. Mas ao recomeçar, precisará fazer novo plano, com base no conhecimento e na experiência; não poderá conceber e por-se a executar uma construção amorfa, com materiais não produzidos, a pretexto que amanhã a ciência poderia sugerir melhores formas e a indústria fornecer materiais de melhor composição.

Entendemos por partido anarquista o conjunto daqueles que querem contribuir para realizar a anarquia, e que, por conseqüência, precisam fixar um objetivo a alcançar e um caminho a percorrer. Deixamos de bom grado às suas elucubrações transcendentais os amadores da verdade absoluta e de progresso contínuo, que, jamais colocando suas idéias à prova, acabam por nada fazer ou descobrir.

A outra objeção é que a organização cria chefes, uma autoridade. Se isto é verdade, se é verdade que os anarquistas são incapazes de se reunirem e de entrarem em acordo entre si sem se submeter a um autoridade, isto quer dizer que ainda são muito pouco anarquistas. Antes de pensar em estabelecer a anarquia no mundo, devem pensar em se tornar capazes de viver como anarquistas. O remédio não está na organização, mas na consciência perfectível dos membros.

Evidentemente, se em uma organização, deixa-se a alguns todo o trabalho e todas as responsabilidades, se nos submetemos ao que fazem alguns indivíduos, sem por a mão na massa e procurar fazer melhor, esses “alguns” acabarão, mesmo que não queiram, substituindo a vontade da coletividade pela sua. Se em uma organização todos os membros não se interessam em pensar, em querer compreender, em pedir explicações sobre o que não compreendem, em exercer sobre tudo e sobre todos as suas faculdades críticas, deixando a alguns a responsabilidade de pensar por todos, esses “alguns” serão os chefes, as cabeças pensantes e dirigentes.

Todavia, repitamos, o remédio não está na ausência de organização. Ao contrário, nas pequenas como nas grandes sociedades, excetuando a força brutal, a qual não nos diz respeito no caso em questão, a origem e a justificativa da autoridade residem na desorganização social. Quando uma coletividade tem uma necessidade e seus membros não estão espontaneamente organizados para satisfazê-la, surge alguém, uma autoridade que satisfaz esta necessidade servindo-se das forças de todos e dirigindo-as à sua maneira. Se as ruas são pouco seguras e o povo não sabe se defender, surge uma polícia que, por uns poucos serviços que presta, faz com que a sustentem e a paguem, impõe-se a tirania. Se há necessidade de um produto e a coletividade não sabe se entender com os produtores longínquos para que eles enviem esse produto em troca por produtos da região, vem de fora o negociante que se aproveita da necessidade que possuem uns de vender e outros de comprar e impõe os preços que quer a produtores e consumidores.

Como vedes, tudo vem sempre de nós: quanto menos estávamos organizados, mais nos encontrávamos sob a dependência de certos indivíduos. E é normal que tivesse sido assim.

Precisamos estar relacionados com os camaradas das outras localidades, receber e dar notícias, mas não podemos todos nos correspondermos com todos os camaradas. Se estamos organizados, encarregamos alguns camaradas de manter a correspondência por nossa conta; trocamo-os se eles não nos satisfazem, e podemos estar informados sem depender da boa vontade de alguns para obter uma informação. Se, ao contrário, estamos desorganizados, haverá alguém que terá os meios e a vontade de corresponder; ele concentrará em suas mãos todos os contatos, comunicará as notícias como bem quiser, a quem quiser. E se tiver atividade e inteligência suficientes, conseguirá, sem nosso conhecimento, dar ao movimento a direção que quiser, sem que nos reste a nós, a massa do partido, nenhum meio de controle, sem que ninguém tenha o direito de se queixar, visto que este indivíduo age por sua conta, sem mandato de ninguém e sem ter que prestar contas a ninguém de sua conduta.

Precisamos de um jornal. Se estamos organizados, podemos reunir os meios para fundá-lo e fazê-lo viver, encarregar alguns camaradas de redigi-lo e controlar sua direção. Os redatores do jornal lhe darão, sem dúvida, de modo mais ou menos claro, a marca de sua personalidade, mas serão sempre pessoas que teremos escolhido e que poderemos substituir. Se, ao contrário, estamos desorganizados, alguém que tenha suficiente espírito de empreendimento fará o jornal por sua própria conta: encontrará entre nós os correspondentes, os distribuidores, os assinantes, e fará com que sirvamos seus desígnios, sem que saibamos ou queiramos. E nós, como muitas vezes aconteceu, aceitaremos ou apoiaremos este jornal, mesmo que não nos agrade, mesmo que tenhamos a opinião de que é nocivo à Causa, porque seremos incapazes de fazer um que melhor represente nossas idéias.

Desta forma, a organização, longe de criar a autoridade, é o único remédio contra ela e o único meio para que cada um de nós se habitue a tomar parte ativa e consciente no trabalho coletivo, e deixe de ser instrumento passivo nas mãos dos chefes.

Se não fizer nada e houver inação, então, certamente, não haverá nem chefe, nem rebanho; nem comandante, nem comandados, mas, neste caso, a propaganda, o partido, e até mesmo a discussão sobre a organização, cessarão, o que, esperamos, não é o ideal de ninguém…

Contudo, uma organização, diz-se supõe a obrigação de coordenar sua própria ação e a dos outros, portanto, violar a liberdade, suprimir a iniciativa. Parece-nos que o que realmente suprime a liberdade e torna impossível a iniciativa é o isolamento que produz a impotência. A liberdade não é direito abstrato, mas a possibilidade de fazer algo. Isto é verdade para nós como para a sociedade em geral. É na cooperação dos outros que o homem encontra o meio de exercer sua atividade, seu poder de iniciativa.

