Contra a Assembleia Constituinte como contra a ditadura

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Por Errico Malatesta

Traducción al castellano: @rebeldealegre

Tradução: Coletivo Anarquia ou Barbárie

Fonte: Rebelde Alegre

(Adunata, 4 de Octubre de 1930)


Todos tem direito a assinalar e defender suas ideias, mas ninguém tem direito a distorcer as ideias de outro para fortalecer as próprias, Depois de anos sem ver o Martello, o número do 21 de junho caiu em minhas mãos. Encontrei em um artigo firmado por X., que fala, de um modo mais ou menos imaginário, sobre um projeto insurrecional, que supostamente era promovido por mim, Giulietti e … D’Annunzio. O artigo parecia que alguém mais que escreveu abaixo do nome de Ursus havía escrito antes sobre tais eventos, mas não se pode encontrar seu texto.

Não importa, Não posso contar agora como ocorreram realmente os eventos referidos por X. e Ursus, porque este não é o momento correto para fazê-lo ao público, e por assim à polícia, o que um poderia ter feito ou tentado fazer. Além do mais, não poderia trair a confiança de pessoas que não quiseram ser nomeadas aqui. Não obstante, posso me surpreender, de que estes X. e Ursus, movidos pelo desejo de encontrar apoio às suas teses táticas, não se deram conta de quanto carente de tática é se envolver com alguém que usualmente não recebe periódicos, e sendo assim não sabe o que se diz sobre ele e não pode responder – somado a não sentir dever nenhum, como assunto pessoal, de ao menos assumir a responsabilidade pelo que dizem afirmar com nomes reais.

O que importa – e o que me faz tomar o cuidado de anotar esses itens – é protestar contra a declaração completamente falsa de que, em momento algum sequer de minha atividade política, havia sido eu defensor da Assembleia Constituinte. O assunto tem tal importância teórica e prática, que poderia tornar-se de atualidade em qualquer momento, e não pode deixar indiferente a nada que se chame anarquista e queira atuar como anarquista em toda situação dada. Para ser preciso, no momento em que ocorreram os eventos mal recordados por X. e Ursus, eu estava me esforçando, com minhas palavras e escritos, por lutar conta a fé e a esperança posta por muitos subversivos (obviamento não anarquistas) na possibilidade de uma Assembleia Constituinte.


Nesse momento afirmei, como sempre o faço antes e depois, que uma Assembleia Constituinte é o meio utilizado pelas classes privilegiadas, quando uma ditadura não é possível, seja para prevenir uma revolução ou, quando uma revolução já está instalada, para deter seu progresso com a desculpa de legalizá-la, e retirar muitos dos seus possíveis ganhos que o povo obteve durante o período insurrecional.

A Assembleia Constituinte, com seu adormecimento e sufocamento, e a ditadura, com o seu esmagar e assassinar, são os dois perigos que ameaçam toda a revolução. Os anarquistas devem apontar seus esforços contra eles.

Naturalmente, já que somos uma minoria relativamente pequena, é muito possível, e provável, que a próxima revolta termine em uma Assembleia Constituinte. Sem embargo, isso não ocorreria com nossa participação e cooperação. Ocorreria somente contra nossa vontade , apesar de nossos esforços, simplesmente porque não teríamos sido suficientemente fortes para preveni-lo. Neste caso, teríamos que ser tão desconfiados e inflexivelmente contrários a uma Assembleia Constituinte como temos sido sempre aos parlamentos ordinários e a todo outro corpo legislativo.


***

Que isto fique claro. Não sou defensor do “tudo ou nada”. Creio que nada na realidade se comporta de maneira correspondente ao que indica e implica a teoria: seria impossível.


Esse é só um lema usado por muitos para advertir sobre a ilusão das reformas insignificantes e de supostas concessões do governo e dos patrões, e para sempre lembrar a necessidade e a urgência do ato revolucionário: é uma frase que pode servir, se se interpreta folgadamente, como um incentivo à uma luta sem quartel contra todo tipo de opressores e exploradores. Sem embargo, se se toma literalmente, é claramente um absurdo.


El ‘todo’ es el ideal que se torna más lejano y más amplio a medida que se realizan progresos, y por ende nunca puede alcanzarse. El ‘nada’ sería cierto estado abismalmente incivilizado, o al menos una sumisión supina a la opresión presente.

O “todo” é o ideal que se torna mais longínquo e mais amplo à medida que se realizam os progressos, e que nunca podeser alcançado. O “nada” seria certo estado abismalmente incivilizado,a barbárie, ou ao menos uma apresentação indolente à opressão presente.


Creio que devemos tentar tudo que possa, seja muito ou pouco: fazer o que seja possível hoje, mas sempre lutar por fazer possível o que hoje parece impossível.


Por exemplo, se hoje não podemos desfazermos de todo o tipo de governo, esta não é uma boa razão para não tomar interesse em defender as poucas liberdades adquiridas e lutar por obter mais delas.

Se agora não podemos abolir completamente o sistema capitalista e a exploração resultante dos trabalhadores, esta não é uma boa razão para abandonar a luta por obter maiores salários e melhores condições de trabalho. Se não podemos abolir o comércio e substituir pelo direto intercambio entre produtores, esta não é uma boa razão para não buscar os meios para escapar da exploração de negociantes e especuladores tanto quanto seja possível.

Se não temos como abolir o poder dos opressores e do estado da opinião pública previne agora a abolição das prisões e da provisão a todos de defesa contra os malfeitores com meios mais humanos, não por isto perderíamos interesse em uma ação para abolir a pena de morte, a prisão perpétua, o confinamento fechado e, em geral, os mais ferozes meios de repressão com que a assim chamada justiça social, que mais equivale a uma vingança selvagem, é exercida. Se não podemos abolir a polícia, não é por isso que permitiremos, sem protestar e resistir, que os policiais golpeiem aos prisioneiros e se permitam todo o tipo de excessos, sobrepassando o limite prescrito pelas leis vigentes…

Termino aqui, pois há milhões de casos, tanto na vida individual, como na sociedade, em que, sendo incapazes de obter “tudo”, deve-se tentar obter tanto quanto seja possível.

