Resenha: “From Bakunin to Lacan: Anarquismo Lacaniano e a Esquerda”

61MHVzF1dcL._SL1360_Por Todd May

Fonte: Literatura Anarquista

Resenha: Saul Newman, De Bakunin à Lacan: Anti-Autoritarismo e Deslocamento do Poder (Lexington Press).

1. O objetivo mais geral do novo livro de Saul Newman, From Bakunin to Lacan: Anti-Authoritarianism and the Dislocation of Power, é oferecer uma crítica ao modo pelo qual o poder, e especificamente o poder político, é comumente concebido. Ele evita a abordagem padrão a tais discussões que giram em torno de um abraço ou uma modificação de Marx, voltando-se, ao invés, à desprezada arena do anarquismo e articulando-a com pensadores atuais associados ao termo “pós-estruturalismo”. Newman argumenta que aquilo que ele chama de “local do poder”, a idéia de que os tratamentos dados ao poder parecem freqüentemente constrangê-lo conceitualmente a uma certa região ou tipo – com efeito, essencializando o poder numa categoria natural – não condiz com a verdadeira operação do poder. O poder, como tantos pensadores recentes argumentaram, é mais difuso e incircunscrito do que foram capazes de reconhecer os tratamentos progressistas tradicionais dados ao tema, especialmente o marxismo.

2. O livro se inicia com um tratamento do marxismo, mostrando que, para os marxistas, o local do poder é sempre na economia, e abordagens não-economicistas ao poder são desconsideradas. Aqui a discussão foca a idéia de que, desde que os marxistas freqüentemente pensaram o Estado como sendo determinado pelo poder econômico, não se embaraçaram em assumir o controle do Estado a fim de mudança nas relações econômicas. As conseqüências de tal pensamento, longamente criticado pelos anarquistas, manifestaram-se durante toda a história de nosso século.

3. Em contraste, o anarquismo vê acertadamente que o marxismo perdeu de vista o papel do poder de Estado nas relações sociais. Infelizmente, os anarquistas parecem querer colocar todo poder no nível do Estado, e assim simplesmente substituir um local de poder pelo outro. Ao seu ver, o Estado é o local do poder, e a resistência reside nos impulsos naturais de uma humanidade não-contaminada por tal poder. Elimine o estado, e as deletérias relações de poder cairão por si mesmas.

4. Nesse ponto, Newman volta-se, num interessante desvio das explicações padrão, ao anarquista Max Stirner, a fim de criticar o tipo de humanismo inerente ao pensamento de tantos outros anarquistas. Para Stirner, o humano não é um recurso natural de resistência não-contaminado, mas um local vazio, um projeto a ser realizado. Este projeto pode ser realizado igualmente por meios opressivos ou não-opressivos. A questão, então, é como conceber o poder e a resistência se nenhum deles encontra-se num local natural.

5. Michel Foucault começa esse processo através da análise dos meios polimorfos pelos quais opera o poder. Entretanto, vacila, pois, ao enxergar o poder em todo lugar, parece prescindir da possibilidade de conceitualizar a resistência sem retornar a um lugar externo e não-contaminado pelo poder. Esse lugar seria tão essencialista como aquele oferecido pelo anarquismo.

6. Deleuze e Guatarri, buscando novas categorias conceituais para o poder, minam a idéia de locais distintos para o poder e a resistência, especialmente com seu conceito de “máquina de guerra”. Entretanto, contrapondo o desejo ao social, acabam retornando à muitas categorias que sua obra pretende resistir.

7. Derrida, deslocando muito da estrutura oposicional que caracteriza o pensamento político (e outros), oferece uma abertura para re-conceber o poder e a resistência. Se o poder e a resistência estão entrelaçados a ponto de prescindir de uma separação em dois locais distintos, então um pensamento envolvendo categorias derrideanas, como differance e infra-estrutura, poderia ser mais apropriado para compreender esta operação. Derrida, entretanto, não oferece um tratamento ao sujeito da resistência, ao ator político.

8. Aqui, finalmente, Lacan, o verdadeiro herói de Newman neste livro, se torna relevante. Para Lacan, o poder contém sua própria falta. O significante é internamente fendido, permitindo que a resistência ocorra no poder e não fora dele. Se o sujeito lacaniano é incrustado no e resistente ao poder em sua estrutura mesma, então ambos poder e resistência existem sem locais distintos e essenciais, são dispersos e polimorfos, e podem ser pensados sem os problemas que caracterizaram os tratamentos dados de Marx à Deleuze e Guatarri. Um pensamento pós-anarquista, que leva a sério o impulso anti-autoritário do anarquismo, ao passo que se livra do tratamento humanista dado ao poder e a resistência, inicia-se a partir daqui.

9. Newman acredita que usando um framework lacaniano, também usado na obra de Ernesto Laclau, na sua discussão sobre a lógica do significante vazio, pode ao mesmo tempo abraçar uma ética da crítica e evitar qualquer caráter essencializante aos quais os termos da crítica poderiam prestar-se. Se isto soa como uma abordagem desconstrutiva de Derrida à linguagem, deveria. O que Newman busca fornecer é uma abordagem ao pensamento progressista que parte do anarquismo e do pós-estruturalismo, e não do marxismo, e vê nos impulsos por trás destes movimentos não só uma abordagem para conceber o poder, mas também, indissociavelmente, uma abordagem à linguagem.