Evidentemente, organização significa coordenação de forças com um objetivo comum, e obrigação de não promover ações contrárias a este objetivo. Mas quando se trata de organização voluntária, quando aqueles que dela fazem parte têm de fato o mesmo objetivo e são partidários dos mesmos meios, a obrigação recíproca que a todos engaja obtém êxito em proveito de todos. Se alguém renuncia a uma de suas idéias pessoais por consideração à união, isto significa que acha mais vantajoso renunciar a uma idéia, que, por sinal, não poderia realizar sozinho, do que se privar da cooperação dos outros no que acredita ser de maior importância.

Se, em seguida, um indivíduo vê que ninguém, nas organizações existentes, aceita suas idéias e seus métodos naquilo que têm de essencial, e que em nenhuma organização pode desenvolver sua personalidade como deseja, então estará certo em permanecer de fora. Mas, se não quiser permanecer inativo e impotente, deverá procurar outros indivíduos que pensem como ele, e tornar-se iniciador de uma nova organização.

Uma outra objeção, a última que abordaremos, é que, estando organizados, estamos mais expostos à repressão governamental.

Parece-nos, ao contrário, que quanto mais unidos estamos, mais eficazmente nos podemos defender. Na realidade, cada vez que a repressão nos surpreendeu enquanto estávamos desorganizados, colocou-nos em debandada total e aniquilou nosso trabalho precedente. Quando estávamos organizados, ela nos fez mais bem do que mal. Assim também no que concerne ao interesse pessoal dos indivíduos: por exemplo, nas últimas repressões, os isolados foram tanto e talvez mais gravemente atingidos do que os organizados. É o caso, organizados ou não, dos indivíduos que fazem propaganda individual. Para aqueles que nada fazem e ocultam suas convicções, o perigo é certamente mínimo, mas a utilidade que oferecem à Causa também o é.

O único resultado, do ponto de vista da repressão, que se obtém por estar desorganizado é autorizar o governo a nos recusar o direito de associação e tornar possível monstruosos processos por associação delituosa. O governo não agiria dessa forma em relação às pessoas que afirmam de modo altivo e público, o direito e o fato de estarem associados e, se ousasse fazê-lo, isto se voltaria contra ele e em nosso proveito.

De resto, é natural que a organização assuma as formas que as circunstâncias aconselham e impõem. O importante não é tanto a organização formal, mas o espírito de organização. Podem acontecer casos, durante o furor da reação, em que seja útil suspender toda correspondência, cessar todas as reuniões: será sempre um mal, mas se a vontade de estar organizado subsiste, se o espírito de associação permanece vivo, se o período precedente de atividade coordenada multiplicou as relações pessoais, produziu sólidas amizades e criou um real acordo de idéias de conduta entre os camaradas, então o trabalho dos indivíduos, mesmo isolados, participará do objetivo comum. E encontrar-se-á rapidamente o meio de nos reunirmos de novo e repararmos os danos sofridos.

Somos como um exército em guerra e podemos, segundo o terreno e as medidas tomadas pelo inimigo, combater em massa ou em ordem dispersa: o essencial é que nos consideremos sempre membros do mesmo exército, que obedeçamos todos às mesmas idéias diretrizes e que estejamos sempre prontos a nos reunirmos em colunas compactas quando for necessário e quando se puder fazer algo.

Tudo o que dissemos se dirige aos camaradas que são de fato adversários do princípio da organização. Àqueles que combatem a organização, somente porque não querem nela entrar, ou não são aceitos, ou não simpatizam com os indivíduos que dela fazem parte, dizemos: façam com aqueles que estão de acordo com vocês outra organização. É verdade, gostaríamos de poder estar, todos nós, de acordo, e reunir em um único feixe poderoso todas as forças do anarquismo. Mas não acreditamos na solidez das organizações feitas à força de concessões e de restrições, onde não há entre os membros simpatia e concordância real. É melhor estarmos desunidos que mal unidos. Mas gostaríamos que cada um se unisse com seus amigos e que não houvessem forças isoladas, forças perdidas.

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Zines: “Não Pare no Veganismo”

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Introdução por Samuel Victor

“Não pare no veganismo: uma reflexão crítica contra um veganismo elitista, racista e machista”, de Raquel das Flores, está na sua primeira edição, a qual é introdutória e convida à reflexão sobre a participação do movimento como uma ideologia libertária e sobre a necessidade de intersecção com outras lutas emancipatórias, ao invés de reforçar práticas opressoras que não condizem com o ideal vegano. Cada próxima edição pretenderá trabalhar um tema, como racismo, gordofobia e machismo, dentro do veganismo. 

Copie, divulgue, distribua:

Pdf do zine:

https://www.dropbox.com/s/gic0pr73y8bvtah/NAO%20PARE%20NO%20VEGANISMO%20ZINE.pdf?dl=0

O que é amar, por Bakunin

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POSTADO EM: Diário da LiberdadePimenta Negra (26 de agosto de 2010)

Carta de Bakunin ao irmão Paulo ( 29 de Março de 1845)


Continuo a ser eu próprio, como antes, inimigo declarado da realidade existente, só que com uma diferença: eu parei de ser um teórico, eu venci, enfim, em mim, a metafísica e a filosofia, e entreguei-me inteiramente, com toda a minha alma, ao mundo prático, ao mundo dos factos reais.

