A Comuna de Paris (Kropotkin)

775px-Disderi_3Piotr Kropotkin

Fonte: Protopia

No dia 18 de março de 1871, o povo de Paris levantou-se contra o governo que desprezava e detestava e declarou que Paris era agora uma cidade independente, livre e dona do seu destino.

Essa derrubada do poder central aconteceu sem a costumeira encenação teatral que normalmente acompanha as revoluções. Não houve tiros e o sangue não chegou a correr sobre as barricadas. Quando o povo armado saiu às ruas, os governantes fugiram, as tropas abandonaram a cidade e os funcionários civis refugiaram-se apressadamente em Versalhes, levando tudo o que podiam. O governo se evaporou como uma poça de sangue estagnado em meio à brisa da primavera e no dia 19 de março Paris se viu livre da sujeira que a havia maculado, sem que tivesse corrido quase nenhuma gota de sangue de seus filhos. Entretanto essa mudança assim obtida deu início a uma nova era na longa série de revoluções pelas quais os povos começavam a trocar a servidão pela liberdade. Sob o nome de “Comuna de Paris”, nasceu uma nova idéia que havia de se tornar o ponto de partida para revoluções futuras.

Como acontece sempre, essa idéia não tivera origem no cérebro de um individuo isolado, nem era fruto das reflexões de um filosofo. Ela surgiu do espírito coletivo, nasceu no coração de toda a comunidade. Mas a princípio era algo vago e muitos daqueles que agiram e deram suas vidas para defendê-la não a viam com os mesmos olhos com que hoje a vemos. Eles não percebiam o alcance da revolução que haviam criado ou as possibilidades do novo conceito que acabavam de pôr em prática. Só depois é que começaram lentamente a entender suas conseqüências. Só mais tarde, quando começaram a refletir sobre o novo conceito é que ele se tornou mais claro e preciso e a beleza, justiça e importância dos resultados obtidos puderam ser avaliados.

Durante os cinco ou seis anos anteriores à Comuna, o socialismo ganhara novo alento graças ao rápido desenvolvimento da Associação Internacional de Operários. Em suas filiais regionais ou durante os congressos que realizava, os trabalhadores da Europa se encontravam e trocavam idéias sobre a questão social, algo que nunca tinham feito antes. Entre aqueles que percebiam que a revolução social era inevitável e que se preparavam ativamente para vivê-la, surgiu um problema que deveria ser resolvido antes de qualquer outro: O atual desenvolvimento da indústria forçará a eclosão de uma grande revolução econômica; essa revolução abolira a propriedade privada, fazendo com que todo o capital reunido pelas gerações pregressas passe a ser um bem comum a todos.

Após essas mudanças no sistema econômico, qual seria a melhor forma de organização política? “Não poderá ser uma agremiação apenas nacional respondeu a Associação Internacional mas deve estender se além das fronteiras artificiais e de todos os limites naturais.” Logo essa idéia grandiosa apossou-se do coração e do cérebro dos homens e, embora venha sendo perseguida desde então pelos esforços conjuntos de reacionários dos mais variados tipos, permanece viva ainda hoje. E quando as vozes dos povos em revolta tiverem removido os obstáculos que impedem o seu progresso, ela ressurgira mais forte do que nunca… Mas ainda faltava descobrir quais deveriam ser os elementos que iriam compor essa gigantesca associação. A essa pergunta, foram dadas duas respostas que expressavam duas correntes distintas. Uma falava em estado popular; outra, em anarquia.

Os socialistas alemães defendiam a idéia de que o estado deveria apossar-se de todos os recursos e riquezas acumuladas, distribuindo-as entre as associações de operários e mais, que estes deveriam tomar a si as atividades de produção e comércio e, de uma maneira geral, todas as atividades da sociedade.

A isso os socialistas latinos, que tinham atrás de si uma grande experiência revolucionária, responderam dizendo que seria um milagre se tal estado pudesse um dia existir, mas que, se isso chegasse a acontecer, certamente ele acabaria por se tornar a pior das ditaduras. Esse ideal de criar um Estado todo poderoso e bom é apenas uma cópia de algo que existiu no passado, diziam, e confrontavam-no com a idéia de um novo ideal, a anarquia, isto é, a abolição total do estado, um sistema em que todas as formas de organização social, da mais simples à mais complexa, fossem obtidas através de federações livres, reunindo grupos populares de produtores e consumidores.

Até mesmo os socialistas mais liberais admitiram que a anarquia sem dúvida representava um tipo de organização bem superior àquela pretendida pelo estado popular. Mas, diziam eles, o ideal anarquista é algo tão distante, que não podemos perder tempo com ele agora.

