Nós os Ecologistas, nós os Anarquistas

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Fonte: Protopia

Murray Bookchin

Hoje em dia, nossa relação com o mundo natural está atravessando uma fase crítica que não tem precedente na história da espécie humana. Estudos recentes sobre o “efeito invernal” (esfriamento global?) conduzidos nos Estados Unidos, demonstram que temos que encontrar desde agora a maneira de fazer diminuir a porcentagem de monóxido de carbono presente na atmosfera na qual vivemos. Caso contrário, não somente ocorrerão graves mutações químicas, como também a própria sobrevivência da espécie humana estará em grave perigo.

Não se trata nada mais do que de um problema de contaminação pelos venenos com os quais nos alimentamos. A alteração dos grandes ciclos geoquímicos poderia por fim à vida humana sobre este planeta. De minha parte estou consciente da necessidade de reagir imediatamente para neutralizar os processos que estão deteriorando a Terra. Sou totalmente solidário à muitos grupos ambientalistas, e nos últimos 30 anos tenho estado envolvido cotidianamente em atividades para a defesa do ambiente: contra usinas nucleares, contra a construção de novas estradas, contra a destruição do solo e o uso descontrolado de pesticidas e de biocidas, e pela promoção da reciclagem e de um crescimento qualitativo, não só quantitativo.

Estes problemas ambientais têm me preocupado por anos e décadas, tanto quanto atualmente continuam me preocupando. Estou de acordo com vocês sobre a necessidade de bloquear os reatores nucleares e de por fim à contaminação da atmosfera, das terras agrícolas e dos cultivos, ou seja, de libertarmo-nos dos venenos que se estão difundindo por todo o planeta e que põem em perigo a nossa espécie e toda a vida. Compartilho com vocês tudo isso, mas gostaria de ir um pouquinho mais além com nossos Plateamentos.

De fato penso que é essencial o empurrar sempre mais além o nosso questionamento, porque não podemos seguir pondo mais remendos (parches) aqui e ali que não resolvam os verdadeiros problemas. Possivelmente conseguimos um dia fechar uma fábrica que polui (inquina) a atmosfera. Mas no fim, o que conseguimos? Uma nova usina nuclear. Vivemos em um mundo baseado em intercâbios e contrapartidas, e seguimos nos comportando de acordo com essas leis. Definitivamente, passando de um mal maior a um mal menor, e de um mal a outro mal, seguimos piorando a situação geral. Não se trata só de uma questão de usinas para a produção de energia – por mais importante que elas sejam -, nem tampouco o problema dos gases poluentes, nos danos que causamos à agricultura, ou o congestionamento e poluição dos centros urbanos.

O problema é outro mais grave: estamos simplificando o planeta. Estamos dissolvendo os ecossistemas que se formaram em milhares de anos. Estamos destruindo as cadeias alimentares. Estamos rompendo as ligações naturais e levando o relógio evolutivo a um atraso de milhões de anos no tempo. Para a época em que o mundo era muito mais simples e não se encontrava a possibilidade de sustentar a vida humana.

Uma Visão Do Mundo Mais Coerente

Não se trata de nada mais do que a tecnologia, mesmo que o controle tecnológico seja muito importante. É claro que necessitamos de uma tecnologia baseada na energia solar e na eólica, e necessitamos novas formas de agricultura. Sobre isso não há dúvidas, estamos todos de acordo. Mas existem problemas de fundo, muito mais graves que aqueles criados pela tecnologia e pelo desenvolvimento moderno. Temos que buscá-los nas próprias raízes do desenvolvimento. E, antes de tudo, temos que buscá-los nas origens de uma economia baseada no conceito de “crescimento”: a economia de mercado; uma economia que promove a competição e não a colaboração, que se baseia na exploração e não na harmonia. E, quando digo viver em harmonia, entendo não somente o fazê-lo com a natureza, senão com as próprias pessoas.

Temos que empurrar até a construção de uma sociedade ecológica que mude completamente, que transforme radicalmente, nossas relações básicas. Enquanto vivermos numa sociedade que marcha em busca de conquista e poder, fundada na hierarquia e na dominação, não faremos nada mais do que piorar o problema ecológico, independentemente das concessões e pequenas vitórias que conseguirmos ganhar. Por exemplo, na Califórnia, doaram-nos alguns hectares de árvores, e logo derrubaram (talado) bosques completos. Na Europa estão fazendo a mesma coisa.

Prometem acabar com as chuvas ácidas, e as chuvas ácidas seguem caindo. Decidem por no mercado alimentos naturais, não contaminados por pesticidas e, efetivamente, a porcentagem de veneno diminui, mas o pouco que resta está constituído pelos venenos mais perigosos para o organismo.

Nosso problema não é só melhorar o ambiente, ou parar as usinas nucleares, bloquear a construção de novas estradas, ou a construção, expansão e superpopulação das cidades, a contaminação do ar, da água e dos alimentos. A questão que temos que enfrentar é muito mais profunda.

Temos que chegar a uma visão de mundo muito mais coerente. Não temos que nos por a proteger os pássaros esquecendo-nos das usinas nucleares, e tampouco lutar contra as usinas nucleares esquecendo dos pássaros e da agricultura. Temos que chegar a compreender os mecanismo sociais e fazê-lo de uma maneira coerente.

Temos que focá-los numa visão coerente, uma lógica que prevê a longo prazo uma transformação radical da sociedade e da nossa própria sensibilidade. Até que essa transformação radical comece, conseguiremos pequenas coisas, de pouca importância. Venceremos algumas batalhas, mas perderemos a guerra, melhoraremos algo, mas não obteremos nenhuma vitória. Hoje em dia, vivemos em um momento culminante de crise ambiental que ameaça a nossa própria sobrevivência, temos de avançar até uma transformação radical, baseada em uma visão coerente que englobe todos os problemas. As causas da crise têm de aparecer, claras e lógicas, de maneira que todos nós, juntos, possamos entendê-las. Em outras palavras, todos os problemas ecológicos e ambientais são problemas sociais, que tem a ver fundamentalmente com uma mentalidade e um sistema de relações sociais baseadas na dominação e nas hierarquias. Estes são os problemas que nos oferecem, atualmente, a grande difusão da cultura tecnológica.

Nenhum Presente Da Parte Do Estado

O que então têm que fazer os Verdes? Antes de tudo, temos que clarear as idéias. Temos de evidenciar as relações existentes entre os problemas ecológicos e os problemas sociais.

Temos de demonstrar que uma sociedade baseada na economia de mercado, na exploração da natureza e na competição acabará por destruir ao planeta. Temos de fazer o possível para entendermos que se queremos resolver de uma vez por todas nossos problemas com a natureza, temos de nos preocupar com as relações sociais. O povo tem de entender que tudo precisa unificar-se em uma visão de mundo coerente, em uma visão baseada em análise, em uma crítica e em soluções de nível político, pessoal e histórico.

Isso significa dar outra a força ao povo. Temos de criar uma cultura política com uma visão libertária não limitada a um projeto que o estado execute. Temos de criar uma literatura política, uma cultura política que leve pessoas à participação, libertando-se, autonomamente, deste tipo de economia, de sociedade e de sensibilidade.

No movimento feminista, começa-se a discutir o tema da dominação do homem sobre a mulher, principiando na própria da família. Nos movimentos comunitários, se fala de necessidades na “escala humana” e de dar força aos bairros, às comunidades, s regiões.

Estes são os argumentos importantes que se discutem nos Estados Unidos. Em relação à tecnologia, não temos de nos preocupar somente com que esta seja mais eficiente e renovável, temos de inventar uma tecnologia criativa, que não só leve consigo um trabalho mais criativo, mas que contribua para melhorar o mundo natural, ao mesmo tempo que melhore o modo e a qualidade de nossas vidas.

Porém, tudo isso não nos será alcançado desde cima. Não pode ser um presente que o Estado nos faça. Não pode traduzir-se em uma lei salpicada por um Parlamento. Tem de ser fruto de uma cultura popular, de uma cultura política e ecológica difundida pelo povo. Então não teremos mais de elaborar estratégias libertárias que conduzam as pessoas, o povo, a participar do processo de transformação social, porque se não são as pessoas a querer mudar a sociedade, então não se efetuará nenhuma mudança real ou radical. Quando falamos de Ecologia, falamos de participação no mundo natural. Dizemos que nós, como seres humanos, compartilhamos a esfera da vida juntos, com todos os demais seres vivos, e com eles buscamos aplicar um sistema de relações que nos faça partícipes do eco-sistema.

Mas eu lhes pergunto, queridos amigos, se queremos ser Verdes, se queremos “reverdecer” o planeta: Como podemos fazê-lo sem reverdecer a sociedade mesma? E se queremos reverdecer a sociedade: Como podemos pensar em uma participação do mundo natural a qual tome em consideração a participação popular na vida social?! Se, antes de tudo, queremos conquistar o poder para mudar a sociedade, lhes garanto que vamos perder. E não só porque alguns de nós, com toda a força de boa fé, se encontraram no Parlamento buscando fazer coalizões, fazer alianças, e usar o poder desde cima. De alguma maneira, eles também tornaram-se líderes espirituais aspirantes ao poder. Agora, raciocinam em termos de “males menores”, de um mal “sempre menor” que, no final, nos levará ao pior de todos os males. Isto é o que a história sempre nos ensinou.

Ecologia Profunda

Já é tempo de nós, os Verdes, propormos uma visão libertária, uma visão anarquista que leve as pessoas até um movimento Verde, que possa ser um movimento Verde no sentido mais profundo do termo. Um movimento Verde no qual não nos limitemos a levar adiante um projeto coerente e que unifique todos os problemas em um programa de análise comum, se não em um movimento no qual as pessoas sejam as primeiras protagonistas de sua história. Temos de apoiar a criação de uma sociedade libertária: ecolibertária. Isso é o que nos ensinaram as experiências alemãs e do Estados Unidos, alguns movimentos buscaram perseguir objetivos Verdes atuando “desde cima” através das leis, e sempre teve de ceder. Abandonar uma posição atrás de outra.

Com isso não quero dizer que não temos de nos empenhar em levar a cabo mudanças que possam atrasar ou bloquear a desagregação da sociedade atual e do mundo natural. Já sei que não temos muito tempo à nossa disposição. Os problemas são reais e envolvem também as duas gerações seguintes, e talvez nem sequer as duas gerações seguintes sejam decisivas pelo que diz respeito à sobrevivência de nosso planeta. De todas as formas, se não podemos dar às pessoas uma imagem unitária, uma visão prática e ética ao mesmo tempo, e que questionem as suas sensibilidades, então, vocês sabem quem vai tomar o poder neste caos?: a direita, os reacionários.

Hoje na América, a direita qualifica-se a si mesma como “a maioria moral”, e diz: – “Devolvamos seu significado à vida. Devolvamos seu significado às relações humanas.” E, por má sorte, o que sobrou da esquerda americana não faz outra coisa a não ser falar de “progresso”, de “centralizar” e de todas as mesmas coisas que o socialismo repete já faz 150 anos.

Primeiro temos que recuperar aquele campo sobre o qual as pessoas, o povo, está buscando a verdade, e não apenas a sobrevivência: uma maneira de viver que fale de qualidade e não só de quantidade. Temos de difundir uma mensagem coerente para todos, uma mensagem que seja para a base da sociedade, que a faça participante, que ensine o que significa ser cidadão e decidir autonomamente. Em outras palavras, temos que elaborar uma nova política, uma política Verde que desloque e substitua (reemplace) a velha política autoritária e centralista, baseada nas estruturas dos partidos e na burocracia. Isso é o mais importante que temos de aprender. Se não o conseguirmos, os movimentos verdes serão absorvidos pouco a pouco pelos movimentos tradicionais. O objetivo principal se dissolverá frente aos pequenos objetivos a curto prazo, de término rápido.

Os compromissos sobre “males menores” nos levará sempre a males piores. As pessoas dirão: O que é isso!? A mesma política de sempre! A mesma burocracia de sempre? O mesmo parlamentarismo que sempre tivemos? Porque eu deveria votar no verde? Porque deveria dar força aos verdes? Porque não deveria seguir apoiando a democracia cristã, ou o partido comunista, ou qualquer outro partido que garanta resultados imediatos, e satisfações imediatas? Nossa responsabilidade de Verdes da Europa – como na América – na Alemanha, como em tantas partes do mundo, e, sobretudo na Itália, já que vocês estão apenas começando agora, é de aprender o que está ocorrendo nos movimentos verdes já faz entre 5 e 10 anos.

Temos de nos dar conta que há que se substituir a velha política tradicional dos partidos, com uma política verde. Que há que se por energia em nível de base nas comunidades, que há que se elaborar análises que possam ir mais além do puro ambientalismo e dos outros problemas importantes aos quais nos dedicamos cotidianamente (pesticidas, energia nuclear, Chernobyl).

Temos de nos dar conta que esta sociedade não é somente dura e insensível, mas que suas próprias leis preveem a sua própria destruição, a destruição do planeta e das bases de sobrevivência humana. Temos de propor novas alternativas, novas instituições fundadas em uma democracia local, na participação local, que possa constituir um novo poder contra o Estado centralizado, que possa constituir um novo sistema de relações sociais, no qual um número cada vez maior de pessoas tome parte ativa em uma política realmente libertária. Esta é nossa única alternativa para evitar cair em uma mesma política de partido, corrupta e baixa, que torna as pessoas cínicas, indiferentes, sempre mais encerradas em suas próprias esferas privadas.

Um Momento De Transição

Deixem-me concluir com uma última consideração importante. Não só estamos para melhorar nossas relações humanas. Como o sistema de mercado, também o sistema capitalista segue simplificando não só a obra complexa de milhões de anos, mas também o espírito humano. Se está simplificando o espírito da própria humanidade, está se tirando a complexidade e a plenitude que contribuem para formar pessoas criativas. Então, nossa nova política não deve ter como único objetivo o de salvar o planeta e criar uma sociedade verde, ecológica, de caráter libertário, e uma alternativa política em nível de base. Há também que se ver além disso: se não se puser um fim à simplificação do planeta, da comunidade e da sociedade, conseguirão simplificar o espírito humano a tal ponto ( e com lixo do tipo de Dallas e de Dinasty”: e outros programas televisivos) que se acabará até mesmo com o espírito de rebeldia, o único capaz de promover uma mudança social e um reverdecimento real do planeta.

Hoje vivemos em um momento de transição, não só de uma sociedade para outra, mas também de uma personalidade à outra nova. Muito obrigado!!!

Tomás Ibáñez: “Nunca se toma o poder, é sempre o poder que nos toma” (entrevista)

 

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

Tomáz Ibáñez (Zaragoza, 1944) vive com os ideais libertários como guia. Filho do exílio em França, começou as suas andanças políticas nos grupos juvenis anarquistas franceses e de jovens exilados espanhóis. Desde o início dos anos 60 até inícios dos anos 80 centrou as suas energias na construção de organizações libertárias, na luta antifranquista e na reconstrução da CNT em 1976. Autor de numerosos ensaios sobre a dissidência, o anarquismo e a luta contra a dominação, publicou recentemente “Anarquismo é movimento” (Virus, 2014), no qual analisa a vigência dos ideais e postulados anarquistas na actualidade. Ibáñez analisa o ressurgimento do anarquismo no século XXI e como este impregnou as lutas dos movimentos sociais, desde o 15 M (assembleias de rua, ndt) à expansão dos centros sociais autogestionados, as cooperativas de consumo e as redes de economia alternativa. Alerta para os perigos com que estes movimentos se vão confrontar se adoptarem a luta por via eleitoral que alguns já estão a preparar.

 “Os cantos de sereia que anunciam amanheceres radiosos extinguiram-se”, diz no livro. Já não é possível esperar a libertação, ‘anarquia’ como estado das coisas, como postulava o anarquismo?

Esses cantos de sereia situavam num futuro mais ou menos longínquo a recompensa que receberiam as lutas emancipadoras, e essa recompensa era tão fabulosa que servia para avaliar as lutas em função daquilo que nos aproximavam da meta desejada. Já não é possível manter esse tipo de discurso de raiz claramente religiosa, hoje aprendemos que o valor das lutas não depende das promessas que encerram, mas sim do seu próprio acontecer, das suas características substantivas e naquilo que permitem criar no presente. A extinção desses cantos diminui o fascínio pela terra prometida e a subordinação do caminho ao seu destino, mas nada nos diz sobre a possibilidade ou não de algum dia alcançarmos uma sociedade de tipo anarquista. Independentemente de isto acontecer ou não, a anarquia não radica no futuro mas sim no presente, em cada luta, em cada conquista que esteja conforme os seus princípios. Com o fim dos cantos de sereia também se derruba a crença no advento brusco de uma sociedade que caminha para a anarquia sobre as ruínas ainda fumegantes do actual sistema. A grande e fulgurante explosão revolucionária que traria a libertação definitiva é apenas um mito, como também é um mito uma sociedade livre de conflitos, tensões e lutas. Não há nenhum amanhecer radioso no fim do caminho, simplesmente porque o caminho não tem final, cada amanhecer deve ser conquistado dia a dia, uma e outra vez. Mas isto não significa que não se deva cultivar a utopia, mas sabendo que ela só representa um guia para actuarmos no presente e não a prefiguração da meta que se vai alcançar algum dia.

Defende que “o anarquismo ressurge no século XXI, reinventa-se”. Que características deixa para trás e que outras aparecem?

Na medida em que o anarquismo se forja no seio das lutas contra a dominação é lógico que mude quando estas se modificam, de forma a continuar a fazer frente à emergência dos novos dispositivos do poder. Ou seja, quando aquilo que o anarquismo combate muda isso fá-lo mudar também. O que o anarquismo contemporâneo deixa para trás é, entre outras coisas, um conjunto de ideias influenciadas pela Modernidade, tais como a fé inquebrantável no progresso, o enaltecimento acrítico da Razão, uma concepção demasiado simplificadora do poder, uma prática de acordo com o que foi a centralidade do trabalho e deixa também um imaginário revolucionário construído em torno da grande insurreição do proletariado. Configura-se hoje um anarquismo mais táctico que estratégico, mais virado para o presente do que o utópico, em que o que importa é a subversão pontual, local, limitada, mas radical, dos dispositivos de dominação e a criação aqui e agora de práticas e de espaços que afirmem a revolução no presente, transformando radicalmente as subjectividades de quem nelas se envolve. O que também caracteriza o anarquismo contemporâneo é um menor fechamento em si mesmo, uma maior abertura para construir em conjunto com outras tradições não especificamente anarquistas uma série de projectos e de lutas em comum.