Acredite em mim, amigo, a vida é bela; agora tenho pleno direito de dizer isto porque parei há muito tempo de olhá-la através das construções teóricas e de conhecê-la somente em fantasia, pois experimentei efectivamente muitas das suas amarguras, sofri muito e entreguei-me frequentemente ao desespero.

Eu amo, Paulo, amo apaixonadamente: não sei se posso ser amado como gostaria que fosse, porém não me desespero; sei, pelo menos, que tem muito simpatia por mim; devo e quero merecer o amor daquela a quem amo, amando-a religiosamente, ou seja, activamente; ela está submetida à mais terrível e à mais infame escravidão e devo libertá-la combatendo os seus opressores e incendiando no seu coração o sentimento da sua própria dignidade, suscitando nela o amor e a necessidade da liberdade, os instintos da rebeldia e da independência, fazendo-lhe recordar a sensação da sua força e dos seus direitos.

Amar é querer a liberdade, a completa independência do outro; o primeiro acto do verdadeiro amor é a emancipação completa do objeto que se ama; não se pode amar verdadeiramente a não ser alguém perfeitamente livre, independente, não só de todos os demais, mas também e, sobretudo, daquele de quem é amado e a quem ama. 

Esta é a profissão da minha fé política, social e religiosa, aqui está o sentido íntimo, não só dos meus actos e das minhas tendências políticas, mas também, tanto quanto me é possível, da minha existência particular e individual; porque o tempo em que poderiam ser separados estes dois géneros de acção está muito longe da gente; agora o homem quer a liberdade em todas as acepções e em todas as aplicações desta palavra, ou então não a quer de modo algum; querer a dependência daquele a quem se ama é amar uma coisa e não um ser humano, porque o que distingue o ser humano das coisas é a liberdade; e se o amor implicar também a dependência, é o mais perigoso e infame do mundo porque é então uma fonte inesgotável de escravidão e de embrutecimento para toda a humanidade. 

Tudo que emancipa os homens, tudo que, ao fazê-los voltar a si mesmos, suscita neles o princípio da sua vida própria, da sua actividade original e realmente independente, tudo o que lhes dá força para serem eles mesmos, é verdade; tudo o resto é falso, liberticida, absurdo. Emancipar o homem, esta é a única influência legítima e bem-feitora. 

Abaixo todos os dogmas religiosos e filosóficos – que não são mais que mentiras; a verdade não é uma teoria, mas sim um facto; a vida é a comunidade de homens livres e independentes, é a santa unidade do amor que brota das profundidades misteriosas e infinitas da liberdade individual.

Nota biográfica:

Mikhail Bakunin (1814-1876), de origem aristocrática, que percorreu toda a Europa como activista revolucionário e exilado político, foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Trabalhadores, também conhecida por I Internacional, sendo uma das figuras mais importantes do movimento e do pensamento anarquista. Da sua bibliogarfia destaca-se o livro Deus e o Estado.

A carta reproduzida acima tem data de 29 de Março de 1845 e foi enviada de Paris por Bakunin ao seu irmão Paulo.

 

Vídeo: Capitalismo & Outras Coisas de Crianças

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Resenha por Cid Oliveira

Capitalismo & Outras Coisas de Crianças, um vídeo curto e direto que nos convida a olhar de uma forma diferente para o mundo em que vivemos e a questionar algumas das mais básicas premissas da vida no Capitalismo. Um ponto interessante deste trabalho é apresentar em linguagem clara e sem jargões econômicos ou políticos as bases sobre as quais se assentam o Capitalismo e, com isso, levar à capacidade de instruir e despertar a consciência crítica, ao demonstrar que, ao contrário do que quer nos fazer pensar a ideologia imperialista neoliberal estadunidense, um outro mundo baseado na cooperação e na ajuda mutua é possível!

Curdistão: YPJ forma nova divisão em Shingal

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POSTADO EM Rojava Report, 8 de Janeiro de 2015
Tradução livre do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Uma nova divisão das Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ) está sendo formada como uma parte dos esforços para construir as Unidades de Defesa de Shingal (YBŞ) de acordo com um novo artigo por Rojin Deniz e Sara Xwinda para JINHA News que apareceu em Özgür Gündem. A decisão de constituir uma divisão separada, uma YPJ-Shingal, foi tomada por aproximadamente 50 mulheres Yazidi que já estão lutando com o YBŞ. Um comunicado divulgado pela liderança do recém-formado YPJ-Shingal, seguido da decisão, diz: Nós estamos chamando a todo o povo Yazidi para apoiar a reforçar essa luta, e em particular às jovens mulheres Yazidi para serem sensíveis à nossa luta”.

Para As Sagradas Montanhas de Shingal
O comunicado das YPJ-Shingal continua: “Mulheres de dentro das fileiras das YBŞ têm se organizado através de uma nova identidade, as YPJ-Shingal (Yekîneyên Parastina Jin ê Şengalê). As YPJ-Shingal declararam que seu objetivo fundamental é permitir que as pessoas que vivam em Shingal, as mulheres, as montanhas de Shingal que são sagradas para o povo Yazidi, e a fé Yazidi e a cultura, que vivam livremente em consonância com o democrático, ecológico, feminista e emancipatório paradigma do líder Apo. A organização YPJ-Shingal tem como princípio a organização, de acordo com uma consciência de auto-defesa, de mulheres que vivam em Shingal. Elas lutam para a libertação de Shingal e para manter viva a memória de mulheres curdas Yazidi que foram mortas na luta pela liberdade, e para abraçar a mulheres que perderam suas vidas ao realizarem essa tarefa.