Ao mesmo tempo, a verdade é que a teoria anarquista necessitava de uma forma de expressão que fosse clara e concisa, uma fórmula ao mesmo tempo simples e pratica, em que pudesse demonstrar suas origens e incorporar suas concepções, onde provasse que era apoiada por uma tendência que já existia antes entre o povo. Uma federação de associações operárias e grupos de consumidores que não levasse em conta as fronteiras e se mantivesse independente em relação aos estados já existentes ‘parecia urna idéia demasiado vaga: e mais, era fácil perceber que ela não poderia satisfazer totalmente a infinita variedade de exigências humanas. Era preciso encontrar uma fórmula mais simples, mais facilmente compreensível, que tivesse uma base firme e bem enraizada na vida real.

Se o problema se resumisse apenas a encontrar a melhor forma de elaborar urna teoria, poderíamos dizer que as teorias, como teorias, não são assim tão importantes. Mas enquanto uma nova idéia não encontra uma forma de expressão clara e precisa, a partir de fatos concretos, tais como eles existem na realidade, ela não conseguirá apoderar-se da mente dos homens. Nenhum homem se animará a mergulhar no desconhecido se não for animado por idéias positivas e claramente formuladas que lhe sirvam, por assim dizer, como um trampolim quando chegar o momento.

Quanto a esse momento, será preciso que a própria vida o indique.

Durante cinco longos meses, Paris esteve cercada pelos alemães. Durante cinco meses, ela precisou lançar mão de seus próprios ‘recursos vitais e de toda a força moral de que dispunha. Teve então idéia de sua capacidade de resistência e percebeu o que ela significava. Percebeu também que o bando de tagarelas que havia tomado o poder não tinha a menor idéia sobre como organizar a defesa da cidade ou sobre como promover seu desenvolvimento interno. Viu um governo que se opunha a todas as manifestações de inteligência daquela metrópole poderosa. Entendeu, finalmente, que qualquer governo é impotente para proteger-se das grandes catástrofes é incapaz de preparar o caminho para a evolução. Durante o cerco, a cidade vira seus defensores, os operários, sofrendo as mais terríveis privações enquanto os ociosos se regalavam em meio a um luxo insolente e, graças aos esforços do governo central, presenciara o fracasso de todas as tentativas de acabar com essa situação escandalosa. E cada vez que o povo demonstrava sinais de um desejo de libertar-se, o governo colocava novos grilhões na corrente. Essas experiências fizeram com que se chegasse naturalmente à conclusão de que Paris precisava libertar-se, tornar-se uma comunidade independente, capaz de satisfazer sozinha todas as aspirações de seus cidadãos.

Mas a Comuna de Paris não podia ser mais do que uma primeira tentativa. Iniciada ao término de uma grande guerra, espremida entre dois exércitos prontos a dar as mãos para esmagá-la, ela não se atreveu a enveredar pelo caminho da revolução econômica. Não iniciou um processo de expropriação do capital ou de organização do trabalho. Não soube ao menos avaliar os recursos da cidade. Também não conseguiu romper com a tradição de um governo representativo, nem procurou realizar dentro da comuna, o mesmo tipo de organização que, partindo do simples, chegas- se ao mais complexo, e que fora instaurada externamente pela proclamação da independência da cidade e a livre associação das federações.

E no entanto, o certo é que se a Comuna de Paris tivesse durado mais alguns meses, ela teria sido inevitavelmente levada pelas circunstâncias em direção a essas duas revoluções.

Não esqueçamos que a classe média francesa gastou quatro anos (de 1789 a 1793) em ações revolucionárias, antes que conseguisse transformar a monarquia limitada numa república. Deveríamos pois surpreender-nos ao ver que o povo de Paris não conseguiu ultrapassar de um salto a distância que separa uma comuna anarquista de um governo de espoliadores? Além disso, não devemos esquecer que a próxima revolução que, pelo menos na França e na Espanha deverá ser comunista, vai retomar o trabalho da Comuna de Paris no ponto que foi interrompido pelos massacres da soldadesca de Versalhes.

A Comuna foi enfim derrotada e sabemos muito bem como a classe média se vingou do susto que o povo lhe havia pregado ao tentar soltar as cordas que seus senhores mantinham em torno dos seus pescoços. Isso veio provar que a sociedade moderna é, na verdade, composta por duas classes: de um lado, o homem que trabalha e cede mais da metade daqui- lo que produz aos que detêm o monopólio da propriedade e que, no entanto, parece indiferente aos males que os patrões podem fazer-lhe; de outro, o ocioso, o espoliador que odeia o seu escravo e que está sempre pronto a matá-lo, como se ele fosse uma caça qualquer, um homem animado pelos mais selvagens instintos sempre que vê ameaçada a sua propriedade.