10. Há diversos aspectos de From Bakunin to Lacan que particularmente o recomendam. Em primeiro, diferentemente de tantas explicações referentes aos citados pensadores, o livro é claro e coerente. As visões sumárias que fornece de filósofos tão difíceis como Lacan e Deleuze são ambas acuradas e legíveis. É uma virtude difícil de alcançar nesse tipo de trabalho. Em segundo, Newman afunilou uma vasta gama de visões num único programa de teoria política. Não se lê o livro como um conjunto de capítulos desconectados, mas como um movimento progressivo atravessando diversas visões em direção a uma abordagem teórica coerente em torno de uma concepção política. Finalmente, em contraste com minha própria obra, que focava Foucault, Deleuze e Lyotard em contraste a Derrida e Lacan, o livro de Newman busca articular um anarquismo alinhado a elementos desconstrutivos do pensamento francês atual.

11. A questão que resta para mim é se tal intento logrou êxito. Eu acredito que não, sobretudo pelas razões que, num primeiro momento, motivaram o meu afastamento de Derrida e Lacan. Não estou convencido de que utilizando uma abordagem desconstrutiva à linguagem e à política, haveria lugar para o tipo de ação coletiva que parece necessária ao sucesso político. A indeterminação, no meu entender, é uma base fraca para o pensamento e para a organização política. Ele tende a afastar as pessoas e não a juntá-las. Eu entendo que Newman põe em causa, e corretamente, que juntar também traz o risco de abraçar novamente conceitos essencializantes e formas autoritárias de poder. Para mim, parece que uma abordagem política adequada não pode se furtar a esse risco; sua tarefa é articular uma concepção de linguagem que enxergue o significado – e as categorias políticas que daí ascendem – como determinado, mas contingentemente, e não como necessariamente indeterminado. A escolha, em suma, me parece não residir unicamente entre a indeterminação derrideana/lacaniana (ou determinação sempre ameaçada) e uma determinação autoritária essencializante. Uma terceira possibilidade, e na minha opinião a mais acertada, seria a de uma determinação contingente, uma determinação que pode flutuar em volta das margens, ser criticada e alterada pela crítica genealógica ou outra crítica, mas que retenha seu poder de fornecer o tipo de margem ética que Newman busca (mas me parece não encontrar) em Derrida e Lacan.

12. Dito isto, recomendo altamente o livro a pesquisadores do pensamento progressista. Newman, para mim, parece estar correto em seu alvo, enxergando o anarquismo e não o marxismo como o ponto de partida apropriado para a teoria política progressista; e nisso, além do mais, seu trabalho está em consonância com a tendência atual dos movimentos anti-globalização ao redor do mundo. Se escolhemos finalmente Foucault/Deleuze/Lyotard ou Derrida/Lacan como herdeiros e modificadores do pensamento anarquista clássico, continua em aberto. Que Newman está fornecendo uma perspectiva interessante e original, enraizada no local certo, não pode ser negado.

Todd May é Professor de Filosofia na Clemson University. Escreveu consideravelmente sobre o pensamento de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Seu quinto livro, Our Practices, Our Selves, Or, What it Means to be Human, foi recentemente publicado pela Penn State Press. Ele pode ser encontrado em mayt@clemson.edu

Fonte: Project Muse
http://muse.jhu.edu/login?uri=/journals/theory_and_event/v006/6.1may.html

May, Todd, 1955-
Lacanian Anarchism and the Left
Theory & Event – Volume 6, Issue 1, 2002

Nova colecção digital de textos sobre anarquismo

capturar14Fonte: Coletivo Libertário Évora

O projecto MOSCA (sobre o Movimento Social Crítico e Alternativo), sedeado na Universidade de Évora, editou um primeiro texto de uma nova colecção sobre anarquismo, em formato digital. Trata-se do texto de João Freire, ANARQUISMO E SOCIOLOGIA (2005), consistindo numa introdução sua a um debate organizado pelo Centro de Estudos Libertários naquela data, apenas ligeiramente retocado para a sua actual difusão. Cada uma das apresentações dos 4 “andamentos” foi seguida de debate com os circunstantes e suportada pela prévia distribuição de uns “textos de apoio”, a que se fazem algumas referências.

O texto encontra-se no arquivo do MOSCA e pode ser descarregado a partir desta ligação: http://mosca-servidor.xdi.uevora.pt/arquivo/index.php?p=digitallibrary%2Fdigitalcontent&id=1601&q=Jo%C3%A3o+Freire

Das canções barulhentas que animam rebeldes: uma nota sobre Redson, a banda Cólera e a emergência do anarco-punk.

