Ciúmes: Causas e uma possível cura – Emma Goldman

Emma_Goldman_-_Union_Square,_New_York,_1916Por Emma Goldman

Fonte: Amor Y Anarquia

Ninguém em geral é capaz de uma intensa consciência interna, porque a vida sempre necessita de esperança para escapar da angústia mental e do sofrimento. O sofrimento, e muitas vezes o desespero, sobre a chamada característica eterna das coisas são a mais persistente companhia de nossas vidas. Mas eles não surgem em nós do exterior, através dos atos malignos de pessoas particularmente más. Eles são condicionados ao nosso próprio ser, de fato, eles estão interligados através de mil propostas e grossos fios com a nossa existência.

É absolutamente necessário que nós compreendamos esse fato, porque as pessoas que nunca se livram da noção de que sua desgraça é fruto da maldade dos outros nunca podem superar o ódio mesquinho e a malícia que constantemente acusa, condena e persegue os outros por algo que é inevitavelmente parte de si mesmos. Tais pessoas não irão subir para as alturas sublimes do verdadeiro humanista, para quem o bem e o mal, a moral e a imoral, são, portanto, termos limitados para o conflito interior das emoções humanas no mar da vida humana.

O filósofo “além do bem e do mal”, Nietzsche, é atualmente denunciado como criador de um ódio nacional e uma destruição metralhadora. Mas apenas maus leitores e maus alunxs o interpretam desta forma. “Além do bem e do mal” significa além do Ministério Público, além de fazer julgamentos, além de matar, etc. Além do Bem e do Mal se abre diante dos nossos olhos como uma visão do pano de fundo que é a afirmação individual, juntamente com a compreensão de todos aqueles que são o contrário de nós mesmos, que são diferentes.

Por isso eu não me refiro à tentativa desajeitada da democracia de regular as complexidades do caráter humano por meio da igualdade externa. A visão de “além do bem e do mal” aponta para a direita de si mesmo, à própria personalidade. Tais possibilidades não excluem a dor do caos da vida, mas excluem a justiça puritana que se insere no julgamento de todos os outros, exceto de si mesmo.

É auto-evidente que a profundidade radical – muitos são superficiais, você sabe – deve aplicar esta profundidade ao reconhecimento humano da relação de amor e sexo. Emoções de amor e sexo estão entre as mais íntimas, intensas e sensíveis, expressões do nosso ser. Elas são tão profundamente relacionadas às características físicas e psíquicas individuais como um carimbo em cada caso de amor como um caso independente, diferente de todos os outros casos de amor. Em outras palavras, cada amor é resultado das impressões e características que duas pessoas envolvidas dão a isso. Toda relação de amor deve, por sua própria natureza, permanecer como um caso absolutamente privado. Nem mesmo o Estado, a Igreja, a moralidade ou as pessoas devem mediar isso.

Infelizmente esse não é o caso. A mais íntima relação é submetida a proscrições, regulamentos e coerções; porém, esses fatores externos são absolutamente estranhos ao amor, e leva a eternas contradições e conflitos entre o amor e a lei.

O resultado disso é que nossa vida amorosa está imersa em corrupção e degradação. O “amor puro”, tão aclamado pelos poetas, é, no atual matrimônio, divórcio e disputas alienadas, um espécime raro. Com dinheiro, status social, e posição como critérios para o amor, a prostituição é quase inevitável, ainda que seja coberta pelo manto da legitimidade e da moralidade.

O mais permanente demônio da nossa mutilada vida amorosa é o ciúme, frequentemente descrito como “mostro de olhos verdes”, que mente, engana, trai e mata. O senso comum é de que o ciúme é inato e, portanto, nunca poderá ser erradicado do coração humano. Essa ideia é uma desculpa conveniente para aqueles que não têm capacidade ou vontade para mergulhar dentro das causas e efeitos.

A angústia sobre um amor perdido, sobre o fio quebrado da continuidade do amor é, de fato, inerente ao nosso ser. O sofrimento emocional tem inspirado muitas letras sublimes, com olhares muito profundos e exaltação poética de Byron, Shelley, Heine e outros. Mas será que é possível comparar esta tristeza com o que comumente acontece no ciúme? Eles são tão diferentes como a sabedoria e a estupidez. Como o refinamento e a rudeza. Dignidade e coerção brutal. O ciúme é o oposto da compreensão, da simpatia, e dos sentimentos generosos. O ciúme nunca adicionou algo ao caráter, nunca fez o indivíduo grande e bom. O que ele realmente faz é torná-lo cego com fúria, mesquinho com suspeita, e duro de inveja.

Ciúme, as contorções que vemos nas tragédias e comédias matrimoniais, são invariáveis por um lado, intolerantemente acusadoras, convencidas da sua própria justiça e da maldade, crueldade e culpa da sua vítima. O ciúme nem mesmo tenta compreender. Seu único desejo é punir, e punir tão severamente quanto possível. Essa noção é incorporada ao código de honra, como representada em um duelo ou em uma lei não escrita.  Um código que vai considerar que a sedução de uma mulher deve ser punida com a morte dx sedutor(a). Mesmo onde a sedução não tomou lugar, onde ambos voluntariamente cederam ao desejo mais íntimo, a honra só é restaurada quando o sangue é derramado, seja do homem ou da mulher.

O Ciúme é obcecado pelo sentimento de possessão e vingança. Isto está de acordo com todas as outras leis de punição nos estatutos que ainda aderem à barbárie noção de que uma ofensa, muitas vezes meramente resulta de injustiças sociais, e devem ser adequadamente punidas ou vingadas.

Um argumento muito forte contra o ciúme pode ser encontrado nos dados de historiadores como Morgan, Reclus e outros, como sobre as relações sexuais dos povos primitivos. Qualquer um que esteja familiarizado com suas obras sabe que a monogamia é uma forma de sexo que surgiu muito mais tarde, como resultado da domesticação e da propriedade das mulheres, e que criou o monopólio do sexo e o inevitável sentimento de ciúme.

 No passado, quando homens e mulheres se misturaram livremente sem a interferência da lei e da moralidade, não poderia existir ciúme, porque este repousa sobre a suposição de que certo homem tem o monopólio exclusivo sobre o sexo de determinada mulher e vice-versa. No momento em que ninguém visa transgredir este preceito sagrado, o ciúme está em pé de guerra. Sob tais circunstâncias, é ridículo dizer que o ciúme é perfeitamente natural. Fatidicamente, se trata de um resultado artificial de uma causa artificial, nada mais.

Infelizmente não são apenas os casamentos conservadores que são afetados pelo ciúme com a noção de monopólio sexual; as chamadas uniões livres também são vítimas dele. O argumento provavelmente levantado é que isto é mais uma prova de que o ciúme é um traço inato. Mas é preciso ter em mente que o monopólio sexual tem sido transmitido de geração em geração como um direito sagrado e como a base da pureza da família e do lar. E assim como a Igreja e o Estado aceitam o monopólio sexual como a única segurança para o vinculo matrimonial, eles tem justificado o ciúmes como uma arma legítima de defesa para a proteção do direito de propriedade.

Agora, se é verdade que um grande número de pessoas superou a legalidade do monopólio do sexo, elxs não superaram as suas tradições e hábitos. Por isso, elxs se tornaram tão cegxs pelo “monstro de olhos verdes” quanto seus/suas vizinhxs conservadorxs no momento os seus bens estão em jogo.

   Um homem ou uma mulher livre e grande o suficiente para não interferir ou inquietar-se sobre as outras atrações da pessoa amada são com certeza desprezadxs por seus/suas amigxs conservadores, e ridicularizadxs por seus/suas amigxs radicais. Elx também será acusadx de ser umx degeneradx ou umx covarde; e frequentemente alguns motivos materiais mesquinhos serão imputados a elx. De qualquer forma, esses homens e mulheres serão alvo de fofocas ou piadas grosseiras ou imundas por nenhuma outra razão além do fato delxs admitirem ao marido, esposa ou amantes o direito de seus próprios corpos e sua expressão emocional, sem fazer cenas de ciúmes ou ameaças selvagens para matar x intrusx.

Há outros fatores no ciúme: o conceito do macho e da inveja do feminino. O macho em matéria sexual é um impostor, um fanfarrão, que sempre se orgulha de suas façanhas e do sucesso com as mulheres. Ele insiste em desempenhar o papel de um conquistador, já que ele foi informado de que as mulheres querem ser conquistados, e que elas gostam de ser seduzidas. Sentindo-se o único galo do curral, ou o touro que deve confrontar com seus chifres a fim de ganhar a vaca, ele se sente mortalmente ferido na sua vaidade e arrogância no momento em que umx rival entra em cena – a cena, mesmo entre os chamados homens refinados, continua a ser o amor sexual da mulher, que deve pertencer a apenas um mestre.

Em outras palavras, o monopólio do sexo em perigo, juntamente com a vaidade do homem ultrajado, em 99 em cada cem casos são os antecedentes do ciúme.

No caso de uma mulher, o medo econômico por si mesma e pelas crianças e sua inveja mesquinha de todas as outras mulheres que ganham graça aos olhos do seu defensor, invariavelmente, criam ciúme. Em justiça, foi dito para as mulheres durante os séculos passados, que a atração física era seu único estoque na negociação, portanto, ela deve se tornar necessariamente invejosa do charme e do valor de outras mulheres como uma ameaça ao seu poder sobre sua propriedade preciosa.

O aspecto grotesco de toda a questão é que os homens e as mulheres geralmente criam uma inveja violenta daquelxs que realmente não se importam muito sobre isso. Portanto, não é o seu amor ultrajado, mas a sua vaidade e inveja indignada que clamam contra esse “terrível erro”. É provável que a mulher nunca amou o homem de quem ela agora suspeita e espiona. Provavelmente ela nunca fez um esforço para manter o seu amor. Mas no momento em que umx concorrente chega, ela começa a valorizar sua propriedade sexual para defendê-la de forma que nenhum meio é muito desprezível ou cruel.

Obviamente, então, o ciúme não é o resultado do amor. Na verdade, se fosse possível investigar mais casos de ciúmes, provavelmente descobririam que quanto mais violento e desprezível é o seu ciúme, menos as pessoas estão imbuídas de um grande amor. Duas pessoas vinculadas por harmonia interior e unidade não têm medo de prejudicar a sua confiança mútua e segurança, se um ou outro tem atrações externas, nem iram terminar seu relacionamento em inimizade vil, como é muitas vezes o caso de muitas pessoas. Muitos delxs não são capazes, nem deve de se esperar, de incluir a escolha da pessoa amada na intimidade de suas vidas, mas isso não xs dá qualquer direito de negar a necessidade da atração.

Assim como eu discutirei variedade e monogamia duas semanas a partir de hoje a noite, não me deterei nisso, nem aqui, exceto para dizer que olhar as pessoas que podem amar mais de uma pessoa de forma tão perversa ou anormal é ser muito ignorante mesmo. Eu já discuti uma série de causas para o ciúme, a qual devo acrescentar a instituição do casamento que o Estado e a Igreja proclamam como “o vínculo até a morte”. Isso é aceito como o ético modo correto de vida e a ação correta.

  Com amor, em todas a sua variabilidade e mutabilidade, acorrentadxs e apertadxs, é uma pequena maravilha se o ciúme surge fora dele. Que outra coisa senão mesquinhez, avareza, suspeita e rancor pode surgir quando um homem e uma mulher são oficialmente mantidxs juntxs com a fórmula “a partir de agora vocês são um em corpo e espírito.” Basta manter qualquer casal amarrado de tal maneira, dependentes umx dxs outrxs para cada pensamento e sentimento, sem um interesse ou desejo externo, e se perguntar se tal relação não deve tornar-se odiosa e insuportável com o tempo.

De uma forma ou outra os grilhões são quebrados, e como as circunstâncias que permitem fazê-lo são geralmente baixas e degradantes, não é de surpreender que eles coloquem em jogo os mais deteriorados e malvados traços e motivos humanos.

Em outras palavras, a interferência legal, religiosa e moral são os pais do nosso atual amor e vida sexual não naturais, e fora disso o ciúme cresceu. Esse é o chicote que açoita e tortura os pobres mortais por causa de sua estupidez, ignorância e preconceito.

Mas ninguém precisa tentar justificar-se em terra por ser uma vítima destas condições. É bem verdade que todos nós inteligentes estamos sob os fardos dos arranjos sociais injustos, sob coerção e cegueira moral. Mas não somos indivíduos conscientes, cujo objetivo é trazer a verdade e a justiça aos assuntos humanos? A teoria de que o homem é um produto de condições levou apenas à indiferença e a um fraco consenso sobre essas condições. Ainda que todos saibam que a adaptação a um modo de vida não saudável e injusto só fortalece a ambos, enquanto o homem, o chamado “coroa de toda a criação”, equipado com uma capacidade de pensar e ver e acima de tudo para empregar os seus poderes de iniciativa, cresce cada vez mais fraco, mais passivo, mais fatalista.

Não há nada mais terrível e fatal do que escavar dentro das vísceras de um de seus entes queridos e de si mesmo. Isso só pode ajudar a rasgar os fiapos de afeto que ainda são inerentes à relação e, finalmente, trazer-nos até a última trincheira, que tenta combater o ciúme, ou seja, a aniquilação do amor, amizade e respeito.

O ciúme é realmente um meio pobre para proteger o amor, mas é um meio seguro para destruir o auto-respeito. Para pessoas ciumentas, como “drogas-demônios”, rebaixa ao nível mais baixo e, no final, inspira apenas desgosto e repugnância.

A angústia pela perda de um amor ou por um amor não correspondido entre as pessoas que são capazes de pensamentos elevados e finos jamais fará uma pessoa se tornar rude. Aquelxs que são sensíveis e finxs apenas devem perguntar-se se podem tolerar qualquer tipo de relação obrigatória, e um enfático “não” seria a resposta. Mas a maioria das pessoas continua a viver próximas uma das outras, apesar de terem a muito tempo deixado de viverem umas com as outras – uma vida fértil o suficiente para a operação do ciúme, cujos métodos percorrem todo o caminho desde abrir a correspondência privada até o assassinato. Comparado com tais horrores, adultério aberto parece um ato de coragem e libertação.

Um escudo forte contra a vulgaridade do ciúme é que o homem e a mulher não são um só em corpo e espírito. Eles são dois seres humanos, com temperamentos diferentes, sentimentos e emoções. Cada um é um cosmos pequeno em si mesmo, absorto em seus próprios pensamentos e idéias. Isso é glorioso e poético se estes dois mundos se encontram em liberdade e igualdade. Mesmo que isso dure pouco tempo, já valerá à pena. Mas, no momento em que os dois mundos são forçados a ficar juntos, toda a beleza e o perfume cessam e nada mais que folhas mortas permanecem. Quem compreende esta obviedade irá considerar o ciúme como algo abaixo de si e não permitirá que isso seja pendurado como uma espada de Dâmocles sobre elx.

Todos os amantes fazem bem ao deixarem as portas do seu amor aberto. Quando o amor pode ir e vir sem medo de encontrar um cão de guarda, o ciúme raramente irá criar raízes porque ele vai aprender rapidamente que onde não há fechaduras e chaves, não há lugar para a suspeita e desconfiança, dois elementos sobre os quais o ciúme cresce e prospera.

Este artigo é uma cortesia dos documentos de Emma Goldman: Divisão de Arquivos e Manuscritos, The New York Public Library, Astor, Lenox e Fundações Tilden.

Traduzido de:

http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/goldman/jealousy.html

Casamento e Amor – Emma Goldman

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Anarquismo e Outros Ensaios
Por Emma Goldman
De Amor e Anarquia
(Original em Inglês)

Fonte: Protopia

A noção popular em torno do casamento e do amor é a de que eles são sinônimos, que eles afloram dos mesmos motivos e cobrem as mesmas necessidades humanas. Como tantas outras noções populares, também esta não repousa em fatos concretos, mas sob superstições.

Casamento e amor não possuem nada em comum; estão tão apartados como pólos; e são, de fato, antagônicos entre si. Sem dúvidas, certos casamentos são resultado do amor. Entretanto, não é porque o amor só se afirma em casamento; é antes porque poucas pessoas conseguem superar completamente uma convenção. Para um grande número de homens e mulheres hoje em dia, o casamento nada é senão uma farsa, mas a ele se submetem por amor à opinião pública. Em todo caso, enquanto é verdade que certos casamentos baseiam-se no amor e enquanto é igualmente verdade que certas vezes o amor continua durante a vida conjugal, eu sustento que isso se dá independentemente do casamento e não devido a ele.

Por outro lado, é completamente falso que do casamento resulte amor. Um caso milagroso se faz ouvir, em raras ocasiões, de cônjuges que caem em amor depois de casados, mas em exame amiúde aí se encontrará um mero ajuste ao inevitável. Certamente a habituação ao outro está distante da espontaneidade, da intensidade, e da beatitude do amor, sem o que a intimidade do casamento deve revelar-se degradante para ambos homem e mulher.

O casamento, primeiramente, é um arranjo econômico, um pacto de seguro. Só difere do contrato comum de seguro de vida naquilo que tem de mais obrigatório, de mais exigente. Os retornos são insignificantemente pequenos quando comparados aos investimentos. Ao se contratar uma apólice de seguro se paga em dólares e centavos, mas nos resta sempre a liberdade de descontinuar os pagamentos. Entretanto, se o marido é o prêmio do seguro, ela paga por isso com seu nome, sua privacidade, sua auto-estima, com sua própria vida “até que a morte os separe”. Além do que, o contrato do casamento a condena a uma dependência vitalícia, ao parasitismo, a completa inutilidade individual bem como social. O homem paga a sua parte também, mas como sua esfera é maior, o casamento não o limita tanto como à mulher. Ele sente suas correntes pesarem mais num sentido econômico.

E assim o mote do Inferno de Dante se aplica ao casamento com a mesma força. “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”.