Assinala que o anarquismo “é uma coisa de hoje, aqui e agora”. Em que é que isso se concretiza actualmente nos nossos bairros?

O anarquismo envolveu-se na tentativa de construir uma realidade de proximidade (de vizinhança, ndt) feita de realizações concretas, como são as cooperativas de consumo, de produção, de educação, os CSOA (Centros Sociais Ocupados e Autogestionados, ndt), as livrarias, as redes de economia alternativa. Não se deve esquecer que a progressiva destruição das relações de vizinhança foi um dos factores que tirou força ao anarquismo, uma vez que é precisamente nos bairros que se podem tecer relações transversais que questionem distintos dispositivos de dominação e não apenas os que se situam no âmbito laboral.

Faz também referência aos “guardiães do templo”, que pretendem um “anarquismo embalsamado”, como uma ameaça para a sobrevivência do anarquismo. Quem são os “guardiães do templo”? Que anarquismo pretendem preservar contra a força das mudanças?

Digo no livro que estive a combater durante algum tempo contra os “guardiães do templo” e, com efeito, durante os anos da minha militância anarquista mais intensa, desde princípios dos anos sessenta até aos oitenta, estes constituíam um problema sério no seio dos movimentos libertários de França, Itália ou Espanha para citar apenas os que conheço melhor. A sua vontade de preservar a pureza do anarquismo herdado, de evitar qualquer contaminação por ideias ou por práticas surgidas fora das suas fronteiras, a sua fé, quase religiosa, na superioridade inquestionável do anarquismo, e a sua dedicação na tarefa de velarem pela imutabilidade da sua essência, fechava-os num dogmatismo e num sectarismo impróprios de qualquer sensibilidade minimamente anarquista. As expulsões, as desqualificações, as cisões, não eram, naquela altura, nada raras. Hoje a própria força das mudanças esvaziou de energia as tendências sectárias e os “guardiães do templo” já não representam nenhum problema, ainda que não seja de mais permanecermos atentos a eventuais ressurgimentos de atitudes fundamentalistas.

O que é que o anarquismo pode aportar aos movimentos sociais actuais?

Muito. O anarquismo pode fazê-los beneficiar da larga experiência que acumulou relativamente aos modos de funcionamento que estes movimentos estão a reinventar na actualidade, mas que ele vem a praticar desde há muito tempo: modos de debater, de decidir, de actuar baseados na democracia directa, na horizontalidade, no respeito pelas minorias, na não delegação permanente, na acção directa, etc. Também pode fortalecer-lhes a apreensão que já manifestam face ao exercício do poder, o na sua desconfiança perante a figura política da “representação”. Vale a pena aqui recordar a maneira como Michel Foucault denunciava a “indignidade de falar em nome dos outros”. Na medida em que a memória histórica de inumeráveis lutas surgidas “desde baixo” sedimentou-se no seio do anarquismo e na medida em que as experiências e os saberes históricos ajudam a entender melhor o presente, é óbvio que o anarquismo pode ser de grande utilidade para os movimentos emergentes. Por fim, o anarquismo pode também revelar-se útil pondo a claro, de forma crítica, os erros que cometeram debaixo das dobras da sua própria bandeira.

E que práticas dos movimentos sociais actuais se podem inscrever nos princípios do anarquismo?

A horizontalidade, o modo de conduzir os debates, de elaborar as propostas e de tomar as decisões, o acento posto no carácter “prefigurativo” que deve impregnar os conteúdos e as formas das lutas, ou seja, a necessidade de que as práticas que se desenvolvem não contradigam os fins que se perseguem. Cabe aqui também mencionar a prática da acção directa e do cepticismo frente às mediações, a crítica da delegação e da representação, ou a recusa do centralismo e do vanguardismo, sem esquecer a aversão face a qualquer forma de dominação, etc.

Houve anarquismo na eclosão do 15M (assembleias de rua no Estado Espanhol, ndt)?

Claro que houve. Subscrevo completamente as palavras de Rafael Cid quando se refere a ele como uma “inesperada primavera libertária”. A partir do momento em que o único sujeito político legítimo foram as próprias pessoas que estavam presentes nas praças e que estava implicada na luta, à margem de qualquer instância que lhes fosse exterior, já estávamos em pleno coração dos princípios anarquistas. Se juntarmos a isto, a apreensão face à representação que se manifestava com uma força impressionante, ainda ressaltam com maior nitidez os traços libertários que o caracterizavam. A partir da minha própria concepção do anarquismo, o próprio facto de não aceitarem manifestações identitárias, ainda que fossem anarquistas, reforça o carácter anarquista do 15M. Saber se há anarquismo hoje, no movimento 15M, é algo que me escapa por não ter seguido com suficiente atenção a sua evolução mais recente, mas intuo que o seu carácter heterogéneo e polimorfo terá sabido preservar focos de anarquismo.

O que aconteceu em Can Vies (no bairro de Sants de Barcelona) em que os seus ocupantes, com os vizinhos, continuaram a trabalhar à margem daquilo que a Câmara pretendia (por exemplo, reconstruíndo o centro) reflecte a continuidade das ideias anarquistas?

Mais do que a continuidade das ideias anarquistas, o que aconteceu em Sants reflecte é a similitude ou a sintonia entre algumas das características do anarquismo, por uma parte, e o tipo de práticas que existiram e que continuam a existir no conflito de Can Vies, por outra. Sintonia também com a sensibilidade manifestada por amplos sectores dos colectivos que protagonizam a actual insubmissão de carácter social e político. As assembleias abertas, a recusa em negociar o que se considera inegociável, a recusa de qualquer pacto que implique participar no sistema e submeter-se à sua lógica, a fusão do existencial e do político, quer dizer, a não separação entre a forma de viver e de ser, por uma parte, e as práticas políticas, por outra, a acção directa manifestada inclusive na decisão de não deixar em mãos alheias a reconstrução do edifício, tudo isto estabelece fortes ressonâncias entre o anarquismo e o que aconteceu em Can Vies. A continuidade ou, inclusive, a actual pujança do anarquismo barcelonês no seio de alguns colectivos jovens manifestou-se nos confrontos nutridos, em parte, por colunas que confluíram em Sants a partir de vários bairros.

Numa passagem do livro afirma que “lutar contra o Estado consiste também em mudar as coisas “em baixo”, nas práticas locais”. Nos últimos anos surgiram diversas experiências autogestionadas e movimentos sociais que, como a PAH, têm-se posicionado como contrapoder face ao Estado. Se estas optarem pela via eleitoral correm o perigo de perderem a sua força emancipadora?

Desde o meu ponto de vista esse perigo é evidente. A integração no sistema, assumindo algumas das suas práticas e adquirindo parcelas de poder, com o louvável propósito de o combater e de o transformar a partir de dentro, desactiva mais cedo que tarde a força de qualquer política emancipadora. Não é que, como refere a conhecida frase, “o poder corrompe…”, mas sim que “para chegar ao poder já é preciso estar corrompido”, é impossível de outra forma porque não há caminho para o poder que não implique práticas mais ou menos enviesadas, assim como inúmeros abandonos e compromissos de maior ou menor envergadura. Por isso sou tão fervoroso defensor do exercício do “contrapoder” como virulento crítico do “poder popular”. O facto de se reivindicar e de se trabalhar para consolidar este último conduz quase sempre a que se dê o salto final para a via eleitoral e, claro, é preciso que perguntemos o que é que acontece ao clamor de que “não nos representam”, ou ao legítimo grito de “que se vão todos?”

Em linha com a anterior pergunta, se movimentos sociais e grupos com práticas horizontais, assembleárias e autogestionárias chegarem ao ‘poder”, tomarem as instituições, podem perder estas características?

Não é que as possam perder, é que as perderão de facto, inevitavelmente. Nunca se “toma” o poder, é sempre o poder “quem nos toma”, por como muito bem dizia Augustín Garcia Calvo, “o inimigo está inscrito na própria forma das suas armas”, usá-las é reconhecer a sua vitória e adoptar o seu rosto. Não é preciso ter estudado muita psicologia nem muita sociologia para saber que a imersão num determinado contexto e o facto de assumir as suas práticas incide sobre a forma de ser e de pensar de qualquer um que a isso se preste. Para podermos autojustificar a nossa conduta é preciso que ponhamos em consonância as ideias defendidas até então com as práticas efectivamente tidas, ignorando a indeslindável simbiose entre ideias e práticas propugnada pelo anarquismo, e esquecendo aquela famosa pintada nas paredes de Paris de 1968 que dizia: “Actua como pensas ou acabarás pensando como actuas”. Um movimento como o que mencionas na tua pergunta não tentaria dar o salto para a conquista do poder se estivesse animado pela profunda convicção de que nunca nenhum exercício de poder conseguirá engendrar um espaço de liberdade.

http://www.lamarea.com/2014/06/29/tomas-ibanez/

tradução Portal Anarquista

[Curdistão] 6 Notas sobre a Economia da Revolução de Rojava

Fonte: Passa Palavra5 de fevereiro de 2015, já traduzido por Leo Vinicius a partir do original por Nic Beuret, postado em Novara Wire.

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O programa econômico de Rojava, junto com os outros elementos da revolução, torna-a um experimento em ‘democracia sem estado’ o qual vale a pena apoiar e aprender. Por Nic Beuret

Muito já foi escrito sobre a revolução em Rojava, um território composto por três cantões de maioria curda no norte da Síria, que se tornou famoso pela defesa da cidade de Kobane contra as forças do Estado Islâmico. Após a Síria entrar em guerra civil em 2011, o povo de Rojava, incluindo muitos esquerdistas curdos, tomaram a região e embarcaram num projeto radical que eles chamam de ‘autonomia democrática’. Esse projeto visa criar uma democracia sem o Estado através da criação de conselhos e comunas em vários níveis políticos para governar o território, assim como trabalhar para abolir a polícia. Rojava também é famosa (com justiça) por colocar uma política feminista no centro do projeto político. Implementou sistemas de quota para participação feminina em várias comunas e conselhos, sendo quase tão mencionadas quanto a participação armada das mulheres nas forças de defesa de Rojava. Mas tudo isso raramente é suficiente para alguns segmentos da esquerda – a questão que não cala é, sem dúvida, e as relações de classe e a economia? Afinal, não é realmente #comunismointegral sem a tomada dos meios de produção…

Não muito tem sido escrito especificamente sobre a economia de Rojava, fora alguns poucos relatos de delegações que visitaram a região e entrevistas com representantes. Porém, o que sabemos até agora é que a transformação econômica de Rojava é tão radical quanto o resto do projeto.

rojava11. O estado da economia antes de 2011

As regiões que compõem Rojava foram deliberadamente deixadas no subdesenvolvimento pelo regime Assad e direcionadas para suprir a Síria com matérias primas, incluindo trigo, algodão e petróleo. A região era expressiva como fonte desses produtos, sendo uma das regiões mais férteis da Síria e fonte da maior parte de seu petróleo.

Contudo, embora houvesse vários milhares de poços de petróleo na região, havia poucas fábricas e nenhuma refinaria ou engenho. Cerca de metade da terra era propriedade estatal gerida por pessoas do governo como feudos privados. Após o início da revolução a maioria dessas pessoas e dos capitalistas que havia, fugiram. Os recursos que eles controlavam e que foram deixados para trás foram expropriados pelos conselhos locais.

2. A economia social

A prioridade para os vários níveis do governo de Rojava é implementar o que eles chamam de ‘economia social’ – um sistema econômico construído com base em uma série de cooperativas em todos os setores econômicos. O objetivo inicial é se tornar autossuficiente para satisfazer necessidades básicas como comida e combustível. No momento isso é menos um ideal e mais uma necessidade uma vez que Rojava vive efetivamente sob embargo, sendo muito difícil importar para a região até mesmo os suprimentos mais básicos.

O programa econômico imediato visa criar uma infraestrutura para prover as necessidades vitais. Rações de pão são fornecidas pelas administrações locais a cada família e combustível é distribuído pelas comunas locais. Até agora duas refinarias de petróleo foram construídas assim como uma quantidade de engenhos e de plantas de processamento de laticínios geridos publicamente. Desde 2011 a nova administração tem tomado as terras que antes eram detidas pelos quadros do governo sírio e distribuído muitas delas a cooperativas rurais auto-organizadas.rojava4

3. Dinheiro e comércio

O objetivo final é construir a economia inteira de Rojava sobre a base de cooperativas ou outras pequenas unidades econômicas, juntando-as em uma rede na qual o uso do dinheiro seja minimizado ou eliminado. O que é produzido atualmente é vendido às várias entidades administrativas ou nos mercados locais onde o controle de preços é imposto aos produtos que são considerados ‘essenciais’.

A moeda síria ainda é usada, mas embora empréstimos possam ser feitos, juros não podem ser cobrados. Não há bancos no momento, embora haja um plano de criação de bancos para guardar economias, e o capital privado não será impedido de investir na região uma vez que ele adira aos princípios econômicos mais amplos da região. Muitos dos produtos nos mercados locais são contrabandeados para a região, um comércio que ainda está para ser coletivizado…

4. Educação

Central ao programa econômico é o desenvolvimento do setor educacional, incluindo um sistema acadêmico que oferece uma gama de cursos intensivos. Sob o regime Assad, competências e conhecimentos profissionais eram restritos aos membros do regime. No sistema acadêmico há uma estratégia consciente de desprofissionalização de modo a quebrar a divisão entre profissionais e não-profissionais e prevenir o aparecimento de uma nova classe tecnocrática.

As próprias lições na academia enfatizam fortemente a partilha de experiência entre os alunos de modo a quebrar a hierarquia professor-aluno, e focam a resolução de problemas em vez da aprendizagem por memorização. Fundamentalmente, a participação é uma das principais competências adquiridas nas academias, abrindo os vários conselhos e comunas a um engajamento social mais amplo, que pode não acontecer de outra forma (a participação é uma competência desigualmente distribuída em Rojava da mesma forma como é no Reino Unido).

5. Sindicatos e associações

rojava3Uma vez que grande parte da economia está nas mãos das cooperativas ou nas mãos privadas de indivíduos, os sindicatos e associações são limitados em número. Há, contudo, um número de sindicatos e associações, incluindo vários de agricultores, engenheiros e agrônomos, assim como uma associação de mulheres que se organiza pelos direitos das trabalhadoras, remuneradas e não remuneradas, que cuidam de pessoas.

6. A polícia

Uma associação que não será formada é a de policiais. O plano em Rojava é, ao fim, abolir a polícia, embora como a Asayis (segurança civil) responde aos conselhos locais e não ao Estado (não existente), o termo ‘polícia’ não seja usado. A função da Asayis é garantir a segurança da população e levar as disputas aos conselhos locais onde elas são na maioria das vezes dirimidas através de diálogo. O plano final é garantir que a maioria da população tenha treinamento em autodefesa e resolução de litígios de modo a difundir esses meios e capacidades a todos. O quadro geral é o de uma economia cooperativa onde as necessidades básicas são fornecidas pelas administrações locais ainda que estruturas de mercado ainda existam, embora em formas limitadas. Competências e educação, incluindo aquelas que envolvem autodefesa, estão sendo coletivizadas – com o objetivo de erradicação de hierarquias de conhecimento e de capacidades para violência. O programa econômico de Rojava, junto com os outros elementos da revolução, torna-a um experimento em ‘democracia sem estado’ o qual vale a pena apoiar e aprender.

 

Os anarquistas e a geografia urbana (1): Kropotkin

Fonte: Passa Palavra

Fonte: Passa Palavra

Fonte: Passa Palavra

O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade. Por Manolo

Embora seja possível traçar seus antecessores em diversos momentos da história, o movimento anarquista, tal como o compreendemos hoje, consolidou-se como expressão de um projeto político apenas nas quatro últimas décadas do século XIX, e a força, presença e relevância deste projeto político inicial influenciaram incontáveis organizações e iniciativas políticas até a década de 1930, quando eventos que culminaram na chegada ao poder político entre 1917 e 1939 de organizações políticas historicamente inimigas do anarquismo – que vão desde comunistas até fascistas, passando por organizações influenciadas pelo liberalismo, pelo conservadorismo, pelo nacionalismo e pelo fundamentalismo religioso – resultaram numa onda de perseguição política aos anarquistas cujo saldo foi o desmantelamento de suas organizações e a destruição de seus arquivos pessoais, além de prisões, exílios e assassinatos.

Somente na década de 1960 o anarquismo retornou com força à cena política, perseguido e marginalizado (WOODCOCK, 2008). Por isto, optou-se neste artigo por chamar o movimento anarquista existente nos setenta anos compreendidos entre as décadas de 1860 e 1930 de primeira onda do anarquismo, para diferenciá-lo da retomada iniciada na década de 1960, cujos efeitos são sentidos até hoje.

Nesta primeira onda do movimento anarquista, houve dois militantes, geógrafos de profissão, que apresentaram versões alternativas e bastante funcionais a muitas das teorias atualmente empregues na compreensão do fenômeno citadino e no planejamento urbano [1]: Elisée Reclus e Piotr Kropotkin. Para ambos, “anarquismo e geografia são uma combinação lógica” (DUNBAR, 1989, p. 78), seja enquanto filosofia política, seja enquanto fundamento epistemológico.

Kropotkin e Reclus veem na livre associação dos indivíduos e na solidariedade duas forças motrizes do desenvolvimento social, econômico, político e geográfico; por isto mesmo, são críticos acerbos de tudo quanto possa obstaculizar estas duas forças: Estado, capital, exploração do homem pelo homem, colonialismo, imperialismo, tirania e autoritarismo são temas constantes de seus ataques.