Neste momento, surge a pergunta de importância fundamental sobre o melhor modo de defender o que se obteve e lutar por obter mais; Pois há um modo que debilita e mata o espírito de independência e a consciência do direito próprio, comprometendo assim o futuro e o presente, mas há outro modo que utiliza toda pequena vitória para fazer melhores demandas, preparando assim as mentes e o ambiente para a ansiada emancipação total.

O que constitui a “razão de ser” característica do anarquismo é a convicção de que os governos – ditaduras, parlamentos, etc. – são sempre instrumentos de conservação, reação, opressão; de que a liberdade, a justiça, o bem estar para todos deve vir da luta contra a autoridade, desde a livre iniciativa ao livre acordo entre indivíduos e grupos.

***

É um problema preocupa a muitos anarquistas hoje em dia, e justamente, posto que encontram motivação insuficiente no trabalhar na propaganda abstrata e na preparação técnica revolucionária, que não sempre é possível e se faz sem saber quando será frutífera, buscam algo prático que se faça aqui e agora, para cumprir o quanto seja possível com nossas ideias, apesar das condições adversas; algo que moralmente e materialmente ajude aos anarquistas e que ao mesmo tempo serve de exemplo, de escola, de campo experimental.


As propostas práticas vêm de vários lados. São todas boas para mim, se apelam à livre iniciativa e a um espírito de solidariedade e justiça, e tendem a remover os indivíduos da dominação do governo e do patrão. E para evitar perder tempo em discussões continuamente recorrentes que nunca trazem novos feitos ou argumentos, incentivaria a quem tem um projeto e que tende a cumpri-lo imediatamente, tão pronto como encontrem o apoio do mínimo número necessário de participantes, sem esperar, usualmente em vão, pelo apoio de todos ou de muitos: a experiência mostrará se esses projetos eram possíveis, e deixará que os vitais sobrevivam e prosperem.

Que todos tentem os caminhos que consideram melhores e mais adequados ao seu temperamento, tanto hoje com respeito às coisas pequenas que podem fazer-se em ambiente presente, como amanhã no vasto terreno que oferecerá a revolução à nossa atividade. Em qualquer caso, o que é logicamente obrigatório para todos nós, se não queremos deixar se ser realmente anarquistas, é nunca entregar nossa liberdade em mãos da ditadura de um indivíduo ou classe, um déspota ou uma Assembleia Constituinte; pois é do que nós dependemos, nossa liberdade deve encontrar seu reconhecimento na igual liberdade de todos.

A atualidade de Errico Malatesta – Maurício Tragtenberg

Retirado da revista online Espaço Acadêmico

Errico Malatesta nasceu em 1853 e morreu em 1932, tendo assistido, assim, à criação e extinção da Primeira Internacional, à formação da Segunda Internacional – que teve como carro chefe o Partido Social Democrata Alemão –, à emergência da Revolução Russa e sua burocratização e, finalmente, a ascensão do fascismo na Itália.

Essa trajetória de vida de um filho a burguesia, que largou os estudos de Medicina no segundo ano, explica porque ao longo de sua obra está sempre presente uma grande temática, a reprodução do movimento real das classe na Itália entre 1853 e 1932: o socialismo libertário.

Da Primeira Internacional, apreende a noção e auto-organização do trabalhador e de sua ação direta, que serão os elementos fundantes de sua atuação social e política. Em relação à Segunda Internacional, assume uma atitude crítica, denunciando a confusão que se estabelecera entre participação (lema da social-democracia) e incorporação ao sistema capitalista. Verifica que os “participacionistas” se convertiam nos cães de guarda do sistema exploratório e opressivo – não era por acaso, pois, que, na fase monopolista do capitalismo, em suas áreas desenvolvidas, a repressão contra os trabalhadores passava a ser feita pela social-democracia, cujo exemplo maior foi a repressão à revolução alemã de 18, com o assassinato de Liebknecht e Rosa Luxembourg.

Em relação à Terceira Internacional, Malatesta mantém a crítica clássica à burocracia emergente após 18 na URSS – já delineada por Luigi Fabbri em “Ditadura e revolução” –, quando a revolução dos operários e camponeses é capturada pelos burocratas, e o socialismo começa a ser sinônimo de planismo estatal-burocrático, onde os gestores coletivamente detêm os meios de produção em nome dos produtores.

A Comuna de Paris

Mas, sem dúvida, é a proclamação da Comuna de Paris, em março de 1871, que influenciará Malatesta em suas propostas mais amplas: auto-organização dos trabalhadores, autogestão econômico-social e política, como sinônimo de um processo de socialização. Isso porque a Comuna de Paris – nunca suficientemente estudada – é a primeira grande revolução moderna, onde o proletariado tentou a extinção do poder político. Ela representou a prática da organização social e econômica pelas massas, eleição pela população dos intermediários políticos (representantes) e econômicos (administradores), a ausência de privilégios e revogabilidade universal dos eleitos.

Isso significou a constituição de um novo modo de produção constatado por Bakunin e Marx, – pois Comuna de Paris representava um poder político em extinção. Suas instituições criadas pelos produtores significava um ponto de partida para a estruturação de um novo modo de produção com a dominação do econômico pelo social (J. Bernardo), muito longe de um planejamento da produção dependente da distribuição via Estado, o que seria apenas uma reprodução do poder político. A Comuna de Paris tentava fundir o nível político no econômico, através da extinção da esfera política. Isso, numa proposta de uma sociedade auto-institucionalizada. É dessa prática social que Malatesta estruturará seus conceitos sobre a ação direta dos produtores, auto-organização dos assalariados e a rejeição do planismo burocrático como sinônimo de “socialismo”.