Somente um estúpido completo nega que o casamento é um fracasso. Basta relancear a vista sobre as estatísticas do divórcio para compreender como é verdadeiramente amargo um casamento fracassado. Tampouco o argumento filisteu estereotipado, o da lassidão das leis do divórcio e o da crescente frouxidão da mulher, dará conta do fato de que: em primeiro, cada décimo segundo casamento termina em divórcio; segundo, que desde 1870 divórcios cresceram de 28 para 73 a cada população de cem mil; terceiro, que o adultério, desde 1867, como causa de divórcio cresceu 280.7 por cento; quarto, que a deserção aumentou em 369.8 por cento.

Somado a estes números surpreendentes, há ainda um vasto material dramático e literário melhor elucidando o assunto. Robert Herrick, em Together; Pinero, em Mid-Channel; Eugene Walter, em Paid in Full, e dezenas de outros escritores estão discutindo a aridez, a monotonia, a sordidez, e a inadequação do casamento como fator pela harmonia e pelo entendimento.

O estudioso social sério não se contentará com a popular desculpa superficial para este fenômeno. Ele terá de escavar a vida mesma dos sexos profundamente adentro para conhecer o porque de o casamento revelar-se tão desastroso.

Edward Carpenter diz que, por detrás de todo casamento, persiste uma ambiência vitalícia dos dois sexos; ambiências tão diferentes entre si que homem e mulher devem permanecer estranhos. Separados por uma muralha intransponível de superstição, costume, e hábito, o casamento não tem a potencialidade de desenvolver o conhecimento e o respeito mútuo, sem o que toda união está destinada ao fracasso.

Henrik Ibsen1, o inimigo de toda farsa social, foi provavelmente o primeiro a conceber esta grande verdade. Nora abandonou o marido, não porque – como queria a crítica estúpida – estaria cansada de suas responsabilidades ou sentia que precisava dos direitos da mulher, mas porque veio saber que, durante oito anos convivera com um estranho e agora pariu uma criança sua. Pode haver qualquer coisa de mais humilhante, de mais degradante do que a proximidade vitalícia entre dois estranhos? Não é preciso que a mulher conheça nada do homem, salvo sua renda. Com relação ao conhecimento da mulher – o que há para se conhecer sobre ela exceto se possui uma boa aparência? Não superamos ainda o mito teológico em que a mulher não tem alma, em que é meramente um apêndice do homem, feita da costela do cavalheiro só para sua conveniência, esse que de tão forte ficara com medo da própria sombra.

Porventura da má qualidade do material, donde a mulher tornou-se responsável por sua própria inferioridade. Em todo caso, mulher não tem alma – o que há para se conhecer sobre ela? Além do que, quanto menos alma tem uma mulher, maior seu tino para esposa, o mais prontamente irá absorver-se ao marido. É essa servil aquiescência à superioridade do homem que manteve a instituição do casamento aparentemente intacta por um tempo tão longo. Mas agora que a mulher está vindo a si, agora que ela está crescentemente consciente de si como um ser exterior à graça do mestre, a sagrada instituição do casamento está gradualmente sendo minada, e nenhum tanto de lamentação sentimental poderá evitar.

Quase desde a infância, é dito à garota comum que o casamento é seu objetivo final; portanto seu treino e educação têm de ser direcionados para esse fim. Feito a besta muda na engorda, ela é preparada para o abate. Mas para ela, estranho dizer, é permitido conhecer muito menos sobre sua função como esposa e mãe do que para o artesão comum sobre seu ofício. Para uma garota respeitável, é indecente e imundo conhecer qualquer coisa da relação marital. Oh, pela incoerência da respeitabilidade, requerer votos de casamento para tornar algo imundo no mais puro e sagrado arranjo que ninguém ousa questionar ou criticar. Mas esta é exatamente a atitude do entusiasta comum do casamento. A futura esposa e mãe é mantida na mais completa ignorância em torno de sua única inclinação no campo competitivo — o sexo. E assim ela adentra com um homem numa relação vitalícia só para encontrar-se chocada, repelida e ultrajada além da medida pelo mais natural e saudável instinto, o sexo. É seguro dizer que uma grande percentagem da infelicidade, miséria, aflição e sofrimento físico do matrimônio se devem à ignorância criminosa em matéria de sexo que é exortada como uma grande virtude. Tampouco é de todo um exagero quando digo que devido a este fato deplorável, mais de um lar foi desfeito.

Se, entretanto, a mulher for livre e grande o bastante para aprender o mistério do sexo sem a sanção do Estado ou da Igreja, permanecerá condenada como completamente imprópria para ser esposa de um “bom” homem, sua bondade consistindo de um cérebro vazio e um bolso cheio de dinheiro. Pode haver qualquer coisa mais ultrajante do que a idéia de uma mulher saudável, em plena idade, cheia de paixão e vida, ter de negar a demanda da natureza, ter de reprimir seu desejo mais intenso, minar a sua saúde e quebrantar seu espírito, ter de aturdir sua visão e abster-se da profundidade e da glória da experiência do sexo, até que um homem “bom” chegue para tomá-la como esposa? Isto é precisamente o que o casamento significa. Como poderia tal arranjo terminar exceto em fracasso? Esse é um fator, embora não menos importante, que diferencia o casamento do amor.

A nossa era é prática. O tempo em que Romeu e Julieta arriscaram-se à fúria dos pais por amor, em que Gretchen expõs-se ao falatório dos vizinhos por amor, já era. Se, em raras ocasiões, pessoas jovens se permitem à luxúria do romance, em seguida os mais velhos cuidam para que, após pregados e martelados, se tornem “sensatos”.

A lição moral instilada na garota não é a de se o homem arrebatou o seu amor, mas: o “Quanto?”. O único Deus importante da vida prática americana: o homem consegue ganhar a vida? Consegue sustentar uma esposa? Esta é a única coisa que justifica o casamento. Gradualmente isto de todo satura o pensamento da garota; seus sonhos já não são de luares e beijos, risos e lágrimas; agora sonha em ir às compras e às boas pechinchas. Tal sordidez e pobreza da alma são elementos inerentes à instituição do casamento. O Estado e a Igreja aprovam esse ideal e não outro, simplesmente porque esse é o ideal que necessita que o Estado e a Igreja controle homens e mulheres.

Indubitavelmente há as pessoas que continuam considerando o amor superior a dólares e centavos. E isto é particularmente verdade para a classe daqueles cuja necessidade econômica forçou a que se auto-sustentassem. A tremenda mudança na posição da mulher operada por este poderoso fator é, de fato, fenomenal quando refletimos que há só um curto período desde o ingresso da mulher na arena industrial. Seis milhões de mulheres trabalhadoras assalariadas; seis milhões de mulheres com direitos iguais aos homens de serem exploradas, roubadas, ir à greve; ai, mesmo até de passar fome. Algo mais, my lord? Sim, seis milhões de trabalhadoras em todas as ocupações, desde o mais elevado trabalho intelectual até as minas e ferrovias, mesmo até detetives e policiais. Com certeza a emancipação está completa.

Apesar disso tudo, só um número muito pequeno do vasto exército das mulheres trabalhadoras enxerga o seu trabalho como situação permanente, na mesma luz que um homem o faz. Não importa quão decrépito seja este último, ele foi ensinado a ser independente, a se auto-sustentar. Oh, eu sei que ninguém é verdadeiramente independente em nossa moenda econômica; e ainda o espécime mais miserável de homem odeia ser um parasita; ou, em todo caso, pelo menos ser conhecido como tal.

A mulher considera transitória sua posição como trabalhadora, a ser deixada de lado pelo primeiro pretendente. É este o porque de ser infinitamente mais difícil organizar mulheres do que homens. “Porque devo me filiar a um sindicato? Vou me casar, ter um lar”. Ela desde a infância não foi ensinada a enxergar isso como sua convocação última? Ela aprende cedo o bastante que, apesar de não tão grande como a prisão de uma fábrica, o lar tem portões e grades ainda mais sólidas. Possui um guardião tão fiel que nada lhe pode escapar. A parte mais trágica, entretanto, é que o lar não a liberta da escravidão assalariada; apenas aumenta seus afazeres.

De acordo com as mais recentes estatísticas submetidas diante de um Comitê “em torno do trabalho, salários e congestão da população”, apenas em Nova York, dez por cento das trabalhadoras assalariadas são casadas, ainda que continuem no trabalho mais mal pago do mundo. Some a esta visão horrível o peso do serviço doméstico e o que resta da proteção e glória do lar? Como matéria de fato, até a garota classe-média não pode falar sobre um lar seu no casamento, desde que é o homem que cria sua esfera. Não é importante se o marido é um bruto ou um doce. O que desejo provar é que o casamento só garante um lar à mulher pela graça do marido. Ela gira em torno do lar dele, ano após ano, até que sua visão de vida e de relações humanas se torne tão rasa, estreita, e tediosa, como seu entorno. Pouco admira se ela vir a ser resmungona, trivial, arengueira, faladeira, insuportável, e expulsando assim o homem da casa. Se ela quisesse, não poderia ir; não há lugar para onde ir. Além do que, um curto período de vida conjugal, de completa rendição de todas as faculdades, incapacita absolutamente a mulher comum para o mundo exterior. Ela se torna indiferente à aparência, desajeitada em seus movimentos, dependente em suas decisões, covarde em seu julgamento, um fardo e um aborrecimento, cuja maioria dos homens cresce para odiar e desprezar. Atmosfera maravilhosamente inspiradora para o desenrolar da vida, não?

Mas e a criança, como será protegida, senão pelo casamento? Depois de tudo, não é esta a consideração mais importante a se fazer? A farsa, a hipocrisia! Casamento protegendo a criança, mas centenas de crianças abandonadas e sem lar. Casamento protegendo a criança, mas orfanatos e reformatórios lotados, a Sociedade pela Prevenção de Crueldade a Criança se mantendo ocupada resgatando as pequenas vítimas daqueles pais “amorosos”, para colocá-las sob cuidados mais amorosos ainda, da Gerry Society2. Oh, mas que pilhéria!

O casamento poderá levar o cavalo até a água, mas já pôde obrigá-lo a beber? A lei colocará o pai na detenção, irá vesti-lo em uniforme de presidiário; mas alguma vez já matou a fome das crianças? Se o pai não tem emprego, ou se esconde sua identidade, que faz então o casamento? Invoca a lei para levar o homem à “justiça”, colocá-lo em segurança atrás de portões fechados; seu trabalho, entretanto, não vai para criança, mas para o Estado. A criança só recebe uma memória enferrujada das listras do pai.

Com relação à proteção da mulher — aí reside a maldição do casamento. Ele não as protege verdadeiramente, e a idéia mesma é tão revoltante como um ultraje e um insulto à vida, tão degradante à dignidade humana, que condena para sempre esta instituição parasitária.

Feito aquele outro arranjo paternal — o capitalismo. Rouba do homem seus direitos, aturde o seu crescimento, envenena o seu corpo, o mantém na ignorância, na pobreza, na dependência, daí institui caridades que medram sobre os últimos vestígios do auto-respeito humano.

A instituição do casamento faz da mulher uma parasita, uma dependente absoluta. Incapacita-a para a luta da vida, aniquila sua consciência social, paralisa sua imaginação, daí impõe sua graciosa proteção que na realidade é um ardil, travestido a caráter humano.

Se a maternidade é a mais elevada realização da natureza da mulher, que outra proteção poderia requerer, salvo amor e liberdade? Casamento só contamina, ultraja, e corrompe essa realização. Não diz à mulher: darás à luz vida somente se me seguires? Não a degrada e a envergonha quando ela se recusa a vender seu direito à maternidade vendendo a si mesma? O casamento não é somente uma sanção para a maternidade, mesmo quando concebida no ódio, na compulsão? Mas quando a maternidade é de livre escolha, do amor, do êxtase, da paixão desafiante, ele não coloca uma coroa de espinhos numa cabeça inocente e crava em letras de sangue o hediondo epíteto de Bastardo? Contivesse o casamento todas as virtudes alegadas, seus crimes contra a maternidade bastariam para excluí-lo para sempre do reino do amor.

Amor, o mais forte e mais profundo elemento de toda a vida, o anunciador da esperança, da alegria, do êxtase; amor, o desafiador de todas as leis, de todas as convenções; amor, o libérrimo, poderosíssimo modelador do destino humano; como pode uma força que a tudo compele ser sinônimo daquela pobre erva daninha gerada pelo Estado e a Igreja, o casamento?

Amor livre? Como se o amor fosse outra coisa que não livre! O homem comprou cérebros, mas todos os milhões no mundo falharam em comprar o amor. O homem subjugou os corpos, mas todo o poder na terra foi incapaz de subjugar o amor. O homem conquistou nações inteiras, mas todos os seus exércitos não puderam conquistar o amor. O homem acorrentou e agrilhoou o espírito, mas tem sido absolutamente indefeso diante do amor. Do alto de um trono, com todo esplendor e pompa que o ouro pode comandar, os homens são ainda pobres e desolados se o amor os perpassa. Mas quando fica, o casebre mais pobre irradia calor, cor e vida. E assim, o amor possui o poder mágico para fazer de um mendigo um rei. Sim, o amor é livre; não pode habitar outra atmosfera. Em liberdade se dá sem reservas, abundantemente, completamente. Todas as leis nos estatutos, todos os tribunais do universo, não podem arrancá-lo do solo, uma vez que o amor tenha fincado raízes. Entretanto, se o solo é estéril, como o casamento poderia fazê-lo fruir? É feito a última luta desesperada da vida breve contra a morte.

O amor não precisa de proteção; já é sua própria proteção. Tão logo vidas sejam geradas pelo amor, nenhuma criança é desertada, passa fome ou vontade de afeição. Que isto é verdade, eu o sei. Conheço mulheres que se tornaram mães em liberdade dos homens que amaram. Poucas crianças na relação aproveitam o cuidado, a proteção, a devoção que a maternidade livre é capaz de conferir.

Os defensores da autoridade temem o advento de uma maternidade livre, receando que ela irá roubar-lhe as vítimas. Quem combateria nas guerras? Quem geraria riqueza? Quem faria o policial, o carcereiro, se a mulher se recusasse à reprodução indiscriminada de crianças? A raça, a raça! – grita o rei, o presidente, o capitalista, o padre. A raça deve ser preservada, embora a mulher degradada à mera máquina — a instituição do casamento é nossa única válvula de segurança contra o pernicioso despertar sexual da mulher. Mas em vão, estes frenéticos esforços para manter um estado de sujeição. Em vão, também os éditos da Igreja, o louco ataque dos governantes, em vão, até mesmo o braço da lei. A mulher já não quer mais tomar parte na produção de uma raça de seres humanos doentios, débeis, decrépitos, miseráveis, que não possuem nem a força nem a coragem moral para se libertar do jugo da pobreza e da escravidão. Ao invés, deseja poucas crianças, mas superiores, geradas e criadas em amor e através da livre escolha; não por compulsão, como impõe o casamento. Nossos falso-moralistas têm ainda de aprender o profundo senso de responsabilidade pela criança que o amor em liberdade despertou no seio da mulher. Melhor seria renunciar para sempre a glória da maternidade do que dar à luz uma vida numa atmosfera onde só se respira destruição e morte. E se ela vem a ser mãe, é para dar à criança o mais profundo e melhor que seu ser pode oferecer. Crescer com a criança é seu mote; e ela sabe que somente dessa maneira é que pode ajudar a construir a verdadeira masculinidade e feminilidade.

Ibsen deve ter vislumbrado uma mãe livre, quando, num golpe de mestre, retratou Ms. Alving3. Ela foi uma mãe ideal por superar o casamento e todos os seus horrores, por quebrar suas correntes, e libertar o espírito para voar, até que uma personalidade, regenerada e forte, lhe retornasse. Ai! Foi demasiado tarde para recuperar sua alegria de viver, seu Oswald; mas não demasiado tarde para compreender que o amor em liberdade é a única condição para uma vida bela. Aquelas que, feito Ms. Alving, que pagaram com sangue e lágrimas por seu despertar espiritual, repudiam o casamento como uma imposição, uma pilhéria baixa e sem graça. Elas sabem que só o amor é, quer dure um breve espaço de tempo ou pela eternidade, a única base criativa, inspiradora e elevada para uma nova raça e para um novo mundo.

Em nosso presente estado pigmeu, para a maioria das pessoas, o amor é, de fato, um estranho. Incompreendido e evitado, raramente finca raízes, e se o faz, tão logo seca e morre. Suas fibras delicadas não aturam o stress e a tensão do cotidiano maçante. Sua alma é complexa demais para ajustar-se à trama viscosa de nosso tecido social. Ele chora e geme e sofre com aqueles que precisam dele, mas faltam da capacidade de elevar-se ao cume do amor.

Algum dia, algum dia homens e mulheres se elevarão, alcançarão o pico da montanha, se encontrarão grandes e fortes e livres, prontos para receber, partilhar, e refestelar-se nos raios dourados do amor. Que fantasia, que imaginação, que gênio poético pode, mesmo que aproximadamente antever as potencialidades de tal força na vida de homens e mulheres. Se o mundo alguma vez dará à luz ao verdadeiro companheirismo e união, não será o casamento, mas o amor a concebê-lo.

Notas do Tradutor:

1. Henrik Ibsen (1828-1906), literato escandinavo conhecido por sua tendência anarquista-individualista. A autora faz uma análise mais demorada da obra de Ibsen em seu livro “The Social Significance of the Modern Drama”. N. do T.

2. Referência a New York Society for the Prevention of Cruelty to Children, reconhecida como a primeira instituição devotada à “proteção do menor” nos E.U.A., em atividade desde 1874. Gerry Society é um outro modo de referir-se à mesma instituição. N. do T.

3. Ms. Alving é personagem de Ibsen na obra “Ghost”, uma análise desta obra e desta personagem encontra-se em livro já mencionado. N. do T.

Texto original: GOLDMAN, Emma. “Marriage and love” in: Anarchism and Other Essays. New York: Dover Publications, 1969. p. 227.