Depois de ter cercado o povo de Paris e fechado todas as vias de saída, o governo soltou sobre eles um bando de soldados embrutecidos pelo vinho e pela vida na caserna, homens que haviam sido publicamente instruídos para “acabar logo com os lobos e suas crias”.

Depois dessa orgia louca, dos corpos empilhados após esse extermínio em massa, veio a vingança mesquinha, o chicote, os ferros, os golpes e insultos dos carcereiros, a quase morte pela fome, enfim todos os requintes da crueldade. Poderá o povo esquecer esses fatos?

Derrubada mas não vencida, a Comuna renasceu. Já não é mais um sonho dos vencidos, acariciando na imaginação a bela imagem da esperança. Não! A comuna se tornou hoje o objetivo visível e definido da revolução que ruge sob os nossos pes. A idéia penetrou fundo entre as massas, que a recebe com gritos de entusiasmo. Contamos com a geração atual para fazer com que a revolução aconteça dentro da comuna, para pôr um fim ao ignóbil sistema de exploração nas mãos da classe média, para livrar o povo da tutela do Estado e iniciar uma nova era de liberdade, igualdade, solidariedade.

Dez anos nos separam do dia em que o povo de Paris derrubou o traidor que subira ao poder no crepúsculo do Império; por que será que as massas oprimidas do mundo civilizado ainda hoje sentem uma irresistível atração pelo movimento de 1871? Por que a idéia representada pela Comuna de Paris ainda fascina os operários de todos os países? A resposta é fácil. A revolução de 1871 foi, antes de mais nada, uma revolução popular, feita pelo próprio povo, surgindo espontaneamente da massa e nela encontrando seus defensores, seus heróis e seus mártires. E exatamente por ser tão “baixa”, a classe média jamais pode perdoá-la. E ao mesmo tempo, o que a tornava tão popular era seu caráter de revolução social, uma idéia certamente um tanto vaga, talvez inconsciente, mas ainda assim um esforço no sentido de obter enfim, depois de séculos de luta, a verdadeira liberdade, a verdadeira igualdade para todos os homens. Era o levante das camadas mais baixas buscando a conquista dos seus direitos.

Muitas foram as tentativas feitas para mudar o verdadeiro significado dessa revolução, representando-a como um simples esforço para retomar a independência de Paris e desse modo constituir um pequenino Estado dentro da França. Mas nada pode ser mais falso. Paris não procurou se isolar da França, nem muito menos conquistá-la pela força das armas; a ela não agradaria a idéia de permanecer encerrada dentro de suas próprias fronteiras, como uma monja num convento: o que a inspirava não era o espírito limitado do claustro. Se ousara reclamar sua independência, se tentara evitar a interferência do poder central em seus assuntos, foi porque vira nessa independência uma forma de elaborar com tranqüilidade as bases da futura organização política e de provocar uma revolução social dentro de seus próprios limites. Uma revolução que teria alterado completamente todo o sistema de produção e troca, dando-lhe como base a justiça; que teria modificado totalmente as relações humanas colocando-as em pé de igualdade; que teria renovado a nossa moral social baseando-se na igualdade e na solidariedade. Para o povo de Paris, a independência da cidade era apenas um meio, seu objetivo maior era a revolução social.

E esse objetivo poderia ter sido atingi-lo se a revolução de 18 de março tivesse seguido seu curso natural, se o povo de Paris não tivesse sido trucidado pelos assassinos de Versalhes. A verdadeira preocupação do povo de Paris, desde os primeiros dias de sua independência, foi encontrar uma idéia precisa e clara, algo que pudesse ser facilmente entendido por todos e que resumisse em poucas palavras o que era necessário para que a revolução se tornasse uma realidade.

Mas uma grande idéia não pode germinar num só dia, por mais rápida que seja a elaboração e a difusão de idéias durante os períodos revolucionários. Ela precisa sempre de um determinado tempo para que possa desenvolver-se, para que penetre na massa, transformando-se finalmente em ação e a Comuna de Paris não lhe deu tempo suficiente. Ela fracassou principalmente porque, como já observamos antes, há dez anos atrás o socialismo passava por um período de transição. O comunismo autoritário e semi-religioso de 1848 já não conseguia conquistar as mentes mais práticas e mais livres da nossa época. O coletivismo que tentará juntar o sistema de salários com a propriedade privada era incompreensível, despido de atrativos e cheio de falhas que dificultavam a sua aplicação na prática. O comunismo livre ou anarquista recém começava a tomar forma no cérebro dos operários e ainda não tinha coragem de provocar as críticas daqueles que defendiam o governo. Estavam todos indecisos. Os próprios socialistas, sem um objetivo definido em vista, não se atreviam a lançar-se sobre a propriedade privada; eles se iludiam com a desculpa que já impedira a ação de muitos outros em épocas anteriores: “Precisamos ter primeiro a certeza de que venceremos e só depois será possível ver o que pode ser feito”.