Após 1874, abate-se um período repressivo na história italiana, atingindo o movimento operário, e os “internacionais” – como eram chamados os adeptos da Primeira Internacional – operários na sua maioria, sofrem perseguições de todo tipo.

A repressão leva-o a emigrar, desenvolvendo sua atividade de militante operário em vários países europeus. É o período em que polemiza duramente com Andrea Costa, que aderira à social-democracia e ao socialismo parlamentar. Mostrava Malatesta que a melhor maneira de sujeitar um povo consiste em lhe dar a ilusão de que participa de decisões.

Na Argentina participa da formação da FORA (Federação Operária Regional Argentina), que influenciará os trabalhadores de origem européia até início do século 20. Na Europa, de volta da Argentina, participa do movimento operário na Espanha, Bélgica e França, insistindo na auto-organização do trabalhador a partir do local de trabalho, como elemento fundante de sua ação político-social. Tal postura se dá em relação ao individualismo fundado por Stirner, que ainda encontrava adeptos entre os militantes libertários da época.

Os operários integrados

É através de sua polêmica com a social-democracia italiana e os adeptos do socialismo parlamentar, que Malatesta define seu perfil político e sua crítica à instituição do partido político.

Após a repressão à Comuna de Paris por Thiers, utilizando as armas que Bismarck lhe cedera para isso, desenvolvem-se como verdadeira praga partidos “bem comportados” – são partidos “operários” que surgem dos partidos “plebeus”, que deviam sua organização às velhas associações populares, fraternais e religiosas.

Após as revoluções de 1848 esses velhos partidos plebeus cedem espaço a outras instituições. Entre 1848 e 1871 os sindicatos e os conselhos constituíam elementos organizadores do operariado nascente, donde a preocupação da Primeira Internacional em articular os trabalhadores a partir de suas lutas fabris, nos sindicatos de militantes que surgiam então.

Porém, com a formação da Segunda Internacional e a difusão dos partidos socialistas parlamentares pelo mundo, aparece uma tecnocracia na constituição desses partidos “operários” – que mantêm esse nome pelo fato de integrarem os trabalhadores em suas estruturas burocráticas. Não é por acaso que o estudo-modelo sobre partido burocrático tem como sujeito o Partido Social-Democrata Alemão, a obra de Michels intitulada “Os Partidos Políticos”.

Há uma razão para o Partido Social-Democrata Alemão ter sido o modelo de partido burocrático, altamente centralizado – é que a Alemanha era o país onde a tecnocracia era mais poderosa, se constituindo em força reprodutiva do sistema capitalista. Esses partidos social-democráticos mantêm a cisão entre o econômico e o político, não integrando-os como o fizera a Comuna de Paris, razão pela qual aparecerão sob o bolchevismo na forma de partido único. Eis que Lenin, embora classifique Kaustski de “renegado”, herdou dele a concepção de partido-vanguarda que faz a felicidade da burocracia partidária na URSS e no leste europeu.

Malatesta se diferenciava de outros teóricos do socialismo libertário – como Goodwin, Proudhon, Bakunin ou Kropotkin –, que procuravam fundamentar suas premissas socialistas na razão (Goodwin), nas leis do social (Proudhon) ou no determinismo evolucionista (Kropotkin). Ele buscou explicar a validade da proposta socialista libertária a partir do movimento real da sociedade e da ação da classe trabalhadora. É desta perspectiva que os bens econômicos aparecem como fruto da “ação coletiva” dos produtores, onde a solidariedade no processo produtivo é a base da solidariedade no social e político. Assim, igualdade, liberdade e solidariedade se constituem nos fundamentos ético-políticos da proposta de Malatesta. Nessa proposta o futuro é entendido como ultrapassagem do presente, e a liberdade é tomada como um processo de ruptura com as formas de servidão econômico-social e política.

O socialismo libertário

Para Malatesta a revolução não se constituía num golpe de Estado, onde um grupo toma o poder “em nome” dos trabalhadores. Para ele, a revolução se constituía num ato de libertação, fruto de uma “vontade” sintonizada com a compreensão da conjuntura histórica específica. A proposta socialista libertária, para Malatesta, era a tradução dos valores e motivações que permanecem no plano histórico, entendido como um processo em mudança contínua. A seu ver a única lei geral, era a lei do movimento, que demonstrava a importância e também a precariedade dos sistemas fechados – quanto mais “acabados”, mais precários.

Por isso Malatesta não se permitia perfilar entre os criadores de “sistemas”, é mais uma atitude ante o real histórico, onde a exigência da auto-organização dos interessados (povo), de igualdade e combate às hierarquias sociais opressivas colocam a exigência de uma igualdade que tenha a liberdade como fundamento – pressupondo que a liberdade sem igualdade é uma mistificação, a igualdade sem liberdade é uma nova escravidão.

Para ele, a quem relatividade e contingência marcam as concepções do social, conceitos como liberdade, igualdade e fraternidade não se constituíam em noções dogmáticas, mas sim em traduções do movimento real da sociedade, que apontava à hegemonia dos trabalhadores.

O ideal emancipatório

Porém o ideal emancipatório da humanidade trabalhadora não se esgotava ao se converter em patrimônio teórico de uma minoria ilustrada. Para Malatesta, a vitória da proposta libertária se daria no momento em que seus princípios básicos se convertessem em categorias do senso comum da massa trabalhadora. Não se tratava de plasmar ideologicamente a população – o que seria a demonstração de um estranho autoritarismo – mas, através da propaganda e da ação, conquistá-la para os princípios libertários.

É essa preocupação de Malatesta em traduzir os grandes princípios libertários para a linguagem do senso comum da população que explica a forma coloquial da maioria dos seus escritos, especialmente “Entre Camponeses”, “No Café” e “Nas Eleições”.