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Por Acácio Augusto *

Fonte: GEAPI – Grupo de Estudos Anarquistas do Piauí

Você era um bom menino

mas um dia se cansou

de ser dominado

de tanta pressão

Cólera

O punk foi o grito de guerra que marcou um rompimento com as tecnologias disciplinares e, ao mesmo tempo, anunciou rebeldias contra os governos na sociedade de controle. Diante do fim do sonho, jovens que adotaram a revolta como atitude estética bradavam: não há futuro! Mais do que moda juvenil ou produto da indústria cultural — como querem as definições sociológicas de gabinete —, o punk rock deu forma, trilha e estética aos jovens que odiavam a família, a escola, a igreja, o exército, a polícia, o emprego, o Estado, enfim, toda e qualquer autoridade que se apresentasse a eles como tal. Tudo ou nada. Afirmava não ser preciso que alguém lhe autorizasse se seu querer era destruir uma sociedade que se apresentava tão podre quanto sua calça jeans, sua jaqueta de couro e seu coturno. Destruição!

No Brasil, o punk encontrou um país saindo de uma ditadura civil-militar e em um processo de democratização que fedia tanto quanto o chulé de garotos petulantes e mal-

criados oriundos dos bairros pobres da cidade de São Paulo. “O punk veio para pintar a asa branca de negro, atrasar o trem das onze e fazer da Amélia uma mulher qualquer”, declarou Clemente, da banda Inocentes, a um repórter da TV Cultura durante a realização, em 1982, do festival “O começo do fim do mundo”, realizado no SESC Pompéia, em São Paulo, com decisiva interferência do jornalista e dramaturgo Antonio Bivar.

O festival contou com uma prévia, meses antes, no antigo Salão Beta, dos estudantes

da PUC-SP, onde hoje é o Tucarena. Uma das bandas que tocaram nesse festival foi o Cólera.

O Cólera foi formado em 1979 pelos irmãos Pierre e Edson Pozzi, este adotando o nome punk de Redson, o filho vermelho, o som vermelho. Não cabe para um punk um obituário ou uma nota biográfica, mas o registro do ano de início de uma banda que, junto com Restos de Nada, amplificou em termos sonoros, estéticos e políticos o que havia de mais visceral e contundente no punk da periferia e do subúrbio de São Paulo.

Agora, o dia 27 de setembro de 2011, com a morte de Redson, marca o final da banda mais longeva do punk no Brasil: 32 anos de cólera, de revolta, de gritos de ódio. Finda uma obra feita com o que os punks chamam de do it yourself.

Sem grandes gravadoras, sem facilidades computacionais, sem patrocínios ou paitrocínios. O Cólera foi uma das primeiras bandas a gravar um disco com selo próprio, o Ataque Frontal; a primeira a se arriscar, em meados dos anos 1980, a tocar em squats e ocupações de quase toda Europa, com a ajuda de amigos cultivados por correspondências; a gravar, fazer shows, participar de manifestações e até, eventualmente, tocar em programas de TV, como o extinto Boca Livre, sem um esquema empresarial. A proximidade do punk com a autogestão e os anarquismos não foi mera coincidência ou afinidade ideológica: se tocaram pelo jeito de fazer as coisas e de se inventar no mundo.

Marcante, também, na existência de Redson e do Cólera, foi a temática recorrente em suas letras. Além daquelas sobre a vida de jovens na cidade, o combate à polícia, o ódio simultâneo ao consumismo, ao comunismo e ao fascismo, e as brigas pelas ruas, comuns a quase toda banda punk que se preze, foi a partir do disco “Pela paz em todo mundo”, de 1986, que temáticas como o pacifismo ativo, as preocupações ecológicas, o combate à homofobia, ao machismo e ao sexismo, o antimilitarismo e os alertas antinucleares passaram a fazer parte do repertório e da verve dos punks no Brasil.

Tal atenção para com a elaboração e temática das letras fez do Cólera procedência imediata do que depois se conhecerá como anarco-punk no Brasil, em especial por evidenciar e investir no rompimento com uma educação de costumes conservadores trazida de casa e sustentadas por muitos punks.

Impressionante, também, era a energia de Redson, Val e Pierre no palco: ágeis, sagazes e incansáveis. Qualquer um que fitasse o brilho nos olhos de Redson tocando e Das canções barulhentas que animam rebeldes cantando não conseguiria ficar indiferente a músicas como “Agir”, “Histeria”, “Subúrbio Geral”, “São Paulo”, “Duas Ogivas” ou “Quanto vale a liberdade?”.

Redson era um homem generoso, atento às bandas que desapareciam tão rápido quanto apareciam e defensor de uma atitude não violenta que se afastava de certa rabugice da maioria dos punks. Sabia que lutar contra fascismo não era matar e morrer estupidamente nas ruas da cidade. Atravessou, corajosamente, três décadas de punk como um quase infame que viu muita gente morrer, virar crente ou skinhead, casar e depois ver no punk um arroubo juvenil. Seguiu sem esmorecer insuflando a revolta de novos garotos que queriam “destruir o sistema”. Com guitarra em punho, com suas hesitações e contradições, mostrou com sua existência que é possível viver diferentemente do que se destina a você quando nasce. Mostrou que é possível deixar uma marca sem abrir mão da liberdade e sem “se entregar ao sistema”.