Certeza na vitória! Como se houvesse alguma forma de criar uma comuna livre sem acabar com a propriedade privada. Como se fosse possível vencer o inimigo quando as massas não estão diretamente interessadas na vitória da revolução, percebendo que ela poderá trazer bem estar moral, material e intelectual para todos! Eles tentaram consolidar a Comuna e só depois tratar da revolução social sem perceber que a única forma correta de agir seria consolidar a Comuna através da revolução social.

O mesmo aconteceu com respeito ao conceito de governo. Ao proclamar a Comuna livre, o povo de Paris proclamara também um princípio básico do anarquismo, ou seja, a derrubada do estado. Mas como o conceito de anarquismo recém começava a surgir, não tardou para que fosse contido, e logo o velho princípio da autoridade ressurgiu e o povo se outorgou um Conselho nos moldes dos conselhos municipais já existentes.

Entretanto, se admitimos que a existência de um governo central que regule as relações entre as comunas e algo totalmente desnecessário, por que deveríamos admitir que necessitamos dele para regular as relações mútuas dos vários grupos que constituem a comuna? E se deixamos que as próprias comunas diretamente interessadas decidam sobre as questões que interessam várias cidades ao mesmo tempo, por que recusar esse direito aos vários grupos que compõem cada comuna? Assim como nos parece desnecessária a existência de um governo fora da comuna, deveríamos também perceber a inutilidade de um governo dentro dela.

Mas em 1871, o povo de Paris, que já derrubou tantos governos, recém fazia a sua primeira tentativa de revolta contra o próprio sistema: conseqüentemente, deixaram-se levar pela admiração fetichista que os governos inspiravam então e criaram o seu próprio governo.

O resultado todos conhecem. Paris enviou seus filhos mais dedicados para a Câmara Municipal. Lá, perdidos entre pilhas de velhos documentos, obrigados a legislar quando o instinto lhes dizia que deveriam estar agindo entre a massa, obrigados a discutir quando era necessário agir, a acomodar-se quando a melhor política teria sido lutar e, finalmente, perdendo a inspiração que só é renovada pelo contato continuo com as massas, eles se viram reduzidos à impotência. Paralisados pela distância que os separava do povo – o centro e coração da revolução – eles próprios acabaram paralisando a iniciativa popular.

Assim, a Comuna de Paris, fruto de um período de transição, nascida sob a mira das armas prussianas, estava destinada a desaparecer. Mas pelo seu caráter eminentemente popular. ela deu origem a uma nova série de revoluções e pelas idéias que lançou tornou-se a precursora de todas as revoluções sociais. O povo aprendeu a lição e, quando surgirem mais uma vez na França os protestos das comunas revoltadas, ele já não esperara que o governo tome atitudes revolucionárias. Quando tiverem se libertado dos parasitas que os devoram, tomarão posse de toda a riqueza social disponível de acordo com os princípios do comunismo anarquista. E quando tiverem abolido totalmente a propriedade privada, o governo e o estado, irão se organizar livremente, de acordo com as necessidades indicadas pela própria vida. Rompendo as correntes, derrubando seus ídolos, a humanidade marchará em direção a um futuro melhor, desconhecendo senhores e escravos e venerando ainda os mártires que pagaram com seu sofrimento e o seu sangue naquelas primeiras tentativas de emancipação que iluminaram a nossa marcha pela conquista da liberdade.

Sobre cidades e comunidades anarquistas

Por Gilson Moura Henrique Junior

A relação entre anarquia e superação do estado é algo que compõe uma miríade de vertentes e opções. Dentre todas existem as que me parecem dominantes hoje e que compõe uma ópera de individualismo e misticismo, quase um elemento de constituição da elevação espiritual do ser anarquista, do indivíduo anarquista, e sua relação com o mundo.

A ideia de diferenciação do anarquista em relação aos demais ultrapassa os sinais pontuais presentes nas propagandas ideológicas que tratam quem não se alinha ao anarquismo como “zumbis” ou “escravos”, e segue a ideia de que ao se afastar do mundo se estabelece um “contra mundo” capaz de, por algum mistério inexplicável e jamais conscientemente estabelecendo um método de transformação, fazer com que todo mundo seja anarquista.

Essa ideia é presente em um sem número de publicações, páginas, fan pages e domina o lado virtual do mundo anarquista. É notório na virtualidade o método de propaganda ideológica que estabelece um projeto de agitação e propaganda da desqualificação da tecnologia, do mundo “normal”, das relações de poder e de todo um arcabouço de modos de vida e de pensamento como inferiores e limitados.

