Excertos de O Anarquismo frente aos Novos Tempos

Anarquismo-Social-ou-Anarquismo-de-Estilo-De-VidaFonte: Protopia

Por Murray Bookchin

O capitalismo, inevitavelmente por sua própria natureza, utilizará cada progresso técnico com objetivos autoritários e destrutivos.

E quando digo destrutivos, não me refiro só ao destino da humanidade, mas também ao desse mundo natural do qual dependem, para sua sobrevivência, todas as espécies em seu conjunto. Sentido fala-se tanto de bombas ou de antibióticos, de gás venenoso ou de substancias químicas para a agricultura, de radar ou de comunicações telefônicas. As vantagens que a Humanidade pode colher do progresso técnico são tão somente migalhas caídas de um banquete orgiástico de destruição que, só neste século, sacrificou mais vítimas que em qualquer outro período histórico.

Nos parâmetros temporais que definem a unidade de nossa época, o projeto libertador se encontra frente aos problemas típicos de um período de transição: a exigência de trabalhar com estratos sociais em declínio que constituem, todavia, elementos decisivos de mutação social; a exigência de trabalhar com estratos sociais em declínio que constituem, todavia, elementos decisivos de mutação social; a exigência de trabalhar com estratos sociais emergentes que estão convertendo-se em fatores decisivos das mudanças sociais como, por exemplo, os técnicos e profissionais altamente qualificados; a exigência de trabalhar com os oprimidos de sempre, que sempre serão elementos potenciais decisivos de mudança social, como as mulheres e as minorias étnicas; a exigência de trabalhar com os denominados “grupos marginais”, categorias socialmente não bem definidas que podem tornar-se elementos cruciais para a mudança social, como a inteligência radical, que jogou um papel estratégico em todas as situações revolucionárias, e os indivíduos que escolhem estilos e normas de vida cultural e sexual não ortodoxas.

Presumivelmente a tecnologia cibernética, que se encontra apenas em sua infância, converterá em economicamente supérflua a maioria dos norte- americanos que hoje trabalham. Não estou fazendo retórica. Cada década leva em si profundas mudanças técnicas que vão tornando “inúteis” quase todo tipo de trabalho tradicional.

Ainda que alguns milhões de pessoas fiquem de alguma maneira implicadas nestas operações, elas constituirão as “margens” da economia, não o seu núcleo. Devemos enfrentar o fato de que é possível uma tão imponente substituição do trabalho humano, assim como de que é inevitável, se o capitalismo seguir seu curso.

O que significa existencialmente essa ilimitada revolução tecnológica? Significa que o capitalismo deverá enfrentar o problema dos incontáveis milhões de pessoas que, a partir do ponto de vista burguês, não contarão com nenhum posto na sociedade.

Hoje, e nos anos que estão por vir, esse mesmo capitalismo que produziu Hitler é seguramente capaz de produzir instituições que acabem com a população supérflua sem se importar quão numerosa e recalcitrante ela possa ser. Sofreremos qualquer outra estratégia genocida similar a de Hitler? Não excluamos tão facilmente uma “solução” que já tenha sido dada no passado. Os métodos podem ser mais indiretos, como os atuais sistemas chineses de “controle demográfico” ou o escandaloso sistema de esterilização forçada imposto por Indira Gandhi.

A reestruturação do Estado “democrático burguês” esta na ordem do dia em quase todos os paises industrializados do mundo. A única coisa que detém o capitalismo rumo á totalização completa desses países é o enorme peso das tradições que, em todas as partes do ocidente, frustra o poder executivo, e, em particular, a tradição libertária dos Estados Unidos, com sua ênfase sobre os direitos individuais, sobre a autonomia, sobre o controle local, sobre o federalismo.

Na década de 30, era um mundo da extensa família em que várias gerações viviam juntas ou em íntimo contato umas com as outras, preservando a cultura e as tradições de um não-burguês. Era o mundo da “pequena pátria”: a vila, a cidade, o bairro, onde a amizade era íntima e onde existia um espaço público que nutria uma esfera pública e um corpo político que nutria uma esfera pública e um corpo político ativo.

Existiam, no entanto, centros comunitários que contavam com um lugar para a instrução, a conferência, o apoio mútuo, os livros, os períodos, a exposição de “idéias avançadas” e ainda para a ajuda material quando os tempos eram difíceis. Os famosos meetings em uma esquina da rua, onde uma surpreendente variedade de oradores radicais falava a um público cativo,ou no mínimo expectante. Esse fantástico mundo das “caixas de sabão”, era uma fonte de ativo intercambio político, um mundo que habilitava tanto oradores como público na arte da atividade pública. O Estado e sociedade industrial destruíram esse mundo social e político descentralizado. As grandes famílias, ricas em diversidades geracionais e culturais, murcharam para a família nuclear, constituída por dois genitores intercambiáveis e por seus dois ou três filhos intercambiáveis também. Os anciãos foram oportunamente despachados para bairros residenciais, para “cidadãos da terceira idade”, assim como a história e a cultura pré-industrial foram enterradas nos museus, nas academias e nos bancos de dados dos computadores. A venda de alimentos, de artigos domésticos e de vestuário, bem como de diversos instrumentos, que, em um tempo, foi uma atividade muito personalizada, própria de comerciantes locais (muito freqüentemente negócios de gestão familiar) em conexão estreita com os bairros ou com a cidade, é hoje um grande negócio de enormes empresas.

As ruas estão congestionadas de veículos e não de seres humanos e as praças se converteram em estacionamentos e não em lugares aonde as pessoas se reúnam e dialoguem.

As ruas e avenidas dilaceram os centros da cidade e irradiam os bairros com efeitos espantosamente destrutivos para a integridade cultural da comunidade.

O discurso é preferencialmente eletrônico. Debater nas horas mais importantes é reservado a pretensos experts e à estrelas dos meios de comunicação de massa que o fazem com uma passiva insanidade, o que está produzindo uma geração de mudos e de idiotas.

Está surgindo uma geração que não aprecia o pensamento enquanto tal e que tem sido adestrada a não generalizar. A atividade cerebral captura a forma de imagens vulgares idênticas àquelas apresentadas pela televisão e de uma mentalidade (se assim pode-se chamar) reduzida, que “trabalha com freios” antes quantitativos de informação que com conceitos qualitativos. Considero tal desenvolvimento simplesmente aterrador, na medida em que subverte a mente, impedindo a capacidade de imaginar espontaneamente pela alternativa de trabalhar de maneira que contradiga as imagens pré-fabricadas que a indústria publicitária (política e comercial) tende a imprimir no cérebro humano.

As imagens, na realidade, começam a substituir a imaginação, e a figura imposta pelo externo começa a substituir a idéia formada internamente.

Em 1983, quando escrevi Ecologia e Pensamento Revolucionário, recordo que falava do “efeito invernal”, que poderia elevar a temperatura do globo o suficiente para derreter parte das calotas polares em alguns séculos.

Defrontamo-nos não só com uma sociedade moribunda, mas também com um planeta moribundo e ambos sofrem da mesma doença e da mesma causa: nossa mentalidade histórica de domínio, cuja pretensão de “progresso” é hoje em dia uma dramática troça da realidade.

Como podemos, enquanto anarquistas, fazer frente às mudanças radicais no campo técnico, econômico, social e ecológico, das quais falamos até aqui? Quais são as “prioridades programáticas”, qual é a “ordem do dia” do nosso movimento para os anos subseqüentes a que possa compreender nossos esforços a nível internacional, ao lado de nossa oposição ao Estado e ao autoritarismo de todas as formas?

Dos nossos ideais de autogestão, descentralização, federalismo e apoio mútuo têm-se apropriado despudoradamente e sem uma palavra de agradecimento, escritores marxistas.

Nós os anarquistas, tempos sido há muito tempo os progenitores de uma sensibilidade orgânica, naturalista e mutualista da qual se tem apropriado o movimento ecológico, com escassíssimas referências às fontes: o naturalismo de Kropotkin e a ética de Guyau.

Aquilo que unifica o anarquismo do mundo clássico e também do mundo tribal até nossos dias, esta todo nessa idéia: nenhum domínio do homem sobre o homem. Esta postura anti-autoritária é o coração e a alma do anarquismo e sua autodefinição, corpo da idéia e da prática.

Devemos estar prontos para definir as novas questões emergentes, como a ecologia, o feminismo, o racismo, o municipalismo e aqueles movimentos culturais que se ocupam da qualidade de vida no mais amplo sentido do termo, para não falar das tentativas de opor-se à alienação de uma sociedade espiritualmente vazia.

Devemos estar dispostos a sair das velhas trincheiras ideológicas para olhar com honestidade, clareza e inteligência o mundo autoritário que se vai modelando a nossa volta e a tomar nota das tensões que existem entre as tradições utópicas das revoluções democráticas burguesas e a maré ascendente do militarismo e centralismo que ameaça cancelar essas tradições. Podem-se ignorar a política localista, os movimentos democráticos contra as tentativas de incrementar a autoridade do poder executivo? Humanismo anárquico universal.

Palavras como “contracultura”, ou seja, uma reivindicação programática que pode ser orquestrada pela base contra a cúpula, contra o poder estatal centralizado. Não posso chegar aos operários em suas fabricas e sindicatos , porque ambos são escolas de hierarquia e de domínio, mas assim posso chegar a eles – e a muita gente- no meu bairro e ás localidades próximas à minha comunidade. Em Burlington, Vermont, os anarquistas têm sido os primeiros a instituir assembléias de bairro –versão urbana dos meetings citadinos da Nova Inglaterra – que, em essência podem ser instituídas em qualquer parte: Milão, Turim, Veneza, Marselha, Paris, Genebra, Frankfurt, Amsterdã, Londres… O que obstrui seu nascimento não são dificuldades logísticas ou problemas de dimensão demográfica, senão o nível de consciência e não é justamente o problema da consciência – consciência de classe ou consciência libertária – o problema central de todo o projeto libertador?

