Anarquia ou Barbárie

Identidade Fluida

Anarquia ou Barbárie

APELO URGENTE DO GOVERNO DO CANTÃO DE KOBANÊ

Situação atual de Kobane

Situação atual de Kobane

Fonte: http://kurdishquestion.com/kurdistan/west-kurdistan/urgent-appeal-from-kobane-canton-government.html
Tradução livre de Maria Joseane Rosa e revisão de Talita Rauber.

Apelo do governo do cantão de Kobane às Nações Unidas e à comunidade internacional

Os ataques do Estado Islâmico em Kobane, cidade curda no norte da Síria, estão em andamento desde 15 de setembro de 2014. Como resultado da guerra, muitas partes da cidade e dos vilarejos ao redor têm sido destruídas e devastadas. A emergência humanitária é agravada devido ao embargo, de fato existente. Uma vez que todas as rotas para Kobane foram bloqueadas, não é possível que os suprimentos humanitários alcancem a cidade. Devido à difícil situação dos refugiados de Kobane, localizados na Turquia, mais e mais pessoas estão retornando para lá. A municipalidade de Kobane é mantida por voluntários.

O maior problema é a falta de água potável. Após o início da revolta popular na Síria, a linha de abastecimento de água para Kobane, que está sendo controlada centralmente pelo estado, tem sido descontinuada. A própria população de Kobane construiu uma linha de água alternativa para lá. Porém, como resultado dos ataques realizados pela milícia terrorista chamada de Estado Islâmico, esta linha de abastecimento de água autoconstruída também foi destruída. Atualmente, as pessoas de Kobane obtêm a sua água dos poucos poços existentes.

No entanto, essa água não se trata de água potável. Por isso, é utilizada apenas para questões de higiene e limpeza. A água potável está disponível apenas em garrafas PET fechadas. Porém, os estoques estão baixos e não será suficiente por muito mais tempo. Da mesma forma, há ausência de alimentos, especialmente de trigo e farinha, com os quais pelo menos as necessidades básicas de subsistência puderam ser cumpridas. O local de produção do pão, que era organizado pela administração da cidade, caiu sob o controle do EI com todo o seu estoque de farinha.

Outro problema é a fonte de energia. Pelo fato de que elas também são direcionadas pelo governo central, tem ocorrido um corte de energia desde 2 anos atrás. Por isso, aque os ataques do Estado Islâmico começassem, a população providenciava eletricidade via geradores. Porém, o EI atacou e destruiu o depósito de combustível para os geradores. A insuficiência de combustível não só causa problema para gerar energia, como também constitui um grave problema para a temporada de inverno que se aproxima, já que o combustível também é utilizado para os aquecedores a óleo. Além disso, há falta de roupas de inverno, especialmente casacos e sapatos. Quando as pessoas fugiram de seus vilarejos, eles tiveram que deixar todos os seus pertences para trás.

Além disso, a assistência médica revela-se um sério problema. Os três hospitais existentes foram todos destruídos. Atualmente, uma casa abandonada funciona como local temporário à assistência aos pacientes e é gerido por apenas um médico voluntário. No entanto, devido à falta de medicamento, não é possível tratar muitas doenças. Embora alguns equipamentos médicos estejam disponíveis, estes não podem ser utilizados em operações importantes, visto que a fonte de energia, a qual é necessária a estes dispositivos, seja inexistente. Como resultado dos desumanos ataques da milícia terrorista, não apenas muitas pessoas foram feridas, como muitos ainda continuam sendo alvos de violência, além de que os cadáveres em decomposição e os bombardeios facilitam o alto risco de epidemias. Por causa dos constantes ataques do EI em curso, e da falta de material técnico, não é possível remover os cadáveres.

Estimamos que o povo de Kobane só pode sobreviver por mais um outro mês* com o estoque existente de alimentos, água e óleo para aquecimento. Entretanto, o fluxo de pessoas que regressam da Turquia para Kobane torna difícil dar um prognóstico detalhado. Ainda, acima de tudo, o abastecimento de água potável representa um enorme problema.

Portanto, nosso objetivo é atrair o público e a comunidade internacional com esta carta.

Exigimos:

A criação de um corredor para a ajuda humanitária sob o controle da ONU.

Delegação internacional de especialistas para analisar a situação em Kobane.

Garantir água potável e fornecimento de alimentos.

O envio de equipes internacionais de médicos para atendimento.

Equipamento técnico para a reconstrução da cidade.

*Nota de revisãono texto original encontra-se a palavra “moth”(mariposa), a qual acreditamos ter sido digitada errado, devido à falta de sentido. Portanto, pelo contexto, acreditamos que a palavra correta seja “month”(mês).