Se por um lado essa metodologia acerta na crítica à civilização, ela estabelece um projeto de contra hegemonia estéril que não constrói nenhuma metodologia prática de contra hegemonia concreta. Torna-se apenas um modo de vida que cria fantasias travestidas de práxis e que pouco oferecem de alternativas além do exemplo.

Essa crítica é fundamentalmente, e brilhantemente, trazida por Murray Bookchin e perfeitamente direcionada à ideia das zonas autônomas temporárias e da mistificação da retirada do mundo que cai como uma luva nas posturas anarquistas em voga.

Essa crítica é irmã da crítica ao fetiche da ferramenta estabelecido com sinal contrário contido na repulsa à tecnologia construída em torno do anarco primitivismo.

Ao estabelecer um sistema de crítica idealizada à tecnologia, no sentido de não estruturada numa lógica que analisa de forma refinada o processo tecnológico como inserido em contextos simbólicos e práticos que vão muito além da ferramenta em si, parte dos anarquistas abole o engenho como parte da transformação estrutural que buscam construir, ou seja, em última análise culpam a roda pela civilização.

Nesse meio tempo o mundo processa e estabelece parâmetros de debate e de exercício da dominação que exigem uma luta contra hegemônica para muito além da retirada do palco de parte dos atores.

Ou seja, não é que a comunidade de permacultura ou as zonas autônomas temporárias ou o louvor a um primitivismo idealizado cometam um erro universal em sua estrutura, apenas todos eles abdicam do enfrentamento cotidiano dos problemas das pessoas e das comunidades e do estabelecimento de parâmetros de pensamento e organização anarquistas no combate ao uso da tecnologia como ferramenta de dominação, do estabelecimento de paradigmas ecológicos nas organizações cotidianas, na estruturação de métodos usuais de refundação cultural a partir de elementos primários libertários, etc.

Um exemplo é a abdicação do uso de ferramentas de construção em permacultura como meios de influência em ocupações de terreno por sem tetos ou por ocupação de áreas rurais por sem-terra.

Além disso, as zonas autônomas temporárias, que é parte da influência dos movimentos Occupy mundo afora, tendem a serem elementos de fundamentação temporária de ações isoladas e não um elemento estruturado e metodologicamente estabelecido de ações de médio e longo prazo.

Tudo isso leva ao debate sobre a relação entre anarquistas e as cidades em um mundo onde a revolução urbana alcançou seu auge e estabeleceu um paradigma de ocupação urbana que supera pela primeira vez na história a população rural a partir de vinte e três de maio de 2007.

Se é correta a crítica às insustentáveis megalópoles e ao menos a busca por uma reforma urbana que as tenha como alvo para sua necessária descentralização redimensionamento, não é pela negação da urbe que teremos o processo necessário de refundação da ideia de concentração de pessoas.

Se é importante estabelecer um processo de paulatina redução das cidades ou migrações para cidades pequenas e medias, não se pode construir a partir disso a lógica de que pela ausência de alguns que tem meios de constituir esse processo, ele se resolve automaticamente.

É preciso lidar com as megalópoles a partir de suas periferias e da ausência de direitos e estrutura nelas. A base material da vida das periferias é inclusive parte do problema ambiental das megalópoles e não deve ser combatida apenas por sua negação.

Negar a megalópole não empondera e nem retira da miséria ou da falta de moradia os milhões de pobres nelas. Migrar pra comunidades livres das neuroses das megalópoles não resolve o impacto mobilidade urbana predatória na vida do mundo todo.

É fundamental estabelecer um processo de integração entre a ideia da sustentabilidade da permacultura com a resolução do problema do deficit de moradia nas mega, grandes e médias cidades.

É fundamental conceber as zonas autônomas temporárias como ferramenta de combate à lógica urbana de desocupação das praças, das ruas, do estabelecimento de zonas livres de pobres, da elitização dos espaços e da gentificação.

É fundamental estabelecer um processo que interligue as críticas à civilização como formas concretas de rediscussão dos parâmetros civilizatórios a partir da integração da perspectiva ameríndia, aborígene, africana e de outras etnias na concepção de vida, família, cidade, natureza e espaço público.

Pra isso é fundamental antes de mais nada sairmos da idealização hegeliana que acomete as ideias anarquistas a partir de um sem número de crossover teóricos que bebem no anarco individualismo e geram uma confusão dos diabos no estabelecimento de práticas anarquistas.

É fundamental produzir um acúmulo de práxis e teoria que rediscuta que transporte queremos nas cidades, que educação queremos nas cidades, que relação entre homem e natureza queremos nas cidades.

Em um mundo onde a dita natureza está se tornando mitologia, ser parte da expansão da ocupação humana em seu interior não me parece outra coisa senão o caminho da expansão das fronteiras do desenvolvimento produtivista travestida de douração de pílula naturista.