Dirijo-me a sua fé nos direitos individuais, na descentralização, em uma concepção ativa da cidadania, no apoio mútuo e em sua aversão pela cidadania governamental. Eu não critico em demasia a conjugação liberdade-propriedade.

Lembro-lhe das instituições libertarias típicas de sua tradição revolucionária norte-americana: assembléias de cidadãos, formas associativas confederadas, autonomia municipal, procedimentos democráticos… Meu objetivo é claro: criar, a partir das tradições libertárias norte-americanas, aquelas formas de liberdade que possam opor-se ao crescente poder do Estado e à concentração da autoridade política e econômica. O núcleo central do meu planejamento é tanto municipalista quanto ecológico e contracultural.

Meu programa consiste em criar um poder popular dual, antagônico ao poder estatal que ameaça os resíduos de liberdade do povo um poder popular que reconstitua em forma anárquica, aqueles valores libertários e aqueles elementos utópicos que são o patrimônio mais vital da Revolução Americana.

  • Os excertos acima foram retirados da obra ‘O Anarquismo frente aos Novos Tempos’.

Somos Todos Grupelhos

JL

Felix Guattari

Fonte: Protopia

Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos. É fácil falar, sobretudo em países onde as forças materiais estão cada vez mais na dependência das máquinas técnicas e do desenvolvimento das ciências.


Derrubar o czarismo implicava na ação em massa de dezenas de milhares de explorados e sua mobilização contra a atroz máquina repressiva da sociedade e do Estado russo, era fazer as massas tomarem consciência da sua força irresistível face à fragilidade do inimigo de classe; fragilidade a ser revelada, a ser demonstrada pela prova de forças.


Para nós, nos países “ricos”, as coisas se passam de outro jeito; não é tão óbvio que tenhamos que enfrentar apenas um tigre de papel. O inimigo se infiltrou por toda parte, ele secretou uma imensa interzona pequeno-burguesa para atenuar o quanto for possível os contornos de classe. A própria classe operária está profundamente infiltrada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas… Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático. Primeiro, participação material em escala planetária: as classes operárias dos países economicamente desenvolvidos estão implicadas objetivamente, mesmo que seja só pela diferença crescente de níveis de vida relativos, na exploração internacional dos antigos países coloniais. Depois, participação inconsciente e de tudo quanto é jeito: os trabalhadores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da burguesia – maldição do roubo, da preguiça, da doença, etc. Eles reproduzem, por conta própria, objetos institucionais alienantes, tais como a família conjugal e o que ela implica de repressão intrafamiliar entre os sexos e as faixas etárias, ou então se ligando à pátria com seu gostinho inevitável de racismo (sem falar do regionalismo ou dos particularismos de toda espécie: profissionais, sindicais, esportivos, etc., e de todas as outras barreiras imaginárias que são erguidas artificialmente entre os trabalhadores. Isto fica bastante claro, por exemplo, na organização, em grande escala, do mercado da competição esportiva).


Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do “socialismo” burocrático são corroídas por uma angústia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de auto-sujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. A obtenção deste resultado repousa sobre o desenvolvimento de um antagonismo reforçado entre um ideal imaginário, que inculcamos nos indivíduos por sugestão coletiva, e uma realidade totalmente outra que os espera na esquina. A sugestão audiovisual, os meios de comunicação de massa, fazem milagres! Obtém-se assim uma valorização fervorosa de um mundo imaginário maternal e familiar, entrecortado por valores pretensamente viris, que tendem à negação e ao rebaixamento do sexo feminino, e ainda por cima à promoção de um ideal de amor mítico, uma mágica do conforto e da saúde que mascara urna negação da finitude e da morte. No final das contas, todo um sistema de demanda que perpetua a dependência inconsciente em relação ao sistema de produção; é a técnica do intéressement (2).


O resultado deste trabalho é a produção em série de um indivíduo que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas importantes de sua vida. É completamente desarmado que ele enfrentara a realidade, sozinho, sem recursos, emperrado por toda esta moral e este ideal babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz de se desfazer. Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar no resto… Agora, toda a sua vida ficará envenenada em maior ou menor grau pela incerteza de sua condição em relação aos processos de produção, de distribuição e de consumo, pela preocupação com seu lugar na sociedade, e o de seus próximos. Tudo passa a ser motivo de grilo: um novo nascimento, ou então “a criança não vai muito bem na escola”, ou ainda “os mais grandinhos se enchem e aprontam mil loucuras”; as doenças, os casamentos, a casa, as férias, tudo é motivo de aborrecimento…


Assim, tornou-se inevitável um mínimo de ascensão nos escalões da pirâmide das relações de produção. Não precisa nem fazer um desenho ou uma lição. Diferentemente dos jovens trabalhadores, os militantes de origem estudantil que vão trabalhar na fábrica estão seguros de se virar caso sejam despedidos; queiram ou não, eles não podem escapar à potencialidade que os marca de uma inserção hierárquica “que poderia ser bem melhor”. A verdade dos trabalhadores é uma dependência de fato e quase absoluta em relação à máquina de produção; é o esmagamento do desejo, com exceção de suas formas residuais e “normalizadas”, o desejo bem pensante ou bem militante; ou, então, o refúgio numa droga ou em outra, se não for a piração ou o suicídio! Quem estabelecerá a porcentagem de “acidentes de trabalho” que, em realidade, não eram senão suicídios inconscientes?


O capitalismo pode sempre dar um jeito nas coisas, retoca-las aqui e ali, mas no conjunto e no essencial tudo vai cada vez pior. Daqui a 20 anos alguns dentre nós terão 20 anos a mais, mas a humanidade terá quase duplicado. Se os cálculos dos especialistas no assunto se revelam exatos, a Terra atingirá pelo menos 5 bilhões de habitantes em 1990. Isto deveria colocar no decorrer do processo alguns problemas suplementares! E como nada nem ninguém está em condições de prever ou organizar alguma coisa para acolher estes recém-chegados – à parte alguns porra-loucas nos organismos internacionais, que aliás não resolveram um só problema político importante durante os 25 anos em que estiveram aí instalados -, podemos imaginar que seguramente acontecerá muita coisa nos próximos anos. E de tudo quanto é tipo, revoluções, mas também, sem sombra de dúvida. Umas merdas do tipo fascismo e companhia. E dai o que é que se deve fazer? Esperar e deixar andar? Passar à ação? Tudo bem, mas onde, o quê, como? Mergulhar com tudo, no que der e vier. Mas não é tão simples assim, a resposta a muitos golpes está prevista, organizada, calculada pelas máquinas dos poderes de Estado. Estou convencido de que todas as variações possíveis de um outro Maio de 1968 já foram programadas em IBM. Talvez não na França, porque eles estão fodidos, e ao mesmo tempo bem pagos para saber que este tipo de baboseira não constitui garantia alguma e que não se encontrou ainda nada de sério para substituir os exércitos de tiras e de burocratas. Seja o que for, já está mais do que na hora de os revolucionários reexaminarem seus programas, pois há alguns que começam a caducar. Já está mais do que na hora de abandonar todo e qualquer triunfalismo – note-se o falismo – para se dar conta de que não só estamos na merda até o pescoço, mas que a merda penetra em cada um de nós mesmos, em cada uma de nossas “organizações”.


A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorado: autoridade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá-la a partir do vocabulário de uns e de outros, seu jeito de falar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim! A luta de classe contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou o interior de cada um de nós com seu eu, com o ideal de status que acreditamos ter de adotar para nós mesmos. Já está mais do que na hora de se organizar em todos os níveis para encarar esta luta de classe generalizada. Já é hora de elaborar uma estratégia para cada um destes níveis, pois eles se condicionam mutuamente. De que serviria, por exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização antiautoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos superativos, se eles se comportam com os militantes dos outros grupos, no interior de seu próprio grupo, com seus próximos ou cada um consigo mesmo, como perfeitos canalhas, perfeitos carolas? De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? Os fins políticos são pessoas desencarnadas. Eles acham que se pode e se deve poupar as preocupações neste domínio para mobilizar toda a sua energia em objetivos políticos gerais. Estão muito enganados! Pois na ausência de desejo a energia se auto-consome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia. E pelo tempo que já estão nessa, já podiam ter se dado conta destas coisas por si mesmos!


A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica – a libido – em objetivos de luta social. É fácil reduzir tudo às famosas contradições principais. É demasiadamente abstrato. É até mesmo um meio de defesa, um troço que ajuda a desenvolver phantasias (3) de grupo, estruturas de desconhecimento, um troço de burocratas; se entrincheirar sempre atrás de alguma coisa que está sempre atrás, sempre em outro lugar, sempre mais importante e nunca ao alcance da intervenção imediata dos interessados; é o princípio da “causa justa”, que serve para te obrigar a engolir todas as mesquinharias, as míseras perversões burocráticas, o prazerzinho que se tem em te impor – “pela boa causa” – caras que te enchem o saco, em forçar tua barra para ações puramente sacrificiais e simbólicas, para as quais ninguém está nem aí, a começar pelas próprias massas. Trata-se de uma forma de satisfação sexual desviada de seus objetivos habituais. Este gênero de perversão não teria a menor importância se incidisse em outros objetos que não revolução – e olha que não faltam objetos! O que é chato é que estes monomaníacos da direção revolucionária conseguem, com a cumplicidade inconsciente da “base”, enterrar o investimento militante em impasses particularistas. É meu grupo, é minha tendência, é meu jornal, a gente é quem tem razão, a gente tem a linha da gente, a gente se faz existir se contrapondo às outras linhas, a gente constitui para si uma pequena identidade coletiva encarnada em seu líder local… A gente não se enchia tanto em Maio de 68! Enfim, tudo ocorreu mais ou menos bem até o momento em que os “porta-vozes” disto ou daquilo conseguiram voltar à tona. Como se a voz precisasse de portador. Ela se porta bem sozinha e numa velocidade louca no seio das massas, quando ela é verdadeira. O trabalho dos revolucionários não é ser portador de voz, mandar dizer as coisas, transportar, transferir modelos e imagens; seu trabalho é dizer a verdade lá onde eles estão, nem mais nem menos, sem tirar nem por, sem trapacear. Como reconhecer este trabalho da verdade? É simples, tem um troço infalível: está havendo verdade revolucionária, quando as coisas não te enchem o saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer, correndo até o risco de morte. A verdade, a vimos atuando em Maio de 68; todo mundo a entendia de cara. A verdade não é a teoria nem a organização. É depois dela ter surgido que a teoria e a organização têm de se virar com ela. Elas sempre acabam se situando e recuperando as coisas, mesmo que para isso tenham de deformá-la e mentir. A autocrítica cabe à teoria e à organização e nunca ao desejo.