“Construiremos um Curdistão livre, sob a liderança das mulheres”

kobane

Fontehttp://newrozeuskalkurduelkartea.wordpress.com/2014/11/26/construiremos-un-kurdistan-libre-bajo-el-liderazgo-de-las-mujeres/

Tradução livre por Talita Rauber e revisão por Arthur Dantas

“Construiremos um Curdistão livre, sob a liderança das mulheres”

       Dirigindo-se a milhares de mulheres que marcharam de Dewser até o povoado de Mehsar (província de Urfa), na fronteira com Kobanê, para comemorar o 25 de novembro, Dia da Eliminação da Violência contra as Mulheres, a co-presidente da PYD (Partido da União Democrática), Asya Abdullah disse que elas, como mulheres curdas, davam as boas-vindas mais calorosas a todas as mulheres que haviam se reunido na fronteira em solidariedade com as combatentes das YPJ¹.

A. Abdullah também disse que “sempre se lembrariam de todas aquelas que haviam caído em batalha, salientando que as mulheres curdas, herdeiras de seu exemplo, estavam realizando uma revolução histórica em Rojava. Milhares de mulheres caíram na luta pela liberdade, centenas delas em Sinjar e Kobanê. A revolução das mulheres continua”.
Prosseguiu afirmando que a história está sendo reescrita em Kobanê, e que a resistência das YPJ tem sido a resposta à dominação machista e ao feminicídio, insistindo que a revolução em Rojava é uma chamada a todas as mulheres do mundo.
A co-presidente continuou dizendo que “a resistência em Kobanê segue muito firme, graças ao trabalho das mulheres, não esquecendo da resistência das mulheres em Sinjar. “As mulheres seguem combatendo em todas frentes de batalha, apesar de todos os ataques que têm que enfrentar. Enquanto ainda lutam na linha de frente, por outro lado, contribuem para a construção de uma vida democrática em toda a região do Oriente Médio, dominado pelo machismo. Nenhum ataque pode intimidar as mulheres que estão liderando a marcha para a liberdade nas quatro partes do Curdistão”.
Ela concluiu dizendo o seguinte: “Construiremos um Curdistão livre, sob a liderança das mulheres.”
Fonte ANF.

Nota de tradução:
¹ – YPJ: Unidades de Proteção das Mulheres; em curdo, Yekîneyên Parastina Jinê;

Entrevista com um comunista libertário ucraniano: “Os anarquistas se tornaram o maior obstáculo à anarquia”

Fonte: Aqui, postado pela FARJ – Federação Anarquista do Rio de Janeiro – Organização Integrante da Coordenação Anarquista Brasileira, em 03/12/2014.

Entrevista com um comunista libertário ucraniano:
“Os anarquistas se tornaram o maior obstáculo à anarquia”

Donetsk, cidade no sudeste da Ucrânia é palco de confrontos entre separatistas pro russos e a população ucraniana. Um militante comunista libertário que lá vive e milita, nos deu alguns instrumentos para compreender quais são as forças presentes e as razões da letargia do movimento libertário.

Qual é a situação na Ucrânia?

A vida continua com duas realidades paralelas: as pessoas continuam com sua vida cotidiana, com as crianças ao redor, com o mesmo lugar dos mortos, da violência, do ódio. A divisão da sociedade se reforça a cada dia. É uma revolução política da burguesia nacional, em um contexto de guerra civil e de uma intervenção mal dissimulada da Rússia.

 

Qual é a composição social dos manifestantes do sudeste e dos de Maïdan?

Maïdan e os separatistas do sudeste não diferem muito um do outro. Os dois agrupam uma diversidade de classes sociais, intelectuais, empregadas(os), empresários, ruralistas, estudantes, lupemproletariado, antigos militares…Todos viraram reféns e marionetes dos clãs econômicos.

As pessoas de Maïdan colocaram no poder novas oligarquias e a gente do sudeste deixou de dormir por conta da família do presidente deposto Yanoukovitch e de seu mestre em Moscou. Toda essa retórica é perfumada pelo nacionalismo, como resultado das feridas sangrentas e da cólera durante décadas. Na realidade, o inimigo está no Kremlin, no Capitólio americano e no parlamento alemão. Os líderes de Maïdan assim como os líderes separatistas, são frações da burguesia nacional e de seus componentes radicais.

À leste, eles intimidam as pessoas com o partido de direita Pravyi Sektr (Setor de Direita), e lhes chamam ao combate do fascismo, mesmo que eles se inspirem no fascismo imperial da nação russa. Em Donetsk, segundo sua lógica, você pode escolher em ser russo ou ser um fascista. Em uma palavra, você está abatido ou está morto. Isso aconteceu em Maïdan e acontece agora no sudeste.