Às fileiras das YPJ-Shingal
Após o anúncio de sua formação, o comando do YPJ-Shingal pediu apoio, dizendo: Nós estamos convidando todas as pessoas Yazidi a apoiar o fortalecimento desta luta, e em particular as jovens mulheres Yazidis a serem sensíveis à nossa luta a se juntarem às fileiras do YPJ-Shingal, a fim de lembrar @s noss@s amig@s Viyan, Evrim, Armanc, Jiyanda, Roni, Dilgeş, Canpolat, Zinar, Ezdin, Kasım e Serdar, que morreram na luta para libertar Shingal, da mesma forma como @s camaradas Ş. Berivan (Binevş Agal), and Ş. Xane.”

“Prometemos às mulheres do mundo que venceremos”

POSTADO EM: Comitè de Solidariedad con Rojava y el Pueblo Kurdo, 13 de Janeiro de 2015.
Tradução livre do Coletivo Anarquia ou Barbárie.
Gülistan Kobanê, comandante das YPJ.

 

Uma das comandantes das YPJ (Unidades de Proteção da Mulher) em Kobane, Gülistan Kobanê, avaliou os ataques do EI (Estado Islâmico) contra o cantão, que começaram em 15 de setembro de 2014, dizendo o seguinte: “O lema das YPJ a este respeito é que enquanto defendermos Kobane, Kobane não cairá. Nesses quatro meses, cumprimos com o prometido contra todo o prognóstico inicial”.

Ela acrescentou que Kobane ainda não caiu e que as YPJ, em um esforço conjunto com as YPG (Unidades de Proteção do Povo), têm evitado que o EI avance em qualquer frente. “As YPJ demonstraram que nem o EI nem nenhuma força poderá com o povo curdo enquanto as YPJ continuarem presentes”.

A comandante recordou que as YPJ também se formaram para combater a mentalidade opressora predominante dos homens em relação às mulheres; seu inimigo por excelência, o EI e seu fascismo islâmico, tem sofrido severos golpes. “A resistência apresentada pelas YPJ contra os crimes do EI deram lugar ao surgimento da esperança entre as mulheres do mundo todo”.

As YPJ dão honra e identidade às mulheres, elas estão lutando heroicamente na linha de frente contra o EI, e os homens combatentes antifascistas professam um grande respeito a elas”.

Nunca pensamos que Kobane fosse cair. Combatentes como Dicle, Delila, Hevi, Nuda e Arîn Mîrkan se negaram a permitir que o inimigo avançasse e sacrificaram suas vidas heroicamente. Essas camaradas têm se convertido em um símbolo de liberdade para as mulheres curdas e do mundo todo”.

Além do mais, a comandante assegura que “a ilusão criada pelo EI tem sido esmagada”, posto que as YPJ tem sido temidas pelos terroristas do EI, fazendo alusão ao desmoronamento do principal fator de recrutamento do EI (o acesso ao paraíso e a concessão de 40 mulheres virgens após a morte na Guerra Santa), o qual está vedado àquele homem que morra em combate contra uma mulher, de acordo com os rumores entre os fascistas.

Gülistan conclui dizendo que “[…] nossa resistência e o combate continuarão. Prometemos às mulheres do mundo que, em memória às camaradas caídas, venceremos”.

Guiné-Bissau: Luta por Água, Eletricidade e por uma Escola Libertária

(GUINÉ-BISSAU) CRÔNICA DE UMA LUTA POR ÁGUA E ELETRICIDADE; E PELO PROJETO DE UMA ESCOLA LIBERTÁRIA

FONTE: Portal Anarquista, Ex-Colectivo Libertário de Évora em 13 de Janeiro de 2015.

(Publicado originalmente na revista anarquista italiana ‘Rivista A’, nº 393, Novembro 2014 e traduzido e publicado depois no jornal ‘A Batalha’, nº 262, de Dezembro de 2014)

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Guiné Bissau: Quarenta anos de independência, pobreza e medo

por Vavá Oliveira

A Guiné Bissau tem o recorde negativo de se contar entre os países mais pobres do mundo: 65% da sua população vive no limiar da pobreza. Mesmo famílias que ganham um ou mais salários correm o risco de ter apenas uma refeição por dia. Na capital, Bissau, acresce o péssimo serviço da empresa pública que deve fornecer corrente eléctrica e água potável. Na ausência desta última o quadro sanitário piora e doenças como o tifo e a cólera são endémicas. Nos hospitais o serviço de saúde e os medicamentos estão sujeitos a pagamento. Não há escolas nem professores para todos, e mesmo após pagamento das taxas escolares o curso pode ser suspenso ou cancelado. O resultado é 50% de analfabetismo e uma esperança de vida que a custo ultrapassa os 45 anos.

No âmbito político o país vive sob a hegemonia do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) desde a independência de Portugal. Tal como noutros países da África subsaariana, uma élite nacionalista autóctone, espécie de pequena burguesia, assume o controlo do Estado e dos recursos naturais. Divididas entre si, as facções desta pequena burguesia combatem entre elas pelo controlo dos recursos públicos através de sucessivos golpes de Estado realizados pelos respectivos comparsas no interior das Forças Armadas.