Malatesta participara da insurreição de Bolonha de 1874, do levante camponês de 1877 em Benevento, emigrando para Londres, onde durante quarenta anos sedia sua ação político-militante. Na Argentina, onde permanecerá quatro anos, propaga as idéias libertárias entre os trabalhadores de origem italiana. Volta à Itália e é preso em 1898. Participa em 1919 da “Semana Rossa”, onde o movimento sindical dirige um processo de greve geral na Itália – sem contar porém com o apoio da CGT, o movimento morre. Preso por Mussolini em 1921, estava com 70 anos e continuava a sobreviver exercendo a profissão de mecânico e eletricista, espantando a burguesia italiana, que tinha dificuldades em enxergar naquele operário idoso e gentil o “terrível” Malatesta. Morre em 1932 em plena vigência do fascismo.

De sua fidelidade aos seus princípios fala sua via, a ele aplica-se o julgamento de Robespierre pelos historiadores: nunca se atemorizou, nunca transigiu, não se corrompeu. É um exemplo de integração de teoria e prática, raro nos dias que correm.

Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/015/15pm_160183malatesta.htm

A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

ethos

Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.

A Organização, por Errico Malatesta

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Fractal: Conjunto de Mandelbrot

 Fonte: Arte e Anarquia

A ORGANIZAÇÃO I
(Agitazione de Ancone, 04/07/1897.)

Há anos que muito se discute entre os anarquistas esta questão. E como freqüentemente acontece quando se discute com ardor à procura da verdade, acredita-se, em seguida, ter razão. Quando as discussões teóricas são apenas tentativas para justificar uma conduta inspirada por outros motivos, produz-se uma grande confusão de idéias e de palavras.

Lembraremos, de passagem, sobretudo para nos livrarmos delas, as simples questões de frases empregadas, que, às vezes, atingiram o cúmulo do ridículo, como por exemplo: “Não queremos a organização, mas a harmonização”, “Opomo-nos à associação, mas a admitimos”, “Não queremos secretário ou caixa, porque é um sinal de autoritarismo, mas encarregamos um camarada para se ocupar do correio e outro do dinheiro”; passemos a discussão séria.

Se não pudermos concordar, tratemos pelo menos de nos compreender.

Antes de mais nada, distingamos, visto que a questão é tripla: a organização em geral, como princípio e condição da vida social, hoje, e na sociedade futura; a organização das forças populares, e, em particular, a das massas operárias, para resistir ao governo e ao capitalismo.

A necessidade de organização na vida social – direi que organização e sociedade são quase sinônimos – é coisa tão evidente que mal se pode acreditar que pudesse ter sido negada.

Para nos darmos conta disso, é preciso lembrar que ela é a função específica, característica do movimento anarquista, e como homens e partidos estão sujeitos a se deixarem absorver pela questão que os interessa mais diretamente, esquecendo tudo o que a ela se relaciona, dando mais importância à forma que ao conteúdo e, enfim, vendo as coisas somente de um lado, não distinguindo mais a justa noção da realidade.

O movimento anarquista começou como uma reação contra o autoritarismo dominante na sociedade, assim como todos os partidos e organizações operárias, e se acentuou com os adventos de todas as revoltas contra as tendências autoritárias e centralistas.

Era natural, em conseqüência, que inúmeros anarquistas estivessem como que hipnotizados por esta luta contra a autoridade e que eles combatem, para resistir à influência da educação autoritária, tanto a autoridade quanto a organização, da qual ela é a alma.

Na verdade, esta fixação chegou ao ponto de fazer sustentar coisas realmente incríveis. Combateu todo o tipo de cooperação e de acordo porque a associação é a antítese da anarquia. Afirma-se que sem acordos, sem obrigações recíprocas, cada um fazendo o que lhe passar pela cabeça, sem mesmo se informar sobre o que fazem os outros, tudo estaria espontaneamente em harmonia: que a anarquia significa que cada um deve bastar-se a si mesmo e fazer tudo que tem vontade, sem troca e sem trabalho em associação. Assim, as ferrovias poderiam funcionar muito bem sem organização, como acontecia na Inglaterra (!). O correio não seria necessário: alguém de Paris, que quisesse escrever uma carta a Petersburgo… Podia ele próprio levá-la (!!) etc.

Dir-se-á que são besteiras, que não vale a pena discuti-las. Sim, mas estas besteiras foram ditas, propagadas: foram autêntica das idéias anarquistas. Servem sempre como armas de combate aos adversários, burgueses ou não, que querem conseguir uma fácil vitória sobre nós. E, também, estas “besteiras” não são sem valor, visto que são a conseqüência lógica de certas premissas e que podem servir como prova experimental da verdade, ou pelo menos dessas premissas.

Alguns indivíduos, de espírito limitado, mas providos de espírito lógico poderoso, quando aceitam premissas, extraem delas todas as conseqüências até que, por fim, e se a lógica assim o quer, chegam, sem se desconcertar, aos maiores absurdos, à negação dos fatos mais evidentes. Mas há outros indivíduos mais cultos e de espírito mais amplo que encontram sempre um meio de chegar a conclusões mais ou menos razoáveis, mesmo ao preço da violentação da lógica. Para eles, os erros teóricos têm pouca ou nenhuma influência na conduta prática. Mas, em suma, desde que não se haja renunciado a certos erros fundamentais, estamos sempre ameaçados por silogismos exagerados, e voltamos sempre ao começo.

O erro fundamental dos anarquistas adversários da organização é crer que não há possibilidade de organização sem autoridade. E uma vez admitida esta hipótese, preferem renunciar a toda organização, ao invés de aceitar o mínimo de autoridade.