Tradução: José Paulo Maldonado de Souza

jxpxster@gmail.com

A política sexual, o surgimento do Estado e a contrarrevolução (nota sobre a prostituição), por Silvia Federici

Albrecht Dürer, A queda do homem (1510) Esta cena impactante sobre a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Éden evoca a expulsão dos camponeses de seus campos comuns, que começava a ocorrer na Europa oriental exatamente ao mesmo tempo em que Dürer produzia este trabalho.

Fonte: Notícias y Anarquía
Tradução: José Roberto de Luna

Os seguintes fragmentos correspondem à parte final do capítulo 1, “O mundo inteiro precisa de uma sacudida”, do livro Calibã e a Bruxa de Silvia Federici. Recomendo que não se faça uma interpretação limitada do pensamento federiciano sobre a prostituição a partir destes fragmentos, pois ao longo do livro Silvia Federici continua abordando o tema da prostituição de diversas perspectivas. As ilustrações e legendas correspondem à edição original do Livro. Saudações. N&A.

A fins do século XV, se pôs em marcha uma contrarrevolução que agia em todos os níveis da vida social e política. Em primeiro lugar, as autoridades políticas realizaram importantes esforços para cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes por meio de uma maliciosa política sexual, que lhes deu acesso a sexo gratuito e transformou o antagonismo de classe em hostilidade contra as mulheres proletárias. Como demonstrou Jacques Rossiaud em Medieval Prostitution (1988) [A prostituição medieval], na França as autoridades municipais praticamente deixaram de considerar o estupro de mulheres proletárias como delito nos casos em que as vítimas foram mulheres de classe baixa. Na Veneza do século XIV, o estupro de mulheres proletárias solteiras poucas vezes tinha como consequência algo mais que um puxão de orelhas, inclusive no caso frequente de um ataque em grupo (Ruggiero, 1989: 94, 91-108). O mesmo acontecia na maioria das cidades francesas. Nelas, a violação em bando de mulheres proletárias se transformou numa prática comum, que os autores realizavam aberta e ruidosamente pela noite, em grupos de dois a quinze, entrando nas casas ou arrastando as vítimas pelas ruas sem a mínima tentativa de se esconder ou dissimular. Quem participava nestes “esportes” eram aprendizes ou empregados domésticos, jovens e filhos das famílias acomodadas sem um centavo no bolso, enquanto que as mulheres eram garotas pobres que trabalhavam como criadas ou lavadeiras, de quem se espalhava que eram “possuídas” por seus amos (Rossiaud, 1988:22). Quase todos os jovens participaram alguma vez destes ataques, que Rossiaud descreve como uma forma de protesto de classe, um meio para que homens proletários – forçados a adiar seu matrimônio durante muitos anos devido a suas condições econômicas – cobravam “o seu” e se vingavam dos ricos. Mas os resultados foram destrutivos para todos os trabalhadores, assim que o estupro de mulheres pobres com consentimento estatal debilitou a solidariedade de classe que se alcançara na luta anti-feudal. Como se esperava, as autoridades perceberam os distúrbios causados por semelhante política (as algazarras, a presença de bandos de jovens perambulando pelas ruas em busca de aventuras e perturbando a tranquilidade pública) como um pequeno preço a pagar em troca da diminuição das tensões sociais, já que estavam obcecados pelo medo das grandes insurreições urbanas e da crença de que se os pobres conseguissem se impor, empoderariam suas esposas e as colocariam em igualdade (ibidem: 13).

Para estas mulheres proletárias, tão arrogantemente sacrificadas por amos e servos, o preço a pagar foi incalculável. Uma vez estupradas, não lhes era fácil recuperar seu lugar na sociedade. Com sua reputação destruída, tinham que abandonar a cidade ou se dedicar à prostituição (ibidem/ Ruggiero, 1985: 99). Mas não eram as únicas que sofriam. A legalização do estupro criou um clima intensamente misógino que degradou todas as mulheres, qualquer que fosse sua classe.

Também insensibilizou a população ante à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período. As primeiras condenações por bruxaria tiveram lugar a fins do século XIV; pela primeira vez a Inquisição registrou a existência de uma heresia e uma seita de adoradores do demônio completamente feminina.

Bordel, de uma impressão alemã do século XV. Os bordéis eram vistos como um remédio contra a luta social, a heresia e a homossexualidade.

Outro aspecto da política sexual fragmentadora que príncipes e autoridades municipais executaram com o fim de dissolver o protesto dos trabalhadores foi a institucionalização da prostituição, implementada a partir do estabelecimento de bordéis municipais que logo proliferaram por toda Europa. Possibilitada pelo regime de salários elevados, a prostituição gerida pelo Estado foi vista como um remédio útil contra a turbulência da juventude proletária, que podia desfrutar em La Grand Maison – como era chamado o bordel estatal na França – de um privilégio previamente reservado a homens mais velhos (Rossiaud, 1988). O bordel municipal também era considerado como um remédio contra a homossexualidade (Otis, 1985), que em algumas cidades europeias (por exemplo, Pádua e Florência) se praticava ampla e publicamente, mas que depois da Peste Negra começou a ser temida como causa de despovoação. (34)

Assim, entre 1350 e 1450 em cada cidade e aldeia da Itália e da França se abriram bordéis, geridos publicamente e financiados através de impostos, em uma quantidade muito superior à alcançada no século XIX. Em 1453, só Amiens tinha 53 bordéis. Além disso, eliminaram-se todas as restrições e penalidades contra a prostituição. As prostitutas podiam agora abordar seus clientes em qualquer parte da cidade, inclusive defronte à igreja e durante a missa. Já não estavam atadas a nenhum código de vestimenta ou a usar marcas distintivas, pois a prostituição era oficialmente reconhecida como um serviço público (ibidem: 9-10).

Inclusive a própria Igreja chegou a ver a prostituição como uma atividade legítima. Cria-se que o bordel administrado pelo Estado provia um antídoto contra as práticas sexuais orgiásticas das seitas hereges e que era um remédio para a sodomia, assim como também um meio para proteger a vida familiar.

Torna-se difícil discernir, de forma retrospectiva, até que ponto essa “cartilha sexual” ajudou o Estado a disciplinar e dividir o proletariado medieval. O que é verdade é que este new deal foi parte de um processo mais amplo que, em resposta à intensificação do conflito social, conduziu à centralização do Estado como o único agente capaz de afrontar a generalização da luta e a preservação das relações de classe.

Neste processo, como se verá mais adiante, o Estado se converteu no gestor supremo das relações de classe e no supervisor da reprodução da força de trabalho – uma função que continua realizando até o dia de hoje.

Levando à frente esta função, os funcionários de muitos países criaram leis que estabeleciam limites ao custo do trabalho (fixando o salário máximo), proibiam a vadiagem (agora castigada duramente) (Geremek, 1985: 61 e sg.) e incentivavam os trabalhadores a se reproduzirem.

Em última instância, o crescente conflito de classes provocou uma nova aliança entre a burguesia e a nobreza, sem a qual as revoltas proletárias não teriam podido ser derrotadas. De fato, é difícil aceitar a afirmação que frequentemente fazem os historiadores de acordo com a qual estas lutas não tinham possibilidade de êxito devido à limitação de seu horizonte político e “à confusão de suas demandas”. Na verdade, os objetivos dos camponeses e artesãos eram absolutamente transparentes. Exigiam que “cada homem tivesse tanto como qualquer outro” (Perenne, 1937: 202) e, para conseguir este objetivo, uniam-se a todos aqueles “que não tivessem nada a perder”, agindo conjuntamente, em diferentes regiões, sem medo de se enfrentarem com os bem treinados exércitos da nobreza, e isto embora carecessem de técnicas militares.

Se foram derrotados, foi porque todas as forças do poder feudal – a nobreza, a Igreja e a burguesia -, apesar de suas divisões tradicionais, enfrentaram-nos de forma unificada por medo de uma rebelião proletária. Efetivamente, a imagem que chegou até nós de uma burguesia em guerra perene contra a nobreza e que levava em suas bandeiras a busca pela igualdade e pela democracia é uma distorção. Na Baixa Idade Média, onde quer que olhemos, de Toscana até Inglaterra e os Países Baixos, encontramos a burguesia já aliada com a nobreza na eliminação das classes baixas. (35) A burguesia reconheceu, tanto nos camponeses como nos costureiros e sapateiros democratas de suas cidades, um inimigo muito mais perigoso que a nobreza – um inimigo que inclusive fez que valesse a pena sacrificar sua apreciada autonomia política. Assim foi como a burguesia urbana, depois de dois séculos de lutas para conquistar a plena soberania dentro das muralhas de suas comunas, restituiu o poder da nobreza se subordinando voluntariamente ao reinado do Príncipe e dando assim o primeiro passo no caminho para o Estado Absoluto.

John Hus martirizado em Gottlieben sobre o Rin em 1413. Depois de sua morte, suas cinzas foram jogadas ao rio.

Alberto Durero, a queda do homem (1510)

Esta cena impactante sobre a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Éden evoca a expulsão dos camponeses de seus campos comuns, que começava a ocorrer na Europa oriental exatamente ao mesmo tempo em que Durero produzia este trabalho.

John Hus martirizado em Gottlieben sobre o Rin em 1413. Depois de sua morte, suas cinzas foram jogadas ao rio.

Notas

34- assim, a proliferação de bordéis públicos esteve acompanhada por uma campanha contra os homossexuais que se estendeu inclusive a Florência, onde a homossexualidade era uma parte importante do tecido social “que atraía homens de todas as idades, estados civis e níveis sociais”. A homossexualidade era tão popular em Florência que as prostitutas costumavam usar roupa masculina para atrair seus clientes. Os sinais de mudança vieram de duas iniciativas introduzidas pelas autoridades em 1403, quando a cidade proibiu os “sodomitas” de receberem cargos públicos e instituiu uma comissão de controle dedicada a extinguir a homossexualidade: a Oficina da Decência. Significativamente, o primeiro passo que deu a oficina foi preparar a abertura de um novo bordel público, de tal maneira que, em 1418, as autoridades ainda seguiam buscando meios para erradicar a sodomia “da cidade e do campo” (Rocke, 1997: 30-2, 35). Sobre a promoção da prostituição financiada publicamente como remédio contra a diminuição da população e a “sodomia” por parte do governo florentino, veja-se também Richard C. Trexler (1993:32):

Como outras cidades italianas do século XV, Florência cria que a prostituição patrocinada oficialmente combatia outros dois males incomparavelmente mais importantes do ponto de vista moral e social: a homossexualidade masculina – a cuja prática se atribuía o escurecimento da diferença entre os sexos e portanto de toda diferença e decoro – e a diminuição da população legítima como consequência de uma quantidade insuficiente de matrimônios.

Trexler aponta que é possível encontrar a mesma correlação entre a difusão da homossexualidade, a diminuição da população e os auspício estatal da prostituição em Lucca, Veneza e Sena entre os fins do século XIV e princípios do XV; aponta também que o crescimento em quantidade e poder social das prostitutas conduziu finalmente a uma reação violenta, de tal maneira que enquanto que: [A] começos do século XV pregadores e estadistas acreditaram profundamente (em Florência) que nenhuma cidade na que as mulheres e os homens parecessem iguais podia se sustentar por muito tempo […] um século mais tarde se perguntavam se uma cidade podia sobreviver quando as mulheres de classe alta não pudessem se distinguir das prostitutas de bordel (ibidem:65).

35- Em Toscana, aonde a democratização da vida política chegara mais longe do que em qualquer outra região europeia, na segunda metade do século XV se deu uma inversão desta tendência e uma restauração do poder da nobreza promovida pela burguesia mercantil com o fim de bloquear a ascensão das classes baixas. Nessa época se produziu uma fusão orgânica entre as famílias dos mercadores e as da nobreza, por meio de matrimônios e prerrogativas compartilhadas. Isto deu por terminada a mobilidade social, o logro mais importante da sociedade urbana e da vida comunal na Toscana medieval (Luzzati, 1981: 187, 206).

Silvia Federici

Fonte: Livro Calibã e a Bruxa (pág. 78-84).

E As Anarco-Feministas O Que São?

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Fonte: Nodo50, por Valéria Bolevari

Conhecemos a aparência de uma bota
vista de baixo,
conhecemos a filosofia das botas…

Logo invadiremos como ervas daninha
em todo lugar, mas devagar…
as plantas cativas farão revolta
conosco, os muros cairão.

Não existirão mais as botas
No entanto, comemos terra
e dormimos; estamos esperando
embaixo dos seus pés;

Quando dissermos: ataque!
você não ouvirá nada
no começo…

Peggy Kornegger

 

Quando se ouve a palavra anarco-feminismo, logo vem a impressão de mulheres que excluem os homens de suas vidas, que querem separar as pessoas pelo sexo, etc. Mas o que nem sempre se para prá pensar, é porque se tem essa impressão.

Continuam, até mesmo os anarquistas, a se espelharem nas imagens distorcidas que veiculadas pelos meios de comunicação da sociedade burguesa. Se assim fosse, acreditaríamos também que anarquia é bagunça, que Deus existe, que os anjos existem e tem asas…

É necessário, para se compreender realmente alguma coisa, que nos desvinculemos das respostas prontas já fornecidas pela imprensa burguesa, que a mente se abra para receber novas idéias e questioná-las.

Anarco-feminismo não é separatismo! Se você é homossexual e resolve se juntar a outros homossexuais para lutar por sua emancipação, você está sendo separatista? Você acredita que cada classe oprimida conquista sua liberdade através de seu próprio esforço e luta? Sim? Então, pára de reclamar! As mulheres estão se dando conta do quanto são oprimidas e exploradas dentro da sociedade patriarcal, de que nunca puderam ouvir sua própria voz e discutir sua opressão. O que acontece, hoje, no movimento libertário, é que nós, mulheres que estamos tomando consciência de nossa condição de proletária do proletário ou escrava do homem escravo, temos condições de levantar a cabeça e discutir com outras mulheres (que também são vítimas da mesma opressão) o que queremos fazer para lutar contra isso. E isso não são apenas os homens machistas, mas sim uma sociedade cristalizada no patriarcado, onde os valores estão montados em cima da exploração, da escravidão e do preconceito.

Precisamos de espaço para mostrar nossa cultura e desenvolver nossas potencialidades, que foram sufocadas no patriarcado. Tudo isso, só conseguiremos com muito trabalho conjunto e abertura, para que possamos mostrar o que queremos fazer e como fazer. Temos que desenvolver o nosso lado feminino real, e não o feminino imposto pela sociedade machista. Os nossos valores foram sufocados e, em lugar desses, vieram valores integrados, como a estética, a beleza, o comportamento, a maternidade obrigatória, etc., que não são naturais como parecem. Tais coisas, somente nós mesmas podemos avaliar, questionar e mudar, mais ninguém. Não se pode chegar para um negro e dizer-lhe o que fazer para lutar contra sua discriminação, se você nunca sofreu isso. Você pode ajudá-lo e apoiá-lo, mas se você nunca sofreu discriminação racial, nunca poderá saber o que ele sente, quanto mais decidir o que ele deve fazer. O mesmo ocorre com as mulheres.

Mudando nosso comportamento e nossa visão de mundo, estaremos muito mais abertas para relacionamentos realmente recíprocos, e não paternalistas. Teremos muito mais autonomia para batalhar em outros coletivos e tomar conta de nossas próprias vidas. Isso é fato!

Os grupos de mulheres têm essa função que, dentro do movimento anarquista, se torna imprescindível para quem almeja uma sociedade livre, humana e igualitária.

Aqueles que torcem o nariz ou fazem de tudo para atrapalhar a luta de um grupo específico, não compreendem que a base do anarquismo está no indivíduo, e que somente a partir do indivíduo é que se inicia uma revolução. Se cada classe oprimida se unisse e trabalhasse a sua questão, em vez de tentar ficar fazendo tudo ao mesmo tempo, nossa evolução/revolução seria muito mais concreta, com bases sólidas, pois cada grupo estaria desenvolvendo um trabalho contínuo, o que renderia frutos. Pense sobre isso.

Nós precisamos de espaço e vamos lutar por ele. Que alguns torçam o nariz, que outros falem mal por não entenderem, que façam abaixo assinados e panfletagens, o que quiserem, mas estamos aqui e pronto! Acreditamos no anarquismo, mas só acreditamos nele funcionando no dia-a-dia. Se nós mulheres criamos grupos específicos, é porque estes nasceram dá necessidade, e não por brincadeira.

Nossa luta não se restringe apenas ao feminismo, mas sim a tudo que engloba o anarquismo e, por isso, nossas atividades sempre são em conjunto com outros grupos anarquistas e anarco punks, os quais apoiamos e nos apoiam, sendo a luta e a caminhada lado a lado. Se a possibilidade das mulheres tomarem conta de sua própria luta o assusta, então apavore-se, pois nossa arte, nossa escrita, nossa poesia e nossa forma de lutar vão estar correndo livres velas ruas!