 

O que se pode dizer sobre o referendum do 11 de maio (1)?

É um referendum marcado por seus postos de votação sem observador e sob o olhar atento de pessoas disfarçadas. Foi uma farsa inscrita em uma estratégia visando criar repúblicas populares independentes, e depois pedir sua admissão na federação russa. Mas tem uma grande parte das pessoas de Donetsk e de sua região que são partidários de uma Ucrânia unida. Os separatistas são melhores organizados, têm os melhores recursos administrativos e o apoio do estado vizinho, isso é tudo.

 

Você acha que tem especialistas russos no sudeste?

Eu não acho, eu tenho certeza. E muitos dentre eles estão nas bases de treinamento nas regiões de Donetsk e Lugansk, onde grupos de 400 a 500 habitantes e voluntários da Rússia treinam sob a direção de instrutores militares (…) A maioria das pessoas que defendem a bandeira separatista são habitantes, trabalhadores ordinários ou veteranos das forças armadas. Mas um número significativo e que organiza o processo com autoridade, é formado por voluntários da Rússia. O fornecimento de armas e de dinheiro vem da Rússia. O chefe atual do governo em Donetsk, que se proclama “República Popular”, é Boroday. Estratégia desenhada pela administração do Kremlin.

 

Tem alguma possibilidade dos protestos se transformarem numa revolução social?

Neste momento, é um cenário improvável. Uma revolução social é possível unicamente na presença de dois fatores: uma demanda das massas por uma transformação radical e a organização política de viés revolucionário dos anarquistas, que será capaz de defender o processo de mudança.

Na realidade, não há nenhuma demanda por uma revolução social. A única mudança imaginada está no interior do quadro político. E mesmo esses tímidos rebentos de anti-autoritarismo que puderam se manifestar, se não forem sustentados por uma organização revolucionária e anti-autoritária forte, serão destruídos pela agenda política da burguesia e pelos partidos nacionalistas.

 

Quais são as perspectivas para os anarquistas no contexto atual?

O principal problema do movimento anarquista é a ausência de uma organização anarquista. Os anarquistas têm estado incapazes de usar a situação porque estão presos às ilusões anti-organizacionistas.

A organização é uma incubadora, uma escola, uma sociedade de apoio mútuo e uma plataforma produtiva para idéias e projetos; mas o mais importante, ela é um instrumento para a realização das idéias, um instrumento de influência e um instrumento de luta. Ela não pode ser substituída por grupos de afinidade.

Os anarquistas de hoje, como em 1917, perderam a oportunidade de serem influentes no processo. A RKAS (2) reivindicando o anarquismo plataformista de Makhno sobreviveu a muitas crises, se implicando na greve dos mineiros, e teve muitos projetos a longo prazo, mas que não foram sem desacordos e cisões internas.

A gente pode se lembrar da propaganda anti-eleitoral da cisão da RKAS, a Mezhdunarodnyj Souz Anarkhistov [3] em Donetsk. Os divisionistas argumentaram sobre o prentenso autoritarismo da RKAS. Uma vez liberados da “ditadura do escritório organizacional da RKAS”, que lhes fez ir às minas e usinas propagandear o jornal Anarquia, e discutir com os sindicatos e com as cooperativas, e construir uma “guarda negra” auto-disciplinada, eles mostraram suas capacidades estratégicas e ideológicas colando cartazes feitos à mão contendo a seguinte mensagem “Não vá às eleições, coma legumes”.

 Todas as tentativas para construir uma organização através do projeto RKAS deram lugar a uma cruzada contra “o autoritarismo e extremismo”. Finalmente os anarquistas se tornaram o maior obstáculo à anarquia. Eu recorro a esse paradoxo para chamar a sua atenção sobre esta velha doença “a anti-organizacão”, destruidora e irresponsável (…)Talvez a RKAS renasça se dando conta de todos os seus erros e se modernizando, talvez nós criaremos algo novo (…) Nós não a abandonaremos e nós não desapareceremos.

 

Em que você está engajado neste momento?

Infelizmente eu não posso lhe dizer tudo. Caso contrário, muita gente e eu mesmo teremos múltiplos problemas, e nós temos muitos projetos para o futuro. Oficialmente a RKAS foi dissolvida, mas seu núcleo se movimenta nas ações ilegais.

 

Este texto é um resumo, reformulado por Jacques Dubart, de uma entrevista com um mlitante da RKAS – Confederação Revolucionária dos Anarco-sindicalistas _ acessível sobre anarkismo.net, traduzido do texto publicado em inglês no 9 de agosto.

[1] Referendum de auto determinação, assim que Donetsk “pediu” sua anexação à Rússia.

[2] Confederação Sindical Anarquista Internacional.