Agora que a organização, quer dizer, a associação com um objetivo determinado e com as formas e os meios necessários para atingir este objetivo, é necessária à vida social, é uma evidência para nós. O homem isolado não pode sequer viver como um animal: ele é impotente (salvo em regiões tropicais, e quando a população é muito dispersa) e não pode obter sua alimentação; ele é incapaz, sem exceção, de ter uma vida superior àquela dos animais. Conseqüentemente, é obrigado a se unir a outros homens, como a evolução anterior das espécies o mostra, e deve suportar a vontade dos outros (escravidão), impor sua vontade aos outros (autoritarismo), ou viver com os outros em fraternal acordo para o maior bem de todos (associação). Ninguém pode escapar dessa necessidade. Os antiorganizadores mais imoderados suportam não apenas a organização geral da sociedade em que vivem, mas também em seus atos, em sua revolta contra a organização, eles se unem, dividem a tarefa, organizam-se com aqueles que compartilham suas idéias, utilizando os meios que a sociedade coloca à sua disposição; com a condição de que estes sejam fatos reais e não vagas aspirações platônicas.

Anarquia significa sociedade organizada sem autoridade, compreendendo-se autoridade como a faculdade de impor sua vontade. Todavia, também significa o fato inevitável e benéfico que aquele que compreende melhor e sabe fazer uma coisa, consegue fazer aceitar mais facilmente sua opinião. Ele serve de guia, quanto a esta coisa, aos menos capazes que ele.

Segundo nossa opinião, a autoridade não é necessária à organização social, mais ainda, longe de ajudá-la, vive como parasita, incomoda a evolução e favorece uma dada classe que explora e oprime as outras. Enquanto há harmonia de interesses em uma coletividade, enquanto ninguém pode frustrar outras pessoas, não há sinal de autoridade. Ela aparece com a luta intestina, a divisão em vencedores e vencidos, os mais fortes confirmando a sua vitória.

Temos esta opinião e é por isso que somos anarquistas, caso contrário, afirmando que não pode existir organização sem autoridade, seremos autoritários. Mas ainda preferimos a autoridade que incomoda e desola a vida, à desorganização que a torna impossível.

De resto, o que seremos nos interessa muito pouco. Se é verdade que o maquinista e o chefe de serviço devem forçosamente ter autoridade, assim como os camaradas que fazem para todos um trabalho determinado, as pessoas sempre preferirão suportar sua autoridade a viajar a pé. Se o correio fosse apenas esta autoridade, todo homem são de espírito a aceitaria para não ter de levar, ele próprio, suas cartas. Se se recusa isto, a anarquia permanecerá o sonho de alguns e nunca se realizará.

A ORGANIZAÇÃO II

(Agitazione de Ancone, 11/07/1897.)

Estando admitida a existência de uma coletividade organizada sem autoridade, isto é, sem coerção, caso contrário, a anarquia não teria sentido, falemos da organização do partido anarquista.

Mesmo nesses casos, a organização nos parece útil e necessária. Se o partido, ou seja, o conjunto dos indivíduos que têm um objetivo em comum e se esforçam para alcançá-lo, é natural que se entendam, unam suas forças, compartilhem o trabalho e tomem todas as medidas adequadas para desempenhar esta tarefa. Permanecer isolado, agindo ou querendo agir cad um por sua conta, sem se entender com os outros, sem preparar-se, sem enfeixar as fracas forças dos isolados, significa condenar-se à fraqueza, desperdiçar sua energia em pequenos atos ineficazes, perder rapidamente a fé no objetivo e cair na completa inação.

Mas isto parece de tal forma evidente que, ao invés de fazer sua demonstração, responderemos aos argumentos dos adversários da organização.

Antes de mais nada, há uma objeção, por assim dizer, formal. “Mas de que partido nos falais? Dizem-nos, nem sequer somos um, não temos um programa”. Este paradoxo significa que as idéias progridem, evoluem continuamente, e que eles não podem aceitar um programa fixo, talvez válido hoje, mas que estará com certeza ultrapassado amanhã.

Seria perfeitamente justo se se tratasse de estudantes que procuram a verdade, sem se preocuparem com as aplicações práticas. Um matemático, um químico, um psicólogo, um sociólogo podem dizer que não há outro programa senão o de procurar a verdade: eles querem conhecer, mas sem fazer alguma coisa. Mas a anarquia e o socialismo não são ciências: são proposições, projetos que os anarquistas e os socialistas querem por em prática e que, conseqüentemente, precisam ser formulados como programas determinados. A ciência e a arte das construções progridem a cada dia. Mas um engenheiro, que quer construir ou mesmo demolir, deve fazer seu plano, reunir seus meios de ação e agir como se a ciência e a arte tivessem parado no ponto em que as encontrou no início de seu trabalho. Pode acontecer, felizmente, que ele possa utilizar novas aquisições feitas durante seu trabalho sem renunciar à parte essencial de seu plano. Pode acontecer do mesmo modo que as novas descobertas e os novos meios industriais sejam tais que ele se veja na obrigação de abandonar tudo e recomeçar do zero. Mas ao recomeçar, precisará fazer novo plano, com base no conhecimento e na experiência; não poderá conceber e por-se a executar uma construção amorfa, com materiais não produzidos, a pretexto que amanhã a ciência poderia sugerir melhores formas e a indústria fornecer materiais de melhor composição.

Entendemos por partido anarquista o conjunto daqueles que querem contribuir para realizar a anarquia, e que, por conseqüência, precisam fixar um objetivo a alcançar e um caminho a percorrer. Deixamos de bom grado às suas elucubrações transcendentais os amadores da verdade absoluta e de progresso contínuo, que, jamais colocando suas idéias à prova, acabam por nada fazer ou descobrir.

A outra objeção é que a organização cria chefes, uma autoridade. Se isto é verdade, se é verdade que os anarquistas são incapazes de se reunirem e de entrarem em acordo entre si sem se submeter a um autoridade, isto quer dizer que ainda são muito pouco anarquistas. Antes de pensar em estabelecer a anarquia no mundo, devem pensar em se tornar capazes de viver como anarquistas. O remédio não está na organização, mas na consciência perfectível dos membros.