Por caminhos teóricos ligeiramente diferentes, Kropotkin e Reclus chegam à conclusão de que as cidades são um lugar de encontros e um espaço fértil para atuação política, por terem sido os lugares onde surgiram os embriões da democracia moderna – embora vejam no governo representativo e no Estado, mesmo o mais democrático, entraves à solidariedade e à livre associação dos indivíduos. Por terem sido quase vizinhos em seu exílio suíço (1877-1881), Kropotkin e Reclus influenciaram-se mutuamente, um “polindo” o entendimento do outro através do diálogo: Reclus dando foco mais social e ecológico à geografia física de Kropotkin, e este último conferindo à geografia social e ecológica de Reclus caráter mais comunal e mais atento no fenômeno urbano (WARD, 2010, p. 209-210).

1 Piotr Kropotkin e a revolução urbana na Europa

1.1 Breve biografia

Piotr Kropotkin em 1864

Príncipe da dinastia ruríquida, senhora dos territórios da Rússia e Ucrânia entre 862 e 1610, Piotr Kropotkin (1843-1921) recusou o título aos 12 anos para tornar-se uma das figuras centrais do movimento anarquista no século XIX, e repreendia duramente os amigos que ainda o tratavam como se fosse nobre (BALDWIN, 1970, p. 13).

Quando jovem, na Rússia, esteve envolvido com atividades administrativas, militares e de corte; entre 1866 e 1872 dedicou-se a expedições científicas à Sibéria, tendo em seguida, numa viagem à Suíça, tido contato com o movimento operário, filiando-se à seção genebrina da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

Por influência de militantes da Federação do Jura suíço, ingressou no movimento anarquista, que não abandonou até sua morte. Voltou à Rússia ainda em 1872, e já em 1874 estava preso na fortaleza de Pedro e Paulo por sua atividade política com o Círculo Tchaikovsky. Tendo escapado das prisões russas em 1876, passou a viver no exílio, entre a França, Suíça e Inglaterra, sempre ativo no movimento anarquista então em pleno vigor.

Voltou à Rússia apenas em 1917 para colaborar com o processo revolucionário, mas a escalada dos bolcheviques ao poder através de um golpe de Estado fê-lo crítico acerbo desta forma de condução de um processo revolucionário – em conformidade com sua longa crítica a qualquer governo, mesmo revolucionário. Morto em 8 de fevereiro de 1921, seu funeral, em 13 de fevereiro, foi o último ato público de anarquistas durante a Revolução Russa; a Cheka, polícia política bolchevique, se encarregaria de aniquilá-los a partir de então.

1.2 As cidades medievais europeias como berço da democracia e do Estado modernos

Não cabe aqui fazer um inventário completo das ideias políticas e Kropotkin quando uma boa introdução ao assunto (WOODCOCK, 2002, pp. 207-250) ainda se encontra em catálogo editorial. Basta mencionar, introdutória e esquematicamente, que para Kropotkin tanto o feudalismo quanto o capitalismo criam escassez artificial e baseiam-se na força bruta e em privilégios; ele propôs um sistema político e econômico descentralizado, baseado no apoio mútuo e na cooperação voluntária, duas tendências que identificou como já presentes na vida social (KROPOTKIN, 2000, 2005, 2009, 2011).

Nuremberg, 1493

Interessam, para os fins deste artigo, sobretudo as ideias de Kropotkin sobre as cidades e sua inter-relação, ainda mais justificadas quando sua obra geográfica não tem sido objeto do mesmo revival que a de seu amigo Élisée Reclus. Será necessário, como pano de fundo desta subseção, criticar duas opiniões. A primeira, mais comum, diz que Kropotkin teria sido fundamentalmente um geógrafo físico. O geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2011, p. 10), após breve apresentação desta opinião, está também entre os que a criticam; não obstante a fama de Kropotkin como geógrafo físico ser merecida, por ter sido o primeiro a cartografar certas regiões do norte da Ásia (WARD, 2010, p. 214), ela espraia uma cortina de fumaça sobre sua não menos significante contribuição à geografia social presente em obras como Campos, fábricas e oficinas (KROPOTKIN, 1901) e A conquista do pão (KROPOTKIN, 2011), reconhecida por entusiastas de primeira hora como Lewis Mumford [2]. A segunda opinião, menos difundida, leva em conta a contribuição de Kropotkin à geografia social, mas quanto à questão urbana defende que “sua preocupação com a cidade é mais indireta” (VASCONCELOS, 2012, p. 71); a questão urbana, muito pelo contrário, está no cerne das preocupações de Kropotkin, quer no âmbito historiográfico, quer no âmbito geográfico, quer no âmbito político.

Kropotkin, geógrafo evolucionista e biólogo neolamarckista (ALSINO, 2012), e por isso mesmo muito atento ao desenvolvimento histórico da relação homem-meio, encontrou nas comunasurbanas europeias existentes entre os séculos X a XIV, herdeiras diretas das comunas rurais, tanto um antecessor cronológico das cidades modernas quanto uma base para a reflexão política de sua militância revolucionária.

As comunas urbanas e as primeiras cidades medievais eram, para Kropotkin, um modelo de resistência à tirania. Em várias passagens de sua obra (KROPOTKIN, 1901, 1955, 2000, 2005h, 2009, 2011) mostrou como estas comunas lutaram contra os senhores feudais, sendo em alguns momentos vitoriosas.

Para Kropotkin, as cidades medievais foram formadas por um lento e conflituoso desenvolvimento histórico, impulsionado por um conjunto de fatores em influência recíproca: a federação de vilarejos em prol da defesa comum contra inimigos externos (KROPOTKIN, 2009, p. 128); a restauração da paz interna em situações de desrespeito aos costumes, num embrião de função jurisdicional (idem, p. 120-131); o surgimento e consolidação das guildas e dos mercados (idem, p. ); a consolidação dos direitos fundamentais da posse comum da terra e daautojurisdição, que significava na prática autoadministração e autolegislação (idem, p. 133); e as conjurações, fraternidades e amizades, pactos políticos consolidados em cartas constitucionais, forjados na luta para “sacudir o jugo de seus senhores laicos e clericais” (idem, p. 132). O europeu medieval, para Kropotkin, seria “essencialmente federalista” (KROPOTKIN, 2000, p. 53), “preferia invariavelmente a paz à guerra” (KROPOTKIN, 2009, p. 128).

Representação da cidade livre de Aachen (Alemanha) na Idade Média

Em termos atuais, pode-se dizer que Kropotkin viu na história das cidades europeias medievais o espaço urbano como produto da associação de indivíduos em busca da libertação do jugo feudal e da dominação eclesial: “O principal objetivo da cidade medieval era o de garantir a liberdade, a autoadministração e a paz, e sua principal base, o trabalho” (KROPOTKIN, 2009, p. 142). Não apenas o espaço físico e o desenho urbano [3], como as instituições sociais criadas nestas cidades foram para ele resultados desta luta. A tese das cidades medievais como berço da democracia ocidental só veio a ser retomada – com as nuances hermenêuticas e idiossincráticas peculiares a cada autor – no início do século XX por Max Weber (2002, pp. 955-975) e Henri Pirenne (1927, 1969).

O final deste período de lutas libertárias teria sido determinado por um conjunto de fatores, também em influência recíproca, verificados por Kropotkin entre os séculos XIV e XVI. A partir da iniciativa de senhores feudais que, tendo acumulado mais riquezas que seus circunvizinhos, escolhiam como sede de seu domínio “um grupo de aldeias bem situadas e ainda sem a experiência da vida municipal livre” (KROPOTKIN, 2009, p. 168), surgiram as cidades nobres fortificadas, imitações tortas das cidades livres, às quais estes senhores feudais atraíam companheiros de armas (por distribuição de aldeias), mercadores (por privilégios ao comércio), juristas versados no direito romano e bispos. Estas cidades nobres, em constante conflito com as cidades livres, foram o embrião do Estado absolutista (idem, p. 169).

Soma-se a este fator a mudança da tática política da Igreja: ao invés da recalcitrante tentativa de criação de uma teocracia unificada, “bispos mais inteligentes e ambiciosos passaram a apoiar quem consideravam capazes de reconstituir o poder dos reis de Israel ou dos imperadores de Constantinopla” (idem, p. 169), espraiando-se assim entre os nobres como conselheiros, jurisconsultos e diplomatas.

Os camponeses ainda sob o jugo feudal, ao verem a incapacidade dos habitantes dos burgos para pôr fim às guerras entre cavaleiros, afiançavam sua liberdade agora àqueles nobres mais poderosos (idem, p. 169), cujas famílias – a família Kropotkin inclusive – no futuro seriam as mais poderosas dinastias absolutistas da Europa.

Havia também um fator interno, as “divisões que haviam surgido dentro das próprias cidades” (idem, p. 169): as famílias dos fundadores da cidade disputavam privilégios de comércio com as famílias de habitantes mais recentes; os citadinos, ou burgueses, não faziam questão de proteger as aldeias dos arredores, formadas por camponeses, a quem deixavam frequentemente sob o jugo de senhores feudais; mas para Kropotkin “o erro maior e mais fatal da maioria das cidades foi o de basear sua riqueza no comércio e na indústria, em detrimento da agricultura” (idem, p. 169), o que além de dificultar a integração com as aldeias circunvizinhas, fomentou o colonialismo e, como consequência, guerras coloniais consumidoras das riquezas citadinas [4].

Florença no Renascimento

Ao contrário do que se possa imaginar à primeira leitura, o retorno de Kropotkin às cidades medievais não era uma utopia regressiva, uma idealização do passado proposta como horizonte político, mas sim uma crítica historicista às utopias socialistas do século XIX: “não só as aspirações de nossos radicais modernos já eram realidade na Idade Média, assim como muito do que se chama hoje de utopia era comum naquela época” (KROPOTKIN, 2009, p. 157; HORNER, 1989, p. 142).

1.3 As cidades como palco privilegiado da luta de classes na Europa

A tese geográfico-política kropotkiniana, entretanto, não se encerra aí. As cidades europeias teriam sido palco desde o século XIV de uma luta encarniçada do “povo” contra os burgueses, senhores feudais, aristocratas e reis absolutistas pela defesa de suas liberdades e pelo uso comum da terra. Toda a história das revoluções europeias, para Kropotkin, explica-se por esta chave. A análise da Revolução Francesa feita por Kropotkin é exemplar neste sentido.

Para Kropotkin, a Revolução Francesa foi impulsionada não apenas pelos panfletos iluministas, mas pela decidida ação popular de libertação de obrigações feudais e de retomada de terras das mãos de senhores laicos e religiosos. Desabrochavam no seio das massas ideias “a respeito da descentralização política, do papel preponderante que o povo queria dar às suas municipalidades, às suas seções nas grandes cidades, e às assembleias de aldeia” (KROPOTKIN, 1955, vol. 1, p. 23). Ou ainda: “a revolta dos camponeses para a abolição dos direitos feudais e a reconquista das terras comunais tiradas às comunas aldeãs desde o século XVII pelos senhores laicos e eclesiásticos – eis a própria essência, a base da grande Revolução” (idem, p. 114). Ou então:

Em França, o movimento não foi somente um levante para conquistar a liberdade religiosa ou apenas a liberdade comercial e industrial para o indivíduo, ou ainda para constituir a autonomia municipal nas mãos de alguns burgueses. Foi, sobretudo, uma revolta dos camponeses: um movimento do povo para reentrar na posse da terra e a libertar das obrigações feudais que sobre ela pesavam; e além de haver nisso um poderoso elemento individualista – o desejo de possuir a terra individualmente – havia também o elemento comunista: o direito de toda nação à terra – direito que veremos altamente proclamado pelos pobres em 1793. (idem, pp. 116-117)

Tomada da Bastilha

A luta de classes eclodiu também nas cidades. Na França do século XVIII, a autoridade real demorara duzentos anos para construir uma estrutura institucional capaz de submeter a seu jugo as cidades anteriormente livres; tais instituições – conselhos municipais vitalícios, direitos feudais, síndicos, almotacéis, direitos eclesiais de intervenção nas instituições municipais, isenções tributárias a membros da Igreja Católica e aristocratas etc. – encontravam-se em franca decrepitude às vésperas da Revolução Francesa (idem, pp. 118-120). Assim que a notícia da queda da Bastilha circulou pela província, o povo sublevou-se, apoderando-se dos Paços dos Conselhos e elegendo “uma nova municipalidade”; esta foi a base da revolução comunalista posteriormente sancionada pela Assembleia Constituinte em 1789 e 1790 (idem, p. 121). O “povo”, territorializado a partir dos distritos (arrondissements) de Paris e de outras cidades grandes, “fez a revolução nas localidades, estabelece revolucionariamente uma nova administração municipal, distingue entre os impostos que aceita e os que recusa pagar, e dita o modo de repartição igualitária daqueles que pagaria ao Estado ou à Comuna” (idem, p. 130).

Daí por diante, estabelecido o pano de fundo, a densa análise de Kropotkin, baseada em rigorosa pesquisa documental e arquivística [5], segue a mesma tônica. A Revolução Francesa é analisada em termos territoriais, e especificamente em sua expressão urbana. A luta dos habitantes das cidades contra as instituições feudais ressurgia, desta vez inaugurando na prática ocomunismo.

1.4 As cidades nos processos revolucionários

Mas é na passagem da sociedade capitalista para a sociedade anarquista – ou seja, durante a revolução – que Kropotkin apresenta vislumbres interessantes. Para ele, “a revolução social deve ser feita pela libertação das comunas, e (…) apenas as comunas, absolutamente independentes, libertas da tutela do Estado (…) poderão nos dar o meio necessário à revolução e o meio de realizá-la (…)” (KROPOTKIN, 2005a, p. 91). Pontuou, na esteira de suas análises histórico-geográficas posteriores ao período medieval, que a revolução das comunas não se tratava de simples retorno à comuna medieval, mas sim da construção de uma nova comuna que, devido à ciência e à tecnologia de então, seria “um fato absolutamente novo, situado em novas condições e que, sem dúvida, traria consequências totalmente diferentes” (idem, p. 91), e que “deve destruir o Estado e substituí-lo pela federação” (idem, p. 93). Neste processo, Kropotkin mostra atenção para as relações “cidade-província”, para que as cidades não fiquem desabastecidas (KROPOTKIN, 2011, p. 53). Tal como se verá adiante e com mais detalhe sobre Élisée Reclus, Kropotkin já intuía entre 1880 e 1882 aquilo que só na década de 1930 veio a ser chamado de rede urbana, dando-lhe o nome de federação de comunas e projetando-a no futuro a partir de tendências do presente:

Graças à infinita variedade das necessidades da indústria e do comércio, todos os lugares habitados já possuem vários centros aos quais se ligam, e, à medida que suas necessidades desenvolverem-se, ligar-se-ão a novos centros, que poderão prover às novas necessidades. (…) A comuna sentirá, portanto, necessidade de estabelecer outros contratos de aliança, entrar para outra federação. Membro de um grupo para aquisição de gêneros alimentícios, a comuna deverá tornar-se membro de um segundo grupo para obter outros objetos que lhe serão necessários (…). Tomai um atlas econômico de qualquer país e vereis que não existem fronteiras econômicas; as zonas de produção e de troca de diversos produtos penetram-se mutuamente, confundem-se, superpõem-se. Do mesmo modo, as federações de comunas, se seguissem seu livre desenvolvimento, viriam rápido confundir-se, cruzar-se, superpor-se e formar, assim, uma rede de maneira diversamente compacta, “una e indivisível”, daqueles agrupamentos estatistas, que são apenas justapostos como as varas em feixe em torno da machadinha do lictor. (…) [A] íntima ligação já existe entre as diversas localidades, graças aos centros de gravitação industrial e comercial, graças a um grande número destes centros, graças às incessantes relações (KROPOTKIN, 2005a, pp. 97-98).

A este nível territorial da federação de comunas soma-se outro, ligado aos interesses dos indivíduos, apto a formar “uma comuna de interesses cujos membros estão disseminados em mil cidades e vilarejos” (KROPOTKIN, 2005a, p. 99); trata-se das associações, cooperativas e todas as outras formas de sociedades livremente constituídas para a atividade humana – ou seja, aquilo que, usando um vocabulário contemporâneo, se chamaria sem equívoco de sociedade civil – verdadeira “tendência, o traço distintivo da segunda metade do século XIX” (idem, ibidem) que ocupava “a cada dia novos campos de ação, até aqueles que, outrora, eram considerados como uma atribuição especial do Estado” (idem, ibidem). A convergência entre ascomunas territoriais e as comunas de interesse formava o solo onde a propaganda feita pelas minorias revolucionárias, ao romper com preconceitos políticos arraigados no seio do povo, germinaria em ações revolucionárias cujos fins últimos são a abolição do Estado, dos privilégios e da exploração (KROPOTKIN, 2005 e, 2005f, 2005g).

Casas proletárias na Londres do século XIX

E a questão urbana, mais especificamente a questão da moradia, é um dos pontos, para Kropotkin, por onde pode-se começar a ação revolucionária. Plenamente consciente dos mecanismos de formação da renda fundiária urbana, Kropotkin deslegitimou-a, pois não somente as vantagens locacionais capazes de valorizar imóveis seriam resultado pura e simplesmente de um trabalho coletivo a que o proprietário do imóvel não deu causa e do qual se beneficia, como o próprio imóvel seria resultado de trabalho alheio indevidamente apropriado:

Finalmente – e é aqui sobretudo que a enormidade salta aos olhos – a casa deve o seu valor atual ao rendimento que o proprietário puder tirar dela. Ora, esse rendimento será devido à circunstância de a propriedade estar edificada em uma cidade calçada, iluminada a gás, em comunicação regular com outras cidades e reunindo no deu seio estabelecimentos de indústria, de comércio, de ciência, de arte; ao fato de esta cidade ser ornada de pontes, de cais, de monumentos, de arquitetura, oferecendo aos habitantes muitos confortos e muitos agrados desconhecidos nas aldeias; ao fato de que 20, 30 gerações têm trabalhado para a tornar habitável, saneá-la e embelezá-la.