Em um mundo mais urbano que rural o fundamental é menos o isolamento idealizado espiritualista que nega a cidade e mais a integração nas inúmeras cidades, de todos os tamanhos, de perspectivas transformadoras de seu dia a dia. Ou seja, é prioritário refundar as cidades e a ideologia hegemônica nelas.

Para combater a carrocracia é fundamental o exercício da pressão para a ampliação de transporte público por trilhos movido a energia renovável e do uso de bicicletas.

É fundamental estabelecer parâmetros ecológicos para a construção de moradia que resolva o deficit habitacional.

É fundamental reler a cidade, entendendo que favela é cidade, periferia é cidade. É central discutir a descentralização habitacional, de decisões sobre energia e consumo, de debates sobre mobilidade urbana, de decisões sobre alimentação.

Para combater a concentração urbana é fundamental debater a descentralização urbana, da distribuição de alimentos; é preciso debater as distâncias entre a produção e o consumo; é preciso discutir o consumo e a relação com a tecnologia; é fundamental debater ciência, economia, cultura; É preciso nos livrar da hierarquização de direitos estabelecidos na distribuição econômica da população na geografia das cidades.

Como fazer isso se nos isolamos em comunidades ou estabelecemos uma ideia pirotécnica de anarquia como estilo de vida?

Enquanto construímos uma ideia de ecologia que rima como alienação pequeno-burguesa, outros coletivos se constituem como ferramentas concretas de enfrentamento ao estado e à institucionalidade e não construímos uma face ecológica para este combate.

Por que em vez de nos isolarmos uns dos outros não estabelecemos pontes que integrem o debate sobre a cidade ao debate contra hegemônico mantido por esses coletivos?

As cidades não serão enfrentadas ou reformadas com a ausência dos anarquistas nos debates e nas práticas de sua transformação.

Ao nos colocarmos como eco-anarquistas distanciados dos debates das periferias das grandes cidades construímos de tudo um pouco, menos o necessário meio de enfrentamento ecológico que pode levar à transformação do mundo.

Pra mudar o mundo é preciso menos negá-lo e mais mudá-lo.

Errico Malatesta: o Lênin da Itália?

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Trecho do livro La Vida de Malatesta de Luigi Fabbri, originalmente publicado por Salir Del Ghetto, no Blog Noticia&Anarquia.
Texto original: http://noticiasyanarquia.blogspot.com.br/2014/09/errico-malatesta-el-lenin-de-italia.html

Sobre a atitude Malatestiana em relação ao problema da violência, devo acrescentar alguma outra coisa que contribuirá para iluminar melhor a figura do homem. Mais adiante, tratarei de expor ordenadamente as idéias de Malatesta e, portanto, também as relativas à violência. Aqui me limito a trazer o gérmen de seu pensamento a respeito: o de que ninguém tem direito de impor a força, com violência ou com ameaça de violência, aos outros, sob nenhum pretexto (nem sequer com o de lhes fazer o bem), as próprias ideias, o modo de viver e de se organizar, os sistemas, as leis etc. E disso deriva a lógica consequência do direito dos povos e dos indivíduos a se rebelarem contra os governos e os patrões, que, em suma (dizia), é um direito de legítima defesa contra as imposições coercitivas dos segundos, que exercem sobre os primeiros sua opressão e exploração por meio da violência e com ameaça de violência ou, o que dá no mesmo, com a pressão da fome. Daqui a necessidade da violência revolucionária contra a violência conservadora da atual organização política e econômica da sociedade.

Malatesta não separava, entretanto, a necessidade do uso de violência de sua premissa da negação da violência coercitiva – ao contrário do que fazem todos os revolucionários -. Não achava sequer útil, inclusive julgava ser o pior mal, violentar a liberdade alheia para submetê-la à própria, aos próprios métodos, à própria disciplina específica. A revolução deve libertar o povo de todas as imposições governamentais e patronais, não lhe criar imposições novas. E a mesma liberdade para todos reclamava desde sempre, seja na órbita do movimento revolucionário, seja nas relações com o ambiente externo. A revolução se faz, não poderia ser de outro modo, com a força, mas não pode ser feita pela força.