A população, esmagada pela repressão em todas as mobilizações, esconde-se sob um véu de passividade e de silêncio (djitu ka ten). Assassinatos políticos, buscas e detenções arbitrárias, sobretudo nos últimos anos, estão presentes no imaginário popular e reforçam a cultura do medo.

Das acções espontâneas à auto-organização

O agravamento das condições de vida após o último golpe fez aumentar o nível de indignação, especialmente entre os jovens. O aumento do preço dos géneros alimentares, o crescente desemprego juvenil e a carência de sistemas sanitários e educativos conduziram a acções espontâneas. Em Fevereiro de 2014, por exemplo, quatro jovens afrontaram as forças de segurança golpistas num protesto relâmpago frente dos escritórios das Nações Unidas em Bissau. Protestavam contra a suspensão das lições nas escolas públicas e contra a carência de água e electricidade. Paralelamente, nos bairros, alguns jovens organizavam grupos para limpar e reparar as estradas.

Mas se as condições sócio-económicas provocavam a indignação das massas juvenis, o  modelo piramidal do associativismo, dirigido por jovens pertencentes à élite do Partido, os limites ideológicos definidos pelo Estado e pelo “buonismo” sugerido pela cooperação internacional (ONU, União Europeia, ONGs internacionais) constituíam um obstáculo à auto-organização. Próximos da miséria quotidiana e da cultura política oligárquica, um grupo de jovens pertencentes a associações de bairro de Bissau e de Catió decidiu constituir grupos de reflexão sobre o associativismo na Guiné Bissau.

“As pessoas pensam que aos políticos tudo é permitido. Considerando a pobreza da cultura política e o medo reinante na sociedade após a independência, as pessoas crêem-se impotentes para enfrentar problemas que elas mesmas poderiam resolver. Pensam que o Estado é tudo. Pouco a pouco tem-se a impressão que estamos começando a discutir isto com a comunidade. A Bandim Bilà, por exemplo, parte dos habitantes do bairro adquiriu maturidade e consciência de classe, querendo agir directamente para melhorar as condições da comunidade: “Não devemos esperar a intervenção dos políticos que nada fizeram”.(Ailton J.)

guiné bissau p1 cinza JPEGEm fins de 2013 a rádio e canais televisivos relatavam na Guiné Bissau as manifestações contra o aumento das tarifas dos transportes em cidades brasileiras. Dali em diante, durante os debates no interior de algumas associações guineenses, passaram a ser comuns perguntas quanto à forma de organização do Movimento Passe Livre (MPL). Por decisão autónoma, cinco associações (quatro da cidade de Bissau e uma de Canchungo) organizaram-se segundo o modelo e princípios dos “movimentos autónomos”.

“Seguíamos através dos media a revolta do povo brasileiro contra o aumento de tarifas. Isto demonstra que o povo brasileiro tem maturidade política e consciência dos seus direitos. Mas porque é que as pessoas não arriscam fazer o mesmo aqui na Guiné Bissau?” (Zelmar R.).

Em Setembro de 2013, terminadas as discussões teóricas, ficou no ar uma última questão: “O que nos impede de criar um movimento social autónomo que reforce as acções espontâneas da população e promova uma nova cultura política no país?” Os debates deram lugar a atividades de mobilização em bairros da capital. A partir de pedidos concretos dos bairros, criar-se-ia um movimento social cujo foco atendesse às principais necessidades do povo.. No princípio de Outubro uma trintena de jovens de diversas associações fundaram o Movimento Luz ku Iagu (Movimento Luz e Água).

“Antes de criar o Movimento fizemos uma série de ‘trabalhos de base’ em comunidade de Bissau para identificar as principais necessidades. As pessoas que intervinham apontavam sempre a constante falta de luz e de água. Em paralelo participámos numa formação organizada pela JACAF (Associação Jovens de Catió) sobre democracia directa e autogestão. No fim da formação, em que participou uma quarentena de jovens pertencentes a várias associações, realizou-se um djumbai (debate) para individualizar as principais dificuldades que afectavam os jovens no interior da sua comunidade. Todos os grupos presentes concordaram quanto à ausência e péssima gestão dos serviços de água e electricidade. Todos sabíamos que a água era um bem inestimável e essencial para a vida humana. Assim decidimos fundar um movimento para que haja electricidade e água.” (Ailton J.)

Desiludidos com as associações burocráticas e estimulados pelas vitórias de Junho de 2013 no Brasil, os membros decidiram dotar o Movimento com uma estrutura de gestão horizontal. Durante o primeiro ano de existência, as principais decisões foram tomadas colectivamente pelos membros reunidos em assembleia geral com base em em propostas elaboradas em comissões temáticas ou em propostas individuais.

guiné obras JPEGDebates sobre autogestão, democracia, acção directa… 

O primeiro princípio do Movimento é a autonomia. Um Movimento é autónomo a partir do momento em que toma decisões por si só. Somos independentes e não temos qualquer dependência dos partidos políticos. Assumimos, como princípios de base, a democracia directa, a igualdade de género e a autogestão. No MLI não existe líder. Construímos um movimento horizontal no qual as decisões são tomadas pela assembleia geral”. (Valdir K.)

“Ninguém actua em nome do Movimento. Para agir em nome do Movimento é necessário ter sido delegado pela assembleia geral. Quando a assembleia geral toma uma decisão, elege-se um grupo de pessoas que implicitamente se oferecem voluntariamente para realizar a actividade.” (Luizinho B.)