Evidentemente, se em uma organização, deixa-se a alguns todo o trabalho e todas as responsabilidades, se nos submetemos ao que fazem alguns indivíduos, sem por a mão na massa e procurar fazer melhor, esses “alguns” acabarão, mesmo que não queiram, substituindo a vontade da coletividade pela sua. Se em uma organização todos os membros não se interessam em pensar, em querer compreender, em pedir explicações sobre o que não compreendem, em exercer sobre tudo e sobre todos as suas faculdades críticas, deixando a alguns a responsabilidade de pensar por todos, esses “alguns” serão os chefes, as cabeças pensantes e dirigentes.

Todavia, repitamos, o remédio não está na ausência de organização. Ao contrário, nas pequenas como nas grandes sociedades, excetuando a força brutal, a qual não nos diz respeito no caso em questão, a origem e a justificativa da autoridade residem na desorganização social. Quando uma coletividade tem uma necessidade e seus membros não estão espontaneamente organizados para satisfazê-la, surge alguém, uma autoridade que satisfaz esta necessidade servindo-se das forças de todos e dirigindo-as à sua maneira. Se as ruas são pouco seguras e o povo não sabe se defender, surge uma polícia que, por uns poucos serviços que presta, faz com que a sustentem e a paguem, impõe-se a tirania. Se há necessidade de um produto e a coletividade não sabe se entender com os produtores longínquos para que eles enviem esse produto em troca por produtos da região, vem de fora o negociante que se aproveita da necessidade que possuem uns de vender e outros de comprar e impõe os preços que quer a produtores e consumidores.

Como vedes, tudo vem sempre de nós: quanto menos estávamos organizados, mais nos encontrávamos sob a dependência de certos indivíduos. E é normal que tivesse sido assim.

Precisamos estar relacionados com os camaradas das outras localidades, receber e dar notícias, mas não podemos todos nos correspondermos com todos os camaradas. Se estamos organizados, encarregamos alguns camaradas de manter a correspondência por nossa conta; trocamo-os se eles não nos satisfazem, e podemos estar informados sem depender da boa vontade de alguns para obter uma informação. Se, ao contrário, estamos desorganizados, haverá alguém que terá os meios e a vontade de corresponder; ele concentrará em suas mãos todos os contatos, comunicará as notícias como bem quiser, a quem quiser. E se tiver atividade e inteligência suficientes, conseguirá, sem nosso conhecimento, dar ao movimento a direção que quiser, sem que nos reste a nós, a massa do partido, nenhum meio de controle, sem que ninguém tenha o direito de se queixar, visto que este indivíduo age por sua conta, sem mandato de ninguém e sem ter que prestar contas a ninguém de sua conduta.

Precisamos de um jornal. Se estamos organizados, podemos reunir os meios para fundá-lo e fazê-lo viver, encarregar alguns camaradas de redigi-lo e controlar sua direção. Os redatores do jornal lhe darão, sem dúvida, de modo mais ou menos claro, a marca de sua personalidade, mas serão sempre pessoas que teremos escolhido e que poderemos substituir. Se, ao contrário, estamos desorganizados, alguém que tenha suficiente espírito de empreendimento fará o jornal por sua própria conta: encontrará entre nós os correspondentes, os distribuidores, os assinantes, e fará com que sirvamos seus desígnios, sem que saibamos ou queiramos. E nós, como muitas vezes aconteceu, aceitaremos ou apoiaremos este jornal, mesmo que não nos agrade, mesmo que tenhamos a opinião de que é nocivo à Causa, porque seremos incapazes de fazer um que melhor represente nossas idéias.

Desta forma, a organização, longe de criar a autoridade, é o único remédio contra ela e o único meio para que cada um de nós se habitue a tomar parte ativa e consciente no trabalho coletivo, e deixe de ser instrumento passivo nas mãos dos chefes.

Se não fizer nada e houver inação, então, certamente, não haverá nem chefe, nem rebanho; nem comandante, nem comandados, mas, neste caso, a propaganda, o partido, e até mesmo a discussão sobre a organização, cessarão, o que, esperamos, não é o ideal de ninguém…

Contudo, uma organização, diz-se supõe a obrigação de coordenar sua própria ação e a dos outros, portanto, violar a liberdade, suprimir a iniciativa. Parece-nos que o que realmente suprime a liberdade e torna impossível a iniciativa é o isolamento que produz a impotência. A liberdade não é direito abstrato, mas a possibilidade de fazer algo. Isto é verdade para nós como para a sociedade em geral. É na cooperação dos outros que o homem encontra o meio de exercer sua atividade, seu poder de iniciativa.

Evidentemente, organização significa coordenação de forças com um objetivo comum, e obrigação de não promover ações contrárias a este objetivo. Mas quando se trata de organização voluntária, quando aqueles que dela fazem parte têm de fato o mesmo objetivo e são partidários dos mesmos meios, a obrigação recíproca que a todos engaja obtém êxito em proveito de todos. Se alguém renuncia a uma de suas idéias pessoais por consideração à união, isto significa que acha mais vantajoso renunciar a uma idéia, que, por sinal, não poderia realizar sozinho, do que se privar da cooperação dos outros no que acredita ser de maior importância.

Se, em seguida, um indivíduo vê que ninguém, nas organizações existentes, aceita suas idéias e seus métodos naquilo que têm de essencial, e que em nenhuma organização pode desenvolver sua personalidade como deseja, então estará certo em permanecer de fora. Mas, se não quiser permanecer inativo e impotente, deverá procurar outros indivíduos que pensem como ele, e tornar-se iniciador de uma nova organização.

Uma outra objeção, a última que abordaremos, é que, estando organizados, estamos mais expostos à repressão governamental.