O que está em questão agora, é o trabalho da verdade e do desejo por toda parte onde pinte encanação, inibição e sufoco. Os grupelhos de fato e de direito, as comunas, os bandos, tudo que pinta no esquerdismo tem de levar um trabalho analítico sobre si mesmo tanto quanto um trabalho político fora. Senão eles correm sempre o risco de sucumbir naquela espécie de mania de hegemonia, mania de grandeza que faz com que alguns sonhem alto e bom som em reconstituir o “partido de Maurice Thorez” ou o de Lenin, de Stalin ou de Trotsky, tão chatos e por fora quanto seus Cristos ou de Gaulles, ou qualquer um desses caras que nunca acabam de morrer.


Cada qual com seu congressinho anual, seu mini-Comitê Central, seu super-birô político, seu secretariado e seu secretário-ge(ne)ral e seus militantes de carreira com seu abono por tempo de serviço, e, na versão trotskista, tudo isso duplicado na escala internacional (congressos mundiais, comitê executivo internacional, seção internacional, etc.).


Por que os grupelhos, ao invés de se comerem entre si, não se multiplicam ao infinito? Cada um com seu grupelho! Em cada fábrica, cada rua, cada escola. Enfim, o reino das comissões de base! Mas grupelhos que aceitassem ser o que são, lá onde são. E, se possível, uma multiplicidade de grupelhos que substituiriam as instituições da burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo, etc. Grupelhos que não temessem, além de seus objetivos de luta revolucionária, se organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam.


Ah, então trata-se de anarquia! Nada de coordenação, nada de centralização, nada de estado-maior… Ao contrário! Tomem o movimento Weathermen nos Estados Unidos: eles estão organizados em tribos, em gangues, etc., mas isto não os impede de se coordenar e muitíssimo bem.


O que é que muda se a questão da coordenação, ao invés de se colocar para indivíduo, se coloca para grupos de base, famílias artificiais, comunas?… O indivíduo tal como foi moldado pela máquina social dominante é demasiado frágil, demasiado exposto às sugestões de toda espécie: droga, medo, família, etc. Num grupo de base, pode-se esperar recuperar um mínimo de identidade coletiva, mas sem megalomania, com um sistema de controle ao alcance da mão; assim, o desejo em questão poderá talvez fazer valer sua palavra, ou estará talvez mais em condições de respeitar seus compromissos militantes. É preciso antes de mais nada acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico, uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contingência, sua finitude e para seus objetivos de luta. O movimento revolucionário deve portanto construir para si uma nova forma de subjetividade que não mais repouse sobre o indivíduo e a família conjugal. A subversão dos modelos abstratos secretados pelo capitalismo, e que continuam caucionados até agora, pela maioria dos teóricos, é um pré-requisito absoluto para o reinvestimento pelas massas de luta revolucionária.


Por enquanto, é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não, quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados.

[editar]NOTAS

1. No original, groupuscule. Corresponde ao “grupelho” no Brasil, nome dado aos grupos de dissidência do partido comunista, da década de 60 – anarquistas, trotskistas, guevaristas, maoístas -, época da desestalinização que o PCF parece ter ignorado. O termo grupelho traz em si um sentido pejorativo, pois desde a perspectiva do PC, perspectiva adotada na época pelos próprios esquerdistas uns contra os outros, ser minoritário era ser facção insignificante, marginal, acometida pela “doença infantil do comunismo”, justificativa suficiente para sua exclusão, como medida sanitária, visão aliás compartilhada pela direita: em junho de 68, de Gaulle, já no controle da situação, através de seu ministro do Interior, proibiu a existência desses grupelhos, baseando-se numa lei da Frente Popular contra as milícias fascistas armadas e paramilitares.

Ora, o autor retoma aqui a própria idéia de grupelho como afirmação de uma posição política. “Somos todos grupelhos”: a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define um grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. É neste devir que a luta se generaliza. “Saúde infantil” do político, que se contrapõe à tendência a generalizar a luta em torno de uma representação totalizadora, sua “doença senil”. Desta perspectiva, tamanho não é documento, e um pequeno grupo também pode ser acometido de “doença senil”.

A noção de grupelho pode ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de “grupo sujeito”, contraposto a “grupo sujeitado” (cf. nota 7 de “A Transversalidade”), à idéia de “agenciamento coletivo de enunciação” e, na década de 70, ao conceito de “molecular”, contraposto a “molar”. (N. do Trad.).

2. O intéressement, pedra de toque da doutrina social do gaullismo, designa uma modalidade de participação dos operários nos lucros da empresa, através de uma remuneração que se acrescenta ao salário fazendo com que o trabalhador se “interesse” pela produtividade da empresa. Esta doutrina, considerada mistificadora pela esquerda francesa, foi por ela amplamente denunciada. (N. do T.).

3. No original alemão Phantasie, traduzido em francês por fantasme. Na tradução de Freud para o português (edição da Standard), optou-se por “fantasia”, de acordo com as traduções inglesa (fantasy ou phantasy, o primeiro consciente e o segundo inconsciente, segundo proposta de Susan Isaacs) e espanhola (fantasia). Preferimos adotar o termo “phantasia”, sugerido na tradução para o português dos Escritos de Lacan (Perspectiva, SP, 1978), que preserva o arcaísmo do termo francês fantasme (cf. nota 14 dos Escritos). (N. do T.).

Tradução de Suely Rolnik

Fontes: GUATTARI, Félix. Revolução Molecular. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 13-19.

Predefinição:Origem-sabotagem

As redes da vida frente à hierarquização social

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Fonte: El Vírus de La Subversion

De Humanizer

Os diferentes conflitos socioambientais locais que enfrentam diversas comunidades frente à expansão de vários projetos capitalistas, como os monocultivos florestais e a indústria mineira, entre muitos outros, são um reflexo de uma constante a nível global (1), que está implicando que nas próximas décadas os limites do capitalismo global chocassem com os limites da biosfera, provocando um longo declive e colapso da civilização tal como a conhecemos hoje, como aponta a documentadíssima obra de Ramón Fernández (2). Neste contexto, historiadores como Murray Bookchin (3) afirmaram que o projeto de hierarquização social, que tem aproximadamente uns cinco mil anos, desde a formação das primeiras cidades-estado e que persiste nas sociedades democráticas contemporâneas implica também na hierarquização da natureza.

Casos bastante ilustrativos são os das comunidades Mapuche ou zonas como Petorca e Caimanes, em que a destruição ecossistêmica contemplou literalmente o sacrifício de comunidades inteiras com seus habitantes diante da grave ruptura nas condições de vida e do esgotamento de recursos hídricos, acompanhada de uma forte repressão policial e diversas estratégias políticas de manipulação. Não se torna talvez exagerado comparar esta situação com a do império Azteca, que sacrificava seres humanos sob a crença de que isso assegurava a continuação dos ciclos naturais, só que neste caso se sacrificam comunidades e ecossistemas para assegurar a continuidade da expansão dos interesses de grupos econômicos, que na prática são o poder ditatorial atrás do teatro de títeres que representa, nesse momento, a democracia.

Diante deste cenário que alguns cientistas propõem serem os primeiros dias de uma sexta extinção (4), é necessário desmontar uma série de mitos referentes à viabilidade da organização social atual frente ao que denominarei em termos genéricos como ciências da vida, que incorpora recentes descobertas da biologia evolucionista, antropologia e neurociências principalmente:

Atualmente, as evidências em termos da evolução substituíram a ideia de competência e sobrevivência do mais apto, da que se desprende como suposta lógica natural da hierarquização, por modelos de integração de sistemas complexos como o de Máximo Sandín (5), a endossimbiose e simbiogênese de Lynn Margulis (6) ou a deriva natural de Francisco Varela (7), que de um modo geral propõe a existência de uma coimplicação e coevolução interdependente entre organismos e o meio; organismos que, além disso, seriam formados pela adesão sucessiva de microorganismos como bactérias e vírus, como fonte de novidade evolutiva em resposta a grandes distúrbios ecossistêmicos, que, por exemplo, deram lugar à súbita aparição da fauna do período câmbrico. Em síntese, neste nível de compreensão da natureza se troca a competência como mecanismo central do fenômeno da vida, pelos fenômenos baseados na cooperação e interdependência.