Hoje, abundam as chamadas bandas e gravadoras alternativas e independentes, e a internet ampliou a possibilidade de espalhar uma banda ou um som. A maioria dos jovens das periferias, encantados com o rap oriundo dos Estados Unidos, querem ser integrados e fazer sucesso. Os punks, na sua maioria, matam-se estupidamente na porta de shows e produzem ecumênicas alianças com skinheads. Parecem perdidos numa justificativa ideológica de brigas de gangue. Paradoxalmente, foi a ousadia de pessoas como Redson, no começo dos anos 1980, que abriu caminho para isso. O grito de revolta de trinta anos atrás, em pouco tempo foi respondido com essa pacificação violenta que oscila entre um punk que não produz mais algo como o Cólera e um rap que é quase unânime nos bairros pobres da cidade e nas rodinhas das classes médias politizadas.

A morte de Redson lembra que já faz trinta anos que a revolta eclodiu na cidade e que hoje ela está sufocada, ou impedida de aparecer, pela intensificação da comunicação e por uma recusa das condições de vida nos bairros pobres que se expressa como vontade de inclusão e expressão de assujeitamentos.

***

Conheci e convivi com Redson em momentos efêmeros e intermitentes. Não era um homem extraordinário, mas um sujeito incomum. Assisti muitos dos seus shows, em casas noturnas do centro e em bares imundos nas bordas mais ermas da cidade. O mais marcante era a energia e o brilho no olhar. Ao escrever sobre sua morte, por sugestão de um amigo, que sensivelmente notou minha perturbação com a notícia, dou-me conta de que cheguei à quarta página sem arriscar escrever na primeira pessoa do singular. De fato, a banda Cólera e seu front man, Redson, tem toda essa importância descrita acima, talvez até mais, e sua morte me levou a pensar sobre essa diferença entre o que foi possível de vivamente revoltado e rebelde num momento, e o que é tão raro hoje; como o punk rock abriu a possibilidade de um rompimento que hoje é dificilmente ensaiado.

A revolta contra a sociedade parece ter virado muro de lamentações. A rapidez e urgência do hardcore foi cedendo espaço ao peso e lentidão do rap. Redson morreu, tendo vivido à sua maneira, escapou do itinerário destinado a um jovem de periferia sem virar “macaco” da classe média. Como todo vivente não escapou da morte, mas viveu a intensidade da vida numa cidade estúpida que só poderia ser desafiada com a agressividade própria do

punk rock.

Das canções barulhentas que animam rebeldes Quando eu tinha 14 anos e um tremendo mal-estar de habitar um mundo que então se abria, foi muito bom ouvir, num disco de vinil ainda, Redson cantar: “Quanto vale a liberdade?/Pra vocês ela tem um preço/Quanto vale a confiança?/Não quero esperar/Não acredito no seu dinheiro/Onde está o seu caráter?/Deve estar perdido em algum beco/Horas você enlouquece/E depois quer fugir/Se refugia como um animal, como um animal/Dia após dia eu procuro ir em frente/Vê se me entende, não há razão, não há razão/Já não pode mais pensar/Olhe para tudo como está/Agora eu sei que não há preço/Mas me sinto acorrentado/Dia após dia, e não há razão, não há razão/Quanto vale a liberdade?/Quanto vale a liberdade?/Não importa, eu vou em frente/Não importa, eu vou em frente!” Que a revolta e o barulho, em vermelho e negro, que animou jovens como Redson siga existindo e seja capaz de inventar novos percursos de liberdade à sua maneira, como há trinta anos esse punk inventou.

*Acácio Augusto é doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP, professor no Cur-

so de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina e pesquisador no

Nu-Sol. Escreveu em parceria com Edson Passetti Anarquismos e educação,

Editora Autêntica, 2008.

Desobediência: A virtude original do homem

FreeHuey[1]

-Oscar Wilde em The Soul of Man Under Socialism, 1891.

Fonte: Aversão ao Estado

Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser lamentadas. Muitas vezes ouvimos que os pobres são gratos à caridade. Alguns o são, sem dúvida, mas os melhores entre eles jamais o serão. São ingratos, descontentes, desobedientes e rebeldes – e têm razão. Consideram que a caridade é uma forma inadequada e ridícula de restituição parcial, uma esmola sentimental, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir gratidão pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar sentados nela e agora começam a percebê-lo. Quando ao descontentamento, qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.

Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. O pregresso é uma conseqüência da desobediência e da rebelião. Muitas vezes elogiamos os pobres por serem econômicos. Mas recomendar aos pobres que poupem é algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que está morrendo de fome a comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar ou fazer greve – o que para muitos é uma forma de roubo.

Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar. Não! Um pobre que é ingrato, descontente, rebelde e que se recusa a poupar terá, provavelmente, uma verdadeira personalidade e uma grande riqueza interior. De qualquer forma, ele representará uma saudável forma de protesto. Quanto aos pobres virtuosos, devemos ter pena deles mas jamais admirá-los. Eles entraram num acordo particular com o inimigo e venderam os seus direitos por um preço muito baixo. Devem ser também extraordinariamente estúpidos. Posso entender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita que ela seja acumulada enquanto for capaz de realizar alguma forma ed atividade intelectual sob tais condições. Mas não consigo entender como alguém que tem uma vida medonha graças a essas leis possa ainda concorda dar com a sua continuidade.

Entretanto, a explicação não é difícil, pelo contrário. A miséria e a pobreza são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralisante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência de seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá-lo e mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas.

O que os patrões dizem sobre os agitadores é totalmente verdadeiro. Os agitadores são um bando de pessoais intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vive e semeiam o descontentamento nele.

É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria. A abolição da escravatura nos EUA não foi uma consequência da ação direta dos escravos nem uma expressão do seu desejo de liberdade. A escravidão foi abolida graças à conduta totalmente ilegal de certos agitadores vindos de Boston e de outros lugares,que não eram escravos, não tinham escravos nem qualquer relação direta com o problema.  Foram eles, sem dúvida que começaram tudo. É curioso observar que dos próprios escravos eles só receberam pouquíssima ajuda material e quase nenhuma solidariedade. E quando a guerra terminou e os escravos descobriram que estavam livres, tão livres que podiam até morrer de fome livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situação.

Para o pensador, o fato mais trágico na Revolução Francesa não foi que Maria Antonieta tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendée tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo.

 

(Nota do Editor: Wilde cometeu um erro comum à sua época ignorando a ação dos próprios escravos como protagonistas de sua libertação. Hoje se sabe na historiografia que houve um feroz protagonismo escravo na obtenção de sua liberdade, atuando desde em  movimentos abolicionistas organizados até promovendo rebeliões e revoltas que constituiam mecanismo de negociação e conflito. Um dos exemplos foram as Ferrovias Subterrâneas, que eram rotas de libertação de escravos que contavam com forte militância de escravos).

Uma carta aberta a quem diz que “Funk não é Cultura”

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Por Carlos Palombini

Fonte: El Hombre

O professor de musicologia Carlos Palombini, da UFMG, explica por que o proibidão merece tanto respeito quanto o samba ou qualquer outro gênero musical.

Dia 9 de agosto de 2012, depois de encontrar meu amigo Gustavo Lopes, o MC Orelha, em seu estúdio no Largo da Batalha, em Niterói, escrevi a Nilo Batista. Eu ouvira de seu DJ-produtor, Gelouko, que Gustavo não recebia direitos autorais por “Na faixa de Gaza é assim”, hoje com mais de quinze milhões de acessos no YouTube, porque “proibidão não paga direito autoral”.

Em 23 de outubro Carlos Bruce Batista me escreveu para dizer que seu pai tivera a ideia de incluir um livro sobre proibidões na série Criminologia de Cordel, publicada pela Revan para o Instituto Carioca de Criminologia. Carlos convidou um grupo de autores das áreas de direito, música e cultura, e obtivemos a colaboração de dois dos mais importantes compositores do subgênero que, nas palavras do DJ Marcelo André (em entrevista recente), “é o mais autêntico”: Thiago dos Santos, da Vila Cruzeiro (o “Praga”), e o próprio MC Orelha.

Minha contribuição para o livro consistiu numa entrevista com Gustavo Lopes e numa análise de “Na faixa de Gaza é assim”. Em 26 de novembro de 2013 nos reunimos no Circo Voador para o lançamento do livro. O ministro argentino da Corte Suprema de Justiça, Raúl Zaffaroni, o delegado Orlando Zaccone D’Elia Filho, o empresário Rômulo Costa, e os MCs Catra, Leonardo e Smith estiveram presentes.

Embora a maioria dos autores não esteja exatamente no início de suas carreiras, creio poder falar em nome de todos e dizer que é um trabalho do qual nos orgulhamos particularmente, pois estamos na companhia de pessoas que admiramos pessoal e profissionalmente. Tanto que, há alguns dias, fui procurar na rede mais quinze exemplares do livro para dar de presente.

Foi quando me deparei com alguns comentários curiosos e talvez representativos, um deles publicado no portal El Hombre. Pedro Nogueira, editor-chefe, me convidou a respondê-los.

Não é estimulante, do ponto de vista intelectual, refutar o senso comum, em especial quando ele não se dá ao trabalho de revestir-se de qualquer coerência, mas limita-se a fazer alarde de gostos e opiniões teórica e empiricamente desinformadas. O que há de mais elaborado no texto é o título, síntese de uma ignorância que o benefício da dúvida me obriga a considerar honesta. Não pode haver “culturalização” do que em si já é cultura. Seria necessário que o autor apresentasse uma definição de cultura capaz de excluir o funk carioca para que o termo tivesse qualquer autoridade.