[3] União Internacional dos Anarquistas.

Nota do Coletivo Anarquia ou Barbárie sobre as recentes denúncias de abuso machista na internet

Desenho à mão, editado digitalmente. Por Talita Rauber.

“Potência”. Desenho à mão, editado digitalmente. Por Talita Rauber. 2014.

        Com vistas das recentes denúncias sobre assédio, abuso e opressão machista sobre mulheres, vindos de um conhecido intelectual de esquerda e professor universitário, o Coletivo Anarquia ou Barbárie se posiciona em completa solidariedade com as vítimas, não só em relação aos abusos por elas sofridos como aos ataques que vêm sofrendo de outros intelectuais, de chargistas e grupos inteiros autoproclamados de esquerda que desfilam pelas redes sociais mandando às favas os escrúpulos de consciência política, de empatia, de mínimo respeito mútuo, ideológico e de bom senso com relação às vítimas de opressão.

       Não é preciso ser doutor para ver, nos diálogos publicados, demonstrações de enorme machismo e posição dominador,a, opressora, de competição hierárquica entre homens e submissão de mulheres, com relatos de redução de um momento de violência contra uma mulher e ridicularização disto com fins de sedução a uma menor. Estes relatos podem ser obtidos aqui, e comentários sobre o caso podem ser lidos aqui, aqui, e aqui. A resposta do professor, aqui.

      Nos diálogos publicados, nas defesas ao professor por seus amigos e mesmo na sua resposta, há a incrível sucessão de fé na ação opressora como “natural” e na permanência da opressão e do lugar de fala opressor como saída, além da clássica criminalização das denúncias e das denunciantes, com defesa de uma prática machista como regra.

     Ao buscar solução na justiça, com a mesma sanha punitivista que se fez regra condenar até se ver alvo de denúncias, se continua um processo de criminalização das vítimas, de reforço ao lugar de fala machista e de manutenção da opressão, e contra isso o coletivo Anarquia ou Barbárie se manifesta de forma veemente.

     O coletivo anarquia ou Barbárie se posiciona ao lado das vítimas e em apoio eloquente, em solidariedade ampla e se manifesta como defensor das vítimas de abuso contra todas as máquinas de opressão, sejam as máquinas estatais e legais, sejam as manobras difamatórias que tramam chamar de hipocrisia a resistência e a denúncia de opressão.

       Não adianta lutar pela transformação do mundo só até a página dois, ou declarar louvores à ação direta, e oprimir as companheiras.

Rádios livres e a emergência de uma sensibilidade pós-mediática

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Por Franco Berardi

Fonte: Protopia


A comunicação independente que, nas últimas décadas, se manifesta nas rádios livres, o mediativismo, as tvs de rua, a subversão, etc .podem ser considerados como expressão e a prefiguração do que felix guatarri chavama “civilização pós mediática”. A independência da comunicação é um desafio frente (contra?) ao poder. Para compreender o sentido, é útil partir da noção guattariana de agenciamento coletivo e refletir sobre a diferença entre o conceito de automatismo e aquele de dispositivo técnico.

Nos anos 70 teve lugar um processo de comunicação independente que podemos considerar como antecipando aquilo que se tornou hábito chamar de mediativismo no movimento global que surgiu em Seattle. Nesse processo de comunicação independente havia qualquer coisa a mais que uma reivindicação democrática da comunicação: um princípio de auto-organização do trabalho cognitivo, a procura de linhas de fuga do sistema de poder mediático que se estavam já constituídas sob diversas formas, sejam públicas, sejam privadas nesse período de modernidade tardia.

Félix Guattari participou com entusiamo, que o caracterizava, desse movimento e com inteligência capaz de ultrapassar as contingências políticas do momento, e de prever a formação de uma sociedade pós-mediática. No texto “Milhões e milhões de Alices de potência”[1] de 77 como prefácio a Rádio Alice, Rádio Livre, Guattari escrevia:

«…a polícia liquidou Rádio Alice, (purchassés) condenou os programadores, seus locais foram pilhados, mas seu trabalho revolucionário de desterritorialização persiste (persegue?) (inlassablement) até as fibras nervosas de seus persecutores.»

Félix não fala da rádio alice como uma ferramenta de comunicação, mas como um dispositivo capaz de provocar ou acelerar um processo de desestruturação do sistema mediático, resultando desse movimento de reapropriação da palavra que se exprime nos anos 60 e 70, e não somente na Itália. Aquilo que interessava, sobretudo, era um começo de um processo de proliferação dos agentes de enunciação destinados a fazer explodir o modelo de mass-media. Uma empresa de desestruração do sistema nervoso do poder teria assim começado, e esse processo se seguiria desde então sob milhares de formas, abrindo vias (liberatrices), mas podendo assim conduzir à catástrofe e ao pânico.