Mas essas ideias se enquadram tão pouco e mal na lenda do Malatesta chefe de complôs e de tumultos, a quem mais acima fiz em parte alusão, que a sua chegada a Itália, em 1919, não foram poucos os que em todo campo se apressaram para ver nele – os reacionários temendo-o e os revolucionários esperando-o -, o Lênin da Itália. Por muito que o apelido, em especial, então, pudesse parecer lisonjeiro, pôs de imediato um maior obstáculo para Malatesta e lhe fez temer também um perigoso desvio de ideias entre seus companheiros, pois até alguns deles tinham deixado escapar dos lábios ou da pena algumas expressões a respeito. Um anarquista italiano, procurado na América do sul, Aldo Aguzzi, teve de contar, tempo atrás, em uma conferência sua em Montevidéu, imediatamente depois da morte de Malatesta, o episódio de seu primeiro encontro com ele, que se liga diretamente ao que vou dizendo. Merece pena que o refira o mais textual que me seja possível:

“eu era então um garoto, saído há pouco tempo do partido socialista junto a todos os sócios do círculo juvenil de Voghera, com os que tínhamos fundado, fora do partido, um grupo juvenil subversivo. Não éramos anarquistas, mas sim algo semelhante ao que são ainda muitos comunistas, isto é, adversários dos reformistas e entusiastas da Rússia. Me acreditava já “quase anarquista”, mas na verdade não sabia senão muito pouco de anarquia, pois pode se dizer que a única diferença que via entre um anarquista e um socialista, era que o primeiro quer a violência e o outro, não. Era necessário dizer isso para explicar o que se passou em mim”.

A princípios de 1920, veio a Voghera, chamado pelo grupo anarquista local, Errico Malatesta com outros companheiros seus (Borghi, D’Andrea etc.) Malatesta falou num salão das escolas de fundamental. Me pediu que lhe apresentasse e eu o apresentei saudando-o como o Lênin da Itália, o qual, superando os socialistas, nos conduziria à revolução, como na Rússia. Depois da minha fala subiu na tribuna, agradeceu ao público que não parava de aclamá-lo… com o título que eu lhe tinha delegado e, depois de ter tratado de muitas outras coisas, num certo ponto começou a falar da definição que eu tinha feito dele. Na verdade não me tratou mal, inclusive me fez algum cumprimento; mas explicou que não podia, não queria, nem devia ser um Lenin. Em resumo, pelo que posso resumir a doze anos de distância, tendo em conta também minha confusão naquele momento, eis aqui o que disse:

O rapaz que me apresentou deve ser sincero e entusiasta e talvez acreditou me causar prazer dizendo que sou o Lênin de vocês. Acho que não é anarquista, como não o são seguramente os que acolheram seu grito. Ele e vocês são revolucionários, compreendem que os velhos métodos reformistas não funcionam mais, talvez tenham perdido a fé em seus chefes socialistas, e então buscam um homem que inspire confiança e os levem à revolução. Muito obrigado pela confiança, mas estão enganados. Tenho todo o desejo de lhes fazer bem e também a mim, mas sou um homem como todos os demais, e se me convertesse em seu novo chefe, não seria melhor que aqueles que vocês agora repudiam. Todos os chefes são iguais, e, se não fazem o que vocês desejam, não é sempre porque não querem, mas também porque não podem. Tratando-se também da revolução, não é um homem que pode fazê-la: devemos fazê-la todos juntos.

“Eu sou anarquista, não quero obedecer, mas, sobretudo não posso mandar. Se me transformar em seu Lênin, como deseja aquele rapaz, os levarei ao sacrifício, me farei seu amo, seu tirano; trairei minha fé, porque não se faria a anarquia, e lhes trairia, porque com uma ditadura se cansariam de mim, e eu, transformado em ambicioso e talvez convencido de cumprir um dever, me rodearia de policiais, de burocratas, de parasitas, e daria vida a uma nova casta de opressores e de privilegiados pela qual seriam explorados e humilhados como são hoje pelo governo e pela burguesia”.

Lembro de que Malatesta disse também: “se realmente gostam de mim, não têm que desejar que me torne seu tirano”. Mas muitos detalhes e frases me escapam agora. Depois explicou como se devia fazer a revolução. Lembro entre outras coisas que falou de “ocupar as fábricas”, de armamento do povo, de constituição de núcleos armados, etc., se expressando com calma, com mais calma que os próprios reformistas do lugar… Pra falar a verdade, o público ficou um tanto desiludido (e eu também um pouco) porque Malatesta não respondia do modo que se esperava. Mas o fato é que, depois daquela conferência, eu tinha compreendido o que era a anarquia e o que querem os anarquistas, e me tornei um deles…

Este episódio, semelhante a tantos outros – repito que por um instante a lenda do “Lênin da Itália” teve curso inclusive entre alguns que tinham sido e se acreditavam anarquista -, mostra muito bem o equívoco originado pela incompreensão da personalidade e das ideias daqueles que estavam fora do ambiente mais estritamente seu. Este erro, pela força do contraste, levou muitos de uma incompreensão à incompreensão oposta. Quando finalmente Malatesta conseguiu fazer compreender o diferente que era do que tantos acreditavam, por um lado os reacionários e os inimigos de má fé viram no Malatesta real uma ficção e o atacaram com violência inaudita e autoritarismos e os amantes da violência pela violência, os bolchevistas e os bolchevizantes, o achavam mudado e viram nele, como já dissemos, um Tolstoiano. A imprensa comunista Bolchevista, que em um primeiro momento o tinha coberto de flores, acabou com sua habitual fraseologia esteriotipada falando dele como um contra-revolucionário, pequeno-burguês etc.