Mas “culturalização” aqui deve ser tomada como paródia pura e simples de “criminalização”. Tal procedimento, comum no funk carioca, mostra a impossibilidade em que a cultura nacional se encontra de produzir um intelectual de direita. Tampouco há “choradeira em torno da crise do gênero brasileiro”, porquanto não está em crise a música, estão em crise alguns daqueles que a produzem. Para o autor, o problema é simples: ele vai passar-nos uma descompostura e necessita da “choradeira” justificativa. Esse “pai” preocupado com nossa educação carece de autoridade todavia.

Na introdução alguns parágrafos pretensamente neutros deveriam fornecer evidência de imparcialidade se não houvessem sido anulados pelo investimento libidinal excessivo do título. Examinemos não mais que um excerto:

O samba aconteceu “de dentro para fora” como expressão da cultura popular brasileira e, assim, foi autêntico, espontâneo; o funk carioca ocorreu “de fora para dentro” como derivação do miami bass americano e, assim, foi forjado, imposto como expressão da cultura popular brasileira por um discurso ideológico elitista, reacionário e paternalista consistente em um moralismo às avessas (induzir a sociedade a interpretar coisificação da mulher como luta feminista, pobreza como estilo de vida, ignorância como caricatura, conformismo como engajamento político, ostentação material como cidadania) interessado em processar o etnocentrismo, o higienismo e a marginalização que aprisiona, domestica e submete as classes pobres na armadilha da segregação social.”

A contraposição entre uma música que aconteça “de dentro para fora” e outra que ocorra “de fora para dentro” não tem qualquer embasamento na História. Trata-se da expressão de uma ideologia, esta sim, em crise. Ao dizer-nos essas “duras verdades”, o bom pai ríspido estetiza o político para inverter papéis, e apresentar-se em pele de cordeiro: somos nós “os interessados na manutenção da segregação social”; somos nós que projetamos “nos outros os próprios preconceitos”; somos nós quem quer convencê-lo “de que as classes pobres estão sendo valorizadas”.

Durante o período de ascensão do nazi-fascismo muitos intelectuais aderiram ao regime. Louis-Ferdinand Céline, escritor engajado, escreveu panfletos antissemitas e aproximou-se dos colaboracionistas, mas não deixou de ser considerado um dos grandes inovadores da literatura francesa. Já Robert Brasillach foi julgado e condenado à morte. Em sua defesa saíram Paul Valéry, Paul Claudel, François Mauriac, Albert Camus, Jean Paulhan, Jean Cocteau, Colette, Arthur Honegger, Jean Anouilh e Jean-Louis Barrault, entre outros. Artur Dias não é fascista nem intelectual, mas talvez tenha razão neste ponto: “Entre os níveis de obscurantismo aos quais uma sociedade pode ser submetida — pobreza material, pobreza artística, pobreza cultural —, talvez o pior deles seja a pobreza simbólica.” Quem não estiver convencido que o leia.

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Leia mais textos de Carlos Palombini em seu site Proibidão.

Ferreira de Castro, Anarco-Sindicalista e Precursor do Neo-Realismo em Portugal

foto: Ferreira de Castro com Roberto Nobre, esplanada da «Veneza», Lisboa, década de 1930 (aqui)

foto: Ferreira de Castro com Roberto Nobre, esplanada da «Veneza», Lisboa, década de 1930

Postado no Portal Anarquista, ex-Colectivo de Évora
Fonte: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2014/12/09/ferreira-de-castro-anarco-sindicalista-e-precursor-do-neo-realismo-em-portugal/

O escritor Ferreira de Castro, nascido em Ossela (Oliveira de Azeméis) a 24 de Maio de 1898 e falecido no Porto a 29 de Junho de 1974, foi o grande precursor e introdutor do neo-realismo em Portugal. Colaborador de “A Batalha” e de vários órgãos da imprensa operária e generalista portuguesa e brasileira, Ferreira de Castro foi para o Brasil, com apenas 12 anos, para fugir à miséria em Portugal

Durante quatro anos viveu num seringal em plena selva amazónica, tendo depois efectuado os mais diversos trabalhos em condições de grande precariedade.

Mais tarde em Portugal foi redactor e colaborador de várias publicações, destacando-se sempre a sua forte ligação ao mundo do trabalho e à luta pela construção de uma nova sociedade.

Livros como Emigrantes (1928), A Selva (1930), Eternidade (1933), O Intervalo (1936) – publicado em 1974 – A Lã e a Neve (1947),  A Curva na Estrada (1950), A Missão (1954) ouOs Fragmentos (1974) demonstram o seu apego aos valores fundamentais da liberdade, característicos do seu pensamento libertário, profundamente ancorado no anarco-sindicalismo, de que são exemplo muitas das suas reportagens (algumas nunca publicadas devido à censura) junto dos mineiros de São Domingos ou nas greves andaluzas no início da década de 30.

Emigrante, homem do jornalismo, mas sobretudo ficcionista, Ferreira de Castro é hoje em dia, ainda, um dos autores portugueses com maior obra traduzida em todo o mundo, podendo-se incluir a sua obra na categoria de literatura universal moderna, precursora e introdutora do neo-realismo em Portugal (que se irá tornar “moda” a partir dos anos 50, em muitos escritores alinhados com o partido comunista), com uma escrita caracteristicamente identificada com a intervenção social e ideológica.