Valéria Bolevari
CAF/SP
C.Postal 117;
CEP: 07111-970;
Guarulhos

 

Libera #46, março de 1995

Anarquismo e Feminismo

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Fonte: Nodo50
As novas formas de “relações conjugais” e de “relações domésticas” sugerem um novo modelo de feminilidade: o da “mulher liberada”, segundo um tipo de liberação que convém a economia capitalista e as políticas dos Estados governantes.
O princípio básico desta feminilidade é a igualdade na diferença. De um lado, as mulheres adquiriram os mesmos direitos e deveres que os homens, no que diz, respeito ao matrimônio, a família ao trabalho e à vida política social. Do outro lado, as diferenças específicas homem – mulher devem e precisam ser preservadas.
Esta especificidade refere-se a toda uma série de características físicas, intelectuais e emocionais que são consideradas típicas da natureza feminina. No entanto, tal conceituação de feminilidade não mais eficiente para descrever a mulher no mundo atual Antes, impõe e estabelece um novo estereótipo normatizado e normalizado da mulher.
Os componentes clássicos da mulher submissa eram: heterossexualidade, passividade, narcisismo e sentimentalismo. Hoje, os componentes básicos da mulher liberada camuflam os anteriores e adaptam a mulher às características deste novo ser emergente: individualismo, autonomia, força, autocontrole, eficácia e racionalidade.
Não obstante as suas contradições, este modelo e mulher justifica psicologicamente e permite socialmente ao mesmo tempo a relação conjugal, a maternidade e, na esfera das relações econômicas, a divisão do trabalho com o homem.
No contexto político, a feminilidade é objeto de negociações de todo tipo entre os movimentos feministas e as instituições que produzem, difundem e inculcam ideologias nas sociedades modernas: o Estado, os meios de comunicação e o meio cultural.
O modelo da “mulher liberada” é, basicamente, o reflexo das relações de poder entre esses dois agentes: Os movimentos feministas e os Estados governantes. Este novo modelo de feminilidade não só torna possível formas “avançadas” de opressão sobre a “mulher liberada”, como também, constitui o fator – chave da reversibilidade do movimento de liberação feminina, enquanto movimento cooptado pelo Estado.
A história das mulheres é uma história de avanços e recuos. Em certos períodos históricos, as mulheres adquiriram direitos formais e informais que, em outros períodos, foram perdidos. Por outro lado, outros foram conquistados, de maneiras diversas e em contextos diversos, e assim por diante.
Toda mudança econômica, social e política relevante implica em conseqüências positivas ou negativas para as mulheres. Melhorias em sua condição são sempre fruto de uma mobilização ativa, inserida na contradição dessas mudanças.
A ideologia da feminilidade reflete a variação, no tempo, de uma essência mantida imutável: “o eterno feminino”. A eficácia do feminismo, a curto e a longo prazos, depende, em grande parte, da capacidade das mulher em impedir a formação e a institucionalizacão de novas variantes do “eterno feminino”, mesmo que venham apresentadas como parte integrante do processo de liberação da mulher.
O potencial de força das mulheres somente poderá ser mobilizado e usado em favor de sua verdadeira liberação, se o movimento feminista trilhar um caminho verdadeiramente revolucionário. Em outras palavras, se optar por uma mudança da ordem social e não na ordem social.
O anarquismo oferece instrumentos de organização e de luta revolucionária capazes de tornar realidade o potencial subversivo do feminismo.
Em sua origem, o feminismo representou um sério golpe nas estruturas de poder, em sua forma mais elementar e básica: o controle interpessoal, no jogo recíproco de força e consenso.
Mas a força do protesto feminista pode-se voltar contra as mulheres, se, em sua luta contra a dominação, decidirem aliar-se às instituições detentoras de poder: os partidos políticos e os aparelhos de Estado.
O Estado tornou-se (ou foi convertido em) interlocutor privilegiado do movimento feminista moderno, desde seu surgimento, e de forma cada vez mais íntima. Em seu diálogo com o Estado, o movimento das mulheres, ao formular suas reivindicações principais, terminou por assimilar-lhe a linguagem.
Dessa forma, adquiriram elas direitos que o Estado pode garantir, reformas que o Estado pode realizar e recursos que o Estado pode distribuir.
Ainda o Estado apresenta-se como agente garantidor de mudanças em esferas privadas que ele (Estado) não pode realizar diretamente, coma no caso de relações sexuais e afetivas homem – mulher.
Da mesma maneira que a movimento operário, especialmente em suas formas sindicais institucionalizadas, o movimento feminista é, a todo momento, levado a negociar com o Estado. Por sen turno, o movimento feminista dispõe-se a esse tipo de negociação porque lhe parece que somente esta forma mostra-se capaz de impor respeito a maridos, patrões, pais, concidadãos, colégios, dirigentes de todo tipo, intelectuais, etc.
Essa interação movimento feminista – Estado é coerente com a lógica dos sistemas sociais vigentes. De fato, a função principal do Estado moderno é expressar e neutralizar as tensões e os conflitos causados por atritos entre sujeitos sociais, especialmente as relativos a classes sociais e sexos.
Todo movimento de protesto, a qualquer nível de luta, é necessariamente remetido ao Estado. E este dispõe dos recursos e mecanismos necessários para neutralizá-lo. Pode e tem reprimido protestos com o uso da violência, mas também tem e pode determinar realizar modificações funcionais do sistema, com vistas a reduzir as tensões, sem comprometer a sua autoridade e perpetuação.
A história do movimento operário, das lutas raciais, dos movimentos estudantis oferecem uma farta ilustração de como opera o mecanismo estatal de controle nas Sociedades modernas.
Sem dúvida, as mulheres obtiveram, sobretudo por parte doEstado, o reconhecimento de certos direitos e melhorias parciais de sua condição. Na maior parte dos casos, estas vitórias das mulheres tornaram-se, também, vitórias do Estado, na medida em que significaram, em certa medida, um aumento da capacidade do Estado de controlá-las e a seu movimento.
Alguns organismos instalados a nível governamental têm toda a aparência de mecanismos permanentes de controle sobre as mulheres e seu movimento, como, por exemplo, comitês, comissões, institutos montados para estudar a mulher, formular soluções para seus problemas e, até, para montar e implantar projetos feministas.
Estes organismos e instituições multiplicam-se e proliferam em sociedades nas quais a movimento feminista tem provocado fortes impactos e possui articulações regionais e internacionais.
A despeito dessa interação, as relações mulheres – Estado estão longe de ser harmoniosas. Isso porque a Estado não resolveu – e nem pode resolver – as contradições que alimentam a revolta e a resistência das mulheres. Se, por um lado, oferece-se como um interlocutor e lhe fornece canais legais de reivindicações, por outros neutraliza seu potencial revolucionário e corrói seu potencial de libertação.
0 movimento feminista proclama, como principio, que o privado é político. Séculos de opressão demonstram que a afirmação é verdadeira sob todos as seus aspectos.
É chegado o momento, no entanto, de uma predominâcia da esfera privada sobre a pública. A primeira é vida e desejo. A segunda é ordem e imposição. Imposição que sempre vem sob a camuflagem de ajudar o desejo, desejo que é sempre posto a serviço da ordem. Porque se trata, aqui, daquele desejo que a ordem programou e daquela imposição que o desejo previu e a ela se sujeitou.
Para subverter este sistema, é necessário superar a linha imaginária que se construiu entre esfera pública e esfera privada. São duas faces da mesma moeda: a Estado – família e a família – Estado.
É necessário liberar a consciência para o fato de que, neste âmbito de solidão e luta, a moeda corrente é o controle.
Além de outras formas que devem ser liberadas, está aquela a que me referi no inicio – a feminilidade – e tal só pode ser feito se entendermos que é o poder que a produz e que são as mulheres as suas prisioneiras.
Nicole Laurin-Frenette
Professora de Sociologia na Universidade de Montreal
Membro do Instituto Anarchos,
Montreal Canadá,
in “Volontà”, no. 4, 1982.
revista anarquista trimestral
editada na Itália
Revista Utopia #1, primavera de 1988

Um pouco da história do feminismo libertário…

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Fonte: Gritos Libertários

Muitas das anarquistas não se consideravam feministas por acreditarem que esse termo designava as mulheres que lutavam pelo voto. Porém elas são consideradas feministas por suas preocupações com a emancipação das mulheres, que tem profunda relação com as ideias libertárias do anarquismo, já que este busca a emancipação humana. Desse modo o anarquismo engloba o feminismo, porém os termos “anarcofeminismo” ou “feminismo libertário” passaram a ser usados para dar mais destaque ao campo de atuação que se trata.

Feminismo libertário no Brasil:

O feminismo anarquista tem destaque no Brasil do começo do século XX. Nessa época muitas mulheres atuaram politicamente, em greves pelo aumento de salário, redução da jornada de trabalho, respeito no trato a elas e às crianças e em solidariedade a seus companheiros. Vale lembrar que nessa época, diferentemente de hoje em dia, trabalhadores de diferentes categorias frequentemente entravam em greve em solidariedade a uma outra categoria. Assim, por exemplo, quando os ferroviários paravam, os padeiros, sapateiros e outros também paravam. Foi por esse tipo de organização que a Greve Geral de 1917 foi possível no Brasil.

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Maria Lacerda de Moura

Uma das militantes brasileiras de mais destaque da época foi Maria Lacerda de Moura. Ela foi professora, conferencista, jornalista, poetisa e escreveu vários livros que tinham como objetivo passar ideias sobre emancipação humana, questionando o papel da escola e da educação, da religião, do Estado, o fascismo, o militarismo e falando sobre controle da natalidade. Ajudou a fundar a “Federação Internacional Feminina” e o “Comitê Feminino Contra a Guerra”, nos anos 20, que tinham como objetivo articular as mulheres de São Paulo e Santos para além da luta pelo voto, articulada por outras feministas da época.

No caso da Federação Internacional Feminina alguns pontos de discussão eram: “assistência, sistemas coercitivos, trabalhos domésticos e trabalho industrial, seduções, jogo, infância delinquente, investigação à paternidade, júri, direitos civis e políticos da mulher, tráfico de mulheres, coeducação, casamento, (…) divórcio, salário, os crimes da maternidade fora da lei, eugenia, proteção aos animais etc”.

As feministas liberais da época criticavam as anarquistas por considerá-las muito radicais, e as últimas criticavam as primeiras alegando que sua luta era pouco transformadora, limitada à esfera pública burguesa e preservadora das relações hierarquizadas na esfera privada. Um exemplo disso é essa crítica feita por Isabel Cerruti, no jornal “A Plebe” em 1920:

“A Revista Feminina em seu programa propõe-se a propugnar pela emancipação da mulher conseguindo para ela o direito de empenhar-se em lutas eleitorais. (…) Como se a emancipação da mulher se resumisse em tão pouco…

O programa anarquista é mais vasto neste terreno; é vastíssimo: quer fazer compreender à mulher na sua inteira concepção, o papel grandioso que ela deve desempenhar, como factora histórica, para a sua inteira integralização na vida social (…).”

Outras militantes conhecidas são Maria Valverde e Sônia Oitica (filha do militante anarquista José Oiticica), que por volta dos anos 30 e 40 atuaram no teatro libertário e eram ligadas aos Centros de Cultura Social, de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde se discutia temas como moral sexual e sexualidade.

Uma crítica feita pelas feministas anarquistas é que os partidos políticos de esquerda da época diluíam a causa das mulheres na causa do partido, pois estes alegavam que elas deveriam se empenhar na luta pela revolução através do partido, relegando a causa feminista à questão da opressão de classe e criticando os espaços específicos das mulheres, ou seja, não reconhecendo uma opressão específica às mulheres, mas alegando que todos os que não são os detentores dos meios de produção são oprimidos pelo capitalismo (como se isso se desse da mesma forma para todos). Assim, para as anarquistas, a divisão das mulheres em partidos enfraqueceu a luta pela emancipação da mulher.

Feminismo libertário em outros países:

Emma Goldman

Emma Goldman

Nos Estados Unidos a figura de Emma Goldman se destaca. A militante nasceu em 1869 na Lituânia, mas se mudou para os EUA em 1885 (com 15 anos), fugindo de um casamento arranjado por seu pai. Lá teve contato com as greves pela jornada de 8 horas de trabalho, o que resultou nas mortes de muitos manifestantes – situação que ficou conhecida como caso dos “Mártires de Chicago”.

Sua militância tratava de temas como o controle de natalidade e o amor livre, militarismo e patriotismo como ameaças à liberdade. Apesar do início da sua militância ter tido mais contato com a ideologia de Bakunin, que utilizava a violência como meio para a revolução, no decorrer de sua vida e principalmente após se encontrar com Kropotkin Emma passou a ter ideias humanitaristas. Ela escrevia a revista “Mother Earth” e teve inúmeros relacionamentos, muitos deles com homens bem mais jovens, causando escândalo para a sociedade da época.

Em 1917 em uma manifestação contra o alistamento para a Primeira Guerra Mundial Emma foi presa acusada de conspiração. Ela foi deportada para a Rússia e conheceu Lênin, que havia executado e encarcerado anarquistas e outros dissidentes, além deste último alegar que a liberdade de expressão era um conceito burguês (liberdade esta tão valorizada por Goldman). Isso fez com que a anarquista escrevesse o livro “Minha desilusão com a Rússia”. A partir de então ela mora em vários países diferentes, morrendo no Canadá em 1940. Suas cinzas foram para o Waldheim Cemetery, ao lado dos mártires de Chicago.

Militante das “Mujeres Libres”

Militante das “Mujeres Libres”

No caso da Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), havia a milícia das Mujeres Libres, que atuavam ao lado da CNT-FAI (Confereración Nacional del Trabajo e Federación Anarquista Ibérica). O grupo foi fundado por Apolonia de Castro, Felisa de Castro, Maruja Boadas, María Cerdán, Nicolasa Gutiérrez, Soledad Estorach, Elodia Pou, Conchita Liaño, dentre outras. Durante a guerra o aborto foi legalizado na Catalunha, o grupo atuou pela educação das mulheres por uma maternidade consciente e propunha que elas fossem agentes da revolução para a construção de uma nova sociedade.

Havia a revista “Mujeres Libres”, editada e escrita exclusivamente por mulheres e que se dirigia a mulheres da classe trabalhadora com a intenção de atraí-las para a causa libertária. Falavam de causas como o anticlericalismo (alegando que a religião usava as mulheres como guardiãs da ordem social e moral tradicional), prostituição, o direito ao prazer sexual e o amor livre, alegando que a monogamia se relacionava estreitamente ao capitalismo e à propriedade privada.

O grupo propunha uma solução coletiva para a emancipação feminina, conscientização e educação. Assim, na Espanha predominou um feminismo que não buscava direitos políticos, mas que fazia reivindicações trabalhistas e educativas, vendo essa luta com uma perspectiva de classe e relacionada ao anarcossindicalismo. A cultura e a educação eram vistas como fundamentais à emancipação humana.

Referências:

Socialismo, anarquismo e feminismo – Carol Ehrlich (1977)

http://colunas.gospelmais.com.br/files/2013/01/feminismo.jpg

 

Fonte: Amor y Anarquia em 31 de maio de 2013, por Carol Ehrlich (1977)

“Você é uma mulher na sociedade capitalista. Você fica puta: com emprego, com as contas, com seu marido (ou ex), com a escola das crianças, com as tarefas domésticas, ser bonita, não ser bonita, ser vista, não ser vista (e no mesmo sentido não ser escutada), etc. Se você pensa em todas essas coisas, como elas se encaixam e o que tem que ser mudado, e ai você procura por algumas palavras para abarcar todos esses pensamentos juntos de forma abreviada, você quase tem que chegar em ‘feminismo socialista’”[1]

Tudo indica que um grupo de mulheres brilhantes teve de “inventar” o feminismo socialista como uma solução ao problema persistente do sexismo. “Socialismo” (em sua surpreendente variedade de formas) é popular para muitas pessoas hoje em dia, porque tem muito a oferecer: preocupação com xs trabalhadorxs, um corpo de teoria revolucionário para o qual as pessoas podem recorrer (tendo ou não lido), e alguns exemplos reais de países industrializados estruturados de forma diferente que os Estados Unidos e seus satélites.

Para muitas feministas, o socialismo é atrativo porque promete acabar com a desigualdade econômica para as mulheres trabalhadoras. Além disso, para aquelas mulheres que acreditam que uma análise exclusivamente feminista é muito estreita para abarcar todas as desigualdades existentes, o socialismo promete abrangê-la, enquanto se resguarda contra a diluição de sua perspectiva radical.

Por boas razões, então, as mulheres estão considerando se o “socialismo feminista” faz ou não sentido como uma teoria política. Para as feministas socialistas realmente parece ser ao mesmo tempo sensível e radical – pelo menos, a maioria delas evidentemente sente uma forte antipatia por algumas armadilhas reformistas e solipsísticas nas quais um crescente número de mulheres parece estar caindo.

Para muitas do tipo mais não-romanticas de nós, a Sociedade Amazônica, com seus exércitos de fortes matriarcas cavalgando ao por-do-sol, é irreal, mas inofensivo. Uma questão mais séria é a atual obsessão com a Grande Deusa e diversos outros objetos de culto, bruxaria, magia e fenômenos psíquicos. Como uma feminista preocupada em transformar a estrutura da sociedade, eu acho isso qualquer coisa menos inofensivo.

Primeiro ponto: Mais de 1400 mulheres foram para Boston em abril de 1976 para assistir a uma conferência de espiritualidade feminina que lida em grande parte com as coisas apontadas acima. Não poderia a energia investida em encantamentos, difundir as últimas idéias pagãs e ir a workshops de dança do ventre e rituais menstruais ter sido utilizada para alguns usos melhores e mais feministas?

Segundo ponto: De acordo com reportagens em um jornal feminista, um grupo de bruxas tentou levitar Susan Saxe para fora da cadeia. Se elas honestamente acharam que isso iria libertar Saxe, então elas estavam totalmente fora de sintonia com as realidades da opressão patriarcal. Se isso pretendia ser uma piadinha alegre, então por que ninguém está rindo?

O reformismo é um inimigo muito maior para os interesses das mulheres do que jogos psíquicos bizarros. Sei que “reformismo” é um nome que pode ser usado de modos que não são nem honestos nem muito úteis – principalmente para demonstrar a pureza ideológica de alguém, ou para dizer que trabalhos políticos concretos de qualquer tipo não valem a pena ser feitos porque são potencialmente cooptáveis. Em resposta, algumas feministas argumentaram persuasivamente que os tipos certos de reformas podem construir um movimento radical[2].

Da mesma forma, existem estratégias reformistas que gastam as energias das mulheres, que aumentam as expectativas de uma grande mudança e que são ilusórias e alienantes porque elas não podem atingir os fins. O melhor (ou pior) exemplo é a política eleitoral. Algumas socialistas (seduzidas pela noção de gradualismo) caem nessa. Anarquistas conhecem melhor. Você não pode se libertar através de meios não-libertadores; você não pode eleger um novo conjunto de políticos (não importa o quão sinceros sejam) para operar nas mesmas velhas instituições corruptas – que por sua vez governam você. Quando a Majority Caucus da National Organisation of Women (NOW) – a corrente radical dessa organização – pede para que as mulheres a sigam “fora do tradicional [mainstream], para a revolução”  através de meios que incluem a política eleitoral, elas vão todas se afundar na profundezas das coisas como elas são.