Estas investigações permitiram determinar que como as espécies não são desassociáveis do ecossistema que as contém, seriam estas as que, mediante sua atividade metabólica, mantêm o conjunto de parâmetros a nível atmosférico, marinho e terrestre que possibilitam a vida, isto é, o planeta constituiria um sistema auto-organizado e autorregulado (8) especialmente por uma rede de microorganismos como bactérias e vírus que habitam o planeta e cuja importância em diversos ecossistemas foi documentada por Margulis e Sandín. Este conjunto é o que se conhece como sistema Gaia e implica na interdependência dos seres vivos e arredor, os que se recriariam mutuamente. Estas descobertas minimizadas em geral em busca de aplicações biotecnológicas de duvidosa efetividade, como o desastre da denominada “revolução verde” na agricultura, necessariamente determinam a reescritura de todos os manuais de economia, como propõe o destacado paleontólogo Niles Eldredge (9), já que embora a terra pode suportar a atividade humana, isto só é possível se se acopla estruturalmente a seus ciclos, diluindo por completo o debate de “progresso” vs algum tipo de primitivismo e propondo a necessidade de uma harmonização, que implica entender o crescimento em termos qualitativos como um índice de um bem-estar básico da população e um decrescimento em termos quantitativo da atividade humana.

Neste ponto vemos como uma sociedade hierarquizada se converte em um obstáculo, tendo em vista a maximização de interesses em grupos econômicos que é salvaguardado através do estado, que age como o guardião desses interesses. Sempre se argumentou que as sociedades sem autoridade desembocariam em um caos, entretanto, os últimos cinco mil anos provam uma extensão das guerras e um colapso ecossistêmico, não só pelo desdobrar da economia de crescimento infinito, mas também dos mecanismos bélicos e de controle social que, obviamente, requerem muita energia também. A pergunta então que precisamos responder é por que tamanha crise não é perceptível e ao mesmo tempo por que esta forma de organização social parece a única possível na imaginação coletiva.

Para tentar resolver este ponto abordaremos como conhecemos o mundo, a partir da obra de Francisco Varela (10), quem descobriu que o processo de conhecer é um fazer e que nossa experiência do mundo surge de pautas recorrentes a nível sensorial e motriz, o que tem um correlato em termos de configurações altamente complexas de redes neuronais que aparecem e desaparecem. O que isso implica: todo sistema hierarquizado condiciona hábitos e maneiras de viver através da administração dos desejos das pessoas ou mediante a coerção, pelo que finalmente programa uma experiência de mundo fragmentária. Simplesmente não sabemos o que acontece porque fica excluído de nosso foco de atenção, que se torna bastante restrito e que gera uma espécie de inércia e um senso comum de conformidade.

Até onde sabemos, a hierarquização social começou após abruptos períodos de crises climática, pelo que diante da incerteza foi mais fácil manipular os fatores antes mencionados, situação na que alguém poderia reconhecer continuidade nas denominadas doutrinas do “shock” que fabricam inimigos internos e externos e permitem desdobrar o controle social, com o que se torna fácil gravar a ideia de apego à autoridade, sobrevivência dos mais aptos e competência; entretanto, o absurdamente hierarquizado destas sociedades, a partir de seus colégios e tiranias familiares patriarcais em diante até o estado e os grupos que monopolizam os recursos para viver, implicam uma homogeneização que conduz a um condicionamento que limita e empobrece a experiência humana, que só pode desembocar em níveis estratosféricos de estupidez, visto que simplesmente não vemos todo o conjunto de fatores que se interrelacionam para formar a vida, se manifestando como uma negação constante da interdependência que descrevemos primeiro a nível ecossistêmico e evolutivo e que agora examinaremos a partir do fator decisivo que nos faz humanos: a empatia.

Em parágrafos anteriores, nos baseando nos trabalhos de Varela, se propôs que a experiência humana é uma espécie de fluxo que emerge de nosso viver, isto é, há uma circularidade entre viver e conhecer e, como isso sempre acontece em relação a outro, a mente e nossos estados afetivos se constituem em um fenômeno coletivo. Esta capacidade emerge na história evolutiva com os mamíferos, especialmente primatas e cetáceos, e, além disso, desembocou na declaração de Cambridge, que reconhece a existência de consciência em animais não-humanos. A empatia permite reconhecer estados afetivos nos outros e no caso dos humanos, dada a complexidade de sua linguagem, permite uma refinação maior, como propuseram primatólogos como Frans De Waal (11), que nos qualifica como símios bipolares capazes de uma grande crueldade e ao mesmo tempo de uma grande compaixão.

Esta capacidade que faz possível a cooperação se encontra inscrita no nível neurobiológico, já que se identificaram grupos neuronais denominados “espelhos” em tais processos e a nível experiencial é a base do que foi definido por anarquistas como Kropotkin como apoio mútuo, ou como solidariedade, por Malatesta. Com isso, a ideia de sociedades horizontais sai da utopia para uma possibilidade concreta da condição humana que outros como o famoso físico David Bohm (12) ou Humberto Maturana (13) propuseram como uma transformação de como dialogar e conversar a partir de outra experiência afetiva, pelo que a transformação da sociedade implicaria uma profunda transformação da experiência de viver em si, dissolvendo os condicionamentos que programa o sistema social hierarquizado, mediante sua observação atenta, o que é proposto na obra de Varela através do enfoque de observação da mente chamado madhyamika e que também se encontra presente na obra do filósofo Jiddu Krishnamurti com sua recusa de qualquer forma de autoridade.

Estas experiências de sociedades horizontais baseadas no apoio mútuo são encontradas durante toda a história da humanidade até hoje, como mostram os trabalhos de Peter Gelderloos (14) e o antropólogo David Graeber (15). As ciências da vida a todo momento estão provando a incompatibilidade de um sistema social hierarquizado baseado na competência e no crescimentos infinito com uma experiência do mundo que seja sã finalmente; os desequilíbrios afetivos se materializam em desequilíbrios sociais e estes em ecossistêmicos como um processo circular de que emerge uma espiral de destrutividade, como se pode ver nos conflitos socioambientais e na desigualdade social, implicando um transtorno em todos os níveis. Creio que existe uma ideia similar na cosmovisão mapuche ao respeito. Geralmente reclamamos das autoridades, mas neste ponto talvez seja bom começar a questionar seriamente se realmente precisamos delas, só a partir daí se pode construir a suficiente autonomia a nível individual e coletivo para ter uma experiência do mundo que realmente valha a pena viver, pois a única transformação radical da humanidade é compreender em sua totalidade a rede da vida em que acontece nossa experiência vivida.

A exposição destas ideias foi deliberadamente sintética, dado seus propósitos divulgativos e pode ser aprofundada amplamente nos documentos que se encontram a seguir.

(1)    Mapa mundial de conflictos socioambientales  http://www.bbc.co.uk/mundo/noticias/2014/03/140319_ciencia_atlas_global_conflictos_ecologicos_np

Mapa local de los conflictos socioambientales http://www.indh.cl/mapa-de-conflictos-socioambientales-en-chile

(2)    Libro “En la espiral de la energía volumen 1 y 2″ de Ramón Fernandezhttp://www.ecologistasenaccion.org/article29055.html

(3)    Resumen del pensamiento de Murray Bookchin http://ceppas.org.gt/article/la-ecologia-social-como-matriz-de-interpretacion/

(4)    http://www.tendencias21.net/Cientificos-alertan-Vivimos-los-primeros-dias-de-la-sexta-extincion-masiva-de-la-Tierra_a35873.html 
http://www.tendencias21.net/Eduardo-Costas-La-especie-humana-sera-de-las-mas-afectadas-por-la-Sexta-Gran-Extincion_a39774.html

(5)    Lamentablemente no dispongo de una edición digital del libro “Pensando la evolución, pensando la vida” pero en la sección artículos del sitio oficial de Máximo Sandín se puede encontrar gran cantidad de información http://somosbacteriasyvirus.com/libros.htmlhttp://somosbacteriasyvirus.com/articulos.html

(6)    Libro “Microcosmos” de Lynn Margulis y Dorion Saganhttp://isfdmacia.zonalibre.org/microcosmos%20Margulis-%20Sagan.pdf

(7)    Libro “De cuerpo presente las ciencias cognitivas y la experiencia humana” de Francisco Varela http://estesis.bligoo.cl/media/users/19/993761/files/231732/88471217-De-Cuerpo-Presente-Varela.pdf

(8)    Análisis de procesos evolutivos de Nereida Melguizohttp://www.somosbacteriasyvirus.com/analisis.pdf

(9)    http://www.lanacion.com.ar/220299-contra-la-extincion-en-curso

(10) De cuerpo presente http://estesis.bligoo.cl/media/users/19/993761/files/231732/88471217-De-Cuerpo-Presente-Varela.pdf  y el fenómeno de la vida de Francisco Varelahttp://cuva.uta.cl/index.php?option=com_k2&view=item&id=1659:francisco-varela-el-fen%C3%B3meno-de-la-vida

(11) Libro “primates y filósofos” de Frans De Waal http://es.scribd.com/doc/235243210/Frans-de-Waal-Primates-y-Filosofos-La-Evolucion-de-La-Moral-Del-Simio-Al-Hombre#scribd

(12) Libro “Sobre el dialogo” de David Bohm http://es.scribd.com/doc/34637104/Bohm-David-on-Dialog

(13) Libro “El árbol del conocimiento” de Humberto Maturana y Francisco Varela http://es.scribd.com/doc/64537164/MATURANA-Y-VARELA-El-Arbol-Del-Conocimiento#scribd

(14) Libro “La anarquía funciona “ Peter Gelderloos http://es.theanarchistlibrary.org/library/peter-gelderloos-la-anarquia-funciona.pdf

(15) Libro “Fragmentos de una antropología anarquista” de David Graeberhttp://www.viruseditorial.net/pdf/Fragmentos_de_antropologia_anarquista.pdf

Marx e o Anarquismo

witkop04

Rudolf rocker

Fonte: Notícias y Anarquia

I

Há alguns anos, pouco depois da morte de Friedich Engels, o senhor Eduardo Bernstein, um dos membros mais ilustres da comunidade marxista, assombrou seus companheiros com algumas descobertas notáveis. Bernstein manifestou publicamente suas dúvidas em relação à exatidão da interpretação materialista da história, da teoria marxista da mais-valia e da concentração do capital; até atacou o método dialético, chegando à conclusão de que não era possível falar de um socialismo crítico. Homem prudente, Bernstein guardou para si suas descobertas até a morte do velho Engels, e só então as tornou públicas diante do espanto dos sacerdotes marxistas. Mas nem sequer essa prudência pôde salvá-lo, pois o atacaram por todos os lados. Kautsky escreveu um livro contra o herege, e o pobre Eduardo viu-se obrigado a declarar no congresso de Hannover que era um frágil pecador mortal e que se submetia à decisão da maioria científica.