FerreiraDeCastro-escritórioSobre Ferreira de Castro escreve o também escritor, ensaísta e crítico literário Eugénio Lisboa, na introdução que fez ao livro de Ricardo António Alves “Anarquismo e neo-realismo. Ferreira de Castro nas encruzilhadas do século”:

«(…) Como Régio, como Aquilino, o autor de A Lã e a Neve foi uma personalidade de uma insubordinável independência, ainda quando aparentemente suavizada por uma fraterna doçura que todavia não se deixava vergar. Oposicionista intemerato ao regime de Salazar, Ferreira de Castro não cedeu nunca, por outro lado – pecado difícil de digerir – ao canto da sereia dos adeptos do partido comunista ou suas adjacências. Anarco-sindicalista convicto, Castro, como admiravelmente documenta Ricardo Alves, neste seu livro precioso, abria-se de modo exemplar, nas suas amizades, a um vasto espectro de outras tendências, mas não abdicava do seu singular ideal libertário. Rejeitando quase instintivamente tudo quanto lhe parecesse atentado à liberdade, tudo quanto «cheirasse» a «demasiado governo», o criador do negro Tiago de A Selva dificilmente se deixaria subjugar por ideários políticos que, no fundo, visavam substituir uma forma de opressão por outra forma de opressão. Isto mesmo, que o deveria tornar um verdadeiro ícon para os que dizem amar a liberdade, terá sido a causa submarina de algum desleixo crítico, de outro modo menos explicável.”»

O último livro de Ferreira de Castro (“Fragmentos”, de 1974) inclui dois textos fundamentais para a história do anarco-sindicalismo em Portugal. O primeiro (“Historial da velha mina”) é um texto sobre uma reportagem efectuada por Ferreira de Castro para O Século, a convite do sindicato dos trabalhadores mineiros de São Domingos, então federado na CGT anarco-sindicalista, tendo como pretexto as duras condições de vida dos mineiros em finais dos anos 20.  Ferreira de Castro esteve em São Domingos, contactou com o célebre dirigente do sindicato mineiro de então, Valentim Adolfo João, mas a reportagem nunca foi publicada por pressões da administração da Mina.

O outro é “O Intervalo”, uma novela escrita em 1936, mas só publicada em 1974, cujo protagonista principal é um antigo secretário-geral da CGT, Alexandre Novais, que é perseguido pela polícia e é obrigado a refugiar-se em Espanha. Ali movimenta-se nos meios anarquistas e da CNT dando conta da ebulição revolucionária que anos depois irá desembocar na revolução e na guerra civil espanholas.

São dois textos notáveis, como a maioria dos textos deste grande escritor libertário, essenciais para a compreensão das motivações e da atmosfera de grande luta e radicalismo que desde sempre envolveu o anarquismo peninsular.

http://ferreiradecastro.blogspot.pt/

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_de_Castro

http://www.museuvirtual.cm-sintra.pt/mfc/colecoes.html

http://www.ceferreiradecastro.org

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Arte e Resistência: Cildo Meireles nos anos 70

Cildo_Meireles
Cildo Meireles é um artista visual brasileiro (1948) de forte importância na cena de arte nacional e internacional. Suas obras são conhecidas por contestarem a ditadura militar, o consumo, a dependência brasileira da economia global e afins.

E, para falar um pouco sobre a arte de Cildo, foi separado um trecho da tese de doutorado de Ana Lúcia Mandelli de Marsillac (Aberturas Utópicas : Singularidade da Arte Política nos Anos 70, tese disponível completa aqui ou trecho completo aqui) cujo fim é abordar a obra “O Sermão da Montanha: Fiat Lux”, projetado em 1973, exposto em 1979.

O trecho começa com aspas de Meireles, e segue com texto de Ana Lúcia:

Quem começou a fazer arte a partir de 1964 teve apenas duas opções: ou ia fazer um trabalho ligado à realidade e com uma visão critica dela, correndo o risco de ser taxado de subversivo, ou então aceitava as regras impostas. O companheiro mais constante da gente tem sido o medo de vários tons e sabores, este medo que se cristaliza no Esquadrão da Morte, por exemplo. Hoje, quando certos fatos deste período começam a vir à tona, a indignação aparece. Minha proposta é um momento de reflexão sobre o espaço da repressão e da força. O espelho é o próprio ato de refletir, e ele indica que a sua omissão volta a você como repressão.” (MEIRELES, 1979, In: MEIRELES, 2009, p. 75)

Neste depoimento, Cildo refere-se, em especial à sua obra: “O Sermão da Montanha: Fiat Lux” (Imagem abaixo), projetado em 1973 e exposto em 1979, no Centro Cultural Cândido Menezes, no Rio de Janeiro. Tratava-se de um grande bloco, composto por 126.000 caixas de fósforo da marca Fiat Lux, que tinham como logotipo o desenho de um olho. Cercado por atores, disfarçados de seguranças com óculos escuros, que tinham por função, com atitudes intimidadoras, proteger o bloco eminentemente explosivo. A sala, com cerca de 60m² era rodeada por 8 espelhos e por frases retiradas do Sermão da Montanha: capítulo 5, do evangelho de São Matheus, versículos 3 a 12. O chão, forrado por lixas, através de uma interferência sonora, amplificava o som dos passos no chão, conferindo maior tensão ao espaço. Exposição fugaz que durou apenas 24 horas.