O valor de uma casa em certos bairros de Paris é 1.000.000, não que nas suas paredes haja 1.000.000 em trabalho, mas porque está em Paris; porque desde séculos, os operários, os artistas, os pensadores, os sábios e os literatos têm contribuído para fazer Paris o que ela é hoje; um centro industrial, comercial, político, artístico e científico; porque tem um passado; porque as suas ruas são conhecidas graças à literatura, na província como no estrangeiro; porque é o produto de um trabalho de 18 séculos, de 50 gerações, de toda a nação francesa.

Quem, pois, tem o direito de se apropriar da mais ínfima parcela desse terreno ou da última das construções, sem cometer uma clamorosa injustiça?

Quem tem o direito de vender, seja a quem for, a menor parcela do patrimônio comum? (KROPOTKIN, 2011, pp 59-60)

Casas proletárias em Paris, 1912

A solução deste problema, para Kropotkin, é o alojamento gratuito, como proposta pós-revolucionária, e a expropriação das casas, como ação revolucionária imediata. Na verdade, Kropotkin não fez nada além de sistematizar e discutir a prática, já existente no século XIX:

Repugna-nos traçar nos seus menores detalhes planos de expropriação. […] Assim, esboçando o método segundo o qual a expropriação e a repartição das riquezas expropriadas “poderiam” fazer-se sem a intervenção do governo, não queremos senão responder aos que declaram a coisa impossível. […] O que somente nos importa é demonstrar que a expropriação “pode” fazer-se pela iniciativa popular e “não pode” fazer-se de outro modo.

É de prever que, desde os primeiros atos de expropriação, surgirão no bairro, na rua ou no agregado de casas, grupos de cidadãos de boa vontade, que virão oferecer os seus serviços para se informarem do número de apartamentos vazios, dos apartamentos atulhados de famílias numerosas, dos alojamentos insalubres e das casas que, demasiado espaçosas para os seus ocupantes, poderiam ser ocupadas por aqueles que não têm ar em seus casebres. Em alguns dias, esses voluntários espalharão pela rua, pelo bairro, listas completas de todos os apartamentos, salubres e insalubres, estreitos e largos, alojamentos infectos e moradias suntuosas.

Comunicarão livremente entre si as suas listas e em poucos dias terão estatísticas completas. […]

Então, sem esperar coisa alguma de ninguém, esses cidadãos irão provavelmente encontrar os seus camaradas que habitam espeluncas e lhes dirão muito simplesmente: “Desta vez, camaradas, é a Revolução a valer. Venham esta tarde a tal lugar. Todo o bairro lá estará, repartiremos os apartamentos de cinco peças que estão disponíveis. E logo que estiverdes “em casa”, será negócio feito. O povo armado responderá a quem quiser desalojar-nos. (KROPOTKIN, 2011, pp. 61-62)

De um só golpe, Kropotkin antecipou em quase cem anos – o texto é de 1892 – conceitos criados no contexto do movimento de reforma urbana, como o défice habitacional quantitativo e qualitativo, a retenção especulativa de imóveis, a discussão sobre a destinação dos imóveis vazios, a ocupação de imóveis cujos proprietários não lhes dão função social e o método de ação dos movimentos de luta por moradia. Não estamos tão longe dele quanto se poderia supor. Kropotkin influenciou diretamente, por exemplo, a campanha de ocupação de bases militares para moradia na Inglaterra, em 1946, e as ideias de John Turner sobre a autoconstrução em Lima (Peru) (WARD, 1996, pp. 67-73).

1.5 Um balanço

Como se vê, o pensamento político de Kropotkin não lida com conceitos e categorias abstratas ou idealizadas; enraíza-os num meio geográfico, territorializa-os. A relação homem-meio, sociedade-natureza, é vista por Kropotkin como um todo unitário, pleno de relações biunívocas e complexas.

O espaço, em Kropotkin, é produto também do desenvolvimento histórico, e a História se desenvolve no espaço. O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade.

Por isso, a questão urbana, em Kropotkin, pode ser vista como o conjunto dos fatores que obstaculizam o pleno desenvolvimento dos indivíduos e sua livre organização nas cidades, fatores estes que variam em cada momento histórico; o conhecimento destes fatores só pode se dar através da pesquisa histórica da produção e do uso do espaço de cada cidade e das lutas em torno desta produção e deste uso, na tentativa de produzir sínteses orientadoras da ação política.

Leia aqui a segunda parte deste artigo.

Notas

[1] Não por acaso Patrick Geddes, um dos fundadores do planejamento regional e urbano modernos, foi amigo e discípulo dos dois (DUNBAR, 1989, pp. 89-90; HALL, 2007, pp. 161-170).

[2] Lewis Mumford considerava Piotr Kropotkin “inteligência sociológica e econômica de primeira ordem, baseada na competência especializada […] como geógrafo, e na sua generosa paixão social como líder do anarquismo comunista” (MUMFORD, 1998, p. 658). Fez comentários entusiásticos a dois livros de Piotr Kropotkin em sua obra A cidade na história: sobre Campos, fábricas e oficinas, disse ser “recomendado especialmente a todos os que se interessam em planejar para áreas não-desenvolvidas” (idem, ibidem); sobre O apoio mútuo, disse ser “obra pioneira sobre a simbiose na sociologia; uma das primeiras tentativas para reformar a unilateral ênfase darwiniana nos aspectos mais predatórios da vida. Note-se o capítulo sobre Ajuda Mútua na Cidade Medieval” (idem, ibidem).

[3] “Geralmente a cidade era dividida em quatro partes, ou em cinco a sete setores que se irradiavam de um centro, e cada um deles correspondia mais ou menos a um certo comércio ou ofício que nele prevalecia, mas continha habitantes de diferentes posições sociais e ocupações – nobres, comerciantes, artesãos ou mesmo semisservos. Cada setor ou parte constituía um aglomerado bem independente. […] Portanto, a cidade medieval é uma dupla federação: de todos os domicílios unidos em pequenas associações territoriais – a rua, a paróquia, o setor – e de indivíduos ligados por juramento em corporações de ofício. A primeira foi resultante da origem na comunidade aldeã e a segunda, uma ramificação subsequente gerada por novas condições” (KROPOTKIN, 2009, p. 142).

[4] “Colônias foram fundadas pelos italianos no sudeste, pelas cidades alemãs no leste, pelas eslavas no extremo nordeste. Passaram a existir exércitos mercenários para as guerras coloniais, e logo também para a defesa local” (KROPOTKIN, 2009, p. 170).

[5] Num artigo escrito entre 1880 e 1882, Kropotkin explicitou o método que resultou na obra A grande revolução: “Quanto às insurreições, que precederam a revolução e sucederam-se durante o primeiro ano, o pouco que posso dizer disso, neste espaço restrito, é o resultado de um trabalho de conjunto, que realizei em 1877 e 1878, no Museu Britânico e na Biblioteca Nacional [da França], trabalho que ainda não terminei, e no qual me propunha expor as origens da revolução e de outros movimentos na Europa. Aqueles que quiserem lançar-se neste estudo deverão consultar (além das obras conhecidas […]) as memórias e as histórias locais […]. Entretanto, não devem contar com o fato de poder reconstituir, só com estes documentos, uma história completa das insurreições, que precederam a revolução. Para fazê-lo, só há um meio: dirigir-se aos arquivos, onde, apesar da destruição dos documentos feudais, ordenada pela Convenção, acabar-se-á, com certeza, por encontrar fatos muito importantes” (KROPOTKIN, 2005f, nota 27).

Referências bibliográficas

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[Curdistão] Entrevista com Mehmet Dogan, sobre a Luta do Povo Curdo

Postado em LibreRed em 30 de Janeiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Entrevistamos Mehmet Dogan, jornalista, documentarista e antropólogo curdo, que nos explicou a história da luta do povo curdo, a atualidade e a relevância que tem este povo nos conflitos que existem no Oriente Médio; um povo com 40 milhões de pessoas às quais os países imperialistas nunca permitiram escolher seu próprio destino. Por isso, os curdos vivem divididos entre Turquia, Síria, Irã e Iraque, em uma área similar em tamanho à da Espanha, mas situada em uma posição geoestratégica crucial na qual há importantes reservas de petróleo, gás e outros recursos minerais.

Qual é a sua análise sobre a situação atual do Oriente Médio?

Há dois conflitos centrais no Oriente Médio: o da Palestina e o do Curdistão. O conflito palestino é bastante conhecido, suas causas e as forças envolvidas. No entanto, recentemente, tendo o Hamas na liderança do processo de resistência, e tendo ganhado a disputa política com a OLP, atrevo-me a dizer que não há um processo revolucionário na Palestina. Há uma luta por independência, mas independência não é sinônimo de revolução. Obviamente, os palestinos têm direito de lutar por sua independência e sua autodeterminação.

Conheço muitos companheiros curdos que morreram ao lado dos palestinos nos anos 1980, mas não devemos misturar as coisas ou entramos em confusão. O conflito entre Israel e os palestinos não tem como pano de fundo um processo revolucionário que possa mudar por completo a realidade do Oriente Médio. Por isso, o centro da revolução não está na Palestina. O centro da revolução no Oriente Médio está na Síria, está no Iraque e antes de tudo, na Turquia.

Nos anos 1960 e 70, em todo o mundo havia uma juventude combativa, quando haviam lutas de libertação em todos cantos do mundo. Nessa época houve uma luta muito interessante na Turquia. A esquerda turca e o povo curdo em geral, em muito pouco tempo, conquistaram muito terreno e ainda estiveram perto de liberar o país. Durante os anos 1970 e 80, nas mesmas décadas que na Argentina, houveram regimes ditatoriais.

Na Turquia, o imperialismo controlava o estado através do exército turco, que vale a pena dizer, é a segunda maior força da OTAN, obviamente depois do exército ianque. O movimento revolucionário, a esquerda revolucionária turca e o povo curdo foram vítimas de uma repressão brutal. Em 1980, fez-se um golpe de Estado e em apenas 3 meses houve pouco menos de 600 mil prisões. Todavia, há 20.000 desaparecidos. Desde então, até a atualidade, 5 milhões de camponeses foram removidos à força, e hoje em dia, temos 12 mil presos políticos.

Este movimento que nasceu na Turquia tem uma programa a favor dos povos, a favor das classes populares, contra o sistema neoliberal e, inclusive, um programa ecológico também. Podemos dizer que é uma ideologia socialista comunitária. No início da década de 2000, a direção do PKK, que significa Partido dos Trabalhadores do Curdistão, criou uma grande frente chamada de União de Comunidades do Curdistão (KCK). Esta união de comunidades está unindo outros partidos curdos do Iraque e da Síria. Há mais de 400 movimentos sociais que estão participando desta grande frente.

Esta frente desenvolveu uma nova ideologia que chamam de confederalismo democrático. As bases dessa ideologia apareceram em 1998, momento em que o PKK se transformou de um partido clássico marxista-leninista, em um partido mais socialista comunitário, de um partido independentista em um partido confederado.

Esta transformação implicou uma crítica profunda do Estado nacional capitalista. Para nós, criar um estado nacional, independente, curdo, hoje em dia, não serve ao benefício do povo curdo e de outros povos oprimidos, mas aos interesses do Imperialismo que quer dividir esta região em pequenos Estados. De fato, seria continuar com a política que o Imperialismo sempre teve nesta região. Os franceses, britânicos e gringos dividiram toda esta região com o critério de “uma família, um Estado”, como se pode ver, por exemplo, nos casos de Catar e Iêmen. O objetivo, obviamente, consistia em dividir o Oriente Médio para controlá-lo mais facilmente.

Não há nenhum argumento antropológico, sociológico ou político que possa legitimar a divisão geopolítica que existe atualmente no Oriente Médio. Por isso é que a União de Comunidades do Curdistão tem uma postura muito crítica com respeito a criar uma nova divisão, um novo Estado curdo. O Estado-nação capitalista é um Estado que legitima a dominação em três sentidos: primeiro, permite que uma classe explore as classes populares; segundo, através do machismo; e, por último, temos a dominação sobre a natureza. A mãe terra é vítima deste sistema de superprodução e consumismo.

Então, analisando estes três pontos, os companheiros da União de Comunidades do Curdistão chegaram a algumas conclusões muito interessantes. O confederalismo democrático prevê não apenas a autodeterminação dos povos curdos, turcos, armênios, árabes e persas, como também aposta em construir uma maneira de organização comunal de base, onde todos possam viver em harmonia com a natureza.

Com o confederalismo democrático, a luta ganhou rapidamente a simpatia de todo o povo curdo, mas também de outros povos. Antes, obviamente, as organizações tinham também muita relevância, mas chegou-se a outro nível de massividade através desta nova ideologia.

Em 1984, não havia outra maneira de lutar a não ser através da luta armada, porque havia uma ditadura na Turquia e, no Iraque, Saddam Hussein. A luta armada ganhava rapidamente simpatia e, em 1988, a guerrilha do PKK tinha cerca de 8000 guerrilheiros. E, paralelamente, os companheiros começaram a participar e incentivar as lutas democráticas, a princípio, graças à luta das mães dos desaparecidos e dos presos políticos.

Como se deram conta, é muito similar ao que se passou na Argentina. Logo surgiram movimentos políticos e sociais que nasceram, a principio, na Turquia, mas não se limitaram a este país, justamente porque os curdos também vivem na Síria, Iraque e Irã, dentro das fronteiras arbitrárias que nos impuseram. Pouco a pouco, as organizações nacionalistas curdas destes diferentes países foram levantando a bandeira do confederalismo democrático. Produziu-se uma transformação ideológica muito importante. Esta transformação foi por si uma revolução. Essas mudanças são muito visíveis.

Na Turquia, após algumas semanas houveram eleições. Os companheiros participaram das eleições e alcançaram quase 10% dos votos, obtendo 36 deputados na assembleia nacional e mais de 100 prefeitos. Se vocês viajam para lá, irão ver o que é uma prefeitura socialista comunitária. Vê-se em questões bem concretas: por exemplo, todas as organizações que pertencem a esta União de Comunidades do Curdistão, regem-se sob do princípio da co-presidência. O que quer dizer co-presidência? Uma co-presidência é uma presidência compartilhada por uma mulher e um homem. Suponhamos que em um pequeno povo onde há cinquenta habitantes e existe uma associação de cinema, onde participam 10 pessoas. Para que esta associação possa ser membro das União de Comunidades do Curdistão, ela tem que aceitar o princípio da co-presidência e designar a uma mulher e um homem como co-presidentes. Desta maneira, a mulher começa a ganhar um poder extraordinário.

Desde os anos 1980, a mulher já começou a se organizar em brigadas especiais de mulheres, as quais não somente para a luta armada, como também para atuação na sociedade em geral, mas agora a participação das mulheres tornou-se primordial. Agora, as presidências na Turquia não tem um presidente, mas sim co-presidentes, um presidente e uma presidenta. Isso muda dramaticamente a cabeça feudal e escravista do Oriente Médio. Foi uma revolução o poder imaginar e implementar organizações, presidências, comunas e assembleias populares onde a mulher seja dirigente.

Por outro lado, em cada município ou comuna ou bairro, controlados por este movimento, organizam-se em assembleias populares comunais. Não esperamos transformação do Estado. Esta ideologia, este programa não diz “vamos fazer a revolução proletária, vamos tomar o controle do Estado”. Não vamos esperar que isso ocorra, mas, de onde estamos, organizamo-nos e transformamos a vida. Nesse sentido, tudo que se passou depois de 2001 na Argentina, para nós, foi muito interessante: assembleias populares, piquetes, empresas recuperadas pelos trabalhadores, tudo isso para nós foram experiências muito importantes. Aprendemos com isso e estamos aplicando onde temos controle do território.

Por tudo isso, creio que este conflito é mais interessante porque pode transformar-se em uma revolução e pode modificar a sociedade em todos os sentidos. Vou tentar ilustrar com outro exemplo: os curdos que controlam a parte norte da Síria e Curdistão ocidental, com mais de 70.000 guerrilheiros (a maioria, mulheres), estão aplicando este modelo de confederalismo democrático de forma muito concreta. Há uma cidade na Síria que tem 100.000 habitantes, onde vivem 10.000 árabes, 10.000 armênios, 5.000 assírios, não recordo quantos cristãos e muitos membros de outras etnias. Nesta cidade-comuna, as quais são agora chamadas de cantões, desde 2010, a assembleia popular se forma não pela porcentagem de população étnica, mas pelos dois representantes armênios, dois representantes árabes, dois representantes curdos. Os curdos são maioria na população da cidade, mas não na prefeitura.

Então, com dois representantes – um homem e uma mulher – de cada etnia, a população decide, através de uma forma organizativa e muito direta, a política social, econômica e ecológica da cidade. Esta é uma experiência muito importante. As decisões não se tomam por maioria, devem dar-se por unanimidade. A maioria só quer dizer que 51% decide por 49%, mas isso nem sempre implica que seja correta a decisão.

Assim, esse processo de unanimidade na tomada de decisões permite que se produza uma discussão muito forte entre o povo, entre homens e mulheres, entre organizações, e gera uma dinâmica de formação política extraordinária. Obviamente, isso obriga que haja discussões muito profundas. O processo em si tem sido uma vitória. Levando em conta todos os aspectos, creio que neste conflito há uma luta muito interessante que pode transformar o Oriente Médio. Portanto, no mundo atual não se pode esperar transformações em apenas 5 ou 10 anos, mas insisto que continua sendo muito importante o que se tem conquistado.

Você acha que o governo dos Estados Unidos pode tirar o PKK da lista de organizações terroristas agora que a guerrilha se tornou central na luta contra o Estado Islâmico?