Contudo, Bernstein não tinha revelado nada novo. As razões que opunha contra os fundamentos da doutrina marxista já existiam quando ele ainda era apóstolo fiel da igreja marxista. Esses argumentos tinham sido retirados da literatura anarquista, e o único importante era o fato de que um dos social-democratas mais conhecidos se valesse deles pela primeira vez. Nenhuma pessoa sensata negará que a crítica de Bernstein tenha causado uma impressão inesquecível no campo marxista: Bernstein tinha tocado nos pontos mais importantes da economia metafísica de Karl Marx, e não é estranho que os respeitáveis representantes do marxismo ortodoxo tenham se agitado.

Não teria sido tão grave tudo isso se não mediasse outro inconveniente pior que o anterior. Desde cerca de um século os marxistas não param de pregar que Marx e Engels foram os descobridores do chamado socialismo científico; inventando-se uma distinção artificial entre os socialistas intitulados utópicos e o socialismo científico dos marxistas, diferença que existe apenas na imaginação destes últimos. Nos países germânicos, a literatura socialista foi monopolizada pelas teorias marxistas, e todo socialdemocrata as considera como produtos puros e absolutamente originais das descobertas científicas de Marx e Engels.

Mas também essa ilusão foi quebrada: as pesquisas históricas modernas estabeleceram de uma maneira irrefutável que o socialismo científico não é mais que uma consequência dos antigos socialistas ingleses e franceses, e que Marx e Engels conheceram perfeitamente a arte de roubar as ideias alheias. Depois das revoluções de 1848, iniciando-se na Europa uma reação terrível, a Santa Aliança tornou a estender suas redes em todos os países com o propósito de afogar o pensamento socialista, que tão riquíssima literatura produzira na França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Itália. Tal literatura foi quase totalmente esquecida durante essa época de obscurantismo que começou depois de 1848. Muitas das obras mais importantes foram destruídas até que se reduzisse seu número a poucos exemplares que acharam um lar em algum lugar tranquilo de certas grandes bibliotecas públicas ou de algumas pessoas privadas. Só nos fins do século XIX e começo do século XX essa literatura foi novamente descoberta e hoje causam admiração as ideias fecundas que se encontram nos velhos escritos das escolas posteriores a Fourier e Saint-Simon, nas obras de Considerant, Demasi, Mey e muitos outros. E nessa literatura se achou, ainda, a origem do chamado socialismo científico. Nosso velho amigo W. Tcherkesoff foi o primeiro a oferecer um conjunto sistemático de todos esses fatos; demonstrou que Marx e Engels não são os inventores dessas teorias que durante tanto tempo foram consideradas seu patrimônio intelectual (1); até chegou a provar que alguns dos mais famosos trabalhos marxistas, como por exemplo o “Manifesto Comunista”, não são, na verdade, outra coisa que traduções livres do francês, feitas por Marx e Engels. E Tcherkesoff obteve o triunfo de que suas afirmações a respeito do Manifesto Comunista fossem reconhecida pelo “Avanti”, o órgão central da socialdemocracia italiana (2) depois de ter tido o autor a oportunidade de comparar o Manifesto Comunista com o Manifesto da Democracia de Vitor Considerant, que apareceu cinco anos antes que opúsculo de Marx e Engels.

O “manifesto Comunista” é considerado uma das primeiras obras do socialismo científico e o conteúdo desse trabalho foi tirado dos escritos de um “utopista”, pois o marxismo inclui a Fourier entre os socialistas utópicos. É esta uma das ironias mais cruéis que se pode imaginar e não constitui, seguramente, um fator favorável para legitimar o valor científico do marxismo. Víctor Considerante foi um dos primeiros escritores socialistas que Marx conheceu; já o menciona na época em que ainda não era socialista. Em 1842, a “AlgemeineZeitung” atacou a “RheinischeZeitung” da qual era redator-chefe Marx, criticando-lhe por ser simpatizante do comunismo. Marx respondeu então com um editorial (3), em que declarava o seguinte:

“Obras como as de Leroux, Considerant e, especialmente, o livro perspicaz de Proudhon não podem ser criticados com algumas observações superficiais, é preciso estudá-las atenciosamente antes de lançar críticas.”

O socialismo francês exerceu uma enorme influência sobre o desenvolvimento intelectual de Marx; mas de todos os escritores socialistas da França é P. J. Proudhon quem mais poderosamente influiu em seu espírito. Até é evidente que o livro de Proudhon “O que é a propriedade?” induziu Marx a abraçar o socialismo. As observações críticas de Proudhon sobre a economia nacional e as diversas tendências socialistas mostraram para Marx um mundo novo e foi principalmente a teoria da mais-valia, tal como foi desenvolvida pelo genial socialista francês, o que maior impressão causou na mente de Marx. A origem da doutrina da mais-valia, essa grandiosa “descoberta científica”, de que tanto se orgulham nossos marxistas, a encontramos nos escritos de Proudhon. Graças a ele, Marx chegou a conhecer essa teoria, que modificou mais tarde mediante o estudo dos socialistas ingleses Bray e Thompson.

Marx até reconheceu publicamente o grande significado científico de Proudhon, e num livro especial, hoje completamente desaparecido do mercado, chama à sua obra, “O que é a propriedade?” de “o primeiro manifesto científico do proletariado francês”. Essa obra não tornou a ser editada pelos marxistas, nem foi traduzida a outro idioma, apesar de que os representantes oficiais do marxismo fizeram os maiores esforços para difundir em todas as línguas os escritos de seu mestre. Esse livro foi esquecido, se sabe o porquê: sua reimpressão revelaria ao mundo a colossal contradição e a insignificância de tudo que foi escrito por Marx mais tarde sobre o eminente teórico do anarquismo.

Marx não somente tinha sido influenciado pelas ideias econômicas de Proudhon, mas também se sentiu influído pelas teorias anárquicas do grande socialista francês, e em um de seus trabalhos daquele período, combate o estado da mesma forma que o fez Proudhon.

II

Todos aqueles que tenham estudado atentamente a evolução socialista de Marx devem reconhecer que a obra de Proudhon “O que é a propriedade?” foi a que o converteu ao socialismo. Os que não conhecem de perto os detalhes dessa evolução e aqueles que não tiveram oportunidade de ler os primeiros trabalhos socialistas de Marx e Engels, julgaram estranham e inverossímil esta afirmação. Porque em seus trabalhos posteriores Marx fala de Proudhon com deboche e desprezo, e são precisamente estes escritos os que a socialdemocracia voltou a publicar e reimprimir constantemente.

Deste modo, tomou forma pouco a pouco a opinião de que Marx foi, desde o princípio, o adversário teórico de Proudhon e que jamais existiu entre ambos ligação alguma. E verdadeiramente, quando se lê o que o primeiro deles escreveu a respeito do segundo em seu conhecido livro “Miséria da Filosofia”, no “Manifesto Comunista” e na necrologia que publicou no “Sozialdemokrat” de Berlim, pouco depois da morte de Proudhon, não é possível ter outra opinião.

Em “Miséria da Filosofia” ataca Proudhon da pior maneira, valendo-se de todos os recursos para demonstrar que as ideias dele carecem de valor e que não tem nenhuma importância nem como socialista, nem como crítico da economia política.

“O sr.Proudhon – diz – tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Na França, tem o direito de ser mau economista porque passa por ser um bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser mau filósofo, porque passa por ser um dos melhores economistas franceses. Nós na nossa qualidade de alemão e economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra este duplo erro. (4).

E Marx vai ainda mais longe: acusa Proudhon, sem oferecer nenhuma prova, de ter plagiado suas ideias do economista inglês Bray. Escreve:

“acreditamos ter aí encontrado a chave das obras passadas, presentes e futuras do sr.Proudhon.”

É interessante observar como Marx, que tantas vezes utilizava ideias alheias e cujo “Manifesto Comunista” não é na realidade nada além de uma cópia do “Manifesto da Democracia” de Victor Considerant, denuncia a outrem como plagiadores.

Mas prossigamos. No “Manifesto Comunista”, Marx aponta Proudhon como representante burguês e conservador (6). E na necrologia que escreveu no “Sozialdemokrat” (1865), lemos as seguintes palavras:

“Em uma história, rigorosamente científica da economia política, esse livro (se refere a ‘O que é a propriedade?”) apenas mereceria ser mencionado. Porque semelhantes obras sensacionais desempenham nas ciências exatamente o mesmo papel que na literatura romanesca.”

E nesse mesmo artigo necrológico reitera Marx sua afirmação de que Proudhon carece de todo valor como socialista e como economista, opinião que já emitira em “Miséria da Filosofia”.

É fácil compreender que semelhantes afirmações, que Marx lançava contra Proudhon, tinham que divulgar a crença, aliás, a convicção, de que entre ele e o grande escritor francês não existiu nunca o menor parentesco. Na Alemanha, Proudhon é quase totalmente desconhecido. As edições germânicas de suas obras, feitas em torno do ano 1840, estão esgotadas. O único livro seu que voltou a ser publicado em alemão é “O que é a propriedade?” e ainda esta edição se difundiu num círculo restrito. Esta circunstância explica o fato de que Marx tenha conseguido apagar os rastros de sua primeira evolução como socialista. Que seu conceito de Proudhon era bem diferente a princípio, tivemos a oportunidade de ver mais acima e as conclusões que seguem corroborarão nossa tese.