“Os membros do Movimento, presentes na assembleia geral interessados em aprofundar determinados temas, criam uma comissão específica. Uma vez criada a comissão, a sua primeira actividade será elaborar uma proposta a submeter à atenção da assembleia geral. Uma vez aprovada pelo plenário, será levado a cabo a sua realização pela comissão. Funciona assim” (Ailton J.).

Os debates sobre autogestão, democracia, acção directa e direito de manifestação tiveram um papel importante na escolha dos princípios de gestão interna no Movimento. A aplicação prática destes princípios sofreu logo no início forte oposição: um dirigente político juvenil acusou o Movimento de querer destruir “os valores da hierarquia” no país. Noutra ocasião, o presidente duma notável Associação exigiu a eleição dum presidente no MLI, chegando a ameaçar, recusar  reunir-se com os delegados no Movimento na ausência dum ‘responsável’ eleito.

“Esta forma de organização é recente na Guiné Bissau. Decidimos criar uma organização horizontal porque a ‘cultura dos representantes’ não está em condições de cativar as massas. Por exemplo, quando andávamos nos bairros a fazer trabalho político, só conseguíamos falar com o presidente ou com o secretário da associação local. As pessoas da comunidade permaneciam fora da conversação. Abandonamos esta estrutura para trabalharmos directamente com as pessoas, abrindo a todos a participação no processo em debate. Diga-se que mesmo as pessoas acham inusitada esta forma de organização. Estavam habituadas ao ‘representante’ e a não funcionar sem um presidente. Mas já estamos operando há um ano sem presidente e sem que isso apresente qualquer dificuldade. Porque um presidente pode decidir coisas que não exprimem a vontade da maioria. Connosco isso nunca acontece: Todos somos convocados para se tomar qualquer decisão”. (Jailton J.)

Na sua fase inicial, o Movimento Luz ku Iagu centrou-se na realização de três tarefas principais: a) divulgação do Manifesto programático do Movimento e a preparação da Campanha Nacional pelo Luz e Água; b) formação política dos membros do Movimento na «Escola de democracia directa» e no trabalho político entre a comunidade de bairro; c) mobilização da comunidade através de acções directas e constituição de núcleos de bairro.

“Actualmente o Movimento está trabalhando numa campanha por luz e água nos bairros de Bissau. Um dos objectivos é dar a conhecer à população o nosso Manifesto. O nosso propósito é que a EAGB (empresa pública de electricidade e água) passe a breve prazo sob controlo social. A termo médio, queremos criar dois conselhos nacionais, um para a gestão democrática dos recursos naturais e outro para a gestão da água e electricidade. Num tempo mais distante o objectivo final é que a EAGB passe a gestão popular tal como o garante a Constituição do país, nos seus artigos 2 e 3. O artigo 2 afirma que o povo pode exercer o poder político directamente ou através dos seus representantes. Enquanto segundo o artigo 3 os cidadãos têm direito a participar na gestão pública. Queremos que estes artigos sejam respeitados”. (Ailton J.). 

“Outra obrigação é a criação de núcleos nos bairros em que estamos trabalhando. Através destes núcleos podemos realizar acções de impacto imediato. Por exemplo, se uma comunidade tem problemas com o lixo, vamos trabalhar juntos para resolver o problema. Simultaneamente é uma maneira de fazer com que as pessoas tomem consciência dos seus próprios direitos.” (Zelmar R).

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Respondendo ao interesse geral em continuar o debate sobre democracia directa, autogestão e história das lutas sociais, o Movimento decidiu abrir uma escola permanente de formação para os seus membros. A escola autogerida por alunos e professores utiliza as instalações dum liceu citadino. Desde Março de 2014 oferece três temas: Ciência Política, Língua inglesa e História da Guiné Bissau, esta última ausente dos programas de estudo nas escolas públicas e privadas.

No início de 2014 os alunos duma escola conjunta e outros estudantes que não pertencem ao MLI fundaram o Colectivo Autónomo Estudantil (CAE), também ele uma organização com gestão de base. Afrontando a oposição da Confederação Nacional de Estudantes (CONEAGUIB), órgão burocratizado e heterodoxo, e sem temor das ameaças repressivas do Estado, em Maio de 2014 a CAE organizou uma assembleia estudantil das escolas públicas que realizou o primeiro protesto estudantil que se recorda desde há muitos anos. Com o resultado de que o Estado e dois sindicatos de docentes foram obrigados a ceder às exigências dos estudantes: retomar imediatamente as aulas e recuperar o ano escolar 2013/2014.

No interior das actividades realizadas, a acções directas empreendidas pelo MLI em conjunto com os habitantes dos bairros foram aquelas que mais estimularam a auto-organização comunitária. Uma clara demonstração de acções directas e autogestionárias  do Movimento é a Escola Comunitária de Bandim Bilà. Trata-se duma antiga escola primária pública situada num bairro central e pobre da cidade, que após ter sido abandonada pelo Estado e entregue ao saque, acabou por se tornar uma imensa lixeira. Foram anos de abandono, as crianças deixaram de frequentar a escola e casos de malária e cólera, incentivados por esta imensa descarga a céu aberto aumentaram, mas nem por isso a câmara de Bissau (a Prefeitura) removeu um único saco de lixo.

“Queremos repor em funções a escola para a autogerir com os habitantes do bairro. Para começar principiamos por libertar as salas de aula da imundície para dar vida à recuperação”.(Valdir K.)

«Afirmamos defender a autogestão por estarmos certos da capacidade dos trabalhadores e dos estudantes para autogerir as suas necessidades.” (Ailton J.)