A política eleitoral é um tipo de armadilha óbvia e rotineira. Até muitas não-radicais aprenderam a evitá-la. Um problema mais sutil é o capitalismo disfarçado de empoderamento econômico feminista. Considere, por exemplo, o Feminist Economic Network. O nome pode talvez enganar você. Ostensivamente era uma rede de negócios alternativos configurada para destruir o capitalismo de dentro para fora por meio da criação de auto-suficiência econômica para mulheres. É uma idéia atraente. Contudo, o primeiro grande projeto do FEN começou em Detroit, abril de 1976. Por uma taxa anual de filiação de 1oo dólares, mulheres privilegiadas poderiam nadar em uma piscina particular, beber num bar privado e conseguir descontos em um punhado de boutiques. O FEN pagava a suas empregadas $2.50 por hora para trabalhar lá. Sua diretora, Laura Brown, anunciou essa empreitada como “o começo da revolução econômica feminista”[3].

Quando dois dos mesmos velhos jogos – política eleitoral e capitalismo – são rotulados de “revolução”, a palavra foi virada de ponta-cabeça. Não é surpresa que uma marca socialista de feminismo parece ser a fonte de sanidade revolucionária para muitas mulheres que não querem ser bruxas, guerreiras primitivas, senadoras ou pequenas empreendedoras, mas sim que querem acabar com o sexismo enquanto criam uma sociedade transformada. O feminismo anarquista pode dar um quadro teórico significativo, mas muitas feministas nunca ouviram falar disso, ou então o descartam como as senhoritas ajudantes de homens que lançam bombas.

O feminismo socialista oferece uma série de “lares” políticos. De um lado, existem os esquálidos, limitados quartéis dos setores da Velha Esquerda, como o Partido Comunista Revolucionário (formalmente a União Revolucionária), a Liga de Outubro e o Partido Internacional dos Trabalhadores. Pouquíssimas mulheres consideram eles habitáveis. Por outro lado, um bom número de mulheres está se movendo para os dispersos e ecléticos estabelecimentos construídos por grupos de esquerda mais novos, como o New American Movement, ou por diversas “união de mulheres” autônomas.

As novas feministas socialistas tem feito uma campanha enérgica e sensata para recrutar mulheres sem alinhamento. Contrariamente, os grupos da Velha Esquerda mais rígidos extensivamente rejeitaram a idéia em si de que lésbicas, separatistas e diversas outras desajustadas e inadequadas feministas poderiam trabalhar com os nobres herdeiros de Marx, Trotsky (apesar de que trostskistas são imprevisíveis), Stalin e Mao. Muitos rejeitaram a idéia de um movimento de mulheres autônomas que se importa só com questões das mulheres. Para eles,  está cheio de mulheres burguesas (o mais condenável de todos os jargões marxistas!) focadas em “fazer suas próprias coisas” e isso “divide a classe trabalhadora”, o que é uma suposição curiosa de que os trabalhadores são mais burros do que todo mundo. Alguns tem uma antipatia histérica por lésbicas: os grupos mais notórios são o Liga de Outubro e o Partido Comunista Revolucionário, mas eles não estão sozinhos. Nessa prática política, como em muitas outras,  a linha anti-lésbica segue a dos países comunistas. O PCR, por exemplo, lançou uma nota de posicionamento no começo dos anos 70 (de volta aos dias de pré-partido, quando era o pleno e velho Revolutionary Union), em que anunciava que homossexuais estão presos no lodo e na lama da decadência burguesa” e que a libertação gay é ” anti classe trabalhadora e contra-revolucionária”. Todos os grupos da velha esquerda são desconfortáveis com a idéia de que qualquer mulher fora do “proletariado” seja oprimida. A classe trabalhadora, é claro, é um conceito maravilhosamente flexível: nos atuais debates de esquerda, abrange desde trabalhadores da ponta da produção (ponto final) até um enorme grupo que inclui cada pessoa que vende seu trabalho por salário, ou que depende de alguém que o faz. Isso é praticamente todxs nós. (Então, Papa Kari, se 90% das pessoas dos Estados Unidos são a vanguarda, por que ainda não fizemos a revolução?)

As feministas socialistas mais novas têm tentado de todas as maneiras dos modos inventivos de manter uma coesão com o pensamento marxista-leninista, atualizá-lo e trazê-lo para o feminismo radical contemporâneo. Os resultados são as vezes peculiares. Em julho de 1975, as mulheres do New American Movement e um número de grupos autônomos realizaram a primeira conferência nacional sobre feminismo socialista. Não foi especialmente divulgado em massa previamente e todo mundo pareceu surpreso que tantas mulheres (mais de 1600, mais as deixadas de fora) quisessem passar a semana do 4 de julho em Ohio.

Lendo as palestras dadas na conferência, assim como os extensos comentários escritos por mulheres que compareceram[4], não é claro o que as organizadoras da conferência pensaram o que estavam oferecendo sob o nome de “feminismo socialista”. Os Princípios da União que foram elaborados antes da conferência incluía dois itens que foram sempre associados ao feminismo radical e que na verdade são tipicamente pensados como antíteses a uma perspectiva socialista. O primeiro princípio colocava: “Nós reconhecemos a necessidade de e apoio ao movimento de mulheres autônomas através do processo revolucionário”. O segundo dizia: “Nós concordamos que toda opressão, seja baseada na raça, classe, sexo ou lesbianismo está interrelacionada e que as lutas por libertação da opressão devem ser simultâneas e cooperativas”. O terceiro simplesmente comentou que o “feminismo socialista é uma estratégia para a revolução” e o quarto e último princípio convidava a manter a discussão “no espírito da luta e união”.

Isso é, claro, uma incrível miscelânea de princípios saborosos – um menu desenhado para atrair praticamente todo mundo. Mas quando feministas “socialistas” servem o movimento de mulheres independentes como o prato principal, e quando dizem que a opressão de classe é só mais uma de muitas opressões, não mais importante do que qualquer outra, então (como seus críticos marxistas dizem) não é mais socialismo.

No entanto, feministas socialistas não seguem as implicações do feminismo radical o tempo todo. Se o fizessem, aceitariam outro princípio: que estruturas não-hierárquicas são essenciais para uma prática feminista. Isso, é claro, é demais para qualquer socialista. Mas o que significa é que o feminismo radical é muito mais compatível com um tipo de anarquismo do que com o socialismo. Esse tipo é o anarquismo social (também conhecido como anarquismo comunista), não as variedades individualistas ou anarco-capitalistas.

Isso não será novidade para feministas acostumadas com os princípios anarquistas – mas poucas feministas são. Isso é compreensível desde que o anarquismo tem se virado entre uma má publicidade e nenhuma. Se as feministas se familiarizassem com o anarquismo, não estariam olhando tanto para o socialismo como um meio de combater a opressão sexista. As feministas tem de ser céticas a qualquer teoria social que vem com um conjunto embutido de líderes e seguidores, não importa o quão “democrática” essa estrutura centralizada se supõe ser. Mulheres de todas as classes, raças e circunstancias de vida tem estado na posição de receptoras da dominação por tempo demais para querer trocar um grupo de mestres por outro. Nós sabemos quem tem poder e (com poucas exceções isoladas) não somos nós.

Várias feministas anarquistas contemporâneas apontaram para as conexões entre anarquismo social e feminismo radical. Lynne Farrow disse que “o feminismo pratica o que o anarquismo prega”. Peggy Kornegger acredita que as “feministas tem sido há anos anarquistas inconscientes tanto na teoria quanto na prática”. E Marian Leighton coloca que ” a distinção refinadora entre feminismo radical e anarco-feminismo é a basicamente aquela em que se dá um passo de desenvolvimento teórico auto-consciente”[5].

Nós construímos autonomia

O processo sempre crescente de síntese

Para toda criatura viva

Nós espalhamos

Espontaneidade e criação

Nós aprendemos os prazeres da igualdade

De relacionamentos

Sem domínio

Entre irmãs.

Nós destruímos a dominação

Em todas as suas formas.

Essa canção apareceu no jornal It Aint Me Babe[6] cujo título principal dizia “acabe com todas a hierarquias”. Não se classificava como um jornal anarquista (ou anarco-feminista), mas as conexões são impressionantes. Exemplificou muito do que a libertação da mulher se tratava nos primeiros anos de ressurgimento do movimento. E é esse espírito que vai ser perdido se o híbrido socialista feminista se enraizar; se as adorações à deusa ou a nação lésbica convencerem às mulheres a estabelecerem novas formas de dominação-submissão.

Feminismo Radical e Feminismo Anarquista

Todas as feministas radicais e todas as feministas anarquistas-sociais estão preocupadas com um conjunto de questões em comum: controle sobre o próprio corpo; alternativas à família mono-nuclear e à heterossexualidade; novos métodos de criação de crianças que libertem mães/pais e crianças; auto-determinação econômica; acabar com os estereótipos sexuais na educação, na mídia, no trabalho; a abolição de leis repressivas; um fim à autoridade , direito de propriedade e controle masculin0s sobre as mulheres; prover às mulheres meios de desenvolver habilidades e tomar atitudes positivas; um fim para os relacionamentos emocionais opressivos; e o que os Situacionistas chamaram de “a reinvenção da vida cotidiana”.

Existem, então, muitas questões em que as feministas radicais e as feministas anarquistas concordam. Mas as feministas anarquistas estão preocupadas com algo mais. Porque são anarquistas, elas trabalham para acabar com todas as relações de poder, todas as situações em que alguém pode oprimir outra pessoa. Diferente de algumas feministas radicais que não são anarquistas, elas não acreditam que poder nas mãos das mulheres poderia levar a uma sociedade não-coercitiva. E diferente de muitas feministas socialistas, elas não acreditam que nada bom possa sair de um movimento de massas com uma liderança de elite. Em resumo, nem um Estado dos trabalhadores, nem um matriarcado vai acabar com a opressão de qualquer um. O objetivo, então, não é “conquistar” o poder, como socialistas incitam, mas abolir o poder.

Contrariamente a crença popular, todxs anarquistas sociais são socialistas. Isso é, querem tirar a riqueza das mãos de poucos e redistribuí-la entre todos os membros da comunidade. E acreditam que as pessoas precisam  contribuir umas com as outras como uma comunidade, ao invés de viver como indivíduos isolados. Para anarquistas, no entanto, os problemas centrais são sempre poder e hierarquia social. Se um estado – mesmo um estado representando os trabalhadores – continua, vai reestabelecer formas de dominação, e algumas pessoas não vão mais ser livres. As pessoas não são livres só porque estão sobrevivendo, ou até economicamente confortáveis. Elas são livres somente quando elas tem poder sobre suas próprias vidas. Mulheres, muito mais do que muitos homens, tem muito pouco poder sobre suas próprias vidas. Obter essa autonomia e insistir para que todxs a tenham, é o objetivo principal das anarquistas feministas.

O poder à ninguém, e poder a todxs: para cada umx o poder sobre sua própria vida, e não outros.[7]

Na prática

Essa é a teoria. E quanto a prática? Novamente, o feminismo radical e o anarquista tem muito mais em comum do que com o socialista. Ambos trabalham para criar estruturas alternativas e ambos levam a política do pessoal muito a sério. Feministas socialista são menos inclinadas a pensar que isso é particularmente vital para a prática revolucionária.

Desenvolver formas alternativas de organização significa construir self-help [especializadas e organizadas por mulheres] clínicas, ao invés de lutar para colocar uma radical no quadro de diretores de um hospital; significa grupos de vídeo e jornais de mulheres, ao invés de televisões e jornais comerciais; viver em coletivos, ao invés de famílias nucleares isoladas; centros de crise de estupro; cooperativas de comida; creches controladas pelos pais; escolas livres; cooperativas de editoras; grupos de radio alternativos, e assim em diante.

Ainda, não faz nenhuma melhoria construir instituições alternativas se as estruturas imitam os modelos capitalistas e hierárquicos dos quais somos tão familiarizadxs. Muitas feministas radicais reconheceram isso cedo: é por isso que elas trabalharam para mudar a maneira como as mulheres percebiam o mundo e a si mesmas (através de um grupo de tomada de consciência), e porque elas trabalharam para mudar as formas de relacionamento no trabalho e interações interpessoais (através dos grupos pequenos, sem líderes onde as tarefas eram rotativas e habilidades e conhecimento divididos). Elas estavam tentando fazer isso em uma sociedade hierárquica que não nos dá modelos a não ser os da desigualdade. Certamente, um conhecimento sobre teoria anarquista e modelos de organização teria ajudado. Equipadas desse conhecimento, as feministas radicais talvez teriam evitado alguns dos erros que fizeram – e talvez estivessem melhor capacitadas para superar algumas das dificuldades elas encontraram ao tentar simultaneamente transformar a si mesmas e a sociedade.

Tome, por exemplo, o debate ainda corrente das “mulheres fortes” e a questão intimamente ligada da liderança. A posição das feministas radicais pode ser resumida dessa forma:

1- As mulheres tem sido minorizadas porque estão isoladas umas das outras e estão emparelhadas com homens em relações de dominação e submissão.

2- Os homens não vão libertar as mulheres; as mulheres devem libertar a si mesmas. Isso não pode acontecer se cada mulher tenta se libertar sozinha. Assim, as mulheres devem trabalhar juntas em um modelo de ajuda mútua.

3- “A irmandade é poderosa”, mas as mulheres não podem ser irmãs se recapitulam padrões masculinos de dominação e submissão.

4- Novas formas organizacionais devem ser desenvolvidas. A forma básica é o pequeno grupo sem liderança; os comportamentos mais importantes são o igualitarismo, apoio mútuo e o compartilhamento de habilidades e conhecimento.

Se muitas mulheres aceitam isso, muitas mais não. Algumas eram contra desde o começo; outras viram de primeira que isso era difícil de por em prática, e lamentavelmente concluíram que um idealismo tão bonito nunca funcionaria.

Suporte ideológico àquelxs que rejeitam os princípios apresentados pelas “anarquistas inconscientes” foi dado em dois documentos que circularam rapidamente entre jornais e organizações de libertação das mulheres. O primeiro foi o discurso feito por Anselma dell’Olio no segundo Congresso por União das Mulheres, que aconteceu em maio de 1970 em Nova Iorque. O discurso, intitulado Divisão e Auto-Destruição no Movimento das Mulheres: Uma Carta de Desligamento [Resignation, abandono], dava os motivos de Dell’Olio para sair do movimento. O segundo documento foi A Tirania da Falta de Estrutura de Joreen, que apareceu pela primeira vez em 1972 na Segunda Onda. Ambos levantaram questões sobre práticas organizacionais e pessoais que foram, e ainda são, tremendamente importantes para o movimento das mulheres.

“Eu venho anunciar minha derradeira participação no movimento das mulheres… Eu fui destruída… Eu aprendi há 3 anos e meio atrás que as mulheres sempre foram divididas umas com as outras, que eram auto-destrutivas e repletas de raiva impotente. Eu nunca sonhei que veria o dia em que essa raiva, mascarada de um radicalismo pseudo-igualitário sob a bandeira de “pro-mulher”, se tornaria fascismo anti-intelectual assustadoramente vicioso da esquerda, e usado dentro do movimento para derrubar irmãs apontadas com toda sutileza e justiça de uma corte do Ku Klux Klan. Estou me referindo, é claro, ao ataque pessoal, evidente e odioso, que mulheres do movimento, as quais penosamente conseguiram algum grau de realização, foram submetidas… Se você é… realizada é imediatamente rotulada de uma aventureira oportunista, uma cruel mercenária, tentando ganhar fama e fortuna por aí em cima dos cadáveres de irmãs altruístas que queimaram suas habilidades e sacrificaram suas ambições pela glória maior do Feminismo… se você teve a desgraça de ser sincera e clara, você é acusada de ser louca por poder, elitista, racista, e por fim o pior adjetivo: IDENTIFICADA COM A MASCULINIDADE”[9]

Quando Anselma Dell’Olio deu esse adeus raivoso ao movimento, fez duas coisas: para algumas mulheres, trouxe a questão de como as mulheres podem em relações de poder desiguais entre elas sem destruir uma a outra. Para outras, causou quase o oposto – deu justificativa fácil para todas as mulheres que têm dominado outras mulheres de uma forma não-irmã. Qualquer uma que fosse envolvida com a libertação das mulheres naquele tempo sabe que a declaração de Dell’Olio foi retorcida por algumas mulheres exatamente dessa maneira: Chame a si mesma de assertiva (enérgica/segura), ou forte, ou talentosa e você pode dar outro nome a uma boa porção de comportamentos feios, insensíveis e opressores. As mulheres que se apresentam como heroínas trágicas destruídas por suas “irmãs” invejosas ou disfarçadas (e, é claro, muito menos talentosas) podem contar com a resposta compreensiva de algumas mulheres.

Da mesma forma, as mulheres que estavam envolvidas com o movimento naquele tempo sabem que o tipo de coisa que Dell’Olio falou sobre realmente aconteceram, e elas não deviam ter acontecido. Um conhecimento de teoria anarquista não é o bastante, é claro, para prevenir ataques indiscriminados a mulheres. Mas na luta de aprender novas formas de se relacionar e trabalhar umas com as outras, tal conhecimento poderia – só poderia – ter prevenido alguns desses erros destrutivos.

Ironicamente esses erros foram motivados pela aversão do feminismo radical pelas formas convencionais de poder, e o as relações pessoais desumanas que resultam de um grupo de pessoas tendo poder sobre outras. Quando as feministas radicais e as feministas anarquistas falam de abolir o poder, elas querem dizer se livrar de todas as instituições, todas as formas de socialização, todas as maneiras em que as pessoas são coercitivas com outras – e se sujeitam a serem coagidas.

Um problema maior surgiu ao definir a natureza da coerção no movimento das mulheres. A hostilidade contra a mulher “forte” surgiu porque ela poderia, pelo menos potencialmente, ser coercitiva com mulheres que fossem menos articuladas, menos auto-confiantes, menos contundentes do que ela. A coerção costuma ser muito mais sutil do que a força física ou a sanção econômica. Uma pessoa pode ser coercitiva com outra sem tirar seu emprego, ou golpeá-la ou a atirando na cadeia.