Sendo redator chefe da “RheinischeZeitung”, um dos principais jornais da democracia alemã, Marx chegou a conhecer os escritores socialistas mais importantes da França, embora ele mesmo não fosse ainda socialista. Já mencionamos uma citação sua que alude a Victor Considerant, PierraLeroux e Proudhon, e não resta dúvida de que exerceu, sem dúvida alguma, a maior influência no desenvolvimento socialista de Marx; assim, no período mencionado, chama o genial Proudhon de “o mais consequente e sagaz dos escritores socialistas” (7). Em 1843, a “RheinischeZeitung” foi suprimida pela censura prussiana: Marx partiu para o exterior, e durante esse período evoluiu para o socialismo. Tal evolução se percebe muito bem em suas cartas ao conhecido escritor Arnold Ruge, e melhor ainda em sua obra “A Sagrada Família, ou crítica da crítica”, que publicou conjuntamente com Friedich Engels. O livro apareceu em 1845 e tinha por objetivo polemizar contra a nova tendência do pensador alemão Bruno Bauer (8). Além de questões filosóficas, essa obra se ocupa também de economia política e de socialismo e são precisamente essas partes as que nos interessam aqui.

De todos os trabalhos que publicaram Marx e Engels, é “A Sagrada Família” o único texto que não foi traduzido a outros idiomas e do qual os socialistas alemães não fizeram outra edição. É verdade que Franz Mehrin, herdeiro literário de Marx e Engels, publicou por encargo do Partido Socialista alemão, “A Sagrada Família” junto com outros escritos correspondentes ao primeiro de atuação socialista dos autores, mas isso se fez sessenta anos depois de ter saído a primeira edição, e, por outro lado, a reedição estava destinada aos especialistas, pois seu custo era excessivo para um trabalhador. Fora isso, Proudhon é tão escassamente conhecido na Alemanha, que muitos poucos terão sido os que perceberam a funda discrepância que há entre os primeiros juízos que Marx emitiu sobre ele e os que sustentou mais tarde.

E, entretanto, este livro demonstra claramente o processo evolutivo do socialismo de Marx e a influência poderosa que nele exerceu Proudhon. Tudo o que os marxistas atribuíram depois a seu mestre, Marx o reconhecia, Na obra “Sagrada Família”, como méritos de Proudhon.

Vejamos o que diz a este respeito na página 36:

“Todo o desenvolvimento da economia nacional considera a propriedade privada como hipótese inevitável; esta hipótese constitui para ela um fator incontestável que nem sequer trata de investigar e ao qual só se refere acidentalmente, segundo a ingênua expressão de Say(9). Proudhon se propôs a analisar de um modo crítico a base da economia nacional, a propriedade privada, e foi a sua a primeira investigação enérgica, considerável científica ao mesmo tempo. Nisso consiste o notável progresso científico que realizou, progresso que evoluiu a economia nacional, criando a possibilidade de fazer dela uma verdadeira ciência. ‘O que é a propriedade?’ de Proudhon tem para a economia a mesma importância que a obra de Say ‘O que é o terceiro estado?’ teve para a política moderna.”

É interessante comparar estas palavras de Marx com as que escreveu depois sobre o grande teórico anarquista. No “A Sagrada Família” diz que “O que é a propriedade?” foi a primeira análise científica da propriedade privada e que deu a possibilidade de fazer da economia nacional uma verdadeira ciência; mas em sua conhecida necrologia, publicada no “Sozialdemokrat”, o mesmo Marx assegura que em uma história rigorosamente científica da economia essa obra apenas merece ser mencionada.

Onde está a causa de semelhante contradição? Esta é a pergunta que os representantes do chamado socialismo científico não esclareceram ainda. Na verdade, não há senão uma resposta: Marx queria ocultar a fonte na qual tinha bebido. Todos os que tenham estudado a questão e não se sintam arrastados pelo fanatismo partidário terão que reconhecer que esta explicação não é instável.

Sigamos escutando o que manifesta Marx sobre a importância histórica de Proudhon. Na página 52 do mesmo livro lemos:

“Proudhon não somente escreve a favor do proletariado, mais também é ele um proletário, um operário; sua obra é um manifesto científico do proletariado francês.”

Aqui, como se vê, Marx expressa em termos precisos que Proudhon é um expoente do socialismo proletariado e que sua obra constitui um manifesto científico do proletariado francês. Em troca, no Manifesto Comunista assegura que Proudhon encarna o socialismo burguês e conservador. Cabe maior contradição? Em quem temos que acreditar, no Marx de “A Sagrada Família” ou no autor do Manifesto Comunista? E a que se deve a divergência? É uma pergunta que nos propomos novamente e como é natural, a resposta também é a mesma: Marx queria ocultar ao mundo tudo o que devia a Proudhon e para isso qualquer meio era viável. Não pode ter outra explicação para esse fenômeno: os meios que Marx empregou mais tarde em sua luta contra Bakunin evidenciam que não era muito delicado na escolha deles.

Como Marx tinha sido influenciado pelas ideias de Proudhon e até por suas ideias anarquistas demonstram seus escritos políticos daquele período; por exemplo o artigo que publicou no “Vorwaerts” de Paris.

O “Vorwaerts” era um jornal que era publicado na capital francesa durante 1844-1845, sob a direção de Enrique Bernstein. Sua tendência era, em princípio, liberal apenas. Porém mais tarde, pois da desaparição dos “Anais Germano-Franceses”, Bernstein travou relação com os antígos colaboradores desta última publicação, os quais o conquistaram para a causa socialista. Desde então o “Vorwaerts” se converteu em um órgão oficial de socialismo e numerosos colaboradores da extinta publicação de A. Ruge, entre eles Bakunin, Marx, Engels, Enrique Heine, Georg Herwergh etc., contribuíram para ele com seus trabalhos.

No número 63 desse jornal (7 de agosto de 1844), Marx publicou um trabalho polêmico, “Glosas críticas Marginais ao artigo O rei da Prússia e reforma social”. Nele estuda a natureza do Estado e demonstra a incapacidade absoluta desse organismo para reduzir a miséria social e para suprimir o pauperismo. As ideias que o autor desenvolve nesse artigo são ideias puramente anarquistas e estão em perfeita concordância com os conceitos que Proudhon, Bakunin e outros teóricos do anarquismo estabeleceram a esse respeito. Pelo seguinte fragmento do estudo de Marx poderão julgar os leitores:

“O estado é incapaz de suprimir a miséria social e anular a pobreza. E ainda quando se preocupa com este problema, se é que se decide a fazer algo, não dispõe de outros recursos que a beneficência pública e as medidas de caráter administrativo e frequentemente nem sequer isso”.

“Nenhum estado pode proceder de outra forma; porque para suprimir a miséria deveria suprimir-se a si mesmo, posto que a causa do mal reside na essência, na própria natureza do estado, e não é uma forma determinada dele como supõe muita gente radical e revolucionária que aspira a modificar essa forma por outra melhor”.

“É um gravíssimo erro acreditar que a miséria e os terríveis males do pauperismo podem ser curados mediante uma forma qualquer do estado. Se o estado reconhece a existência de certos males sociais, trata de explicá-los, tanto como leis naturais contra as quais nada pode fazer o homem, como resultados da vida privada, na qual não pode meter-se, ou também como defeitos da administração pública. Por isso na Inglaterra a miséria é considerada uma consequência de uma lei natural, segundo a qual os homens aumentam em proporção maior os meios de vida. Outros afirmam que a má vontade dos homens é a causa de sua pobreza: o rei da Prússia, Federico Guillermo I, vê a causa deles com os corações pouco cristãos dos ricos; e a Convenção, o parlamento revolucionário francês, sustenta que os males sociais são consequência do espírito contrarrevolucionário que demonstram os proprietários. Por conseguinte, na Inglaterra se castiga os pobres, o rei da Prússia lembra aos ricos seus deveres cristãos e a Convenção francesa corta as cabeças dos proprietários.”

“Ademais, todos os estados procuram a causa da miséria nos defeitos fortuitos ou intencionais da Administração, e portanto acham possível reduzir o mal mediante reformas administrativas. Mas o estado não possui o poder de salvar a contradição existente entre a boa vontade da administração e sua capacidade real; porque si assim fosse, teria que anular-se a si mesmo, já que ele se baseia nessa contradição que reina entre a vida pública e a privada, entre os interesses gerais e os particulares. Por isso a administração se encontra limitada por uma função exclusivamente formal e negativa, pois onde principia a vida civil termina o poder da administração. O estado não pode impedir jamais as consequências que se desenvolvem logicamente por causa do caráter antissocial da vida civil, da propriedade privada, do comércio, da indústria e do despojo mútuo dos diferentes grupos sociais. A baixeza e a escravidão da sociedade burguesa constituem o fundamento natural do estado moderno. A existência do estado e a da escravidão não podem ser separadas. Do mesmo modo como o antigo estado e a escravidão antiga – contradições clássicas e francas -, estão intimamente vinculadas entre si, assim também o estado moderno e o atual mundo de mercadores – contradição cristã e hipócrita – estão fortemente ligados um ao outro”.

Esta interpretação essencialmente anarquista da natureza do estado, parece tão estranha se se lembra das doutrinas posteriores de Marx, é uma prova evidente da origem anárquica de sua primeira evolução socialista. No mencionado artigo se refletem os conceitos da crítica do estado feita por Proudhon, crítica que teve sua primeira expressão em seu famoso livro “O que é a propriedade?”. Esta obra imortal exerceu a influência mais decisiva na evolução do comunista alemão, apesar de ele ter se esforçado para, de todos os modos – e não foram estes os mais nobres – para negar as primeiras fases de sua atuação como socialista. Naturalmente, os marxistas apoiaram nisto o seu mestre e desta maneira desenvolve-se pouco a pouco o falso conceito histórico acerca do caráter das primeiras relações entre Marx e Proudhon.