Quando Félix morreu no começo dos anos 90, a febre da world wide web começava a expandir, e, nos anos seguintes, essa febre transformou o sistema de comunicação global com a introdução do princípio de tipo rizomático que recolocava em questão o modelo centralizador das medias. O que nos interessa hoje no movimento de rádios que começou nos anos 70, é a antecipação de uma tendência pós mediática que se vislumbra no horizonte. Uma socialidade na qual os fluxos de comunicação não são mais dirigidos do alto para um público passivo, mas funcionando como uma malha bem fechada de trocas rizomáticas entre emissores que se encontram sobre o mesmo plano.

Félix sempre se situou do ponto de vista da rede, mesmo quando a palavra não tinha o sentido que tem hoje para nós, mesmo quando a world wide web não existia.O conceito de rizoma antecipava a realidade tecno-nomádica da rede. “O caos democrático (recèle) uma multitude de vetores de ressingularização, de atratores de criatividade social em via de atualização” Podemos considerar a aparição das rádios livres como uma repetição geral da emergência desses vetores de ressingularização, desses atratores da criatividade social. A expressão “vetor de ressingularização” indica precisamente um efeito de des-mediação.

O meio (medium) é um instrumento capaz de potencializar uma faculdade humana, capaz de funcionar como extensão do corpo e de sua potência. Contudo, as massmedia modernas potencializaram a inteligência humana para obter o efeito paradoxal de despossuir inteligência, elas potencializaram a imaginação para (en tarir) a imaginação concreta. Elas submeteram a potência ao poder, e a exploração da potência mental pelo poder se manifesta hoje em uma demência de massa, por uma psicopatologia difusa, pela depressão, pânico.

As rádios permitem uma extensão universal da potência da voz, mas dentro de uma história concreta do século XX o meio radiofônico se tornou amplificação da voz do poder e tem ao mesmo tempo empobrecido, minimizado, aniquilado a voz da sociedade real. Basta pensar na maneira como a Alemanha nazista utilizou o rádio, fornecendo um aparelho receptor a cada cidadão para que a voz do ódio preenchesse as orelhas de cada um. E basta pensar como David Sarnoff, chefe da RCA, submeteu o meio radiofônico aos interesses das empresas.

Até aqui o problema que se coloca à prática de comunicação independente foi de descolar a riqueza das mídias tecnológicas do funcionamento social que sua subserviência ao poder tomou lugar. Mas uma tal (détricolage) é possível? Podemos pensar que o agenciamento maquínico constituído por um médium possa funcionar segundo uma finalidade e uma modalidade semióticas diferentes daquelas que foram incorporadas ao curso de sua história social?

É necessário refletir aqui sobre o conceito de dispositivo, para distinguir os dispositivos dos automatismos. As medias são dispositivos que tendem a modelar os agenciamentos comunicacionais e os efeitos sociais, imaginários e culturais que esses agenciamentos podem produzir. *”[A] mensagem de um medium ou de uma tecnologia se encontra na mutação das proporções e dos ritmos e dos esquemas que ele introduz nas relações humanas” *diz Mac Luhan. Nós devemos tomar em consideração não o conteúdo, mas o meio ele mesmo e a matriz cultural na qual ele age, assim como os efeitos psíquicos e sociais das medias?.

Há implicitamente nessa afirmação uma perspectiva determinista que apaga toda possibilidade de independência da comunicação. Mas um dispositivo não pode ser considerado como um automatismo. Os automatismos são de sequências técnicas estruturadas de maneira rígida segundo um modelo algorítmico do qual é impossível se distanciar, porque as implicações técnicas e semióticas não são senão um efeito historica e culturalmente possíveis, mas que não está inscrito na estrutura mesma do agenciamento técnico.

Sabemos que o uso e a função de uma tecnologia em geral, e de um meio de comunicação em particular, são ligados à estrutura do meio (medium). Mas trata-se de uma predisposição, não de um implicação automática. Graças a essa distinção entre dispositivo e automatismo que uma prática de comunicação independente se torna possível, enquanto ela seria impensável se os agenciamentos técno-mediáticos funcionassem inexoravelmente como automatismos. Politicamente, a comunicação independente se propõe justamente a utilizar de maneira ativa essas tecnologias (como rádio, tv, ou mesmo propaganda) cuja função estrutural é de induzir a passividade do usuário. Aquilo que chamamos media-ativismo, após alguns anos, nasce precisamente dessa intenção de liberar o meio dos efeitos de semiotização produzidos por sua utilização social. *A visée do mediativismo constitui um desafio ao determinismo*.