Foram enviadas cartas às autoridades, assinadas pela comunidade, com o pedido de reactivar a escola e remover o lixo…Ninguém se dignou responder. Nem mesmo o Ministério da Educação se dignou dar sinal de vida. Este desinteresse não foi surpresa, dado que todos os filhos de políticos e da alta burocracia estudam na Europa ou no Brasil. Agora tocava aos residentes mais activos e aos militantes do Movimento organizar uma série de assembleias de bairro para discutir o que fazer. Não havia nada a perder esperando por resposta do Estado, a proposta do MLI foi que a comunidade devia encontrar uma solução independente.

“O Presidente da Câmara de Bissau (Prefeito) fez saber que não havia fundamento para qualquer actividade. Mas para onde vai o dinheiro dos nossos impostos? Entretanto sugerimos à comunidade a realização de acções para pressionar a autoridade.” (Ailton J.)

Na falta duma intervenção pública e receando a população vir a sofrer repressão pelas forças de segurança, cujos métodos bem conhecidos vão da prisão arbitrária ao espancamento, à tortura, não restava aos habitantes activos de Bandim Bilà e aos activistas do Movimento mais do que arregaçar as mangas, armarem-se de pás e baldes para limpar o lixo, pelo menos nas duas salas da antiga escola em melhor estado. O tecto de lâminas de ferro zincado, como o travejamento e as portas de madeira haviam sido removidas há anos, mas as paredes permaneciam de pé, assim como os ladrilhos do pavimento e a estrutura puderam ser reactivadas.

“Se se fala de política a uma comunidade esta retrai-se. Tem medo de partilhar a nossa ideia. É natural. Por isto privilegiamos trazer actividades práticas à comunidade. Isto demonstra ser a prática correcta para conquistar a confiança das pessoas”. (Zelmar R.).

Solidariedade internacional

Após esta primeira acção de limpeza seguiram-se outras, que reuniram sucessivamente novos membros na comunidade. E não acabaram aqui. Desde que entrou nas suas ideias recuperar a escola graças somente às duas próprias forças, os habitantes discutiram animadamente quanto à sua gestão. Não se tratava de construir uma escola primária mais, mas fazer com que se tratasse duma escola de excelência, que não fosse estatal nem privada, mas autogerida pelas crianças, pelas famílias e pelos professores. Trata-se dum desafio imenso, dado que a escola actual, assim como a única escola superior pública para a formação de docentes se baseava no ensino mnemónico e não participativo dos alunos. O que se pretende é implementar na escola de Bamdim Bilà uma didática indutiva, uma educação personalizada sobre os interesses dos alunos, que eduque para a utilização dos instrumentos de trabalho e de investigação em percursos autónomos. Ensinando a procurar respostas e soluções em processos acompanhados mas não impostos. Para isto ocorre uma ajuda concreta. Servem voluntários: professores, pedagogos, educadores experientes que venham acompanhar os docentes locais, privados de conhecimentos suficientes ou de material didáctico. Companheiros e companheiras docentes, docentes reformados ou que durante as suas férias dedicam um ou dois meses de voluntariado para formar jovens docentes guineenses da escola, acompanhando-os no processo de fazer quotidiano.

De momento são duas as Comissões que trabalham para a criação da escola Comunitária de Bandim Bilá. Uma é responsável pela temática didáctica e psico-pedagógica, dos conteúdos e a docência e da formação dos futuros docentes; a outra está encarregada de organizar a reabilitação dos edifícios (tecto, portas, pintura, serviços higiénicos e outros). Ambas são constituídas pelas famílias do bairro e militantes do MLI. Com as novas iniciativas das Comissões aumenta o número dos residentes que nelas participam. O objectivo é que a escola primária de Bandim Bilà se converta num centro comunitário no qual a população dê início à luta pela água e luz juntamente com outros bairros vizinhos.

“Agora estamos procurando fundos para reconstruir a escola. A escola será comunitária. A comunidade será a proprietária e orientadora da escola, não o Estado.” (Luizinho K.)

“Queremos que a escola seja comunitária para assegurar aos nossos filhos um nível de educação diversificado e excelente. Uma escola que não ensine a obedecer mas a pensar livremente. Para tal temos necessidade urgente da colaboração nacional e internacional que nos acompanhe na formação dos docentes”. (Zelmar R.)

Se agora, a escassa participação inicial deixou de ser fonte de preocupações, a falta de recursos económicos, de pessoal formado e de materiais didáticos são os pontos críticos a superar. É urgente encontrar fundos para continuar a restauração e a aquisição de materiais escolares de primeiríssima necessidade (canetas, lápis cadernos) dado que a  maioria dos materiais didácticos se não encontra na Guiné Bissau.

Para a aquisição de materiais de construção para restauro essencial, dado que a mão-de-obra será fornecida por voluntários da comunidade e do Movimento, necessitam-se 1.300.000 francos CFE (cerca de dois mil euros). Quem quiser contribuir de qualquer modo com a iniciativa da escola comunitária de Bandim Bilà, pode contactar através do endereço e-mail:cordajanis@gmail.com. Para mais informações aceder à página facebook do MLI: Movimentu Lus ku Iagu Guiné-Bissau

 

Je suis Nigéria

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“Eu também não sou Charlie, apesar de ser contra o atentado e qualquer ação terrorista de qualquer ideologia. Na mesma semana do ocorrido na França, que acompanhei pela tv e internet, umas 2000 pessoas foram mortas pelo BOKO HARAM sem nenhum motivo, sem fazerem piadas ou provocações à religião dos terroristas. Temos aqui uma arte no anexo, JPG, Je suis Nigéria, para ver se os jornais dão um pouco de atenção a essa barbaridade no país africano. É uma arte anónima.”J. N. (por email) para o Portal Anarquista, ex-Colectivo Libertário de Évora. Link na imagem.