As mulheres fortes começaram com uma vantagem tremenda. Muitas vezes, elas sabiam mais. Certamente elas tinham há muito tempo superado a socialização traumatizante que enfatizou o comportamento passivo, tímido, dócil, conformista – o comportamento que ensinou as mulheres a sorrir quando não estão achando graça, a sussurrar quando querem gritar, a abaixar os olhos quando alguém olha agressivamente para elas. As mulheres fortes não estavam aterrorizadas de falar em público; elas não estavam com medo de fazer tarefas “masculinas”, ou de tentar algo novo. Ou pelo menos pareceu isso.

Ponha uma mulher “forte” no mesmo grupo pequeno que mulheres “fracas”, e ela se torna um problema: Como ela não domina? Como ela compartilha suas confidencias e habilidades arduamente adquiridas com suas irmãs? Do outro lado – como as mulheres “fracas” aprendem a agir por conta própria? Como alguém pode conceber a ajuda “mútua” numa situação de mão-única? De “irmandade” quando os membros “fracos” não se sentem iguais ao membro “forte”?

Essas são perguntas complicadas, sem respostas simples. Talvez o mais próximo que possamos chegar é com o lema anarquista, “um povo forte não precisa de líderes”. Aquelxs de nós que aprendemos a sobreviver dominando outrxs, assim como aquelxs que aprenderam a sobreviver aceitando a dominação, precisamos re-socializar nós mesmxs a sermos fortes sem jogar jogos de dominação-submissão, a controlar o que acontece conosco sem controlar xs outrxs. Isso não pode ser feito elegendo as pessoas certas para cargos ou seguindo a linha certa de partido; nem pode ser feito sentando e refletindo sobre nossos pecados. Nós reconstruímos nós mesmas e o mundo através da atividade, através de sucessos parciais, fracasso, e mais sucessos parciais. E a todo tempo ficamos mais fortes e auto-confiantes.

Se Anselma dell’Olio criticou a prática pessoal das feministas radicais, Joreen levantou algumas questões pesadas sobre a estrutura organizacional. A Tirania da Falta de Estrutura [10] mostrou que não existe isso de um grupo “sem estrutura” e as pessoas que alegam existir estão enganando a si mesmas. Todos os grupos tem uma estrutura; a diferença é se a estrutura está ou não explícita. Se está implícita, elites escondidas certamente existirão e controlarão o grupo – e todo mundo, xs líderes e xs lideradas, vai negar ou ficar confuso pelo controle que existe. Essa é a “tirania” da falta de estrutura. Para superar isso os grupos precisam definir estruturas explícitas, abertas, que sirva a associação.

Qualquer feminista anarquista, eu acho, concordaria com a análise dela – até esse ponto e nada além. Joreen também disse que os auto-entitulados “grupos sem liderança e sem estrutura” eram incapazes de ir além da teoria para a ação. Não somente sua falta de estrutura aberta, mas também seu pequeno tamanho e ênfase na tomada de consciência (teoria) estavam destinadas a fazer dele ineficaz.

Joreen não disse que os grupos de mulheres devem ser hierarquicamente estruturados. Na verdade ela tratou de uma liderança que seria “difusa, flexível, aberta e temporária”; para organizações que pretendiam construir responsabilidade, difusão do poder entre o maior número de pessoas, rotatividade de tarefas, compartilhar habilidades, e disseminar informação e fontes. Todos os bons princípios de organização do anarquismo social! Mas a minorização dela a cerca da tomada de consciência e sua preferência por organizações grandes regionais e nacionais estavam estreitamente ligadas a velha forma de fazer as coisas, e implicitamente aceitava a manutenção de estruturas hierárquicas.

Grupos grandes são organizados de forma que o poder e a tomada de decisões são delegadas para poucos – a não ser, é claro, que se esteja falando de uma rede horizontalmente coordenada de pequenos coletivos, o que ela não mencionou. Como um grupo como o NOW (Organização Nacional de Mulheres), com seus 60.000 membros em 1975, distribui tarefas, divide habilidades e assegura que todas as informações e fontes estejam disponíveis para todo mundo? Não consegue, é claro. Grupos assim tem um presidente, tem um quadro de diretores, um escritório nacional, e associados – alguns dos quais estão em filiais locais, alguns são membros isolados. Poucos desses grupos tem democracia direta e poucos ensinam seus membros novas formas de trabalhar e se relacionar uns com os outros.

O efeito infeliz de A Tirania da Falta de Estrutura é que pôs junto grandes organizações, estrutura formal e ações diretas bem sucedidas de uma forma que pareceu fazer sentido para muitas pessoas. Muitas mulheres sentiram que para combater a opressão social, uma organização grande era essencial, e que quanto maior melhor. A imagem é força confrontando força: Você não mata um elefante com uma pistola de ar, e você não derruba o Estado patriarcal com um grupo pequeno. Para mulheres que aceitam o argumento de que o maior tamanho está relacionada com a maior efetividade, as opções organizacionais parecem limitadas a grandes grupos liberais como o NOW ou a organizações socialistas que são organizações de massa.

Assim como muitas coisas que parecem fazer sentido, a lógica é defeituosa. “Opressão social” é uma reificação, uma entidade inventada, paralizante e exagerada que é basicamente no sentido de que as mesmas opressões acontecem com muitxs de nós. Mas as opressões, não importa o quão universais (penetrantes), o quão previsíveis, quase sempre nos são feitas por alguém – mesmo se essa pessoa está agindo como agente do Estado, ou como um membro da raça, gênero ou classe dominante. As investidas massivas da polícia sobre nossas forças organizadas são poucas; até o policial ou o chefe ou o marido que está exercendo sua porção de sexismo ou papel autoritário nos intersepta num dado ponto da nossa vida cotidiana. A opressão institucionalizada existe, em larga escala, mas raramente precisa ser atacada (na verdade, raramente pode ser atacada) por um grande grupo. Táticas de guerrilha feitas por um pequeno grupo – ocasionalmente até por um único indivíduo – servirão muito bem para retaliação.

Outro efeito infeliz da mentalidade da Tirania da Falta de Estrutura é que alimentou os estereótipos  das pessoas sobre anarquistas. (É claro que as pessoas só consomem algo se demandam por algo). Anarquistas sociais não são opostos à estrutura: nem sequer são contrários à liderança, desde que não acarrete nenhuma recompensa ou privilégio, e que seja temporária e específica para uma meta particular. No entanto, xs anarquistas, que desejam abolir uma estrutura hierarquizada, são quase sempre estereotipadxs como não querendo nenhuma forma de estrutura. Infelizmente, a imagem de um bando de mulheres anarquistas, desorganizadas e caóticas, vagando à deriva sem direção, pegou. Por exemplo, em 1976 a Quest relançou e editou a transcrição de uma entrevista que Charlott Bunch e Beverly Fisher deram para a Feminist Radio Network em 1972. De um lado, o mais interessante da entrevista é que xs editorxs da Quest sentiram que as questões estavam ainda em dia em 1976. [11] (“Nós vemos o mesmo desprezo por líderes e glorificação da falta de estrutura que existia há uns anos atrás” p.13). Mas o que Bunch tinha a dizer naquele tempo era também extremamente interessante: de acordo com ela, a ênfase em resolver problemas de estrutura e liderança era “um desejo anarquista muito forte. Era um desejo bom, mas irrealista” (p.4).

Anarquistas, acostumadxs a serem chamadxs de “irrealistas”, notarão que a irrealidade daquilo tudo aparentemente estava nos problemas que o movimento das mulheres estava tendo em organizar a si mesmo – problemas de liderança oculta, de “líderes” impostxs pela mídia, a dificuldade de alcançar mulheres interessadas mas não envolvidas, do super-representação de mulheres de classe média cheias de tempo sobrando, do movimento amorfo, da escassez de grupos com metas específicas que as mulheres possam aderir, da hostilidade contra mulheres que tentaram demonstrar liderança ou iniciativa. Uma acusação pesada! Ainda assim, esses problemas sérios não foram causados pelo anarquismo, nem serão sanados com doses de vanguardismo ou reformismo. E ao taxarem essas dificuldades organizacionais de “anarquistas”, as feministas ignoram uma rica tradição anarquista, enquanto ao mesmo tempo propõe soluções que são -embora aparentemente elas não saibam – anarquistas. Bunch e Fisher expuseram um modelo de liderança no qual todxs participam na formulação das decisões; e a liderança é específica para uma situação em particular e por tempo limitado. Fisher criticou o NOW por ter “uma liderança hierárquica que não tem responsabilidade com a vastidão de membros”(p.9) e Bunch colocou, “liderança são pessoas tomando iniciativa, dando meios das coisas acontecerem, tendo idéias e imaginação para começar algo, e apresentando habilidades particulares para areas diferentes”(p.8). Como elas sugerem que nós previnamos o silenciamento dessas mulheres sobre falsas noções de igualdade? “A única forma das mulheres pararem de depreciar mulheres fortes, é que elas mesmas sejam fortes” (p.12). Ou, como disse antes, um povo forte não precisa de líderes. E tenho o dito!

Situacionismo e feminismo anarquista

“Transformar o mundo e mudar a estrutura da vida são a mesma única coisa”. [12]

“O pessoal é político”. [13]

Os anarquistas estão acostumadxs a ouvir que elxs não tem uma teoria que ajude a construir uma nova sociedade. Na melhor das hipóteses, dizem paternalmente seus detratores, o anarquismo nos diz o que não fazer. Não permite burocracia ou estruturas hierárquicas; não deixa um grupo de vanguarda tomar as decisões; não pise em mim. Não pise em ninguém. De acordo com essas perspectiva, o anarquismo não é de forma alguma uma teoria. É um conjunto de práticas cautelosas, as vozes da consciência libertária – sempre idealista, as vezes um pouco truculenta, ocasionalmente anacrônica, mas um lembrete necessário.

Existe mais de um núcleo de verdade nessa objeção. Da mesma forma, existem variados pensamentos anarquistas que podem oferecer um enquadramento teórico para analisar o mundo e tomar atitudes para mudá-lo. Para as feministas radicais que querem dar esse “passo em direção a um desenvolvimento teórico auto-consciente” [14], talvez o maior potencial esteja no Situacionismo.

O valor do Situacionismo para uma análise anarca-feminista é que ele combina a consciência socialista dos primórdios da opressão capitalista com a ênfase anarquista em transformar tanto a vida pública como a privada. O ponto da opressão capitalista é importante: com muita frequencia anarquistas parecem esquecer que esse sistema econômico explora a maioria das pessoas. Mas com muita frequencia socialistas – especialmente marxistas – estão cegos para o fato de que as pessoas são oprimidas em todos os aspectos da vida: trabalho, lazer, cultura, relacionamentos pessoais – todos. E somente xs anarquistas insistem que as pessoas devem transformar as condições de suas vidas elas mesmas – ninguém pode fazer isso por elas. Nem o partido, nem o Estado, nem “organizadores”, nem ninguém.

Dois conceitos básicos do Situacionismo são “mercadoria” e “espetáculo”. O capitalismo fez de todas as relações sociais, relações de mercado: O Mercado manda em tudo. As pessoas não são apenas produtoras e consumidoras no estreito sentido econômico, mas a estrutura de sua vida cotidiana é baseada em relações financeiras. A sociedade “é consumida como um todo – o conjunto das relações sociais e estruturas é o produto central da economia de mercado” [15]. Isso inevitavelmente alienou as pessoas de suas vidas, não só do trabalho; consumir relações sociais faz da pessoa uma espectadora passiva de sua própria vida. O espetáculo, então, é a cultura que nasce da economia de mercado – o palco está montado, a ação de desenrola, nós aplaudimos quando pensamos que estamos felizes, nós bocejamos quando achamos que estamos entediados, mas não podemos deixar o show, porque não existe mundo fora do teatro para irmos.

Nos últimos anos, no entanto, o palco social tem começado a esfacelar-se, e assim existe a possibilidade de construir um outro mundo fora do teatro – dessa vez, um mundo real, onde cada umx de nós participa como sujeito e não como objeto. A frase situacionista para essa possibilidade é “a reinvenção da vida cotidiana”.

Como a vida cotidiana pode ser recriada? Criando situações que rompam com o que parece ser a ordem natural das coisas – situações que sacudam as pessoas para fora da forma costumeira de pensar e agir. Só então elas terão meios de agir, de destruir o espetáculo manufaturado e a economia da mercadoria- isto é, o capitalismo em todas as suas formas. Só assim elas estarão livres para criar vidas livres e não alienadas.

A congruência desse ativismo, a teoria do anarquismo social com a teoria do feminismo radical é surpreendente. Os conceitos de mercadoria e espetáculo são especialmente aplicáveis às vidas das mulheres. Na verdade, muitas feministas radicais descreveram eles em detalhe, sem localizá-los no quadro situacionista [16]. Fazer isso abrange a análise ao mostrar a situação da mulher como parte orgânica da sociedade como um todo, mas ao mesmo tempo sem jogar os jogos reducionistas do socialismo. A opressão das mulheres é parte da opressão geral da economia capitalista sobre as pessoas, mas não é menos uma opressão do que as outras. Nem – de uma perspectiva situacionista- você precisa ser de um tipo particular de mulher para ser oprimida; você não precisa ser parte do proletariado, tanto literalmente enquanto uma trabalhadora industrial, nem metaforicamente como alguém que não é rico. Você não tem que esperar ansiosamente por um manifesto socialista feminista para lhe dizer que você tem os requisitos – como dona de casa (reproduzindo a próxima geração de trabalhadores), como trabalhadora de escritório, como estudante ou profissional de classe média empregada pelo Estado (e assim parte da “nova classe trabalhadora”). Você não precisa ser parte do terceiro mundo, ou lésbica, ou idosa, ou alvo de políticas de bem-estar. Todas essas mulheres são objetos na economia de mercado; todas são espectadoras passivas do espetáculo. Obviamente, mulheres em algumas situações estão muito piores do que outras. Mas, ao mesmo tempo, nenhuma delas é livre em todas as áreas de suas vidas.

Mulheres e a Economia de Mercado

As mulheres têm um relacionamento dual com a economia de mercado – elas são ao mesmo tempo consumidoras e consumidas. Como donas de casa, elas são consumidoras de bens domésticos comprados com dinheiro que não pertence a elas, porque não foi “ganho” por elas. Isso deve dar a elas uma certa quantidade de poder de consumo, mas muito pouco poder sobre qualquer aspecto de suas vidas. Como jovens e heterossexuais solteiras, as mulheres consomem bens feitos para dar um alto preço no mercado do casamento. Como qualquer outra coisa –    como lésbica, ou como solteira em idade avançada, ou como mulher auto-suficiente com “carreira”, o relacionamento das mulheres com o mercado enquanto consumidoras não é tão bem definido. Se espera que elas comprem (e quanto melhor sua situação, mais se espera que elas comprem), mas para algumas categorias de mulheres, comprar não é definido primordialmente como o papel que uma mulher deve desempenhar.

Então o que mais é novidade? Não é a idéia da mulher como consumidora passiva, manipulada pela mídia e que se envolve com homens viscosos um cliche exagerado do movimento? Bem, sim – e não. Uma análise situacionista amarra o consumo de bens econômicos ao consumo de bens ideológicos, e então, nos diz para criarmos situações (ações de guerrilha em diversos níveis) que quebrem esse padrão de aceitação social do mundo como ele é. Sem acusações; não vou criticar mulheres que “compraram” a perspectiva de consumidora. Para aquelas que realmente compraram: isso foi vendido a elas como um meio de sobrevivência desde os primeiros momentos de suas vidas. Compre isso: Tornará você bonita e adorável. Compre isso: Vai deixar sua família mais saudável. Está deprimida? Se trate com um dia no salão de beleza ou com um novo vestido!

A culpa leva a inação. Somente a ação, para re-inventar a vida cotidiana e torná-la outra coisa, mudará as relações sociais.

O Presente

Pensando que ela era o presente

Eles começaram a empacotá-la antes do tempo.

Eles poliram seu sorriso

Eles abaixaram os seus olhos

Eles plugaram suas orelhas no telefone

eles fizeram cachinhos em seu cabelo

eles endireitaram os dentes

eles a ensinaram a enterrar seus desejos

eles derramaram mel pela sua goela a baixo

eles a fizeram dizer sim, sim e sim

eles a deixaram imobilizada

Aquela caixa tem meu nome,

disse o homem. É para mim.

E eles não estavam surpresos.

Enquanto eles sopravam beijinhos e me piscavam

ele levou pra casa. Colocou na mesa

onde seus amigos podiam averiguar

dizendo dance, dizendo mais rápido.

Ele a afundou para longe da saída

e queimou o nome dele mais fundo.

Depois ele a colocou em uma plataforma

debaixo dos holofotes

dizendo vai, dizendo mais forte

dizendo assim que eu queria

você me deu um filho.

Carole Oles [17]

As mulheres não são apenas consumidoras na economia de mercado; elas são consumidas como mercadoria. É disso que fala o poema de Oles, e isso é o que Tax chamou de “esquizofrenia feminina”. Tax constrói um monólogo interior para a dona-de-casa-mercadoria: “Não sou nada quando estou sozinha comigo mesma. Em mim mesma, não sou nada. Só sei que existo se sou desejada por alguém que é real, meu marido, e pelos meus filhos”.[18]

Quando as feministas descrevem a socialização nos papéis sexuais de mulher, quando elas apontam as características que garotas são ensinadas a ter (dependência emocional, infantilidade, timidez, preocupação em ser bonita, docilidade, passividade e assim vai), elas estão falando da fabricação cuidadosa de um produto – apesar de não se chamar assim normalmente. Quando elas descrevem a opressão da objetificação sexual, ou de viver em família nuclear, ou de ser uma Supermãe, ou de ser trabalhadora precarizada, subempregos com baixo salário que são ocupados majoritariamente por mulheres, elas também estão descrevendo a mulher enquanto mercadoria. As mulheres são consumidas por homens que as tratam como objetos sexuais; são consumidas por seus filhos (que elas mesmas produziram!) quando eles compram o papel da Supermãe; são consumidas por maridos autoritários que esperam que elas sejam servas submissas; e elas são consumidas por patrões que as mantém instáveis na força de trabalho ativa e que extraem o máximo trabalho pelo menor salário. Elas são consumidas por pesquisadores médicos que experimentam nelas novos e inseguros contraceptivos. São consumidas por homens que compram seus corpos nas ruas. São consumidas pelo Estado e pela Igreja, que esperam que proliferem a próxima geração pela glória de deus e do país; são consumidas por organizações políticas e sociais que esperam que elas “voluntariem” seu tempo e energia. Elas tem pouca noção de si mesmas porque sua pessoa enquanto identidade foi vendida para os outros.