Parece-nos, ao contrário, que quanto mais unidos estamos, mais eficazmente nos podemos defender. Na realidade, cada vez que a repressão nos surpreendeu enquanto estávamos desorganizados, colocou-nos em debandada total e aniquilou nosso trabalho precedente. Quando estávamos organizados, ela nos fez mais bem do que mal. Assim também no que concerne ao interesse pessoal dos indivíduos: por exemplo, nas últimas repressões, os isolados foram tanto e talvez mais gravemente atingidos do que os organizados. É o caso, organizados ou não, dos indivíduos que fazem propaganda individual. Para aqueles que nada fazem e ocultam suas convicções, o perigo é certamente mínimo, mas a utilidade que oferecem à Causa também o é.

O único resultado, do ponto de vista da repressão, que se obtém por estar desorganizado é autorizar o governo a nos recusar o direito de associação e tornar possível monstruosos processos por associação delituosa. O governo não agiria dessa forma em relação às pessoas que afirmam de modo altivo e público, o direito e o fato de estarem associados e, se ousasse fazê-lo, isto se voltaria contra ele e em nosso proveito.

De resto, é natural que a organização assuma as formas que as circunstâncias aconselham e impõem. O importante não é tanto a organização formal, mas o espírito de organização. Podem acontecer casos, durante o furor da reação, em que seja útil suspender toda correspondência, cessar todas as reuniões: será sempre um mal, mas se a vontade de estar organizado subsiste, se o espírito de associação permanece vivo, se o período precedente de atividade coordenada multiplicou as relações pessoais, produziu sólidas amizades e criou um real acordo de idéias de conduta entre os camaradas, então o trabalho dos indivíduos, mesmo isolados, participará do objetivo comum. E encontrar-se-á rapidamente o meio de nos reunirmos de novo e repararmos os danos sofridos.

Somos como um exército em guerra e podemos, segundo o terreno e as medidas tomadas pelo inimigo, combater em massa ou em ordem dispersa: o essencial é que nos consideremos sempre membros do mesmo exército, que obedeçamos todos às mesmas idéias diretrizes e que estejamos sempre prontos a nos reunirmos em colunas compactas quando for necessário e quando se puder fazer algo.

Tudo o que dissemos se dirige aos camaradas que são de fato adversários do princípio da organização. Àqueles que combatem a organização, somente porque não querem nela entrar, ou não são aceitos, ou não simpatizam com os indivíduos que dela fazem parte, dizemos: façam com aqueles que estão de acordo com vocês outra organização. É verdade, gostaríamos de poder estar, todos nós, de acordo, e reunir em um único feixe poderoso todas as forças do anarquismo. Mas não acreditamos na solidez das organizações feitas à força de concessões e de restrições, onde não há entre os membros simpatia e concordância real. É melhor estarmos desunidos que mal unidos. Mas gostaríamos que cada um se unisse com seus amigos e que não houvessem forças isoladas, forças perdidas.

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Errico Malatesta: o Lênin da Itália?

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Trecho do livro La Vida de Malatesta de Luigi Fabbri, originalmente publicado por Salir Del Ghetto, no Blog Noticia&Anarquia.
Texto original: http://noticiasyanarquia.blogspot.com.br/2014/09/errico-malatesta-el-lenin-de-italia.html

Sobre a atitude Malatestiana em relação ao problema da violência, devo acrescentar alguma outra coisa que contribuirá para iluminar melhor a figura do homem. Mais adiante, tratarei de expor ordenadamente as idéias de Malatesta e, portanto, também as relativas à violência. Aqui me limito a trazer o gérmen de seu pensamento a respeito: o de que ninguém tem direito de impor a força, com violência ou com ameaça de violência, aos outros, sob nenhum pretexto (nem sequer com o de lhes fazer o bem), as próprias ideias, o modo de viver e de se organizar, os sistemas, as leis etc. E disso deriva a lógica consequência do direito dos povos e dos indivíduos a se rebelarem contra os governos e os patrões, que, em suma (dizia), é um direito de legítima defesa contra as imposições coercitivas dos segundos, que exercem sobre os primeiros sua opressão e exploração por meio da violência e com ameaça de violência ou, o que dá no mesmo, com a pressão da fome. Daqui a necessidade da violência revolucionária contra a violência conservadora da atual organização política e econômica da sociedade.

Malatesta não separava, entretanto, a necessidade do uso de violência de sua premissa da negação da violência coercitiva – ao contrário do que fazem todos os revolucionários -. Não achava sequer útil, inclusive julgava ser o pior mal, violentar a liberdade alheia para submetê-la à própria, aos próprios métodos, à própria disciplina específica. A revolução deve libertar o povo de todas as imposições governamentais e patronais, não lhe criar imposições novas. E a mesma liberdade para todos reclamava desde sempre, seja na órbita do movimento revolucionário, seja nas relações com o ambiente externo. A revolução se faz, não poderia ser de outro modo, com a força, mas não pode ser feita pela força.

Mas essas ideias se enquadram tão pouco e mal na lenda do Malatesta chefe de complôs e de tumultos, a quem mais acima fiz em parte alusão, que a sua chegada a Itália, em 1919, não foram poucos os que em todo campo se apressaram para ver nele – os reacionários temendo-o e os revolucionários esperando-o -, o Lênin da Itália. Por muito que o apelido, em especial, então, pudesse parecer lisonjeiro, pôs de imediato um maior obstáculo para Malatesta e lhe fez temer também um perigoso desvio de ideias entre seus companheiros, pois até alguns deles tinham deixado escapar dos lábios ou da pena algumas expressões a respeito. Um anarquista italiano, procurado na América do sul, Aldo Aguzzi, teve de contar, tempo atrás, em uma conferência sua em Montevidéu, imediatamente depois da morte de Malatesta, o episódio de seu primeiro encontro com ele, que se liga diretamente ao que vou dizendo. Merece pena que o refira o mais textual que me seja possível:

“eu era então um garoto, saído há pouco tempo do partido socialista junto a todos os sócios do círculo juvenil de Voghera, com os que tínhamos fundado, fora do partido, um grupo juvenil subversivo. Não éramos anarquistas, mas sim algo semelhante ao que são ainda muitos comunistas, isto é, adversários dos reformistas e entusiastas da Rússia. Me acreditava já “quase anarquista”, mas na verdade não sabia senão muito pouco de anarquia, pois pode se dizer que a única diferença que via entre um anarquista e um socialista, era que o primeiro quer a violência e o outro, não. Era necessário dizer isso para explicar o que se passou em mim”.