Nigéria: Massacre no início do ano é possivelmente o mais mortal da história do Boko Haram

Postado em Consciência.net, p 9 de janeiro de 2015.

“Um massacre de proporções inimagináveis acaba de ocorrer no nordeste da Nigéria. Segundo as primeiras informações das agências de notícias, relatos de moradores que conseguiram escapar do massacre a 16 povoados ocorridos desde 3 de janeiro dão conta de que “há corpos demais para poder contar o número de mortos”.

De autoria dos extremistas do Boko Haram, a Anistia Internacional afirmou que os ataques, realizados principalmente em Baga (estado de Borno) e cidades vizinhas, podem ter sido os “mais mortais do Boko Haram em um catálogo de ataques cada vez mais hediondos realizadas pelo grupo”.

Os primeiros relatos apontam que a cidade foi em grande parte arrasada, com até dois mil civis mortos. “Isto marcaria, se confirmado, uma escalada preocupante e sangrenta de ataque contínuo da Boko Haram contra a população civil”, disse Daniel Eyre, pesquisador nigeriano da Anistia Internacional.

“No momento, estamos trabalhando para descobrir mais detalhes sobre o que aconteceu durante o ataque a Baga e à área próxima. Este ataque reitera a necessidade urgente de o Boko Haram parar a matança sem sentido dos civis, bem como a necessidade de o governo nigeriano tomar medidas para proteger a população que vive em constante medo de ataques deste tipo”, disse Eyre.

Desde 2009, o Boko Haram tem alvejado deliberadamente civis através de invasões e ataques a bomba, com o problema aumentando ao longo dos anos tanto em termos de frequência quanto gravidade.

Um dos principais ataques do grupo, que diz agir em nome do alcorão, aconteceu no dia 15 de abril de 2014 em Chibok, no mesmo estado de Borno, onde a população foi morta ou fugiu e mais de 200 estudantes entre 7 e 15 anos foram capturadas e levadas pela milícia.”

Equipes de resgate e moradores se reúnem no local de duas explosões em um mercado na cidade central de Jos, capital do estado de Plateau, em maio de 2014. Foto: AFP/Getty Images

Equipes de resgate e moradores se reúnem no local de duas explosões em um mercado na cidade central de Jos, capital do estado de Plateau, em maio de 2014. Foto: AFP/Getty Images

 

 

 

Belas palavras escritas há alguns meses por algumas das anarquistas sequestradas pela Operação Pandora

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Fonte: Contrainformate

Solidaridade e luta

Para quem luta, a solidariedade não é um conceito vazio e distante de nossa capacidade ofensiva e dos conflitos desenvolvidos na própria luta.

Para quem luta, a solidariedade não é um “assunto” que emerge unicamente em “momentos” repressivos concretos, porque a repressão não é um “momento” senão parte inevitável e permanente dos mecanismos do Estado contra quem se rebela.

Para quem luta, a solidariedade entre quem se levanta contra a miséria diária é uma constante que permite criar a manter laços combativos que rompam o cerco do chicoteamento, do isolamento, da prisão e/ou imobilismo.

Para quem luta, a solidariedade transcende fronteiras impostas tentando transcendê-las e destruí-las através da agitação e da ação.

Para quem luta, o sentido da solidariedade busca esgotar a solidão do confinamento, livrar uma batalha contra o esquecimento de nossxs companheirxs sequestradxs pelos Estados, evidenciar a lógica do domínio que busca condená-lxs ao abandono.

Para quem luta, a solidariedade busca se traduzir em verdadeira intenção que gera gestos de rebeldia que desatem axs nossxs.

Para quem luta, nemhum deve se ver só, seja na prisão ou no cárcere a seu aberto na qual vivemos.

Para quem luta, tudo está para ser decidido, tudo está para ser feito.

Tenhamos a iniciativa.

Por todxs xs companheirxs que com garra continuam apostando na ruptura de todas as correntes.

A continuidade da luta se dá por cada um, se dá por todxs, até que não reste nenhum muro em pé.

VIVA A ANARQUIA

Para escrever axs companheirxs:

Beatriz Isabel Velazquez Davila Lisa Sandra Dorfer P. Madrid VII – Estremera Ctra. M-241 km 5,7 28595 Estremera

Madrid España

Alba Gracia Martínez Noemí Cuadrado Carvajal Anna Hernandez del Blanco P. Madrid V – Soto del Real Carretera M-609, Km 3,5 28791 Soto del Real Madrid España

Enrique Balaguer Pérez P. Madrid VI – Aranjuez Ctra. Nacional 400, Km. 28 28300 Aranjuez Madrid España

David Juan Fernández P. Madrid III – Valdemoro Ctra. Pinto-San Martín de la Vega, km. 4,5 28340 Valdemoro Madrid España

Mónica Andrea Caballero Sepúlveda Ávila-Prisión Provincial Ctra. de Vicolozano s/n Apdo. 206 05194 Brieva (Ávila) España

Francisco Javier Solar Domínguez C.P. de Villabona Finca Tabladiello 33480 Villabona-Llanera (Asturias) España