Mulheres e o Espetáculo

É difícil consumir pessoas que travaram uma luta, que resistem à canibalização de seus corpos, mentes e suas vidas. Algumas pessoas tentam resistir, mas não o fazem de forma efetiva, porque não podem. É difícil localizar nosso carrasco, porque é tão difuso, tão familiar. Nós o conhecemos a vida inteira. É a nossa cultura.

Os situacionistas caracterizam nossa cultura como um espetáculo. O espetáculo nos trata a todxs como espectadorxs passivxs do que nos dizem ser nossas vidas. E a cultura-como-espetáculo cobre a tudo: nós nascemos nisso, somos socializadas nisso, vamos para a escola nisso, trabalhamos, relaxamos e nos relacionamos com outras pessoas dentro disso. Mesmo quando nos rebelamos contra isso,  a rebelião geralmente é definida pelo espetáculo. Alguém se importaria em fazer uma estimativa de quantos homens adolescentes sensíveis e alienados que há uma geração atrás  modelaram seu comportamento como James Dean em Juventude Transviada? Estou falando de um filme, cujos produtores capitalistas e cujo astro fizeram uma bagatela em dinheiro com seu espatáculo.

Os atos rebeldes, tendem então a serem atos contra o espetáculo, mas raramente diferem dele ao ponto de transcender o espetáculo. As mulheres tem uma série de comportamentos que demonstram insatisfação em ser o oposto do que se espera. Ao mesmo tempo esses atos são cliches da rebeldia, e assim são quase prescritas como válvulas de escape seguras que não alteram o teatro em nossas vidas. O que se espera que uma mulher rebelde faça? Podemos todos nomear as atitudes – elas aparecem em todos os jornais, no horário nobre da TV, nas lista dos best-sellers, nas revistas populares – e, é claro, na vida cotidiana. Num contexto em que se preza pela manutenção perfeita da casa, ela pode ser uma desleixada; em uma subcultura que preza por grandes famílias, ela pode se negar a ter filhos. Alguma outra insurgência previsível? Ela pode desafiar o padrão de binarismo sexual para mulheres casadas tendo um caso (ou muitos); ela pode beber; ou ela pode usar o que é visto como linguagem de “baixo calão”; ou ela pode ter uma crise nervosa; ou -se ela é adolescente- pode ter um impulso e fugir de casa e transar com muitos homens.

Qualquer uma dessas coisas pode tornar a vida de uma mulher individualmente mais tolerável (com frequência também fazem o contrário); todas elas são garantias para o discurso conservador de que a sociedade está ruindo. Mas esses tipos de insurreições previstas não a fizeram ruir ainda, e, por si só, não farão. Qualquer coisa menos que um ataque direto a todas as condições de nossas vidas não será o bastante.

Quando as mulheres falam de mudar os papéis sexuais destrutivos em que são socializadas, elas escolhem uma das 3 soluções possíveis: (a) garotas devem ser socializadas mais ou menos como garotos para serem independentes, competitivas, agressivas e assim por diante. Em poucas palavras, como é um mundo dos homens, as mulheres que querem se encaixar dele devem ser “como um dos caras”. (b) devemos glorificar o papel de gênero feminino e perceber que aquilo que havíamos chamado de fraqueza, na verdade é força. Devemos ser orgulhosas de ser maternais, provedoras, sensíveis, emotivas… e assim por diante. (c) As pessoas andrógenas são as únicas saudáveis: devemos erradicar as fronteiras artificiais que dividem a humanidade entre masculino e feminino, e ajudar ambos a se tornarem uma mistura do que há de melhor traço em cada.

Com esses três modelos, as possibilidades de soluções pessoais para problemas de opressão sexista são bem abrangentes: ficar solteira; viver em comunidade (com homens e mulher ou apenas com mulheres). Não ter filhos; não ter filhos homens; ter quantos filhos quiser, mas deixar que seus parentes cuidem ou pagar alguém/alguma instituição para cuidar deles. Ter um emprego; conseguir um emprego ainda melhor; fazer pressão para receber ações afirmativas. Ser uma consumidora informada; vestir a camisa de uma causa;  aprender karate; receber treinamento de auto-confiança. Desenvolver a lésbica dentro de você. Desenvolver sua identidade de proletariada. Tudo isso faz sentido em algumas situações, para algumas mulheres. Mas todas elas são soluções parciais para problemas muito maiores, e nenhuma delas implica necessariamente em ver o mundo de forma qualitativamente diferente.

Assim, vamos de soluções particulares para mais gerais. Destruir o capitalismo. Acabar com o patriarcado. Derrubar o heterossexismo. Todas são tarefas óbvias na construção de um mundo novo e verdadeiramente humano. Marxistas, outros socialistas, anarquistas sociais, feministas – todos concordariam. Mas o que o socialismo, e até alguns feminismos, deixam de fora é isso: devemos destruir todas as formas de dominação. Isso não é só um slogan, e é a tarefa mais difícil de todas. Significa que devemos enxergar através do espetáculo, destruir os cenários e palcos, saber que existem outras formas de fazer as coisas. Significa que devemos fazer mais que reagir em rebeliões programadas – devemos agir. E nossas ações serão feitas coletivamente enquanto cada um age anonimamente. Parece contraditório? Não é – mas será muito difícil de fazer. O indivíduo não consegue mudar muita coisa, por essa razão devemos agir juntxs. Mas esse trabalho deve ser feito sem líderes como conhecemos até então, sem delegar nenhum controle sobre o que fazemos e sobre o que queremos construir.

Os socialistas podem fazer isso? Ou as matriarcas? Ou o pessoal das viagens espirituais? Você sabe a resposta. Trabalhe com elxs quando fazer sentido que se deva trabalhar, mas não abra mão de nada. Não ceda nada a eles ou a nenhuma outra pessoa.

O passado nos leva a algum lugar se o forçamos a isso.

Caso contrário, ele nos mantém

em seu asilo sem portões.

Ou nós fazemos a história,

ou ela nos faz. [19]

  • 1. Barbara Ehrenreich, “What is Socialist Feminism?”, Win Magazine, June 3, 1976, p.4.
  • 2. The best of these arguments I’ve encountered are “Socialist Feminism; A Strategy for the Women’s Movement”, by the Hyde Park Chapter, Chicago Women’s Liberation Union, 1972; and Charlotte Bunch, “The Reform Tool Kit”, Quest, 1:1, Summer 1974, pp.37-51.
  • 3. Reports by Polly Anna, Kana Trueblood, C. Corday and S. Tufts, The Fifth Estate, May, 1976, pp. 13, 16. The ” revolution” failed: FEN and its club shut down.
  • 4. People who are interested in reading reports of the conference will find them in almost every feminist or socialist newspaper that appeared in the month or so after July 4th. Speeches by Barbara Ehrenreich, Michelle Russell, and the Berkeley-Oakland Women’s Union are reprinted in Socialist Revolution, No. 26, October-December 1975; and the speech by Charlotte Bunch, “Not for Lesbians Only”, appears in Quest, 2:2, Fall 1975. A thirty-minute audiotape documentary is available from the Great Atlantic Radio Conspiracy, 2743 Maryland Avenue, Baltimore, Maryland 21218.
  • 5. Farrow, “Feminism as Anarchism”, Aurora, 4, 1974, p.9; Kornegger, “Anarchism: The Feminist Connection”, Second Wave, 4: 1, Spring 1975, p.31; Leighton, “Anarcho-Feminism and Louise Michel”, Black Rose, 1, April 1974, p. 14.
  • 6. December, 1, 1970, p.11.
  • 7. Lilith’s Manifesto, from the Women’s Majority Union of Seattle, 1969. Reprinted in Robin Morgan (ed.), Sisterhood is Powerful. N.Y.: Random House, 1970, p.529.
  • 8. The best and most detailed description of the parallels between radical feminism and anarchist feminism is found in Kornegger, op cit.
  • 9. The speech is currently available from KNOW, Inc.
  • 10. The Second Wave, 2:1, 1972.
  • 11. “What Future for Leadership?”, Quest, 2:4, Spring 1976, pp.2-13.
  • 12. Strasbourg Situationists, Once the Universities Were Respected, 1968, p.38.
  • 13. Carol Hanisch, “The Personal is Political”, Notes from the Second Year. N.Y.: Radical Feminism, 1970, pp. 76-78.
  • 14. Leighton, op cit.
  • 15. Point-Blank!, “The Changing of the Guard”, in Point-Blank, October 1972, p.16.
  • 16. For one of the most illuminating of these early analyses, see Meredith Tax, “Woman and Her Mind: The Story of Everyday Life”, Boston: Bread and Roses Publication, 1970.
  • 17. Carole Oles, “The Gift”, in 13th Moon, II: 1, 1974, p. 39.
  • 18. Tax, op cit., p. 13.
  • 19. Marge Piercy, excerpt from “Contribution to Our Museum”, in Living in the Open. N.Y.: Knopf, 1976, pp.74-75.

(AIT) Trabalhemos por uma maior participação das Mulheres no nosso Movimento!

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

Por ocasião do Dia Internacional da Mulher gostávamos de abordar os problemas que afectam, de maneira desproporcionada, as mulheres nos locais de trabalho, tratando-os duma maneira mais efectiva e aumentando a participação das mulheres no nosso movimento.

Ao falarmos com companheiros seja do movimento anarco-sindicalista, seja de fora deste, podemos ver que ainda há um longo caminho a percorrer até conseguirmos adoptar uma postura organizativa para lutar contra o sexismo nos locais de trabalho. Na recente conferência anarco-feminista internacional, durante a sessão que tratava da organização nos locais de trabalho, apercebemo-nos de que as mulheres tinham queixas e experiências semelhantes, mas poucas delas se dispunham a organizarem-se em torno destas questões nos sítios onde trabalham. Apenas algumas estavam integradas em sindicatos, fossem maioritários ou alternativos.

As razões para isto podem ser muito complexas e envolver também muitas especificidades pessoais. Mas vale a pena discutir este tema. Nalgumas das nossas organizações temos um desequilíbrio de género ou as mulheres vêem-se de algum modo marginalizadas, devido a regras de comportamento que podem estar mais inclinadas para a socialização masculina. No entanto, sabemos todos que o nosso movimento não deveria funcionar deste modo e que a luta pela igualdade não é somente económica, mas sim una luta pela igualdade em todos os aspectos.

Nesta ocasião fazemos um apelo aos nossos companheiros para que abordem estes temas e dêem os passos necessários para fazerem os melhoramentos que forem necessários e para que ponham em relevo o papel das mulheres onde estas se tenham destacado e tenham tido sucesso.

Secretária Geral da AIT

8/3/2015

Em inglês: http://www.iwa-ait.org/content/lets-work-towards-greater-participation-women-our-movement

Em castelhano: http://www.iwa-ait.org/node/676

“Não volto a ir a um encontro feminista em um hotel de cinco estrelas”

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By A.N.A.

Fonte: Notícias Anarquistas

[Nasceu em La Paz (1964). É uma anarcofeminista, psicóloga, locutora de rádio e apresentadora de televisão boliviana. Fundou Mujeres Creando, uma associação de mulheres bolivianas que combate o machismo e a homofobia.]

Em suas próprias palavras, ela é María Galindo, fundadora, junto com outras, de Mujeres Creando, feminista, boliviana, louca, alguém que faz rádio, televisão e luta na rua com direção própria. Lésbica, gorda, teimosa, escritora, agitadora, terror da polícia e grafiteira, esteve faz pouco tempo em Madri, apresentando seu livro, ¡A despatriarcar! (Lavaca, Buenos Aires) em Vaciador 34, rodeada de dezenas de mulheres, sobretudo jovens e entre elas muitíssimas latino-americanas, compartilhando as bandeiras de seu ‘feminismo urgente’. Galindo propõe a despatriarcalização como motor da descolonização e a transformação social na Bolívia de Evo Morales. “Há que abandonar a ideia mitificadora de uma cultura indígena de núcleo horizontal e não patriarcal. Em um contexto em que o homem indígena aparece como o único interlocutor do Estado, reclamamos o direito das mulheres à desobediência cultural e o desacato de mandatos de costume”, diz. Junto com outras anarcofeministas militantes como ela, Galindo converteu Mujeres Creando “em uma fábrica de justiça” para as bolivianas.

Pergunta > Na Bolívia existe uma Unidade de Despatriarcalização que depende do Vice-ministério de Descolonização e que não serve para nada?

Resposta < Assim é. Não tem pressuposto, nem poder, nem conteúdo, nem funções. Fomos Mujeres Creando as que lançamos esta proposta da que eles se apropriaram para minorar nosso impacto. É parte de uma política governamental não deixar que nada se mova fora do governo, nem sequer o debate nem o pensamento, querem comê-lo todo. O grande ato organizado por esta instância foi um matrimônio indígena massivo à maneira judaico cristã, mas com detalhes folclóricos, comandados pelo próprio Evo Morales. Eu estive ali com minha rádio e fui violentamente reprimida pela polícia.

Pergunta > Por quê em teu livro falas de uma Bolívia travesti?

Resposta < Há uma disputa de identidades. Bolívia travestida de indígena, com chola transformer, com Mis Cholita e Mis Ñusta universitária. O máximo representante da Bolívia travesti é o Presidente que se traveste de poncho em poncho, buscando nesse exercício levantar à construção de uma identidade que, tragicamente, se fragmenta em muitas pequenas identidades, com todas suas contradições. A Bolívia bastarda é incapaz de olhar-se no espelho.

Pergunta > Hoje a melhor opção na Bolívia é declarar-se indígena?

Resposta < Estamos na Bolívia dos originários. Após haver escondido o retrato da mãe chola no desvão, hoje o desenterram. Neste momento declarar-se indígena é politicamente muito vantajoso. Eu creio que a autoidentificação e autodenominação é claramente um ato de liberdade e tem toda a liberdade de fazê-lo. Mas se antes a Bolívia racista e branca relegou a intelectualidade indígena, agora a intelectualidade indígena “oportunista”, cheia de privilégios, volta a relegar a quem têm décadas nesta luta.

Pergunta > Crês que fora da Bolívia se tem uma ideia equivocada de Evo Morales?

Resposta < Definitivamente sim. Fora do país se tem idealizado o governo de um indígena e não se quer conhecer a realidade mais em detalhes, por exemplo, de sua política econômica real. Nos dois governos de Evo os que mais ganharam foram os bancos.

Pergunta > Por quê Evo queria realizar o Miss Universo na Bolívia?

Resposta < Enquanto as mulheres indígenas são base de apoio social, sem nome, nem corpo, as mulheres brancas são objeto de desejo. Aceder a elas é um exercício de poder. A obsessão de Evo é seguir fazendo alianças com seus antigos inimigos, a oligarquia que está detrás das centenas de concursos de beleza que há no país, uma verdadeira indústria da coisificação das bolivianas. As misses estão presentes em todos os atos oficiais e inclusive tem dois assentos no parlamento. Ademais de dar giros na economia, o governo boliviano pensou em seduzir este setor organizando o Miss Universo, mas não o conseguiu. Agora Evo Morales vai organizar o Dakar, mais do mesmo.

Pergunta > Tens entrevistado a muita gente. Quê aconteceu com Rigoberta Menchú?

Resposta < Rigoberta se levantou de sua poltrona e me deixou com a palavra na boca. Disse que a havia ofendido e discriminado. Só porque falei da não fetichização de nossas identidades: não por ser mulher, ser lésbica ou ser indígena sou intocável ou perfeita. Eu creio que aí está um novo fundamentalismo que na Bolívia vivemos todos os dias. Não estamos falando da indígena subalternizada, senão dessa outra indígena que é Rigoberta, uma com poder.

Pergunta > Por quê já não vais a encontros feministas latino-americanos?

Resposta < Olha, o último que fui aconteceu em um hotel de 5 estrelas na República Dominicana, com praia privada e polícia que vigiava a praia. O custo de inscrição rondava os 200 dólares. Recordo que seis companheiras ficamos em um só apartamento, já havíamos gasto 800 dólares pela passagem. Não havia nem um só debate sobre prostituição, quando na rua ela era generalizada. Os encontros feministas latino-americanos deixam tacitamente fora os setores populares. Isto já afeta completamente os sentidos e conteúdos. Não se organizam em lugares acessíveis, porque não há uma vontade política de fazê-lo. Basicamente são encontros que reúnem funcionárias de ongs que tem um excedente econômico para ir ali e se divertir.

Pergunta > Qual foi vossa conclusão?

Resposta < Na volta, resolvemos que nunca mais iríamos a um encontro para o qual é preciso investir somas altíssimas de dinheiro. Decidimos organizar, em troca, dois encontros feministas anuais em nosso país. Fazemos um na zona andina de La Paz e um na zona tropical de Santa Cruz. Oferecemos mais de dez oficinas de discussão, o almoço e toda a participação por um montante de três dólares e o fazemos em recintos públicos para baixar os custos. O impacto destes encontros é incrível.