Agora há uma campanha dos amigos do PKK na Europa e Estados Unidos para demonstrar que a lista de organizações terroristas é ridícula. Nos Estados Unidos chegamos a várias dezenas de milhares de assinaturas. Com a campanha temos dois objetivos. Se nos tiram agora da lista porque lutamos contra a Al Qaeda, a CNN não poderá dizer o contrário. O PKK nunca fez ataques em organizações civis nem econômicas, só contra guarnições ou estruturas militares. Na Europa, setores relevantes do povo sabem que o PKK defende o povo, que não é uma estrutura terrorista. Agora estamos propagandeando nossas ideias para que o povo dos Estados Unidos as conheçam e saibam que não somos terroristas. Seu governo só vai tirar o PKK da lista por pressão de parte de seu povo.

Sabem como o PPK entrou na lista de organizações terroristas? Em 2004, o PKK decidiu fazer um cessar fogo unilateral. Pouco depois, Felipe González (primeiro-ministro social democrata da Espanha) em uma reunião da União Europeia propôs incluir o PKK na lista porque o confederalismo democrático que propunha o PKK geraria medo, assim como o cessar fogo, já que facilitaria o crescimento político da organização, em razão da massividade que poderia alcançar com essas medidas. E com a pressão dos Estados Unidos, o PKK entrou na lista.

O Estado Islâmico cresceu e passou a controlar um vasto território em muito pouco tempo. O que pode dizer sobre essa organização?

A organização Estado Islâmico no Iraque e na Síria é um desdobramento da Al Qaeda, e não tem apoio da população destas regiões, nem sequer os sunitas os apoiam. São mercenários que gerando medo, ocupando lugares e matando a todo mundo controlam o território. As pessoas, obviamente e com razão, têm medo e não podem fazer nada. A única força que poderia liderar a iniciativa contra essa perigosa ameaça é o PKK. O PKK resiste e liberta as cidades, não somente do imperialismo, mas, antes de tudo, do Estado Islâmico. Através desta luta podemos mostrar ao mundo inteiro que os islamitas da Al Qaeda e o imperialismo estão juntos.

O imperialismo apoiou e apoia de maneira direta a Al Qaeda/Estado Islâmico, porque querem desestabilizar a região. Querem dizer: “olhem, fizemos uma intervenção em 2003 contra Saddam Hussein para libertar, para exportar uma democracia estadunidense para aí, mas não funcionou”. Eles provocaram o conflito entre sunitas e xiitas, dois ramos do Islã, e agora dizem “olhem, os bárbaros não entendem a democracia, se matam entre si, necessitam de nós”. Tudo para legitimar uma intervenção e uma presença permanente na região, jogam com a Al Qaeda/Estado Islâmico.

Quase 85% dos mercenários da Al Qaeda são jovens que tem nacionalidade francesa, alemã ou britânica. Não vêm de países árabes, não vêm do Norte da África. São estrangeiros, são jovens dos bairros árabes de Paris, de Marselha, de Londres e de Berlim. Eles trouxeram essa força reacionária contra nós, contra todos os povos da região. Claro que agora estão vendendo armas aos Estados que têm que matar essa organização islâmica. Acabaram de vender armas ao Estado autônomo curdo do Iraque por 4 milhões de euros para que lutem contra o Estado Islâmico.

Acabam de vender uma centena de mísseis para Bagdá. Mas, ao mesmo tempo, o imperialismo permitiu diretamente aos islamitas roubar armas no Iraque. Inclusive, os deixaram com mais de 100 tanques com tecnologia de ponta. Os gringos, algumas semanas atrás, saíram desta cidade e deixaram absolutamente todo o equipamento militar. Qualquer comandante militar, quando retraído, se você deixar uma arma ou estrutura militar, as destrói para que mais tarde o inimigo não as possa usar. Bom, os gringos as deixaram aqui de bandeja. Estes equipamentos agora estão sendo operados pelos fanáticos do Estado Islâmico.

O império tem um plano para esta região. Os Estados imperialistas creem poder sair da crise econômica em que estão afogados não com uma guerra mundial como dizia Lênin, mas com conflitos regionais: Norte da África, Oriente Médio, e _ porque não?_ amanhã pode ser o Paquistão ou a Índia. E, claro, após a destruição quem reconstrói tudo? Suas empresas multinacionais. O que aconteceu na Iugoslávia acontece agora nessas regiões, por isso falo que querem balcanizar a região. A única força que pode apresentar um obstáculo contra este plano é o PKK, uma verdadeira força revolucionária e democrática.

Em 2013, o PKK se retirou da Turquia. Ultimamente voltaram a ter presença em território turco?

Em 2009 havia um processo de negociação entre o PKK e o governo turco. Em 2010, rompeu-se essa negociação depois de mais um milhão de idas e vindas. O governo turco oficialmente queria obter a paz, assim como o governo da Colômbia busca fazer com as FARC. Em 2012 começa um novo processo de negociação. Em 21 de Março de 2013, Abdullah Öcalan, que era o presidente do PKK, aceita iniciar novas negociações. A ideia do PKK era a de não continuar com a luta armada e garantir um mínimo de democracia. Durante as negociações, o estado turco aceita que, se o PKK se retira da Turquia, iria se iniciar um processo de paz. Mas, assim como na Colômbia, o governo sai, afrouxa, dá voltas. Na realidade, 30% das forças do PKK se retiraram da Turquia. O PKK está na Turquia mas não continuam suas atividades, atividades estas que consistiam em realizar ataques armados contra centros militares. A Turquia queria jogar com o PKK dizendo “bom, vamos acalmar o PKK” e atacar mais a Síria.

Graças a este processo, o PKK mostrou sua vontade de paz e ganhou inclusive uns 10% de votos. Mas de concreto não há nada, e já acontecem novos pequenos enfrentamentos. A Turquia mandou militares à região do Curdistão porque pensava que podia fazer uma intervenção na Síria, mas não podia porque ali também está o PKK. Não fazem ações militares esperando o processo de paz: é como na Colômbia, é como um cessar fogo. Não é o abandono da luta armada, é uma estratégia para mostrar a vontade de fazer a paz.

Há alguma novidade sobre as investigações das 3 companheiras do PKK que foram assassinadas no início de 2013 em Paris?

Há todas as evidências de que o assassinato só poderia ter sido feito pelo serviço secreto turco com o serviço francês, belga e alemão. Agora sabemos através de grampos telefônicos que comprovam isso. A França está investindo vinte milhões de euros em centros nucleares na Turquia. Para a França, a Turquia é uma potência econômica com a qual se deve ter um bom relacionamento. Por isso negociam assuntos como esses assassinatos. Mataram as 3 companheiras do Centro de Informação do Curdistão de Paris. Eu trabalhei nesse Centro e o conheço muito bem. Há câmeras do serviço secreto francês para observar tudo e é impossível que não tenham gravações dos assassinos. Houve uma mobilização muito importante para denunciar a colaboração entre os serviços secretos e a relação franco-turca. Que isto tudo tenha acontecido em pleno processo de negociação de paz foi uma clara provocação frente ao PKK para que este voltasse a combater, para iniciar uma guerra.

Você mencionou o resultado das eleições turcas onde vocês participaram. Como avalia o desempenho do Partido Democrático do povo?

É uma vitória muito importante, que pode crescer ainda mais rápido. O Partido Democrático do Povo é uma aliança progressiva dos curdos, turcos, armênios e todas as nacionalidades presentes na Turquia. Há mais de 600 movimentos sociais que participam deste partido. Sua construção permitiu excluir obstáculos de comunicação. Ele foi construído ao lado dos irmãos turcos e isso nos ajudou a alcançar jovens turcos, na região central da Turquia, algo que antes era impensável. O partido é muito próximo da luta dos curdos porque a maioria de seus membros são curdos, mas também é um partido para a democracia de todos os povos turcos. Do partido participam intelectuais, dirigentes sindicais e movimentos estudantis. Todas as organizações que o compõem participaram da ocupação da Praça de Taksim. Está claro que nos próximos anos vamos a ter um desenvolvimento interessante neste sentido.

Facundo Guillén / Resumen Latinoamericano

Não se intimidar, não desmobilizar! Toda nossa solidariedade ao companheiro Vicente!

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Fonte: FAG – Federação Anarquista Gaúcha

Janeiro de 2015, às vésperas da retomada das lutas contra o aumento das passagens e em defesa de um transporte 100% púbico em Porto Alegre, recebemos a notícia da sentença dada ao companheiro Vicente, militante da FAG e lutador social do Bloco de Luta pelo Transporte Público de Porto Alegre. Vicente está sendo condenado a um ano e meio de prisão por dano ao patrimônio público e crime ambiental, “crimes” que teria cometido em Abril de 2013 durante uma manifestação do Bloco de Luta em frente a Prefeitura de Porto Alegre. Trata-se da primeira condenação em Porto Alegre e para nós uma clara tentativa de intimidar e colocar medo no conjunto de lutadores e organizações que estão rearticulando as lutas nesse início de 2015. Um expediente político e histórico utilizado pelos setores dominantes de nossa cidade e de todo o mundo: o encarceramento dos que se levantam. Não nos desmobilizaremos e a nossa solidariedade será militante e nas ruas!!!

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E a criminalização continua…

O fato de a condenação nos ter sido comunicada apenas uma semana antes do primeiro protesto do ano do Bloco de Lutas pelo Transporte Público é tudo menos uma obra do acaso ou de um processo regular do poder judiciário. Inicia-se o ano e ao mesmo tempo se começa a mexer nos processos que estavam tramitando desde 2013: adicionando nomes à alguns, novos crimes à outros. O processo neste contexto busca ter o mesmo efeito de uma bala de borracha ou de uma bomba de efeito moral: uma tentativa de intimidar e freiar as lutas nas ruas que ousam questionar os lucros dos empresários e os conchavos já evidente das empresas com os poderes públicos.

A situação está longe de ser apenas uma situação local: quem achou que a conjuntura de criminalização havia se esgotado em virtude do descenso das mobilizações de rua após a Copa do Mundo em 2014, a recente movimentação dos governos e dos aparelhos repressivos indicam o contrário. Em São Paulo, Rio de Janeiro e uma série de outras cidades no Brasil que iniciaram o ano com mobilizações contra o aumento das tarifas de ônibus a repressão tem usado dos mesmos expedientes contra os manifestantes: gás lacrimogênio, bala de borracha e detenções arbitrárias. O carioca Rafael Braga Vieira, que era até então o único condenado dos protestos de junho de 2013 continua preso e em Porto Alegre os processos voltam a ser movidos, novos nomes são inseridos e agora a primeira sentença é dada, sem prova alguma. É a velha justiça burguesa tomando lado em uma luta entre opressores e oprimidos que está longe de acabar.

Contudo, a luta e organização dos de baixo não começou hoje e também continuará. Mobilizam-se os jovens, os trabalhadores, os sem tetos e as comunidades de periferia. As mobilizações de rua de 2013 abriram novas possibilidades na gestação de experiências organizativas e de luta que o conjunto da esquerda combativa e anti capitalista precisa ajudar a fomentar e impulsionar, descartando as velhas práticas vanguardistas, sectárias e impositivas que infelizmente ainda permeiam discursos e práticas de muitas organizações. Acreditamos que só assim podemos criar força social que desde baixo vá gestando mecanismos de auto-organização e cravando em seu horizonte a necessidade de transformação social do conjunto da sociedade. Uma verdadeira frente de oprimidas e oprimidos solidária a todo e qualquer companheiro preso, torturado, assassinado e desaparecido.

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2015: avançar em organização, cercar ainda mais de solidariedade @s que lutam!

A seletividade do sistema penal também se torna evidente neste caso. Ao longo desse processo que começa com mais de uma dezena de acusados pelos danos realizados em uma manifestação com mais de mil pessoas, vimos arquivarem um a um todos os suspeitos, responsabilizarem o único rapaz negro de ideologia anarquista que estava entre os acusados e agora incluírem outro militante negro do Pstu. Sabemos que o motivo central dessa condenação é de ordem político-ideológica mas não podemos omitir o fato de que a cor negra dos acusados tem um peso importante.

Os últimos processos tiveram como destaque a criminalização contra os coletivos e movimentos anarquistas. Em 2013, tivemos os nossos espaços públicos invadidos e nossos livros recolhidos, passando por pesados processos de inquéritos onde o que era avaliado era nossa posição em relação a temas como autoridade, governo, forças policiais e outros assuntos caros à ideologia anarquista. Panfletos, cartazes e literatura foram anexadas nos processos, como se fossem provas circunstanciais que mostrassem algum papel de mentor intelectual da nossa ideologia nas depredações ou saques realizados nas manifestações de 2013, que contavam com mais de 50 mil pessoas em Porto Alegre.

O companheiro Vicente, assim como os demais militantes e lutadores de outras organizações, coletivos e ideologias, não foi o primeiro e não será o último jovem negro e anarquista a ser condenado nesse Brasil racista. São milhares de homens e mulheres negros/as e pobres exterminados e condenados diariamente pelas polícias militares e pela justiça burguesa e racista. É a elas e eles que nossa solidariedade militante é direcionada e será junto de cada trabalhador/a que cerraremos nossos punhos. Não nos intimidaremos e em cada marcha de rua, piquete, greve, ocupação estaremos ombro a ombro com todos e todas que lutam!

Solidariedade à todos e todas companheiros e companheiras perseguidos por lutar!

Pelo fim da polícia militar!

Nossa ideologia anarquista não se presta a caricaturas!!!

Federação Anarquista Gaúcha – FAG

[Chile] O passado é nossa ofensiva: 1920 e uma sabotagem estatal contra os anarquistas

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Fonte: Portal Libertário OACA

É difícil de acreditar, para quem não é afim às idéias anarquistas, que o estado sabota estes e outros protestos. Existe, além disso, uma tendência majoritária a assimilar tudo o que é dito na imprensa de massa; imprensa que, advertimos nós, na maioria das vezes ou ignoram os fatos ou bem discreto e mansamente os distorcem. Em último caso, a farsa policial e a tergiversação das notícias são questões do passado, da ditadura de Pinochet.

Mas sabotagens existem. É uma ingenuidade acreditar que olhar para o passado tirará da prisão nossos companheiros, mas nós opinamos que fatos extraídos dele podem ser ferramentas para enfrentar os desafios do hoje. E é como dizem por aí: a história não se repete, mas rima. Viajaremos brevemente ao ano 1920 e nos deteremos em uma das sabotagens feitas contra os anarquistas. Os atores e o contexto mudaram bastante, mas não a confrontação que motivou esses episódios e as farsas levantadas pelo Estado e pela imprensa de massas para acabar com os antiautoritários. Conste que não se trata de limpar a barra dos anarquistas e tratá-los como pombinhas brancas, mas as ações se assumem, as mentiras não.

Os anos 20

1920 foi um ano agitado na região chilena. Antes de tudo, se achava em seu ápice o período que se identifica comumente como o de “a questão social”, uma época de transição de economias tradicionais a economias de mercado, cujos traços mais visíveis e recorrentes na hora de falar daquele tempo são os conventozinhos, as mortes prematuras, o desemprego, a falta de proteção laboral, as jornadas de trabalho excessivas (até 16 horas), o salário em fichas em vez de dinheiro etc. Entre 1917 e 1921 se deu um contexto de manifesta agitação social, particularmente por causa de um novo ciclo de crise salitreira, assim como também pelo encarecimento dos bens de primeira necessidade. Pelo segundo houve manifestações de dimensões desconhecidas até então, posto que não só os setores “ideologizados” se somaram aos protesto, mas também pessoas sem inclinação política e parte da classe média emergente.

Por outro lado, em julho de 1920 se elegeu presidente o burguês Arturo Alessandri, o primeiro candidato que fez campanha nas praças e estações, entusiasmando as multidões e sobretudo os setores populares. Era a esperança para os que o seguiram, uma ameaça para a oligarquia explícita no poder, e uma farsa para comunistas e anarquistas, embora não tenham faltado alguns indivíduos desses setores que pegaram carona na carruagem da vitória.

Por último, a princípios desse ano se reanimaram os ressentimentos nacionalistas contra o Peru (e vice-versa) por Tacna e Arica, províncias originalmente peruanas, mas que depois da Guerra de 79 ficaram sob controle chileno. E de fato, em julho desse ano se mobilizaram 15 mil reservistas à fronteira norte para fazer frente a um suposto complô de Bolívia e Peru contra Chile.

Estes três elementos constituem, a nosso ver, os traços mínimos para conseguir entender o contexto no qual se desenvolveram os fatos que referiremos.

Os anarquistas

Os anarquistas, então, marcavam presença em quase todos os grêmios, sendo particularmente influentes entre os zapatistas, trabalhadores de tipografias, carpinteiros, padeiros, e nos trabalhos de porto como estivardores (carregadores) e lancheiros. Em dezembro de 1919 tinham constituído a seção chilena dos Industrial Workers of the World (Trabalhadores Industriais do Mundo – IWW). Esta central, que na região chilena se identificou com o anarcossindicalismo, aglutinou a vários grêmios (embora não todos aqueles com preponderância anarquista); além disso, teve uniões locais em várias localidades, desde Iquique até Corral. Paralelo a isso os ácratas possuíam diversas formas de expressão cultural, se destacando sua produtividade em meios de propaganda escrita. Havia jornais em quase todo o território e cada um estava conectado com a maioria dos meios ligados a outros pontos e ao estrangeiro. O Surco em Iquique, Mar y Tierra e La Batalla em Valparaíso, Acción Directa e Verba Roja em Santiago, eram os mais conhecidos.

O processo contra os subversivos e a sabotagem dos anos 20.

Em julho de 1920 se decretou a mobilização dos reservistas à fronteira norte, como já indicamos mais acima, para enfrentar um suposto complô por parte de Peru e Bolívia. Várias organizações sindicais revolucionárias, assim como os estudantes da FECH, não se responderam ao chamado belicista apelando ao internacionalismo. Eram inimigos da guerra. Por causa disso o local dos estudantes foi atacado em plena luz do dia por uma turba de nacionalistas (“mauricinhos e maltrapilhos”) no dia 20 de Julho; por sua vez, o local da Federação Operária de Magallanes em Punta Arenas foi queimado com gente dentro pelas ligas patrióticas e pelas autoridades locais. Estes e outros similares episódios se aglutinam no que se conhece como “A Guerra de Don Ladislao”, nome que faz referência ao ministro de Guerra do momento, Ladislao Errazuriz.