O mediativismo não propõe um uso alternativo das medias no sentido do conteúdo: trata-se antes de curta-circuitar o meio no nivel de sua estrutura, dentro de seu sistema de funcionamento linguístico, tecnológico, de se atacar aos agenciamentos, às interfaces, de reagenciar e de refinalizar o dispositivo, e não somente o conteúdo que ele produz. Mas essa (gagueure) não tem sentido se o meio (qualquer que seja, não somente rádio) pode ser considerado como um dispositivo. É impossível, ao contrário, se estima-se que o meio é um automatismo, uma sequência necessária em suas implicações técnicas, estruturais, linguísticas e funcionais.*

A maneira de operar o mediativismo pode ser considerada como uma primeira manifestação do processo de reagenciamento cognitivo. Com o mediativismo emerge a consciência da ductibilidade da relação entre uso da estrutura e funções de uma tecnologia de agenciamentos como tecnologia eletrônica. O info-trabalho tem a possibilidade de reagenciar os elementos constitutivos do processo de produção, enquanto o trabalho mecânico e industrial não o têm. Essa é a diferença fundamental entre as tecnologias industriais e as tecnologias digitais.

Se pensamos na cadeia de montagem da indústria mecânica, podemos ver bem que não há nenhuma possibilidade de reconfigurar esse agenciamento. Ele é produzido para submeter o tempo do operário ao ritmo da exploração. Não há nenhuma possibilidade de nele introduzir a mutação, podemos somente sabotá-lo,*le ralentir, l’endommager*, destruí-lo. Se pensamos ao contrário sobre o ciclo do trabalho digital, vemos que a questão é muito mais complexa e que cada sequência produtiva apresenta bifurcações, aberturas, possibilidades de finalização alternativa. O trabalho cognitivo é convocado dentro da sequência produtiva e pode intervir conscientemente, modificando a estrutura mesma do ciclo e reagenciando-a para finalidades independentes. O trabalho cognitivo tem a possibilidade de reagenciar, quer dizer, de modificar os agenciamentos tecno-semânticos do dispositivo e então refinalizá-los.

Se pensamos na enorme desproporção entre a força econômica que dispõe o poder e aquele que dispõe a sociedade, nós nos perguntamos: como podemos modificar o funcionamento de um meio, quebrar a dominação sobre a comunicação e criar agenciamentos autônomos?

Rádio Alice foi uma tentativa de responder a essa questão, assim como as experiências recentes dos militantes do mediativismo subversivo. E a resposta vai nessa direção: não se trata de reagir à força do poder opondo a ele uma força igual, conteúdos contra conteúdos. Trata-se ao contrário de introduzir nos interstícios da comunicação social os fatores de desvio, de ironia e *décloisonnement*, trata-se de encontrar as linhas de fuga capazes de fazer “delirar” o fluxo dominante e de fazer emergir o obsceno, o que resta fora da cena.

“Não há nada tão grande, ou revolucionário, quanto o menor” escrevem os autores de Kafka, para uma literatura menor. É precisamente lá que nós estamos. O menor não é minoritário, porque ele se põe em um certo ponto a proliferar. O menor pode revelar uma linha de fuga, um princípio de reagenciamento do quadro todo. E essa linha de fuga pode se difundir, pode permitir a milhões de moléculas sociais (milhões de alices em potência) e de deslocar segundo uma lógica comunicacional que não é compatível com a reprodução do poder.

O meio televisivo é estruturalmente construído para transformar a gente em espectadores, em receptores passivos de um fluxo que tem características hipnóticas e subliminares. Está claro que esse agenciamento comunicacional e tecnológico do tubo catódico e da tela, do éter e do satélite, está construído para que possamos assistir, sentados e mudos. E não se trata somente dos conteúdos discursivos, ideológicos ou publicitários que veiculam o meio. Trata-se de uma modelização da relação social, do comportamento e da linguagem.

O fluxo, a imagem, o barulho, a solicitação de um sistema muscular,do sistema nervoso e da vida agem como dispositivos do conhecimento da relação social. E, contudo, mesmo o meio televisivo pode ser atravessado pelo fluxo de comunicação independente, pode funcionar como fator de reagenciamento ativo. A experiência recente das tvs de rua italianas (david garcia e cia) vai justamente nesse sentido. As tvs de rua fazem surgir uma linha de fuga sobre o plano do agenciamento técnico: o micro transmissor televisivo funciona em um espaço geográfico muito limitado, um espaço de poucas centenas de metros, invadindo o éter nos espaços sombra, frequências que não são utilizadas nem oficialmente atribuídas.