Fonte: larepublica.pe

Tradução > Sol de Abril

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[Curdistão] Entrevista com Mehmet Dogan, sobre a Luta do Povo Curdo

Postado em LibreRed em 30 de Janeiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Entrevistamos Mehmet Dogan, jornalista, documentarista e antropólogo curdo, que nos explicou a história da luta do povo curdo, a atualidade e a relevância que tem este povo nos conflitos que existem no Oriente Médio; um povo com 40 milhões de pessoas às quais os países imperialistas nunca permitiram escolher seu próprio destino. Por isso, os curdos vivem divididos entre Turquia, Síria, Irã e Iraque, em uma área similar em tamanho à da Espanha, mas situada em uma posição geoestratégica crucial na qual há importantes reservas de petróleo, gás e outros recursos minerais.

Qual é a sua análise sobre a situação atual do Oriente Médio?

Há dois conflitos centrais no Oriente Médio: o da Palestina e o do Curdistão. O conflito palestino é bastante conhecido, suas causas e as forças envolvidas. No entanto, recentemente, tendo o Hamas na liderança do processo de resistência, e tendo ganhado a disputa política com a OLP, atrevo-me a dizer que não há um processo revolucionário na Palestina. Há uma luta por independência, mas independência não é sinônimo de revolução. Obviamente, os palestinos têm direito de lutar por sua independência e sua autodeterminação.

Conheço muitos companheiros curdos que morreram ao lado dos palestinos nos anos 1980, mas não devemos misturar as coisas ou entramos em confusão. O conflito entre Israel e os palestinos não tem como pano de fundo um processo revolucionário que possa mudar por completo a realidade do Oriente Médio. Por isso, o centro da revolução não está na Palestina. O centro da revolução no Oriente Médio está na Síria, está no Iraque e antes de tudo, na Turquia.

Nos anos 1960 e 70, em todo o mundo havia uma juventude combativa, quando haviam lutas de libertação em todos cantos do mundo. Nessa época houve uma luta muito interessante na Turquia. A esquerda turca e o povo curdo em geral, em muito pouco tempo, conquistaram muito terreno e ainda estiveram perto de liberar o país. Durante os anos 1970 e 80, nas mesmas décadas que na Argentina, houveram regimes ditatoriais.

Na Turquia, o imperialismo controlava o estado através do exército turco, que vale a pena dizer, é a segunda maior força da OTAN, obviamente depois do exército ianque. O movimento revolucionário, a esquerda revolucionária turca e o povo curdo foram vítimas de uma repressão brutal. Em 1980, fez-se um golpe de Estado e em apenas 3 meses houve pouco menos de 600 mil prisões. Todavia, há 20.000 desaparecidos. Desde então, até a atualidade, 5 milhões de camponeses foram removidos à força, e hoje em dia, temos 12 mil presos políticos.

Este movimento que nasceu na Turquia tem uma programa a favor dos povos, a favor das classes populares, contra o sistema neoliberal e, inclusive, um programa ecológico também. Podemos dizer que é uma ideologia socialista comunitária. No início da década de 2000, a direção do PKK, que significa Partido dos Trabalhadores do Curdistão, criou uma grande frente chamada de União de Comunidades do Curdistão (KCK). Esta união de comunidades está unindo outros partidos curdos do Iraque e da Síria. Há mais de 400 movimentos sociais que estão participando desta grande frente.

Esta frente desenvolveu uma nova ideologia que chamam de confederalismo democrático. As bases dessa ideologia apareceram em 1998, momento em que o PKK se transformou de um partido clássico marxista-leninista, em um partido mais socialista comunitário, de um partido independentista em um partido confederado.

Esta transformação implicou uma crítica profunda do Estado nacional capitalista. Para nós, criar um estado nacional, independente, curdo, hoje em dia, não serve ao benefício do povo curdo e de outros povos oprimidos, mas aos interesses do Imperialismo que quer dividir esta região em pequenos Estados. De fato, seria continuar com a política que o Imperialismo sempre teve nesta região. Os franceses, britânicos e gringos dividiram toda esta região com o critério de “uma família, um Estado”, como se pode ver, por exemplo, nos casos de Catar e Iêmen. O objetivo, obviamente, consistia em dividir o Oriente Médio para controlá-lo mais facilmente.

Não há nenhum argumento antropológico, sociológico ou político que possa legitimar a divisão geopolítica que existe atualmente no Oriente Médio. Por isso é que a União de Comunidades do Curdistão tem uma postura muito crítica com respeito a criar uma nova divisão, um novo Estado curdo. O Estado-nação capitalista é um Estado que legitima a dominação em três sentidos: primeiro, permite que uma classe explore as classes populares; segundo, através do machismo; e, por último, temos a dominação sobre a natureza. A mãe terra é vítima deste sistema de superprodução e consumismo.

Então, analisando estes três pontos, os companheiros da União de Comunidades do Curdistão chegaram a algumas conclusões muito interessantes. O confederalismo democrático prevê não apenas a autodeterminação dos povos curdos, turcos, armênios, árabes e persas, como também aposta em construir uma maneira de organização comunal de base, onde todos possam viver em harmonia com a natureza.

Com o confederalismo democrático, a luta ganhou rapidamente a simpatia de todo o povo curdo, mas também de outros povos. Antes, obviamente, as organizações tinham também muita relevância, mas chegou-se a outro nível de massividade através desta nova ideologia.

Em 1984, não havia outra maneira de lutar a não ser através da luta armada, porque havia uma ditadura na Turquia e, no Iraque, Saddam Hussein. A luta armada ganhava rapidamente simpatia e, em 1988, a guerrilha do PKK tinha cerca de 8000 guerrilheiros. E, paralelamente, os companheiros começaram a participar e incentivar as lutas democráticas, a princípio, graças à luta das mães dos desaparecidos e dos presos políticos.

Como se deram conta, é muito similar ao que se passou na Argentina. Logo surgiram movimentos políticos e sociais que nasceram, a principio, na Turquia, mas não se limitaram a este país, justamente porque os curdos também vivem na Síria, Iraque e Irã, dentro das fronteiras arbitrárias que nos impuseram. Pouco a pouco, as organizações nacionalistas curdas destes diferentes países foram levantando a bandeira do confederalismo democrático. Produziu-se uma transformação ideológica muito importante. Esta transformação foi por si uma revolução. Essas mudanças são muito visíveis.

Na Turquia, após algumas semanas houveram eleições. Os companheiros participaram das eleições e alcançaram quase 10% dos votos, obtendo 36 deputados na assembleia nacional e mais de 100 prefeitos. Se vocês viajam para lá, irão ver o que é uma prefeitura socialista comunitária. Vê-se em questões bem concretas: por exemplo, todas as organizações que pertencem a esta União de Comunidades do Curdistão, regem-se sob do princípio da co-presidência. O que quer dizer co-presidência? Uma co-presidência é uma presidência compartilhada por uma mulher e um homem. Suponhamos que em um pequeno povo onde há cinquenta habitantes e existe uma associação de cinema, onde participam 10 pessoas. Para que esta associação possa ser membro das União de Comunidades do Curdistão, ela tem que aceitar o princípio da co-presidência e designar a uma mulher e um homem como co-presidentes. Desta maneira, a mulher começa a ganhar um poder extraordinário.

Desde os anos 1980, a mulher já começou a se organizar em brigadas especiais de mulheres, as quais não somente para a luta armada, como também para atuação na sociedade em geral, mas agora a participação das mulheres tornou-se primordial. Agora, as presidências na Turquia não tem um presidente, mas sim co-presidentes, um presidente e uma presidenta. Isso muda dramaticamente a cabeça feudal e escravista do Oriente Médio. Foi uma revolução o poder imaginar e implementar organizações, presidências, comunas e assembleias populares onde a mulher seja dirigente.

Por outro lado, em cada município ou comuna ou bairro, controlados por este movimento, organizam-se em assembleias populares comunais. Não esperamos transformação do Estado. Esta ideologia, este programa não diz “vamos fazer a revolução proletária, vamos tomar o controle do Estado”. Não vamos esperar que isso ocorra, mas, de onde estamos, organizamo-nos e transformamos a vida. Nesse sentido, tudo que se passou depois de 2001 na Argentina, para nós, foi muito interessante: assembleias populares, piquetes, empresas recuperadas pelos trabalhadores, tudo isso para nós foram experiências muito importantes. Aprendemos com isso e estamos aplicando onde temos controle do território.

Por tudo isso, creio que este conflito é mais interessante porque pode transformar-se em uma revolução e pode modificar a sociedade em todos os sentidos. Vou tentar ilustrar com outro exemplo: os curdos que controlam a parte norte da Síria e Curdistão ocidental, com mais de 70.000 guerrilheiros (a maioria, mulheres), estão aplicando este modelo de confederalismo democrático de forma muito concreta. Há uma cidade na Síria que tem 100.000 habitantes, onde vivem 10.000 árabes, 10.000 armênios, 5.000 assírios, não recordo quantos cristãos e muitos membros de outras etnias. Nesta cidade-comuna, as quais são agora chamadas de cantões, desde 2010, a assembleia popular se forma não pela porcentagem de população étnica, mas pelos dois representantes armênios, dois representantes árabes, dois representantes curdos. Os curdos são maioria na população da cidade, mas não na prefeitura.

Então, com dois representantes – um homem e uma mulher – de cada etnia, a população decide, através de uma forma organizativa e muito direta, a política social, econômica e ecológica da cidade. Esta é uma experiência muito importante. As decisões não se tomam por maioria, devem dar-se por unanimidade. A maioria só quer dizer que 51% decide por 49%, mas isso nem sempre implica que seja correta a decisão.

Assim, esse processo de unanimidade na tomada de decisões permite que se produza uma discussão muito forte entre o povo, entre homens e mulheres, entre organizações, e gera uma dinâmica de formação política extraordinária. Obviamente, isso obriga que haja discussões muito profundas. O processo em si tem sido uma vitória. Levando em conta todos os aspectos, creio que neste conflito há uma luta muito interessante que pode transformar o Oriente Médio. Portanto, no mundo atual não se pode esperar transformações em apenas 5 ou 10 anos, mas insisto que continua sendo muito importante o que se tem conquistado.

Você acha que o governo dos Estados Unidos pode tirar o PKK da lista de organizações terroristas agora que a guerrilha se tornou central na luta contra o Estado Islâmico?

Agora há uma campanha dos amigos do PKK na Europa e Estados Unidos para demonstrar que a lista de organizações terroristas é ridícula. Nos Estados Unidos chegamos a várias dezenas de milhares de assinaturas. Com a campanha temos dois objetivos. Se nos tiram agora da lista porque lutamos contra a Al Qaeda, a CNN não poderá dizer o contrário. O PKK nunca fez ataques em organizações civis nem econômicas, só contra guarnições ou estruturas militares. Na Europa, setores relevantes do povo sabem que o PKK defende o povo, que não é uma estrutura terrorista. Agora estamos propagandeando nossas ideias para que o povo dos Estados Unidos as conheçam e saibam que não somos terroristas. Seu governo só vai tirar o PKK da lista por pressão de parte de seu povo.

Sabem como o PPK entrou na lista de organizações terroristas? Em 2004, o PKK decidiu fazer um cessar fogo unilateral. Pouco depois, Felipe González (primeiro-ministro social democrata da Espanha) em uma reunião da União Europeia propôs incluir o PKK na lista porque o confederalismo democrático que propunha o PKK geraria medo, assim como o cessar fogo, já que facilitaria o crescimento político da organização, em razão da massividade que poderia alcançar com essas medidas. E com a pressão dos Estados Unidos, o PKK entrou na lista.

O Estado Islâmico cresceu e passou a controlar um vasto território em muito pouco tempo. O que pode dizer sobre essa organização?

A organização Estado Islâmico no Iraque e na Síria é um desdobramento da Al Qaeda, e não tem apoio da população destas regiões, nem sequer os sunitas os apoiam. São mercenários que gerando medo, ocupando lugares e matando a todo mundo controlam o território. As pessoas, obviamente e com razão, têm medo e não podem fazer nada. A única força que poderia liderar a iniciativa contra essa perigosa ameaça é o PKK. O PKK resiste e liberta as cidades, não somente do imperialismo, mas, antes de tudo, do Estado Islâmico. Através desta luta podemos mostrar ao mundo inteiro que os islamitas da Al Qaeda e o imperialismo estão juntos.

O imperialismo apoiou e apoia de maneira direta a Al Qaeda/Estado Islâmico, porque querem desestabilizar a região. Querem dizer: “olhem, fizemos uma intervenção em 2003 contra Saddam Hussein para libertar, para exportar uma democracia estadunidense para aí, mas não funcionou”. Eles provocaram o conflito entre sunitas e xiitas, dois ramos do Islã, e agora dizem “olhem, os bárbaros não entendem a democracia, se matam entre si, necessitam de nós”. Tudo para legitimar uma intervenção e uma presença permanente na região, jogam com a Al Qaeda/Estado Islâmico.

Quase 85% dos mercenários da Al Qaeda são jovens que tem nacionalidade francesa, alemã ou britânica. Não vêm de países árabes, não vêm do Norte da África. São estrangeiros, são jovens dos bairros árabes de Paris, de Marselha, de Londres e de Berlim. Eles trouxeram essa força reacionária contra nós, contra todos os povos da região. Claro que agora estão vendendo armas aos Estados que têm que matar essa organização islâmica. Acabaram de vender armas ao Estado autônomo curdo do Iraque por 4 milhões de euros para que lutem contra o Estado Islâmico.

Acabam de vender uma centena de mísseis para Bagdá. Mas, ao mesmo tempo, o imperialismo permitiu diretamente aos islamitas roubar armas no Iraque. Inclusive, os deixaram com mais de 100 tanques com tecnologia de ponta. Os gringos, algumas semanas atrás, saíram desta cidade e deixaram absolutamente todo o equipamento militar. Qualquer comandante militar, quando retraído, se você deixar uma arma ou estrutura militar, as destrói para que mais tarde o inimigo não as possa usar. Bom, os gringos as deixaram aqui de bandeja. Estes equipamentos agora estão sendo operados pelos fanáticos do Estado Islâmico.

O império tem um plano para esta região. Os Estados imperialistas creem poder sair da crise econômica em que estão afogados não com uma guerra mundial como dizia Lênin, mas com conflitos regionais: Norte da África, Oriente Médio, e _ porque não?_ amanhã pode ser o Paquistão ou a Índia. E, claro, após a destruição quem reconstrói tudo? Suas empresas multinacionais. O que aconteceu na Iugoslávia acontece agora nessas regiões, por isso falo que querem balcanizar a região. A única força que pode apresentar um obstáculo contra este plano é o PKK, uma verdadeira força revolucionária e democrática.

Em 2013, o PKK se retirou da Turquia. Ultimamente voltaram a ter presença em território turco?

Em 2009 havia um processo de negociação entre o PKK e o governo turco. Em 2010, rompeu-se essa negociação depois de mais um milhão de idas e vindas. O governo turco oficialmente queria obter a paz, assim como o governo da Colômbia busca fazer com as FARC. Em 2012 começa um novo processo de negociação. Em 21 de Março de 2013, Abdullah Öcalan, que era o presidente do PKK, aceita iniciar novas negociações. A ideia do PKK era a de não continuar com a luta armada e garantir um mínimo de democracia. Durante as negociações, o estado turco aceita que, se o PKK se retira da Turquia, iria se iniciar um processo de paz. Mas, assim como na Colômbia, o governo sai, afrouxa, dá voltas. Na realidade, 30% das forças do PKK se retiraram da Turquia. O PKK está na Turquia mas não continuam suas atividades, atividades estas que consistiam em realizar ataques armados contra centros militares. A Turquia queria jogar com o PKK dizendo “bom, vamos acalmar o PKK” e atacar mais a Síria.

Graças a este processo, o PKK mostrou sua vontade de paz e ganhou inclusive uns 10% de votos. Mas de concreto não há nada, e já acontecem novos pequenos enfrentamentos. A Turquia mandou militares à região do Curdistão porque pensava que podia fazer uma intervenção na Síria, mas não podia porque ali também está o PKK. Não fazem ações militares esperando o processo de paz: é como na Colômbia, é como um cessar fogo. Não é o abandono da luta armada, é uma estratégia para mostrar a vontade de fazer a paz.

Há alguma novidade sobre as investigações das 3 companheiras do PKK que foram assassinadas no início de 2013 em Paris?

Há todas as evidências de que o assassinato só poderia ter sido feito pelo serviço secreto turco com o serviço francês, belga e alemão. Agora sabemos através de grampos telefônicos que comprovam isso. A França está investindo vinte milhões de euros em centros nucleares na Turquia. Para a França, a Turquia é uma potência econômica com a qual se deve ter um bom relacionamento. Por isso negociam assuntos como esses assassinatos. Mataram as 3 companheiras do Centro de Informação do Curdistão de Paris. Eu trabalhei nesse Centro e o conheço muito bem. Há câmeras do serviço secreto francês para observar tudo e é impossível que não tenham gravações dos assassinos. Houve uma mobilização muito importante para denunciar a colaboração entre os serviços secretos e a relação franco-turca. Que isto tudo tenha acontecido em pleno processo de negociação de paz foi uma clara provocação frente ao PKK para que este voltasse a combater, para iniciar uma guerra.

Você mencionou o resultado das eleições turcas onde vocês participaram. Como avalia o desempenho do Partido Democrático do povo?

É uma vitória muito importante, que pode crescer ainda mais rápido. O Partido Democrático do Povo é uma aliança progressiva dos curdos, turcos, armênios e todas as nacionalidades presentes na Turquia. Há mais de 600 movimentos sociais que participam deste partido. Sua construção permitiu excluir obstáculos de comunicação. Ele foi construído ao lado dos irmãos turcos e isso nos ajudou a alcançar jovens turcos, na região central da Turquia, algo que antes era impensável. O partido é muito próximo da luta dos curdos porque a maioria de seus membros são curdos, mas também é um partido para a democracia de todos os povos turcos. Do partido participam intelectuais, dirigentes sindicais e movimentos estudantis. Todas as organizações que o compõem participaram da ocupação da Praça de Taksim. Está claro que nos próximos anos vamos a ter um desenvolvimento interessante neste sentido.

Facundo Guillén / Resumen Latinoamericano