No dia 21 de julho começou a perseguição aos libertários abarcando vários locais da IWW. Nas operações levadas à frente em Valparaíso, a polícia “encontrou” cartuchos de dinamite na seção local da organização. No outro dia e em Santiago se estabeleceu um processo contra a IWW por associação ilícita e terrorista, investigação que se fez extensiva para os demais anarquistas crioulos. Era o processo contra os subversivos (1). Os sindicalistas foram presos.

Imediatamente a imprensa de massas deu a voz de alarme, apontando que a IWW era uma organização terrorista paga pelo ouro peruano para semear o caos no Chile. Tinha que se castigar os anti-patriotas. Os prisioneiros foram tratados de forma brutal, exemplifica aquilo o fato de que dois ficaram loucos em suas celas, o operário Isidro Vidal e o poeta José Domingo Gómez Rojas. Este último morreria em pleno processo no dia 29 de setembro. Com seus companheiros presos, os que ficaram livres se deram à tarefa de construir a resistência. Clandestinamente saíram à luz Mar y Tierra e Acción Directa. Outros reorganizaram os “comitês pró presos por questões sociais”, coletivos que coordenavam atividades para reunir ajuda para os encarcerados. Também houve greves solidárias em Chile e gestos similares no estrangeiro. Em Valparaíso, por exemplo, se decretou greve geral no dia 17 de janeiro de 1921 para tirar da prisão Juan Onofre Chamorro, secretário da IWW no porto. E nos Estados Unidos, wobblies (integrantes dos IWW) empregados de hotéis, se negaram a atender a qualquer “burguês chileno”. A repressão repercutiu na proliferação de expressões de solidariedade. A imprensa de massas explorou o patriotismo chileno e durante meses assegurou abertamente as inclinações terroristas e “peruanas” dos IWW.

Mas todo o processo contra os subversivos se reduziu a nada quando se “descobriu” que tudo havia sido uma sabotagem. A dinamite de Valparaíso tinha sido posta por dois deliquentes a mandos de Enrique Caballero, capitão da polícia daquele porto. Como acontece nesses casos, não houve condenação para esse funcionário do Estado e a imprensa não retificou suas difamações infundadas. E como se “descobriu” além disso que tampouco trabalhavam para o Governo peruano, os anarquistas foram absolvidos por completo. A vida de Gómez Rojas, a saúde de Vidal, os meses de prisão para dezenas de sindicalistas, as imprensas destruídas, as famílias sem sustento, os gastos de defesa, tudo isso e mais, ninguém o devolveria. Era, talvez, o preço de serem coerentemente anarquistas.

Continuidades, mudanças e urgências abertas

Há continuidades e diferenças que é preciso remarcar para que esta história se torne útil hoje. Entre as primeiras temos a repressão estatal, o cerco midiático com as mentiras elaboradas pela imprensa de massas, a sabotagem policial mediante a qual se põe em locais anarquistas explosivos para depois processá-los. Há continuidade também na prisão e incomunicação dos companheiros, e afortunadamente, no desejo de criar instâncias de denúncia e solidariedade para com os presos.

Mas onde mais devemos pensar é nas diferenças. A mais visível e importante, talvez, está na capacidade de pressão com a qual contamos para liberar os presos. Hoje os mesmos não contam com o respaldo de organizações trabalhistas que com o uso da greve possam acelerar sua liberdade, como outrora ocorreu em não poucas ocasiões. Embora, em todo caso, o sindicalismo atual – burocrático – só faz greves econômicas para beneficiar seus grêmios, o qual em si não é mau se se trata de arrebatar migalhas das riquezas patronais, mas já não se mobilizam por causas que não lhes afetem diretamente.

Que fazer, como encurtar o tempo atrás das grades dos presos políticos em geral? É verdade, contamos com a imaginação, com os braços de vários companheiros, com páginas web e jornais, com cartazes, faixas, com assessores legais afins, com atividades para arrecadar fundos; mas não temos capacidade de pressão na rua, não temos convocatória, somos poucos. Apesar de que ser maioria não garante nada, nem sequer a liberdade, creio que devemos ter em conta esta transcendente realidade, este problema, na hora de brigar por nossos presos. Enérgica arma usam as pessoas que decidiram acudir à greve de fome, nossa tarefa é quebrar o cerco midiático para dá-la a conhecer. Mas devemos tentar imaginar novas e melhores formas para libertar os companheiros e sobretudo para constituirmos uma ameaça de verdade e não só o fantasma da mesma. Porque sabemos que somos muito mais do que vende a imprensa, e muito menos do que ela faz crer que há. O Estado e a imprensa seguirão sabotando, e a cada dia se aperfeiçoarão mais ainda. Nós não podemos continuar na defensiva e apenas “denunciando”, sabemos como agem, suicídio seria esperar e sempre aplicar as mesmas ações. É preciso imaginar, criar, é preciso experimentar.

*Citações

(1). Em dezembro de 1918 foi aprovada no Chile a Lei da Residência, que dava poder às autoridades para expulsar do país qualquer estrangeiro que sustentasse publicamente valores contrários à nação. Os anarquistas, com certeza, estavam nessa categoria.

Referências

Mario Araya, Los wobblies criollos. Fundación e ideología en la Región chilena de la Industrial Workers of the World
– IWW (1917-1927), Tesis de Historia, Arcis, 2008

Peter De Shazo, Trabajadores urbanos y sindicatos en Chile, 1902-1927, DIBAM, 2008

Julio Pinto, Desgarros y utopías en la pampa salitrera, Lom, 2007

René Millar, La elección presidencial de 1920, Universitaria, 1981

Víctor Muñoz, Armando Triviño: wobblie. Hombres, problemas e ideas del anarquismo en los años veinte, Quimantú, 2009

Escrito por Manuel de la Tierra | Análisis – Histórico.
Publicado en El Surco, nº19, Septiembre 2010

Fuente: https://periodicoelamanecer.wordpress.com/2012/11/25/el-pasado-es-nuestra-ofensiva-1920-y-un-montaje-estatal-contra-los-anarquistas/

Curdistão: DAF fala sobre Solidariedade e Rojava

“Uma entrevista com um militante do DAF sobre a solidariedade pelo processo social em Rojava”

Captura de tela de 2015-02-05 19:52:10

FONTE: Resistência Curda

A versão original em inglês foi concluída em 09 de janeiro de 2015. 

Entrevista realizada por Bruno Lima Rocha, originalmente publicada em inglês no site Estratégia e Análise.

Introdução: Desde que começou o cerco à Kobanê tenho dedicado várias horas por semana a entender e divulgar o máximo possível sobre essa revolução social iniciada numa combinação de Confederalismo Democrático e a Guerra Civil Síria. Enquanto militante, eu sempre estive envolvido com solidariedade internacional. Enquanto descendente árabe, eu sempre tentei procurar uma força de esquerda que combinasse ação direta e democracia interna. Enquanto acadêmico e professor de Geopolítica estudando a região por mais de 25 anos, Rojava é um sonho que se tornou realidade. Aqui eu começo a primeira de algumas entrevistas com organizações com real experiência nesse processo e na região. Nesta estou conversando com o Devrimci Anarşist Faaliyet (DAF, ou Ação Revolucionária Anarquista). Eles têm sido bem ativos nessa ação e entendem em detalhes todo o processo Curdo, tanto em Rojava quanto no interior das fronteiras do Estado Turco.

E&A- É possível entender o PKK (Partiya Karkerên Kurdistani, Partido Popular do Curdistão) como uma força político-militar remodelada pelo pensamento de seu líder histórico (e sentenciado a prisão perpétua) sendo transferida organicamente para toda a organização? Ainda, temos duas perguntas em sequência: Você pode imaginar a reprodução dessas ideias além de um culto à personalidade ao redor da imagem de Abdullah Ocalan (Apo)? E, seria possível universalizar as propostas do PKK-KCK (Koma Civakên Kurdistan, Grupo de Comunidades do Curdistão) além dos assuntos nacionais dos Curdos que ainda não foram resolvidos?

DAF- Nós temos de ver o assunto enquanto Movimento de Liberdade Curda. O PKK é uma organização do povo Curdo que vem lutando não apenas por 30 anos, mas centenas de anos. Especialmente após os anos 2000 o partido mudou sua ideologia, estratégia e característica. Assim, os críticos do movimento tem mesmo o mesmo vício de tomar o PKK como sendo o mesmo partido das décadas de 80 e 90. Apenas para lembrar, o PKK clamou pela liberdade não apenas para o povo Curdo, mas pela liberdade para todos os povos oprimidos no Oriente Médio. Pense sobre Rojava, PYD (Democratic Union Party, in Kurdish: Partiya Yekîtiya Demokrat), tem lutado não apenas pelos Curdos, mas pelos Ezidis, Turcomanos, Xiitas, Alauítas os quais o Daesh (ISIS, ISIL, EI, Estado Islâmico) quer destruir.

E&A- É observável um problema estratégico para a revolução de Rojava. Eu explico: a fronteira viva e aquela que é possível ser usada como santuário está com o KRG (Governo Regional Curdo no Iraque), mesmo o epicentro da guerra estando em Kobanê. É observável que se não houver reforços dos peshmerges (forças profissionais do KRG), provavelmente a coalizão anti-ISIS liderada pelos EUA não bombardeará a posição dos jihadistas. Logo, a aliança entre PKK-PYD e o KDP (Partido Democrático do Curdistão, Partîya Demokrata Kurdistanê, ou PDK) e sua coalizão com Massoud Barzani a frente do gabinete do KRG poderia implicar numa inevitável aproximação com o Ocidente? É possível sobreviver enquanto processo revolucionário dependendo militarmente e fisicamente do KRG e do Ocidente?

DAF- Temos que ver o papel dos peshmerges. Faz quase um mês e meio que eles não fazem nada por Rojava. Quando o YPG (Unidades de Proteção Popular, em Curdo: Yekîeyên Parastina Gel) e YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres, em curdo: Yekîeyên Parastina Jinê), as organizações de auto-defesa do povo de Rojava tomou o controle de 60% de Kobanê, as forças de Barzani decidiram vir ajudar. É óbvio que essa foi uma ação estratégica de Barzani. Barzani declarou que como se não houvesse a Revolução de Rojava dois anos antes e temos que ver isso, EUA e outros países ocidentais não apoiam a resistência de Kobanê. Após a Revolução de Rojava não aceitaram a existência política do PYD ou dos cantões de Rojava. Assim, a melhor solução para eles é Barzani que não tem problemas com política capitalistas ou estatistas. Ainda, o KDP de Barzani é o partido irmão do AKP de Recep Erdogan (Partido do Desenvolvimento e Justiça, em turco: Adalet ve Kalkinma Partisi). Nestas circunstâncias, o povo em Rojava precisa de qualquer tipo de apoio. Isto não significa que ele pode receber ajuda de qualquer poder capitalista e estatista. Mas é como o YPG-YPJ lutando contra o EI, a Frente Al-Nusrat (uma afiliada do grupo Al-Qaeda)…, mas também lutando estrategicamente contra a Turquia, a Síria de Esad (Bashir Al Assad), o Curdistão de Barzani e todos os poderes capitalistas.

E&A- Ainda, em termos de estratégia, ao que tudo indica, o governo da Turquia tem favorecido as linhas de suprimentos deixando o EI se fortalecer dentro do território sob controle do exército turco. Aparentemente, isto é causado pelo cálculo realista de Ankara e o governo do AKP, considerando ser menos perigosa uma proposta de “califado” – ou o retorno do Ummah – comparado à ideia do separatismo Curdo, ou mesmo autonomia política de Rojava dentro do fracassado Estado da Síria? Pela posição turca, como avaliar a disputa entre os outros Estados operando através de sunitas jihadista, como Arábia Saudita e Qatar?

DAF- Na mídia hegemônica, é difícil achar notícias sobre o apoio Turco ao Estado islâmico. Não é apenas apoio por armamentos, ou sua posição neutra. Como você declarou, existe uma óbvia logística de apoio de países sunitas ao EI, mas o aquilo que nunca podemos esquecer são as relações escondidas entre o EI e poderes capitalistas ocidentais. A cena é clara de que um grupo terrorista islâmico tem fortalecido a mão dos EUA, especialmente no Oriente Médio.

E&A- Entrando no assunto da guerra civil Síria, o que pode ser visto hoje é uma guerra crescente entre Sunitas e Xiitas, e junto disto, entre o EI (e antes a Frente Al-Nusra) e a tentiva de conquista de Kobanê. Considerando essa realidade, qual seria o papel do Exército Livre da Síria hoje (FSA)? Esta força ainda possui algum poder de proteção – como o Qatar – ou caiu para uma condição de aliado secundário do YPG? Nós podemos considerar o Qatar o maior patrocinador do FSA? E, talvez esta seja a razão, ao passo que ambos o FSA e o YPG são contrários ao regime de Assad, Damascus e seus aliados (financiadores) preferiram liberar a área de Aleppo e Raqqa para operações do EI, permitindo que os sunitas jihadistas avançassem sobre Rojava?

DAF- Como declaramos antes, algumas das ações estratégicas contra o EI com o FSA não representam a real visão política do PYD. Então, este tipo de cooperação é o resultado das circunstâncias na Síria e em Rojava. A cooperação entre as organizações e grupos não deveria ser tomada como resultados das reais políticas das organizações e grupos. A guerra em Rojava, ainda mais continua na Síria, então é difícil para nós determinar os aliados. Esta longe da solidariedade dos revolucionários pela Resistência de Kobanê e pela Revolução de Rojava.

E&A- Eu entendo, mesmo de um relance à distância, que para os Estados da Turquia, Síria (o que restou dela) e do Irã, um Curdistão a oeste com autonomia política e uma sociedade trabalhando sobre bases igualitária e secular implica num problema insolúvel. Não seria a proposta do PYD não separar-se formalmente da Síria, mas obter o status de uma Federação política autônoma na Síria, assim como um futuro reajuste com o Iraque e com o governo de Irbil (Capital do KRG)? A Turquia toleraria tal estatuto, mesmo possuindo o segundo maior exército da OTAN e o de maior contingente num Estado de grande população islâmica? Se o Curdistão Turco recebe tal status, o que preveniria uma Confederação com o Curdistão Sírio? E, dessa forma, qual seria a reação do KRG e da coalizão de direita e partidos Curdos pró-Ocidente, como o KDP? 

DAF- Estes cenários estão sendo discutindo ao passo que a guerra na Síria acabou. É difícil estimar como essas guerras irão modelar o Oriente Médio. Rojava declarou a liberdade de seus três cantões há 2 anos e meio atrás sem se importar com qual seriam as reações de Esad (Bashir al Assad), Erdogan ou Barzani. Todos os três declararam que não reconheciam o auto-governo dos cantões de Rojava. Ainda, eles insistem em não falar sobre a existência política de Rojava. Camarada, nós precisamos ver que durante estes dois anos os Estados em torno de Rojava mudaram suas políticas em suas regiões com a decisiva luta do povo livre de Rojava. Eles tentam encontrar meios de controlar a liberdade de Rojava. O cenário principal é de que Rojava será uma federação parte da Síria de Esad. Mas de qual Síria estamos falando, qual será o poder de Esad na Síria ou se haverá um Esad para liderar a Síria? O segundo cenário é de que Rojava fará parte do Curdistão de Barzani. O que seria o objetivo de Barzani, mas os princípios que sustentam Kobanê contra o EI não só assustam o EI como também Barzani. Porque a Revolução de Rojava se autodeclarou uma revolução centrada no anticapitalismo, no antiestatismo, nas mulheres e no meio ambiente.

E&A- Seria interessante para o KRG que Washington deixasse de considerar o PKK-HPG (Força de Defesa Popular, em curdo: Hezen Parastina Gel) como uma força terrorista? Isto permitiria uma requisição da liberdade de Ocalan, reforçando a liderança dessa força política? 

DAF- Este é um assunto político constante na Turquia. A Resistência de Kobanê e a Revolução de Rojava não fortaleceu apenas a posição dos Curdos que vivem em Rojava, mas também na Turquia, Irã e Iraque. Então, esta ocasião tem alguns resultados políticos, sociais e econômicos. Mas temos de ter em mente o poder do AKP de Erdogan que não hesita em expressar suas ideias sobre a política internacional.

E&A- Como vocês projetam a existência de uma soberania e status de autonomia política legais para Rojava considerando alguns temas fundamentais como: moeda corrente (como seria? Existiria um banco central?); relações comerciais com outros territórios (por exemplo, na comercialização do petróleo); pertencer a uma federação territorial (como numa Síria reorganizada ou federada à KRG); e quais medidas concretas seriam instituídas através da Confederalismo Democrático com total unidade territorial e existência dos três cantões? 

DAF- 2 anos e meio atrás, após a declaração de liberdade dos cantões de Rojava, o povo de Rojava começou a organizar a economia instituindo as terras coletivas do povo; abriu o Mala Gel (Casa do Povo) e Mala Jins (Casa das Mulheres) para organizar a sociedade numa forma de democracia direta. Estas casas são os reais centros políticos onde pessoas de dessas regiões discutem questões sociais e políticas e decidem o que fazer. Elas organizam o processo jurídico entre si sem nenhuma corte, advogado ou juiz. Justiça social não é providenciada sem qualquer tipo de poder central como um Estado. Sem escolas, mas com compartilhamento de conhecimento gratuito aos moldes das Universidades Zapatistas.

Nós temos que aceitar que a Revolução de Rojava não é uma revolução anarquista. Mas não há dúvidas sobre seu caráter de revolução social. A existência política de Rojava não faz parte da Síria de Esadou parte do Curdistão Iraquiano. Nós estamos falando de uma federação que se autodeclarou anticapitalista. Agora é inútil se preocupar com o futuro de Rojava se esta comercializa com capitalistas ou coopera com Estados… Façamos aumentar a solidariedade revolucionária e façamos parte dessa revolução social, para que não tenhamos tanta coisa para nos preocupar. Enquanto DAF, nós também mencionamos nossa posição num texto sobre a Resistência de Kobanê; nós não somos cartomantes que, então não adivinhamos a posição política de Rojava daqui 10 ou 50 anos. Mas somos anarquistas revolucionários, nós temos que tomar parte nos movimentos sociais e moldar esses movimentos.