A princípios de 1920, veio a Voghera, chamado pelo grupo anarquista local, Errico Malatesta com outros companheiros seus (Borghi, D’Andrea etc.) Malatesta falou num salão das escolas de fundamental. Me pediu que lhe apresentasse e eu o apresentei saudando-o como o Lênin da Itália, o qual, superando os socialistas, nos conduziria à revolução, como na Rússia. Depois da minha fala subiu na tribuna, agradeceu ao público que não parava de aclamá-lo… com o título que eu lhe tinha delegado e, depois de ter tratado de muitas outras coisas, num certo ponto começou a falar da definição que eu tinha feito dele. Na verdade não me tratou mal, inclusive me fez algum cumprimento; mas explicou que não podia, não queria, nem devia ser um Lenin. Em resumo, pelo que posso resumir a doze anos de distância, tendo em conta também minha confusão naquele momento, eis aqui o que disse:

O rapaz que me apresentou deve ser sincero e entusiasta e talvez acreditou me causar prazer dizendo que sou o Lênin de vocês. Acho que não é anarquista, como não o são seguramente os que acolheram seu grito. Ele e vocês são revolucionários, compreendem que os velhos métodos reformistas não funcionam mais, talvez tenham perdido a fé em seus chefes socialistas, e então buscam um homem que inspire confiança e os levem à revolução. Muito obrigado pela confiança, mas estão enganados. Tenho todo o desejo de lhes fazer bem e também a mim, mas sou um homem como todos os demais, e se me convertesse em seu novo chefe, não seria melhor que aqueles que vocês agora repudiam. Todos os chefes são iguais, e, se não fazem o que vocês desejam, não é sempre porque não querem, mas também porque não podem. Tratando-se também da revolução, não é um homem que pode fazê-la: devemos fazê-la todos juntos.

“Eu sou anarquista, não quero obedecer, mas, sobretudo não posso mandar. Se me transformar em seu Lênin, como deseja aquele rapaz, os levarei ao sacrifício, me farei seu amo, seu tirano; trairei minha fé, porque não se faria a anarquia, e lhes trairia, porque com uma ditadura se cansariam de mim, e eu, transformado em ambicioso e talvez convencido de cumprir um dever, me rodearia de policiais, de burocratas, de parasitas, e daria vida a uma nova casta de opressores e de privilegiados pela qual seriam explorados e humilhados como são hoje pelo governo e pela burguesia”.

Lembro de que Malatesta disse também: “se realmente gostam de mim, não têm que desejar que me torne seu tirano”. Mas muitos detalhes e frases me escapam agora. Depois explicou como se devia fazer a revolução. Lembro entre outras coisas que falou de “ocupar as fábricas”, de armamento do povo, de constituição de núcleos armados, etc., se expressando com calma, com mais calma que os próprios reformistas do lugar… Pra falar a verdade, o público ficou um tanto desiludido (e eu também um pouco) porque Malatesta não respondia do modo que se esperava. Mas o fato é que, depois daquela conferência, eu tinha compreendido o que era a anarquia e o que querem os anarquistas, e me tornei um deles…

Este episódio, semelhante a tantos outros – repito que por um instante a lenda do “Lênin da Itália” teve curso inclusive entre alguns que tinham sido e se acreditavam anarquista -, mostra muito bem o equívoco originado pela incompreensão da personalidade e das ideias daqueles que estavam fora do ambiente mais estritamente seu. Este erro, pela força do contraste, levou muitos de uma incompreensão à incompreensão oposta. Quando finalmente Malatesta conseguiu fazer compreender o diferente que era do que tantos acreditavam, por um lado os reacionários e os inimigos de má fé viram no Malatesta real uma ficção e o atacaram com violência inaudita e autoritarismos e os amantes da violência pela violência, os bolchevistas e os bolchevizantes, o achavam mudado e viram nele, como já dissemos, um Tolstoiano. A imprensa comunista Bolchevista, que em um primeiro momento o tinha coberto de flores, acabou com sua habitual fraseologia esteriotipada falando dele como um contra-revolucionário, pequeno-burguês etc.

No entanto, Malatesta era sempre o mesmo. Se havia um homem na Itália que podia, depois de 50 anos de luta constante, repetir o elogio do poeta Giuseppe Giusti: “não me curvei, nem vacilei”, era ele. Suas palavras dos comícios de 1920 eram as mesmas de toda sua propaganda passada desde o ano 1872. Aquele “pequeno-burguês” tinha combatido meio século à burguesia pequena e grande, e tinha ganhado sempre sua vida como operário com o suor de sua testa. Aquele velho “contra-revolucionário” não tinha feito outra coisa desde criança que não propagar e preparar a revolução. Aquele “tolstoiano” tinha sido e continuava sendo o predicador de todas as rebeldias, convidava os operários para ocupar as fábricas e os camponeses as terras, incitava “com calma” ao povo a se armar e aos revolucionários a prepararem as bandas armadas, e (hoje que morreu se pode dizer) onde pôde, até o último momento, não se limitava a incitar aos outros, mas punha ele mesmo a mão na massa, não poupando aos voluntários nem sua ajuda, nem sua participação direta.