No entanto, Malatesta era sempre o mesmo. Se havia um homem na Itália que podia, depois de 50 anos de luta constante, repetir o elogio do poeta Giuseppe Giusti: “não me curvei, nem vacilei”, era ele. Suas palavras dos comícios de 1920 eram as mesmas de toda sua propaganda passada desde o ano 1872. Aquele “pequeno-burguês” tinha combatido meio século à burguesia pequena e grande, e tinha ganhado sempre sua vida como operário com o suor de sua testa. Aquele velho “contra-revolucionário” não tinha feito outra coisa desde criança que não propagar e preparar a revolução. Aquele “tolstoiano” tinha sido e continuava sendo o predicador de todas as rebeldias, convidava os operários para ocupar as fábricas e os camponeses as terras, incitava “com calma” ao povo a se armar e aos revolucionários a prepararem as bandas armadas, e (hoje que morreu se pode dizer) onde pôde, até o último momento, não se limitava a incitar aos outros, mas punha ele mesmo a mão na massa, não poupando aos voluntários nem sua ajuda, nem sua participação direta.

 

Núcleo Nova Santa Quitéria – PR

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Fonte: Movimento de Organização de Base

A Nova Santa Quitéria é uma ocupação urbana localizada no Bairro Santa Quitéria de Curitiba. Também conhecida como Portelinha 2 é vizinha da Portelinha e tem a situação do terreno igual a da comunidade vizinha. Desde 2006 centenas de famílias lutam por moradia digna e regularização.

Neste ano de 2014 os moradores estão construindo uma Associação de Moradores ativa e de luta, em que o MOB está presente.

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Ciranda Espertirina Martins

ciranda2A partir do segundo semestre de 2014 o Movimento de Organização de Base – Paraná em conjunto com o Coletivo Quebrando Muros estão construindo a Ciranda Espertirina Martins. De segunda à sexta, das 8 hrs ao meio dia, militantes do MOB, CQM e voluntários organizam várias oficinas em conjunto com as crianças da Nova Santa Quitéria e Portelinha.

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Alguns poemas… – José Oiticica

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Fonte: Anarquia e Poesia – Blog para divulgação de poesias libertárias e outras de caráter crítico

A Hora

Eis a Hora, a grande hora da peleja,
Hora de sacrifícios e entusiasmo!
Pulsa meu coração, meu peito arqueja
No momento da ação replito e pasmo.

É a batalha final! Trovo, troveja,
Além-mar, o canhão; foi-se o marasmo
Da plebe una, e a revolta bemfazeja
Move espada e morrão, ódio e sacasmo.

Levantam-se os escravos contra os amos!
Há um clamor de vitória em toda a Terra…
Somos nós, anarquistas, que clamamos!

Nós que vamos sorrindo e subvertendo,
Arrastando os irmãos à Maior Guerra,
Num rebate de loucos, estupendo!

José Oiticica
Sonetos 2ª série (1911-1918) de 1919

O protesto

Protesto contra o mal da força e da justiça:
Um degrada a fraqueza, outro excita à agressão;
Contra a fé que reduz o homem a alma submissa,
Iludindo-o com céus que nunca se abrirão.

Clamo contra o senhor, clamo contra a cobiça,
Inventora de leis, criadora de opressão.
Sou Spártacus e odeio a pátria se esperdiça
Meu sangue e faz, do suor, esforço hostil e vão.

Bradam, no meu protesto, os prantos do passado…
Ira acêsa de todo um mundo sofredor;
Mártir do amo, do rei, do padre, do soldado!

Sou a nova intuição contra a lei do Senhor;
Sou a ação que destrói a moral do pecado,
Para erigir o orgulho e libertar o amor.

(José Oiticica – 1919)

A cidade

joseoiticica8Sinto a repulsa dos dominadores…
Sou novo, sou ateu, sou anarquista;
Não sigo a mesma norma dos doutores
E ergo, acima das baias, minha vista.

Aperto, entre meus dedos compressores,
A garganta da casta comodista;
Anuncio outra lei e outros valores;
Sou a palavra santa que conquista.

Vou sozinho, arrostando o ódio dos amos…
E em pó, no topo da colina extrema,
Indico ao povo a Sião para onde vamos:

Vamos para a cidade iluminada!
Vejo-a ao longe, a faiscar, como diadema,
Entre a prata e os carmins da madrugada.

José Oiticica
-1919