E&A- O que seria um resultado concreto das políticas de massa através dos organizadores do KCK e das propostas de democratização da política municipal de autonomia do Curdistão Turco?

DAF- O verdadeiro mal-entendido da oposição social internacional é diferenciar as políticas do Movimento Curdo (HDP – Partido Popular Democrático, em turco: Halklarin Demokratik Partisi) ou outras instituições que são aceitas pelo Estado Turco; e o PKK (que é mencionado como organização terrorista pelo Estado). As chances de realização de instituições políticas democráticas dependem da luta do povo Curdo que é referida como terrorismo. Então, temos que entender a questão da “luta contra a política assimilacionista do Estado Turco”como um todo. Não há movimento, política ou instituição que se expresse por si como distante da luta do PKK e se declarou parte desta luta.(?) Então, o resultado de quaisquer políticas depende do sucesso da luta do povo Curdo organizado, o PKK. Esta situação pode ser parte de outro tipo de cultura política situado no Oriente Médio, distante das Europeias.

E&A- O DAF, enquanto uma força anarquista toma parte de alguma coordenação de alianças com o KCK ou com o DTK (Congresso da Sociedade Democrática, em turco: Demokratik Toplum Kongresi)? Enquanto anarquistas, como avaliar essas atividades com outras forças sociais? E, neste sentido, como avaliar a participação eleitoral da Aliança BDP (Partido da Paz e Democracia, em turco: Baris ve Demokrasi Partisi, em curdo: Partiya Astî û Demokrasiyê), BDP/HDP?

DAF- Relacionado com a resposta da questão acima, o DAF toma o PKK como o verdadeiro assunto da questão. Especialmente depois da mudança do paradigma dos anos 2000, após Ocalan não declarar mais o PKK como um movimento marxista-leninista e referenciá-lo a Bookchin, Bakunin e Kropotkin, é impossível para o DAF não se interessar por essa mudança teórica. Nós tivemos experiência com as mudanças dia após dia. A democracia direta tomou um importante lugar para essa realização política. Mesmo assim, existem críticas de anarquistas europeus já que são parte da ideologia marxista, nós estamos testemunhando a mudança não apenas na partilha da mesma cena política (a luta contra o Estado), mas estamos testemunhando a harmonia da teoria e da prática na Revolução de Rojava. As instituições como KCK, DTK, DBP/HDP poderiam estar numa manobra de estratégia no parlamento, sistema jurídico… Nós podemos criticar estas estratégias, mas não tomamos estas instituições como se fossem organizações as quais objetivam outras políticas. Assim como não votamos pelo HDP do BDP, pois não temos outro tipo de estratégia na democracia parlamentar, isto não nos faz repudiar estas instituições com o PKK.

E&A- Ao passo que o Confederalismo Democrático é inspirado no anarquismo, nós assumimos que existe uma aproximação e simpatia entre as ideias anarquistas e o atual pensamento da esquerda Curda. Esta avaliação é correta? Poderia especificar em qual sentido?

DAF- Como foi dito acima, especialmente após a aparição do novo paradigma dos anos 2000 no movimento Curdo refereciando principalmente Bookchin, Kropotkin e Bakunin (talvez Michael Albert em economia). Então, este é um bom passo para um movimento popular. O povo Curdo não está lutando há apenas 30 anos, ele está lutando há décadas. Para anarquistas revolucionários, é um bom momento para nós, esta organização desta luta de libertação chamada anarquista. É um bom momento para nós socializarmos o anarquismo nas terras onde pessoas vivem se Estado há décadas. Uma revolução social pode ser preparada como se fosse socializada. Nós, enquanto DAF, não somos anarquistas apenas para escrever alguns textos e viver o anarquismo em grupos fechados como os camaradas da Europa fazem. Nós objetivamos a revolução social, nós estamos lutando em todos os sentidos, então este é um bom momento para socializar o anarquismo.

E&A- Baseado no que lemos, o DAF opera lado a lado com o fronte dos movimentos pró-Rojava e como apoiadores da revolução social na região. Isto tem gerado uma aproximação da esquerda Turca como um todo, pode estar marcando um fortalecimento de posição entre o guarda-chuva político e social pró-Curdos (DTK-KCK e forças políticas legais DBP/HDP), levando a população a ter uma opção à rivalidade entre o AKP e o Kemalistas-Nacionalistas?

DAF- O DAF é solidário à Revolução de Rojava e a Resistência de Kobanê desde o princípio. Pois, em 19 de julho, os cantões de Rojava declararam independência contra a Síria de Esad, contra o EI, contra Barzani e contra os poderes econômicos e políticos internacionais que têm interesses na região. A solidariedade do DAF com o povo de Rojava que são Curdos, Ezidis, Xiitas ou Alauítas… pois Rojava é a esperança para o povo oprimido que vive no Oriente Médio e outras partes do mundo. Rojava mostra o que pretendemos ganhar contra os Estados, contra os capitalistas.

Na verdade, a Revolução de Rojava tem um papel decisivo para a esquerda Turca. Pois, algumas organizações e partidos não solidarizam com a revolução por conta de suas visões nacionalistas. A questão Curda para oposição social na esquerda Turca é uma importante questão para se observar os efeitos da política estatal no socialismo. Ainda, depois da mudança de paradigma do PKK, esta situação faz com que alguns partidos socialistas distanciarem-se do movimento Curdo. A posição dos anarquistas neste assunto também é importante. Nós, como revolucionários anarquistas vindos de uma tradição, onde socialistas nem davam importância para movimentos de libertação popular em países do terceiro mundo, mas camaradas anarquistas constituíram os primeiros movimentos na Bulgária, Grécia, Macedônia, Armênia, em 1850, nós estamos vindo de uma tradição onde os camaradas anarquistas empreenderam as primeiras lutas libertárias na América do Sul, na Indonésia, nas Filipinas… Isto não é para criar um novo fronte contra Nacionalistas e AKP. O DAF não se considera na agenda política parlamentar Turca. Este é um novo front que está contra soluções parlamentares para problemas sociais, econômicos e políticos.

E&A- Pelo que vocês podem observar em Rojava de acordo com a grande proximidade, quais seriam as maiores virtudes do sistema social em desenvolvimento na região? E, no mesmo sentido, qual seria a maior fraqueza em termos do PYD-TEV DEM (Movimento pela Sociedade Democrática, em Curdo: Tevgera Civaka Demokratîk) estar estabelecendo um novo Estado na região? O que eles poderiam estar reproduzindo que poderia culminar em outro Estado?

DAF- Camaradas, nós precisamos fortalecer a posição da Revolução de Rojava em todos os sentidos. As pessoas que estão lutando aqui, pessoas que estão lutando aqui para não construir outro Estado opressor. Esta é a luta por revolução social sem Estado, sem capitalismo, sem patriarcado… Nós conhecemos os cenários sobre estarmos unidos ao Curdistão de Barzani ou numa confederação com a Síria de Esad. Nosso papel tem de ser em participar e manter a revolução social longe destes cenários. Se a solidariedade das pessoas revolucionárias for o suficiente para criar esta solução sem Estado, é inútil sentir medo destes cenários. Esta não é apenas nossa posição em Rojava, esta é a posição do Movimento de Libertação Curda.

E&A- Nós entendemos que o tema da emancipação e empoderamento das mulheres é tão importante, que implicaria numa entrevista inteira, mas podemos perceber que isto é uma característica e um resultado acordado pelo processo social da maioria Curda (e não algo sectário, isto está claro). Em quais aspectos a presença das mulheres combatentes no YPJ está transformando as relações sociais no Curdistão como um todo? Isto tem uma relação direta com o PKK e o pensamento orgânico sobre a participação das mulheres no HPG?

DAF- Surgiram os Mala Jins (algo como Conselho das Mulheres) desde o princípio da revolução em Rojava. Nos Mala Jins, se socializa a consciência no papel das mulheres na sociedade, socializa luta contra a cultura patriarcal, socializa a importância da mulher na sociedade. Este esforço é muito importante, pois o EI e outros islamitas radicais tentam moldar toda a região de acordo com os valores de suas culturas. A revolução social não é apenas mudança política. Nós temos que ver outras mudanças como nas questões das mulheres para entender a importância da Revolução de Rojava.

E&A- Para concluir, existe uma preocupação, pois os fatos provam que as sociedades ocidentais observam o processo social de Rojava com simpatia e, em termos e comportamento e regras de coexistência, o Curdistão parece ser o mais próximo que existe de uma forma de sociedade democrática, secular e liberal. Na visão do DAF, existe um verdadeiro risco da esquerda Curda acabar se aproximando do Ocidente de uma maneira inevitável (dependendo do apoio do Ocidente) que ela acabe como uma sociedade secular protoestatal com igualdade de gênero (com é uma conquista para região) ao invés de uma revolução social com chances de realmente construir outra sociedade? 

DAF- Como escrevemos “Não somos videntes, nós não podemos prever o que acontecerá em Rojava daqui um mês ou daqui um ano. Nós não podemos saber se esta transformação social, que não só nos traz esperança enquanto revolucionários que lutam numa região geograficamente próxima, mas também alimenta nossa luta nas regiões nas quais lutamos, seguirá num futuro positivo ou negativo. Mas nós somos anarquistas revolucionários. Nós não podemos apenas sentar de fora, ver o que está acontecendo e comentar; nós tomamos parte em lutas sociais e tomamos ações para uma revolução anarquista.”

Vida longa à Revolução de Rojava! Vida longa à Resistência de Kobanê! Vida longa ao Anarquismo Revolucionário!

Original em inglês por Bruno Lima Rocha: possui PhD em Ciência Política e é Professor de Estudos Internacionais e Geopolítica lecionando em três faculdades regionais e universidade no Sul do Brasil.

Tradução: Mariana Miotto

Fonte: http://www.anarkismo.net/article/27779?author_name=BrunoL

 

As Comunas e Conselhos de Rojava – Janet Biehl

Fonte: Resistência Curda

kobani

As Comunas e Conselhos de Rojava

No Sábado, 6 de Dezembro, a Delegação Acadêmica para Rojava reuniu-se em Qamislo com dois representantes de Tev-dem, o movimento por uma Sociedade Democrática. Abdulkerim Omar e Çınar Salih primeiramente nos deram uma contextualização do pensamento de Rojava sobre Estado e Democracia. Então, eles explicaram a estrutura da democracia auto-governada – as comunas e o sistema de conselhos – e ouviram nossas perguntas. Falando por meio de tradutores, Salih foi quem mais falou.

Nós construímos nossa democracia para que pessoas de várias nacionalidades vivam juntas. Nós somos novos, e cometemos erros, e nós estamos tentando impedir o Daesh [i.e Estado Islâmico]de entrar em Rojava. Outras delegações vieram aqui, mas nos agrada receber vocês aqui. Seu projeto está nos dando esperanças. Ainda não conquistamos a liberdade, mas aprendemos a lutar.

O sistema que estamos vivendo existe há cinco mil anos. Diferentes estágios da história têm dado-o diferentes nomes, mas em seu núcleo tem se mantido o mesmo, e seu pilar principal é o Estado. Isto precisa ser bem compreendido. Nos últimos cem anos as pessoas têm lutado contra o Estado, e elas conseguiram atingir independência historicamente, mas elas não atingiram a liberdade, porque elas não se emanciparam do Estado. Seu conceito de liberdade se encontra dentro dos limites do Estado.

O atual sistema de Estados-Nacionais abriu os portões para a grande crise que estamos vendo. Os Curdos também tiveram um papel nessa região – como nossos amigos arqueólogos descobriram, eles deixaram uma marca na história e na cultura. Nós entendemos enquanto Curdos que nossos problemas não serão resolvidos criando num novo Estado-Nacional. Como podemos superar esse caos com o mínimo de derramamento de sangue possível? Como arrumar uma solução apesar da existência das fronteiras de Estado?

Ao invés de independência de Estado, nós preferimos autonomia. A solução tem de ser mais profunda. O sistema de Estados Nacionais criou grandes prejuízos, então, as pessoas pensam que Árabes, Curdos e Turcos não se dão bem. Esta ideia tem sido reforçada pelo sistema de Estados Nacionais. Foi fixado nos cérebros das pessoas, com péssimas consequências. Isto excluiu condições de coexistência e cooperação entre os povos. Nós estamos lutando para nos livrar desses prejuízos e criar condições para a vida em comum.

Nós acreditamos que o sistema equivale à destruição sistemática das mulheres, e que a autonomia democrática equivale à liberação das mulheres. Por isto nossa revolução de Rojava é uma revolução das mulheres. Em Rojava não existe nenhum lugar na vida no qual as mulheres não tomem papel ativo. Uma das nossas maiores conquistas tem sido quebrar esse dogma predominante no Oriente Médio de que as mulheres são fracas e dependentes [lacking, usado como adjetivo no original], como é expressado de maneiras diferentes como nas leis da Sharia. Mas este é apenas um dos resultados da nossa revolução. Nós acreditamos que uma revolução que não abre caminhos para a libertação das mulheres não é uma revolução. Houveram revoluções na Líbia, Egito e Tunísia – houveram novos governos –, mas o mesmo status para as mulheres persistiu.

Nosso sistema se baseia nas Comunas, constituídas por vizinhanças de 300 pessoas. As Comunas têm co-presidentes, e há co-presidentes em todos os níveis, da Comuna à Administração do Canton*. Em cada Comuna há cinco ou seis comitês. As Comunas trabalham em duas funções. Primeira, elas resolvem problemas rápido e com antecedência – por exemplo, um problema técnico ou um problema social. Alguns trabalhos podem ser feitos em cinco minutos, mas você o banda para o Estado, e fica preso na burocracia. Assim, nós conseguimos resolver problemas rápido. A segunda função é política. Se nós falamos democracia verdadeira, decisões não podem ser tomadas de cima para baixo, elas tem que ser tomadas na base e então subirem os degraus. Há também Conselhos de Distrito [District Councils] e Conselhos Municipais [City Councils], até o Canton. O princípio é “poucos problemas, muitas soluções”.

Então, para que o governo não fique pairando no ar, nós tentamos preencher sua base. Existem perguntas sobre como esse sistema realmente se organiza. Então, vocês podem fazer perguntas.

Q: É um conceito muito interessante, e provavelmente existem tensões e desafios dentro desse sistema. Um é a tensão entre decisões de baixo e necessidades imediatas em nível de todo Canton. Por exemplo, provavelmente vocês têm de decidir de maneira centralizada que vocês precisam construir um moinho para fazer farinha. Ou vocês precisam decidir construir uma refinaria. Estrategicamente, estas coisas altamente importantes. Por outro lado, vocês têm este sistema de baixo para cima vindo das Comunas. Não é útil estabelecer infraestruturas semelhantes e muitas Comunas ou muitas Cidades. Então, vocês precisam de algum tipo de coordenação entre as Comunas e os Conselhos Municipais. Quem os coordena?

Nós também estamos discutindo estes problemas – não existe uma fórmula pronta para aplicar. Falando em números pode ajudar. Qamişlo possui seis distritos diferentes. Cada distrito tem 18 Comunas, e cada Comuna é composta por 300 pessoas.

Agora, cada Comuna possui 2 co-presidentes. E cada Comuna possuem comitês diferentes. Os dois co-presidentes eleitos de cada Comuna se juntam para constituir o Conselho Popular daquele Distrito.

Então, cada um desses Conselhos Populares do Distrito elegem dois co-presidentes. Então, dos 6 distritos de Qamişlo, 12 pessoas constituem o Conselho Popular Municipal. Mas apenas 12 pessoas não podem constituir o conselho – ele deveria ter 200. Então, somado a estas 12 pessoas, as outras são diretamente eleitas. Mesmo que você não esteja num comitê, ou tenha sido eleito numa Comuna, você pode colocar seu nome e potencialmente ser eleito.

O Canto de Cizîre consiste em 12 cidades. Delegados do Conselho Popular do Canton são alocados de acordo com a população. Qamişlo é a maior cidade, então possui mais delegados que outras – possui 20. Eles determinam isso pelo número da população. Os co-presidentes já fazem parte deste grande Conselho; então Qamişlo possui mais 18. Cada Conselho Popular Municipal elege quem irá para o Conselho Popular do Canton. No final você possui um Conselho Popular em nível de todo o Canton. É como um parlamento, mas os laços entre Comunas e Conselhos não cortados.

Q: Cada Comuna vota em delegados que vão para os níveis superiores?

Sim.

Q: Qamişlo possui mais delegados – Quem decide quantos delegados cada cidade possui?

É baseado na população.

Q: De acordo com qual censo?

O que estiver em vigor. Agora, o Conselho Popular do Canton não existe ainda. O censo está sendo feito agora. Mas todas as Comunas nas cidades estão trabalhando nele. Este conselho nem possui um nome ainda – pode ser chamado de parlamento.

Cada Comuna possui comitês, como, digamos, um comitê de saúde, e há comitês similares em níveis acima. Assim é que asseguram que o comitê de saúde da administração do canton tenha conexão direta com as necessidades da Comuna.

Q: Qual é o papel do Tev-Dem?

Tev-Dem coordena e mobiliza pessoas na base e carrega a conexão para o parlamento. Isto garante a conexão da democracia direta ao governo. Ele mobiliza e coordena, mas também senta no parlamento, onde representa os interesses do povo. É uma dupla identidade.

Q: Os Conselhos das Mulheres existem paralemamente aos Conselhos Populares, nos quais as mulheres possuem 40% de representação. Isto existe em todos os níveis, e em todos existe o poder de veto sobre questões das mulheres?