Principalmente na Alemanha, sendo este último quase desconhecido, puderam circular as mais estranhas afirmações nesse sentido. Mas quanto mais se consegue conhecer as importantes obras da velha literatura socialista, mais se percebe tudo o que o chamado socialismo científico deve àqueles “utopistas” que durante longo tempo foram esquecidos por causa do “reclame” gigantesco que a escola marxista e de outros fatores que levaram ao esquecimento a literatura socialista do primeiro período. E um dos mestres mais importantes de Marx e o que esteve nas bases de toda a sua evolução posterior foi precisamente Proudhon, o anarquista tão caluniado e mal compreendido pelos socialistas verídicos.

IV

No dia 20 de julho de 1870, Karl Marx escrevia para Friedich Engels: “a França deve ser golpeada rudemente, pois si a Prússia consegue sair vitoriosa, o poder estatal ficará mais centralizado e o mesmo ocorrerá com todo o movimento operário da Alemanha. A potência alemã mudará o centro do movimento operário da França para a Alemanha. Só é necessário comparar o movimento nestes dois países, desde 1866 até nossos dias, para se convencer da superioridade da classe operária alemã sobre a francesa, tanto na teoria como na organização e sua maior potência nos acontecimentos internacionais significa um triunfo para nossa doutrina sobre a de Proudhon…”

Marx tinha razão: o triunfo da Alemanha sobre a França significou uma nova rota na história do movimento operário europeu.

O socialismo revolucionário e liberal dos países latinos foi deixado de lado, deixando o campo para as teorias estatais e anti-anarquistas do marxismo. A evolução daquele socialismo vivaz e criador se viu turvada pelo novo dogmatismo férreo que pretendia possuir um pleno conhecimento da realidade social, quando era apenas um conjunto de fraseologias teológicas e de sofismos fatalistas, e se tornou logo o sepulcro de todo o verdadeiro pensamento socialista.

Com as ideias, mudaram também os métodos de luta do movimento socialista. Em vez de grupos revolucionários para a propaganda e para a organização das lutas econômicas, nos quais os internacionalistas tinham visto a semente da sociedade futura e os órgãos aptos para a socialização dos meios de produção e intercâmbio, começou então a era dos partidos socialistas e da representação parlamentar do proletariado. Pouco a pouco se esqueceu da antiga educação socialista que levava aos operários a conquista da terra e das fábricas, pondo em seu lugar a nova disciplina do partido que considerava a conquista do poder político como seu mais supremo ideal.

Mikhail Bakunin, o grande crítico de Marx, observou com clarividência a mudança da situação e com o coração amargado predisse que, com o triunfo da Alemanha e a queda da Comuna de Paris, começava um novo capítulo na história da Europa. Fisicamente esgotado e olhando de frente para a morte, escreveu, no dia 11 de novembro de 1874, estas importantes palavras a Ogaref: “O bismarkismo – que vem a ser militarismo, regime policial e monopólio financeiro fundidos em um sistema que se intitula o Novo Estado – está triunfando em todas as partes. Mas talvez dentro de dez ou quinze anos a instável evolução da espécie humana iluminará novamente os caminhos do triunfo”. Bakunin errou nessa ocasião, não calculando que teria de passar meio século até que, no meio de uma terrível catástrofe mundial, fosse derrotado o bismarkismo.

V

Assim como o triunfo da Alemanha em 1871 e a queda da Comuna de Paris foram os sinais da desaparição da velha Internacional, assim a grande guerra de 1914 foi o início da bancarrota do socialismo político.

E aqui acontece um estranho curso que se torna às vezes verdadeiramente grotesco e que só encontra sua explicação na falta de todo o conhecimento sobre a história do velho movimento socialista. Bolcheviques, independentes, comunistas etc. não deixaram de acusar os herdeiros da velha Social-democracia de uma vergonhosa abdicação dos princípios do marxismo. Acusaram-nos de ter afogado o movimento socialista na estagnação do parlamentarismo burguês, de ter interpretado mal a atitude de Marx e Engels sobre o estado etc.

O diretor espiritual dos bolcheviques, Vladimir Lenin, tratou de fundamentar sua acusação sobre bases sólidas em seu conhecido livro “O Estado e a Revolução”, que é definido por seus discípulos como a verdadeira e pura interpretação do marxismo. Por meio de uma coleção de citações perfeitamente arrumadas, Lenin pretende demonstrar que “os fundadores do socialismo científico” foram sempre inimigos declarados da democracia e do pântano parlamentar e que todas as suas aspirações estavam encaminhadas à desaparição do estado.

Não se deve esquecer do que Lenin fez após descobrir que seu partido, contra todas as esperanças, estava em minoria depois das eleições para a Assembleia Constituinte. Até então os bolcheviques tinham participado ao lado dos demais partidos nas eleições e se cuidavam para não entrar em conflito com os princípios da democracia. Nas últimas eleições para a Assembleia Constituinte de 1918, tomaram parte com um programa grandioso, esperando obter uma maioria importante. Mas ao ver que, apesar de tudo, ficaram em minoria, declararão guerra à democracia e dissolveram a Assembleia Constituinte, publicando então Lenin sua obra “O Estado e a Revolução” como justificativa pessoal.

VI

A tarefa de Lenin não era simples, com certeza: de um lado se via obrigado a fazer concessões dirigidas às tendências antiestatais dos anarquistas e do outro a demonstrar que sua atitude não era de modo algum anarquista, mas sim marxista unicamente. Como inevitável consequência de tudo isso, sua obra está cheia de erros contra a lógica do são pensamento do homem. Um exemplo provará esta afirmação: querendo Lenin acentuar o máximo possível uma suposta tendência anti-estatal de Marx, cita o conhecido parágrafo de “Guerra civil na França”, onde Marx dá sua aprovação à Comuna por ter começado desterrando o estado parasitário. Mas Lenin não se dá ao trabalho de lembrar que Marx se via obrigado com estas palavras – que estão em clara contradição com toda sua atitude anterior – a fazer uma concessão aos partidários de Bakunin, com os quais mantinha, naquele momento, uma luta muito inflamada.

Até mesmo Franz Mehring – a quem não se pode suspeitar da simpatia pelos socialistas majoritários – teve que reconhecer essa contradição em seu último livro “Karl Marx”, onde diz: “Apesar de serem totalmente verdadeiros os detalhes dessa obra, não resta dúvidas de que o pensamento ali expresso contradiz todas as opiniões que Marx e Engels vinham proclamando desde o “Manifesto Comunista” 25 anos antes”.

Bakunin estava certo ao dizer naquele momento: “A impressão da Comuna levantada em armas foi tão imponente que até os marxistas, cujas ideias tinham sido completamente desalojadas pela revolução de Paris, tiveram que abaixar a cabeça ante os feitos da Comuna. Fizeram mais ainda: em contradição com toda a lógica e com as suas conhecidas convicções tiveram que se relacionar com a Comuna e se identificar com seus princípios e aspirações. Foi uma carnavalesca brincadeira cômica… mas necessária. Pois o entusiasmo provocado pela Revolução era tão grande que teriam sido rechaçados e expelidos de todas as partes se tivessem tentado permanecer em seus dogmatismos.

VII

Outra coisa também esquece Lenin, algo que é, por certo, de capital importância nessa questão. É o seguinte: que foram precisamente Marx e Engels que obrigaram as organizações da velha Internacional a desenvolver uma ação parlamentar, fazendo-se, deste modo, responsáveis diretos da estagnação coletiva do movimento operário socialista no parlamentarismo burguês. A internacional foi a primeira tentativa de unir os trabalhadores organizados de todos os países em uma grande união, cuja aspiração final seria a libertação econômica dos trabalhadores. Diferenciando-se entre si as ideias e os métodos das diferentes seções, era de capital importância estabelecer os pontos semelhantes para a obra comum e reconhecer a ampla autonomia e a autoridade independente das diversas seções. Enquanto isso se fez, a internacional cresceu poderosamente e floresceu em todos os países. Mas tudo mudou completamente desde o momento em que Marx e Engels se empenharam em empurrar as diferentes federações nacionais para a ação parlamentar. Isto aconteceu pela primeira vez na infeliz conferência de Londres de 1871, onde conseguiram aprovar uma resolução que terminava com as seguintes palavras:

“Considerando: que o proletariado só pode permanecer como classe se constituindo em partido político aparte, em oposição a todos os velhos partidos das classes dominantes; que esta constituição do proletariado em partido político é necessária para chegar ao triunfo da Revolução Social e a sua finalidade, a desaparição das classes; que a união das forças proletárias que se vem conseguindo pelas lutas econômicas é também um meio de que se valem as massas na ação contra as forças políticas do Capitalismo; a conferência lembra aos membros da Internacional a necessidade de manter nas lutas operárias indissoluvelmente unidas suas atividades econômicas e políticas”.

Que uma só seção ou federação da Internacional adotasse tal resolução era coisa bem possível, pois só aos seus componentes envolveria o cumprimento dela; mas que o Conselho Executivo a impusesse a todos os componentes da Internacional, e especialmente se tratando de um assunto que não foi apresentado ao Congresso Geral, constituía um proceder arbitrário, em grande contradição com o espírito da Internacional e que tinha necessariamente que levantar o protesto enérgico de todos os elementos individualistas e revolucionários.

O Congresso com vergonha d’A Faia, em 1872, concluiu a obra empreendida por Marx e Engels para transformar a Internacional em uma maquinaria de eleições, incluindo a este efeito uma cláusula que obrigava as diferentes seções a lutar pela conquista do poder político. Foram, então, Marx e Engels os culpados do divisionismo da Internacional, com todas as suas consequências funestas para o movimento operário, e os que pela ação política trouxeram a estagnação e a degeneração do Socialismo.