cildo meireles - sermão

Cildo Meireles, O Sermão da Montanha: Fiat Lux, 1979. 126.000 caixas de Fósforos Fiat Lux, 8 espelhos, lixa preta, 8 bem aventuranças do Sermão da Montanha (Mateus V, 3-10), 5 atores, duração de 24 horas. Dimensão aprox.: 64m².

Felizes os pobres de espírito, porque é deles o reino dos Céus; felizes os mansos, porque herdarão a terra; felizes os aflitos, porque serão consolados; felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados; […] felizes os que promovem a paz, porque serão chamados de filhos de Deus; felizes os que são perseguidos, por causa da justiça, porque é deles o reino dos céus.” Sermão da Montanha

Cildo resgata as tranquilizadoras frases do evangelho, tão presentes no imaginário popular, contrastando-as com a “bomba”, que havia ao centro da sala de exposição. Os espelhos; bem como a logo-marca das caixas de fósforo: OLHO¹, que se repetiam por etiquetarem os fardos de fósforos no bloco central; jogavam com a condição especular, de ser visto, olhando; de ser questionado, por aquilo que se olha. “Sua omissão, volta a você como repressão.” Frente a uma explosão possível, o que se faz? O ato de Cildo parece questionar a um só tempo a força da repressão, mas também o campo das artes, que tendia a produzir obras para serem apenas contempladas. O som das lixas e os seguranças², embaralham posições e insinuam que o espectador pode ser o agente da explosão. Fiat Lux, expressão em latim, que segundo a Bíblia (Gênesis 1-3), foi utilizada por Deus na criação do mundo: faça-se a luz!

seguranças sermão

Cildo Meireles, O Sermão da Montanha: Fiat Lux, 1979.

O Sermão da Montanha: Fiat Lux, una de las obras más brillantes, audaces y perspicaces de la época, y de épocas posteriores, que se hayan hecho en cualquier país.” (BRETT, In: MEIRELES, 2009a, p. 87)

Esta obra surge de uma situação cotidiana vivida pelo artista, ao se deparar com uma venda no interior da Bahia, que não tinha quase nada, a não ser fósforos e querosene. Cildo Meireles se deu conta de que o ato de comprar uma caixa de fósforo não era visto como subversivo, nem perigoso. Joga então com isso, criando uma obra composta por 126 mil caixas. “Era a criação de uma situação de perigo através de um procedimento legal. Portanto, você não está cometendo nenhum crime, mas exercendo um direito de consumidor.” (MEIRELES, 2009, p. 269)

A união faz a força”. Esta era a frase contida no convite da exposição, na qual Cildo valeu-se de uma das imagens da sua obra: “Estojo de Geometria”, na qual prende 400 lâminas de barbear, com dois parafusos, formando um bloco. Esta ação relativiza a mensagem de que a união faz a força; pelo contrario, a união pode anestesiar. Isso se tornava claro, em alusão ao fascismo, ou mesmo, à ditadura que assolava o Brasil, nesta época. União cega pelo poder. Entretanto, parece que Cildo não deixa clara esta questão, há uma condição paradoxal das coisas e dos conceitos em sua trajetória artística, suas escolhas são precisas e extremamente significantes. Enquanto as lâminas são fortes em sua individualidade e fracas, “alienadas”, na sua união; os frágeis palitos de fósforo, individualmente não oferecem maior risco, mas quanto maior for o seu número, maior o seu potencial de explosão. Parece que o artista deixa esta pergunta: qual união faz a força?

Cildo Meireles, Estojo de Geometria (neutralização por Oposição e/ou Adição), 1977-79. Caixa de madeira, dois cutelos, dois pregos, 400 lâminas de barbear, c. 50 x 30 x 5 cm.

Cildo Meireles, Estojo de Geometria (neutralização por Oposição e/ou Adição), 1977-79. Caixa de madeira, dois cutelos, dois pregos, 400 lâminas de barbear, c. 50 x 30 x 5 cm.


(Trecho retirado da tese de doutorado de Ana Lúcia Mandelli de Marsillac, link de acesso na introdução)

Notas de rodapé:

1 – Atualmente, a logo marca deste fósforo não é mais o desenho de um olho.
2 – Os homens de óculos escuros fazem uma menção aos agentes à paisana que controlavam a tudo e a todos na época ditatorial. 

OBS.: Mudanças foram feitas apenas na disposição de imagens nas notas de rodapé.

E, para finalizar, a quem não conheceu a caixa de Fósforos OLHO da Fiat Lux, aqui abaixo está a imagem:

estojo-caixa-de-fosforos-fiat-lux-olho