Sim. Os Conselhos das Mulheres existem em todos os níveis, a Comuna, o Distrito, a Cidade e o Canton. Os Conselhos das Mulheres não decidem sobre assuntos gerais – é para isto que existem os Conselhos Populares. Eles discutem questões que são especificamente sobre as mulheres. Se há disputa social, como conflitos interpessoais. Um comitê tenta resolver um problema entre pessoas. O Conselho das Mulheres também possui um comitê como esse. Então, se elas verem neste comitê um problema que importe às mulheres, como uma disputa sobre violência doméstica, e elas discordem do Conselho Popular, e dizem não, o não do Conselho das Mulheres será aceito. Elas têm poder de veto sobre questões referentes às mulheres.

Q: É sempre claro o que são questões das mulheres?

Nós seguimos uma base de caso a caso. Não há fórmula pronta. Sempre que o Conselho das Mulheres veta alguma coisa, esse veto é aceito. Se um problema não pode ser resolvido nos baixos níveis, esses problemas são levados à corte. Mas essas questões, como todas as questões em Rojava, são resolvidas localmente se possível.

*A tradutora referiu utilizar o termo original em inglês da unidade territorial para antecipar possível confusões, mas por analogia com o sistema político brasileiro, o Canton parece equivaler a um Estado Federativo.

Tradução: Mariana Miotto

Fonte: http://kurdishquestion.com/index.php/kurdistan/west-kurdistan/rojava-s-communes-and-councils.html

O ir e vir, a esquerda, os partidos, o governo, Kobane e a Grécia

fonte: coletivo Krisis: http://3.bp.blogspot.com/-DNZ08pG_syg/T2v3OSuWhPI/AAAAAAAAAWw/nvZmhNZixNc/s1600/CIMG0333.JPG

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por Gilson Moura Henrique Junior

Em pleno janeiro de 2015 e temos um cadinho de movimentação política pela esquerda mundial que causa terremotos interpretativos nas mentes socialistas e anarquistas, especialmente depois da comoção brasileira em torno da “Dilmãe de coração valente” que atingiu até a dita esquerda radical partidária e até anarquistas nas eleições de 2014.

Logo neste início de ano temos o burburinho das manifestações contra a tarifa, que se movimentam para também se tornarem protestos contra todas as tarifas e não só as de transporte, e o eco feliz da esquerda partidária à vitória do Syriza na Grécia.

Além disso, há o escândalo socialista e anarquista diante do governo da “Dilmãe” que se apresenta um governo muito mais parecido com o que seria o de Aécio Satã do que com a propaganda que petistas e abestados seguidores “responsáveis” da súbita transformação do governo pragmático de Dilma num governo “de esquerda” gostariam de admitir.

Aliás, salta aos olhos a desilusão de uma esquerda madura o suficiente pra tomar decisões “responsáveis” com um governo que guina à direita, cada vez mais, desde 2002, em um segundo turno de 2014, como se morasse em Marte e não tivesse noção da perseguição que o governo federal moveu contra anarquistas e autonomistas junto a governos estaduais como os do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo; como se não soubesse dos ataques a indígenas e quilombolas e como se os recuos na demarcação de terras,etc fossem ilusões; como se fossem lenda a franca postura homofóbica do governo incluindo omissões que permitiram Feliciano na comissão de DH da Câmara federal e os recuos nas políticas de Gênero e como se as indicações de abraço neoliberal na política econômica não fossem dadas desde 2013.

Essa esquerda talvez tenha sofrido um surto súbito de Alzheimer temporário ou sucumbiu à lógica oportunista eleitoral imediata e mal tentou fingir que não. Diante da dúvida entre a responsabilidade concreta com movimentos e mudanças e o medo de desagradar eleitores escolheu a segunda opção, abraçou Dilmãe e agora faz a egípcia com o resultado das opções.

Agora em janeiro de 2015 essa mesma esquerda “responsável”, além de se chocar com um governo Dilmãe que nomeia Katia Abreu ministra da Agricultura e o negacionista Aldo Rebelo para ministro da ciência e tecnologia, se põe calada diante da covardia de suas figuras públicas no apoio aos 23 presos políticos perseguidos pelo estado do Rio de Janeiro, se omite diante das manifestações contra aumento das passagens e tarifas em geral, ignora a crise hídrica como parte da crise ecológica e climática que jamais confrontou concretamente em seus programas e ainda tem o disparate de dizer que quer ser o PODEMOS brasileiro.

Não sei como se quer ser um movimento que buscou ser horizontal e discutir amplamente desde o cancelamento da dívida pública à mobilidade urbana, ecossocialismo, fim do uso dos combustíveis fósseis,etc de forma aberta sem que se consiga sequer discutir mobilidade de forma franca, ser solidário com perseguidos políticos além do Rafael Braga ou ao menos tentar dialogar com o movimento contra mudanças climáticas. Talvez se esteja dizendo que será o PODEMOS brasileiro no que tange aos defeitos do PODEMOS, e aí concordo, já que está até à frente do PODEMOS na cooptação pelo estado.

No Rio essa esquerda que quer ser PODEMOS foi brilhantemente ativa na negação de prestar solidariedade aos 23 presos políticos julgados pelo estado por supostamente estarem organizando ataques no dia da final da copa, presos que inclusive foram indiciados junto com Bakunin (sim o anarquista russo morto em 1876 em Berna na Suíça), em uma manifestação contra o aumento das passagens que desde o inicio indicava que iria até o Tribunal de Justiça prestar solidariedade, mas cuja “responsabilidade” da esquerda a fez negar o trajeto e optar por ficar ao redor da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, na Cinelândia, local que frequenta alegre com seus mandatos e que talvez seja uma espécie de centro nervoso de sua existência e que por isso não pode se afastar muito deste totem geográfico.

Em SP a esquerda que quer ser PODEMOS faz uma atuação comovente em ser secundária diante do MPL e parece participar dos atos apenas como coadjuvante envergonhado que precisa ir para não parecer negar aquele movimento e necessidade dele.

Enquanto isso, a esquerda que quer ser PODEMOS prega com voracidade a reforma política, uma reforma política que tem de passar pelo congresso, uma reforma política que precisa estar vinculada à institucionalidade, uma reforma política que quer fazer uma mudança no estado por dentro do estado e que mobiliza ou tenta mobilizar os movimentos sociais para sustentarem essa lógica surreal em pleno auge da crise hídrica.

Ou seja, enquanto a crise ecológica atinge o auge de seus efeitos visíveis nas principais cidades do país, enquanto os governos cagam solenemente pra necessidade dos mais pobres e aumentam as tarifas de transporte; enquanto o governo federal que recebeu apoio “responsável” desta esquerda que quer ser PODEMOS ataca direitos trabalhistas e retira acesso a seguro desemprego e seguro-defeso; enquanto os governos, todos, em plena crise hídrica mentem pra população e a sacrificam com racionamento assumido ou não e permitem que indústria, agronegócio, termelétricas e mineração continuem desperdiçando água e usando-a de forma predatória, a esquerda que quer ser PODEMOS faz movimentinho para uma reforma política que deve passar pelo congresso mais conservador de todos os tempos e sequer, repito, SEQUER, se posiciona a partir de seus mandatos, setoriais,etc para uma política CON-CRE-TA de ataque às mudanças climáticas, uso de combustíveis fósseis,etc, nenhuma defesa concreta de mudanças na mobilidade urbana, nenhum debate, nada, apenas o velho e modorrento movimento para fortalecimento de figuras públicas.

Enquanto isso a esquerda que quer ser PODEMOS louva a vitória do Syriza na Grécia, e sonha em fazer igual aqui. Talvez por usarem táticas semelhantes ao que o Syriza fez com Tsipras e o PODEMOS faz com Iglesias, movimentos de reforço e anabolização de figuras públicas com objetivos eleitorais que eclipsam o surgimento de organizações mais horizontais, democráticas e anti hierárquicas, essa esquerda que quer ser PODEMOS vê no Syriza o surgimento de uma terra sem males na Grécia e em breve em toda a Europa.

Se a vitória do Syriza é um alento no sentido de interromper a sanha da Troika e o avanço das políticas de austeridade, impondo um novo programa para a Grécia e a Europa, atrapalhando o avanço da extrema-direita, ela também é um sinal de problemas quando a esquerda auto-proclamada radical já desde cedo sacrifica parte de seu programa, como a defesa do casamento civil igualitário, para permitir coalizões com partidos de direita que a permitam governar.

A coalização com os gregos independentes inclusive traz em seu bojo a entrega do ministério da defesa a um xenófobo homofóbico e racista que já adianta que trará políticas anti imigração e já ressuscita questões de soberania que cria litígios com a Turquia. Tudo isso é preocupante demais e soa mais preocupante quando parte da esquerda mundial opta por ignorar essas manobras para atacar o KKE, partido stalinista grego que anunciou por motivos que vão de sectários a lógicos que não se aliaria ao Syriza, enquanto faz a egípcia com movimentos do próprio Syriza.

Se o KKE é sectário, e é, o Syriza manifesta preocupantes movimentos de adequação à lógica do capitalismo promovendo menos uma guinada radical anti austeridade e mais um movimento de renegociação agressiva da dívida pública sem romper com o euro, a zona do euro e a lógica econômica do Banco Central Europeu.

Se o Syriza tensiona o mercado ao negociar com os credores sem passar pelo BCE e FMI, ele deveria tensionar a esquerda pela indicação de pouco rompimento e muita adequação à lógica do estado, promovendo uma ação deveras similar à assimilação que a social-democracia europeia fez nos anos 1950, só que pintada com tintas radicais.

A esquerda deveria ser mais crítica com o Syriza, mesmo considerando o simbólico de sua vitória, para evitar danos graves no futuro a partir de sua assimilação pelo estado e capital. Se o Syriza na Grécia, em uma situação de concreta força política para implementação de medidas radicais de transformação do estado através de plataformas reformistas radicais, já dá pinta de assimilação, isso simboliza uma paulada na cabeça de qualquer sonho de reforma radical na Europa e no mundo. E ao silenciar sobre isso a esquerda que quer ser PODEMOS é cúmplice de uma tática que já vimos no Brasil a partir da eleição do PT.

Aliás, a similaridade entre PT e Syriza, no todo da história, deveria saltar aos olhos brasileiros e fazê-los ajudar observadores europeus a entenderem os limites das ações deste no cenário político europeu.

O Syriza assim como o PT não é um partido nos moldes clássicos europeus, é uma força política complexa, mais similar a uma frente de correntes e vertentes da política partidária de esquerda e que contempla setores mais ou menos pragmáticos que se entendem socialistas e que vão além de elementos marxistas-leninistas. Ambos os partidos rompem com a social-democracia clássica e também com os PCs e ambos os partidos contemplam reformismos diversos, de tonalidades diversas, mais ou menos pragmáticos, mais ou menos marxistas, mais ou menos libertários. Ambos os partidos promoveram mudanças radicias no quadro político da esquerda local e mundial, apresentam lideranças carismáticas e programas radicais de reforma do estado com foco na eliminação da pobreza.

O Syriza chega no poder, no entanto, em uma situação mais parecida com o PT na eleição de 1989, com um quadro econômico parecido com a chegada do PT ao poder em 2002. O quadro do Syriza é, portanto, um quadro que lhe permite mais autonomia e legitimidade nas decisões, possui quadros e políticas mais radicais em um cenário de terra arrasada parecido com o brasileiro em 2002.

A questão é que mesmo com mais força política que a obtida por qualquer partido da esquerda mundial nos últimos trinta anos, o Syriza faz movimentos confusos, contraditórios e que não nos deixam exatamente alheios à sua similaridade com a história de assimilação ao estado e ao capitalismo que faz quase parte do DNA político da esquerda partidária.

E isso nos leva às contradições inerentes entre PODEMOS, Syriza, PSOL e suas “responsabilidades” diante dos cenários políticos dos quais fazem parte e a enigmática parte de um DNA organizado em partidos que centralizam, hierarquizam, diferenciam-se das ruas em nome da conquista do estado para supostamente através dele promover reformas que ajudem na revolução e que paulatinamente acaba fazendo parte deste estado, parte daquele aparato que deveria combater e agora ajuda a sustentar.

Sacaram a contradição?

O PODEMOS ao focar no Iglesias, e o Syriza ao focar no Tsipras, já amplificam a lógica hierárquica, criando a figura de uma liderança centralizadora que recebe a energia de milhares de partidários, o foco da esperança,etc, com o fim de ser ungido como capitão das massas em processos eleitorais.

A questão piora quando a partir dos processos eleitorais feitos para que a burguesia seja sempre eleita, construído com regras da burguesia, organizado para a vitória do capital, se busca organizar um processo de mudanças políticas estruturais, de transformação do estado. Pior mais ainda quando estas forças se afastam da construção de processos de mudança cotidiana por fora da institucionalidade.

E isso se repete no PSOL ao se elegerem figuras públicas que absorvem a força militante em sua defesa, como Marcelo Freixo e Luciana Genro, sem a força construída nas ruas pelo Syriza e PODEMOS. E por isso talvez vemos no Brasil o distanciamento destes elementos das movimentações das ruas, dos movimentos independentes como o MPL, de organizações como FIP, de coletivos anarquistas e um afastamento que grita alto na rua para tentar se desvincular de pessoas presas por se colocarem como lideranças alternativas aos partidos na construção de lutas cotidianas.

Em plena crise hídrica, em plena contestação da taxação do direito de ir e vir e temos distanciamento dos partidos das luta cotidianas, desvinculação dos partidos das lutas das periferias, omissão na defesa e solidariedade com lutadores presos e nenhum partido brasileiro fortalecendo lutas que juntam milhares e podem juntar milhões na defesa do básico, do direito de ter água e de não pagar passagem para ir e vir.

A lógica parece de disputa por espaço, como se a eleição dependesse do enfraquecimento de movimentos independentes que fujam ao controle dos partidos.

Enquanto se luta contra as tarifas, os partidos fazem campanha para Presidência da Câmara, elogiam o Syriza de forma acrítica, querem ser PODEMOS, faltam ao depoimento que poderia ajudar presos políticos que estão sendo presos de forma absolutamente autoritária e ainda querem ser representantes da mudança nas próximas eleições.

E é sintomático que, em todo este período, a Grécia e a Europa tenham sido o foco central dos partidos, invejando o PODEMOS e seus milhões nas ruas, invejando Tsipras sendo eleito, mas silenciando tanto pra o debate sobre tarifa zero, um debate concreto que abranja toda a sociedade e que mire em políticas públicas concretas, quanto para um movimento revolucionário em curso em Rojava, no Curdistão Sírio e que recentemente ganhou atenção só após a libertação de Kobane do assédio do Estado Islâmico.

Mesmo com fome de ocupar o estado, pouco se discute nos partidos sobre políticas concretas a respeito de mobilidade urbana, de uso de combustíveis fósseis, sobre a gestão de recursos hídricos, sobre a economia a partir do decrescimento e sobre a própria gestão do estado, discutindo democracia direta concreta e não um referendismo mal formulado e que não propõe nenhuma democracia direta concreta.

Diante de um quadro mundial que pouco oferece ventos de mudança fora da institucionalidade, a esquerda partidária despreza fortemente tudo o que envolve a experiência curda de confederalismo libertário, com construção de conselhos feministas, de jovens, administração comunal da economia,etc. E isso em um quadro geopolítico ímpar que é o oriente médio.

Estes elementos são sinais fortes que medem a vontade partidária de construir concretamente mudança para além do estado, de sair do estado, de mudar o estado e não de apenas subir no trono do estado para reformas leves que não alterem a dinâmica das relações humanas e a dinâmica hierárquica da própria constituição partidária.

A ausência de discussão veemente sobre mudanças na estrutura de poder e gerência do estado e fora dele são sintomas de uma negativa de tentar construir um mundo pós-estado, ou seja, a negativa de discutir a construção de poder exercido pela sociedade é um sintoma que a defesa do comunismo e de uma sociedade socialista e pós-socialista vai até a página dois, dado que se a manutenção da institucionalidade sem questionamento da hierarquização dela e da presença do estado é a norma, que sociedade livre é essa que se constrói mantendo o estado, e não a sociedade, no controle das necessidades da vida cotidiana?

Essa negativa de debater sobre democracia direta concreta é parte do problema que coloca a esquerda partidária como produtivista e que pensa o estado na gerência da economia, dá pouca abertura pra uma discussão sobre crescimento econômico, alimentação, descentralização energética,etc e que por isso é avessa ao debate ecológico. Essa esquerda, por isso, jamais entende o que rola no Curdistão Livre.

Rojava pra essa esquerda é um reino encantado.

Em um cenário de avanço da extrema-direita mundial e no Brasil a esquerda partidária assume apenas parte da responsabilidade na construção do contraponto e nega-se a qualquer diálogo que fuja da relação pela institucionalidade.

E diante da omissão diante dos 23 presos podemos até ir além e achar que a esquerda partidária não só se nega a pensar pra fora do estado como se nega sequer a pensar pra fora de qualquer coisa que cause risco leve em suas eleições.

Por isso o mais avançado partido da esquerda mundial, o Syriza, não teve escrúpulos em mandar às favas os escrúpulos de consciência e rifar direitos LGBT, em por em risco a vida de imigrantes, em nome do que considera maior e prioritário: o combate à Troika.

Por isso o partido que se proclama PODEMOS do Brasil se nega a qualquer solidariedade com quem é perseguido político do estado, evitando assim correr risco na eleição de sua maior figura pública para prefeito do Rio: Marcelo Freixo.

Da mesma forma que o PODEMOS na Espanha se nega a ser solidário com os anarquistas presos pela operação Pandora, o PSOL no Rio tem coisas mais importantes do que manifestar solidariedade com autonomistas presos de forma absolutamente canalha.

E a nave da cooptação, da assimilação pelo estado, vai, segue adiante enquanto anarquistas são presos no Chile, no Brasil, na Espanha e enquanto a esquerda partidária se anima com a conquista do governo por um co-irmão, fazendo aquecer corações carentes de postos administrativos no estado pularem de felicidade mundo afora.

E a água acaba, e o clima pira, mas tá tudo bem, o Syriza chegou ao poder.