As tvs de rua entram em uma relação de troca e colaboração sobre a rede telemática, enviando seus produtos a um servidor comum, e *en puisant *no mesmo servidor suas transmissões. Em suma, o meio televisivo se encontra assim transformado em rede de proxi-visão. O meio publicitário, que é um dispositivo, pode mesmo ser reestruturado e reagenciado em função das intenções completamente diferentes daquelas da empresa, da propaganda, se a linguagem do mercado se encontra desviada para mostrar a miséria e loucura que a dominação do mercado difundem sobre o estado mental coletivo.

Graças a uma ação de redefinição do contexto e a uma mutação do imaginário, as rádio livres puderam (PODEM!) agir enquanto um reagenciamento proliferando de um dispositivo que vinha funcionado até então como dispositivo centralizador, e modificar a relação entre emissor e receptor e os agenciamentos internos ao funcionamento das transmissões. A utilização do telefone ao vivo foi um elemento de reagenciamento que quebrou o caráter centralizador do sistema de rádio e abriu a via aos agenciamentos experimentais de diversos tipos.

Nos anos 70, o telefone ao vivo a possibilidade de inserir nos fluxos radiofônicos a voz da audiência era um escândalo do ponto de vista do sistema mediático. Não tanto porque os conteúdos levados pela voz da rua seriam intolerados pelo poder, mas porque isso destruia o filtro entre emissor e receptor sobre o qual se fundava à época a sacralidade do meio e sua funcionalidade para o poder. Isso não significa que o “ao vivo” na rádio seja em si e para si uma coisa a mais banal e mesmo o vetor da estupidez social dominante.

Mas nos anos 70 o ao vivo introduz um princípio reticular e proliferando dentro do funcionamento estruturado do meio. É por isso que podemos considerar essa experiência como uma antecipação da rede, representando uma incarnação daquilo que Félix chamava *socialidade pós-mediática*. Naturalmente a Internet não é também um automatismo, mas um dispositivo, e por isso suas supostas vias libertadoras não são um programa inscrito necessariamente nessa estrutura, mas uma disposição, uma possibilidade, uma potência que se atualiza somente em certas condições sociais e imaginárias.

Referências

  1.  Des millions et des millions d’ Alice en puissance », Préface de Félix Guattari à Radio Alice, Radio libre, par le Collectif A Traverso, Laboratoire de sociologie de la connaissance. Éditions Jean-Pierre Delarge ( Juin 1977)

Tradução e Revisão:9s

A Era da Angústia

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Por John Zerzan

Fonte: Anarco-Primitivismo

Envolve-nos um sentimento difundido de perda e mal-estar, uma tristeza cultural que somente pode ser comparada ao indivíduo que sofre uma perda pessoal.

Um capitalismo hiper-tecnológico está a fazer desaparecer a textura viva da existência, enquanto a maior mortandade em massa do mundo, em 50 milhões de anos, continua em ritmo acelerado: 50 mil espécies de plantas e animais desaparecem a cada ano (WWF – Fundo Mundial pela Vida Selvagem, 1996).

A nossa angústia toma a forma de uma exaustão pós-moderna, com a sua dieta desgastante de um relativismo ansioso e constante, e o apego a um superficial que teme em ligar-se ao facto de uma perda assombrosa. O vazio fatal do consumismo ironizado é marcado pela perda de energia, dificuldade de concentração, sentimentos de apatia, isolamento social; exactamente aqueles citados na literatura psicológica sobre a lamentação.

A falsidade do pós-modernismo consiste na negação da perda, a recusa da lamentação. Desprovido de esperança ou uma visão do futuro, o “zeitgeist” (de origem alemã, significa um ambiente geral ou uma qualidade de um período particular da História, mostrado por ideias, crenças, etc comuns no tempo) reinante também reduz explicitamente, uma compreensão do que aconteceu e o por quê. Há uma proibição sobre pensar nas origens, que é acompanhada de uma insistência no superficial, no momentâneo, no infundado.

Paralelos entre a angústia individual e uma esfera em comum desolada e aflita estão enraizadas. Considere o seguinte enunciado do terapeuta Kenneth Doka (1989): “A angústia ‘deslegitimada’ pode ser definida como a angústia que as pessoas vivem quando sofrem uma perda que não é ou não pode ser completamente admitida, publicamente lamentada, ou socialmente apoiada”. A negação de um nível individual fornece uma metáfora inescapável; a negação pessoal, tão frequentemente e exaustivamente compreendido, introduz a questão da recusa para se entender profundamente a crise que ocorre a cada nível.

Introduzido no milénio estão vozes dos quais a marca é a oposição da própria narrativa, escapando de qualquer tipo de conclusão. O projecto modernista ao menos fez sala para o apocalíptico; agora somos separados a pairar para sempre num mundo de aparências e simulações que asseguram a ”rasura” do mundo real e a separação do eu e do social. Baudrillard é obviamente emblemático sobre o “fim do fim”, baseado no seu prognóstico “extermínio do significado”.

Devemos direccionar-nos novamente para a literatura psicológica para uma descrição apropriada. Deutsch (1937) examinou a ausência de expressão de angústia que ocorre após alguma perda e considerou isto uma tentativa de defesa do ego de se preservar a si mesmo face a uma ansiedade esmagadora. Fenichel (1945) observou que a angustia é primeiramente experimentada em doses muito pequenas; se fosse liberada  totalmente, o sujeito poderia sentir um desespero esmagador. Similarmente, Grimspoon (1964) notou que “as pessoas não podem arriscar sendo esmagadas pela ansiedade, o que força acompanhadamente uma compreensão cognitiva e afectiva total da situação actual do mundo e das suas implicações para o futuro”.

Com estes conselhos e cuidados em mente, é óbvio portanto que a perda deve ser encarada. Tudo o mais, portanto, no reino da existência social, onde em distinção de, digamos, a morte de um ente querido, uma crise de proporções monumentais deve ser direccionada para uma solução transformadora, e não mais negada.
A repressão, mais claramente e presentemente experimentada via fragmentação e superficialização pós-moderna, não extingue o problema. “O reprimido”, de acordo com Bollas (1995) “significa o preservado: escondido na tensão organizada do inconsciente, os desejos e as suas memórias estão constantemente lutando para achar algum modo de satisfação no presente – o desejo refuta a aniquilação.”

A angustia é a contradição e destruição do desejo e assemelha-se muito a depressão; de facto, muitas depressões são precipitadas por perdas (Klerman, 1981). Ambos, angustia e depressão devem ter a fúria nas suas raízes; considere por exemplo a associação cultural da cor preta com a angustia, com o luto e com a fúria.

Tradicionalmente, a angustia tem sido vista como causadora do cancro. Uma variação contemporânea sobre esta tese é a noção de Norman Mailer de que o cancro é a insalubridade de uma sociedade demente tornada intima, estendendo-se nas esferas públicas e pessoais. Novamente, uma plausível conexão entre angustia, depressão, e fúria – e a evidência, penso eu, de uma repressão em massa. Os sinais são abundantes a respeito do enfraquecimento das defesas imunes; juntamente com o crescimento dos materiais tóxicos, parece existir uma elevação do nível de angustia e das suas concomitantes. Quando o significado e o desejo são tão dolorosos, tão desesperado para admitir ou prosseguir, os resultados acumulados apenas somam na catástrofe agora em expansão.

Olhar para o narcisismo, o modelo guia actual de carácter, é olhar o sofrimento como um conjunto de mais e mais aspectos próximos relacionados. Lasch (1979) escreveu sobre tais características peculiares da personalidade narcisista numa inabilidade de sentir, superficialidade ou pouca profundidade procectora, uma hostilidade repressora crescente, e um senso de irrealidade e vazio. Desta forma, o narcisismo também poderia ser agrupado sob o titulo da angustia, e uma ampla sugestão surge com possível grande força: Existe algo profundamente errado, algo no coração de toda esta tristeza, porém, muito disto é comummente rotulado sob varias categorias separadas.

Numa exploração de 1917, “Luto e melancolia”, um perplexo Freud questionou o porquê da memória de “cada único individuo sobre as memórias e esperanças” que são conectadas com a perda de um amado “devem ser tão extraordinariamente dolorosas”. Porém, lágrimas de angustia, é dito, são basicamente lágrimas para si mesmo. A intensa tristeza numa perda de uma pessoa, trágica e difícil como certamente é, deve ser de alguma maneira também uma vulnerabilidade para a tristeza sobre uma mais ampla e geralperda (que não abarca apenas a nossa espécie).

Waslter Benjamim escreveu Theses on History (“Teses sobre a Historia”) alguns meses antes da sua morte prematura em 1940, numa fronteira fechada que evitava a fugas dos Nazis. Quebrando os confinamentos do marxismo e da literatura, Benjamim alcançou um ponto alto do pensamento crítico. Ele viu que a civilização, a partir da sua origem, é a tempestade que esvaziou o Éden, viu o progresso como uma única e continua catástrofe.

A alienação e a angustia foram altamente, senão inteiramente, desconhecidas. Hoje o índice de depressão profunda, por exemplo, dobra a cada dez anos nos países desenvolvidos (Wright, 1995).

Como Peter Homans (1984) colocou habilmente, “o pesar não destrói o passado – reabre as relações com o passado e com as comunidades do passado”. Uma mágoa autêntica coloca a oportunidade de entender o que tem sido perdido e o porquê, e também requer a recuperação de um estado de ser inocente, no qual a perda desnecessária é banida.