VIII

Quando se iniciou a revolução da Espanha em 1973, os membros da Internacional – quase todos anarquistas – ignoraram as petições dos partidos burgueses e seguiram seu próprio caminho para a expropriação da terra e dos meios de produção, com um espírito socialmente revolucionário. Organizaram greves gerais e revoltas em Alcoy, San Lúcar de Barrameda, Sevilha, Cartagena e outros lugares, que tiveram de ser sufocadas à força. Mais tempo resistiu a cidade portuária de Cartagena, a qual se manteve nas mãos dos revolucionários por vários meses até que finalmente caiu devido ao fogo dos navios de guerra prussianos e ingleses. Naquele momento Engels atacou duramente no “Fol.-Stat” aos bakuninianos espanhóis e os repreendeu por não querer aderir aos cidadãos republicanos. Como teria o mesmo Engels, se ainda vivesse, criticado seus discípulos comunistas da Rússia e Alemanha!

Depois do célebre Congresso de 1891, quando os dirigentes dos chamados “Jovens” foram expulsos do Partido Socialdemocrata, por levantar a mesma acusação que Lenin dirigia aos “oportunistas” e “kautzkianos”, fundaram estes um partido diferente com um órgão próprio: “Der Socialist” em Berlim. Em princípio, este movimento foi extremamente dogmático e representou ideias quase idênticas às do atual Partido Comunista. Se se lê, por exemplo, o livro de Teistle “O Parlamentarismo e a classe operária”, se encontrarão idênticos conceitos presentes em “O Estado e a Revolução” de Lenin. Igual aos bolcheviques russos e aos membros do Partido Comunista alemão, os socialistas independentes daquele momento rechaçavam os princípios da Democracia e se negavam a participar nos parlamentos burgueses sobre a base dos princípios reformistas do marxismo.

E como falava Engels desses “Jovens” que se compraziam iguais aos comunistas, em acusar os dirigentes do Partido Socialdemocrata de traição ao marxismo? Numa carta a Sorge, em outubro de 1891, faz o velho Engels os amáveis comentários: “Os asquerosos berlinenses se transformaram em acusados em vez de continuarem sendo acusadores e tendo agido como covardes infelizes foram obrigados a trabalhar fora do Partido, se é que desejam fazer algo. Sem dúvida, há entre eles espiões policiais e anarquistas disfarçados que desejam trabalhar secretamente entre nossa gente. Junto a eles há anos, estudantes iludidos e palhaços insolentes de todo tipo. No total são umas duzentas pessoas”.

Seria verdadeiramente curioso saber com que adjetivos simpáticos teria hoje honrado Engels nossos “comunistas”, que se dizem ser “os possuidores dos princípios marxistas”.

IX

Não é possível caracterizar os métodos da velha social-democracia. Em relação a tal ponto Lenin não diz uma só palavra e menos ainda seus amigos alemães. Os socialistas majoritários devem se lembrar deste detalhe sugestivo para demonstrar que são eles os verdadeiros representantes do marxismo; qualquer um que conhece algo de história deve dar a eles a razão. O marxismo foi quem impôs a ação parlamentar à classe operária e marcou a rota da evolução operada no Partido Social-democrata alemão. Só quando isso for compreendido se entenderá que a rota da libertação social nos leva à terra feliz do anarquismo, passando por cima do marxismo.

Reforma política é segunda demão no estado

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Por Gilson Moura Henrique Junior

O uso pelos partidos da ordem e pela esquerda partidária da reforma política como panaceia para a solução dos problemas do país esconde uma preguiça intelectual fortemente aliada ao oportunismo eleitoreiro.

O primeiro problema das propostas de reforma política que ela não é política em seu inteiro teor, ela é uma reforma eleitoral, e tímida. Enquanto reforma não abrange sequer outras formas de políticas fora do eixo eleitoral, mas ainda dentro da institucionalidade, como a expansão dos comitês e conselhos que já existem na esfera municipal, para além de conselhos consultivos ou expansão para as esferas estaduais e federais com ganho de poderes e capilaridade. Enquanto política as propostas de reforma sequer tangenciam uma discussão sobre o caráter democrático do estado e a necessária repactuação deste para que o exercício do poder não seja platônico, onde uma elite dirigente quase intocável conduz a população conforme foi eleita para fazer, nas palavras de Eduardo cunha, presidente da câmara.

E isso ainda sendo discutida a reforma política nos parâmetros reformistas do estado conforme se propõe a esquerda partidária e os partidos da ordem, sequer comecei a debater o problema sob a luz da superação do sistema e do estado, coisa que pelo menos superficialmente os partidos da oposição de esquerda se dizem desejosos.

Sob o ponto de vista para além do estado é preciso dizer que o que se deveria exigir é mais que reforma do estado, que nada mais é que uma segunda demão na pintura exterior do aparato estatal ampliando direitos e deveres sob o ponto de vista eleitoral reduzindo pontual e mediocremente a questão política à financiamento público de campanha, recall e plebiscito.

Até por exigência ecológica é preciso que se exija uma descentralização absoluta do processo decisório sobre economia, energia e gestão a ponto de obrigar a um repensar de produção e consumo a níveis radicais, não por uma preferência ideológica descolada da realidade, mas por absoluta necessidade de manutenção da vida na terra.

Enquanto a economia não for lógica ou ecológica, enquanto a gestão de recursos entendê-los ainda como infinitos e ignorar resíduos, ignorar a ruptura metabólica causada pela extração de recursos e pela geração de resíduos, em escala geométrica e reproduzida de forma praticamente infinitesimal, enquanto a compreensão da casa (oykos+logos) for secundarizada pela administração da casa (oykos+nomos), correremos o risco da casa cair.

E é esse o eixo que grita a necessidade de ir além da reforma da casa, ou de parte dela ou de parte superficial de parte dela, é fundamental que se grite a obrigatoriedade da exposição á população do risco do modelo em curso de gestão da vida das pessoas e recursos para a vida no planeta, para a existência das civilizações e a partir disto é fundamental horizontalizar os processos decisórios, torná-los comunais, organizados de rua a rua, bairro a bairro, vila a vila, cidade a cidade, estado a estado, para que cada ponto onde a ação econômica atinge e afeta, produzindo danos ambientais, sociais, comunitários,etc, tenha poder para decidir sobre seus rumos, para decidir sobre como é afetado, para além da decisão distante de gestores que sequer sabem da existência dos pontos atingidos por suas ações.

Se nem como reforma isso é posto em perspectiva, diante da absoluta necessidade de por em prática uma gestão democrática radical da produção de alimentos, da produção industrial, de energia, e do consumo disso tudo, inclusive sob o ponto de vista da saúde, se isto não é visto como política e parte do que se propõe como reforma para a política, que reforma e que política é essa?

Que política e essa onde diante da absoluta necessidade de, por exemplo, discutirmos a produção de alimentos centralizada e cujo resultado dela percorre milhares de quilômetros para chegar às mesas dos consumidores, recebendo para isso uma carga absoluta de produtos químicos para sua conservação até lá e com eles afetando a saúde dos consumidores, o que ocorre é a omissão, o silêncio e a troca disso por plebiscitos aqui e ali e um recall ou outro?

Que política é essa onde transgênicos e agrotóxicos são naturalizados e entendidos como algo externo à população que no máximo que se terá de acesso á decisão é se um dia vier, no fantástico mundo da institucionalidade, a plebiscito? E como viria? Por que o inteiro teor das leis não pode ser discutido por quem sofre com elas?

Cadê a política dessas reformas?

A grande reforma que daria solução para os problemas do país, dos países, com a democracia só pode ser a reforma definitiva do estado, que é sua superação e substituição por processos horizontais de decisão, organizados em confederações de conselhos organizadas em cantões, pela descentralização da própria ideia artificial de nação, de Brasil, França ou seja lá o que os estados nacionais tomam pra si como se fossem proprietários da população que reside entre as cercas embandeiradas que separam quintais. População esta forçada a se entender como parte de uma ficção, por vezes na base da porrada, que não tem nenhuma raiz na constituição coletiva além de elementos políticos externos à ela, construído nos altos fornos das elites políticas.

Pra que perder tempo com reformas desta ficção? Não é melhor criar uma outra estória, um outro riso, uma outra peça, um outro poema, uma outra canção?

Anarquistas e a Perseguição Internacional

Por Gilson Moura Henrique Junior

A perseguição internacional a anarquistas neste início de século XXI remete à perseguição a anarquistas no início do século XX num exercício superficial de comparação histórica, mas vai mais longe que isso e tem relação profunda com novos quadros conjunturais que incluem a presença de partidos considerados de esquerda e centro esquerda no poder.

Seja na Turquia, na Espanha, no Chile, no Brasil ou em tantos outros lugares no mundo, a perseguição a anarquistas e autonomistas ocorrem de forma a não deixar dúvidas que o estado implementa uma ação consciente para não permitir nenhum tipo de resistência que não seja a consentida.

Toda luta institucional se mantém controlada dentro das regras do estado de direito e da lógica republicana, mesmo com parte dela sendo travada nas ruas, e neste aspecto mantém-se como parte da própria organização política da burguesia, que exerce sua ação dentro do arcabouço das regras da burguesia, dentro do conceito hierárquico e altamente centralizado que é também a lógica de organização estatal.

A luta sindical, as organizações sociais contestatórias, ONGs e até movimentos como o MST e MTST acabam reproduzindo em seu interior a mesma lógica da luta institucional, especialmente sindicatos, que acabam sendo parte da institucionalidade ao lidarem sempre com a mediação do e para com o estado na busca de resolução de seus objetivos e metas táticas ou estratégicas. Neste sentido qualquer luta que saia do âmbito da organização estatal ou para estatal é combatida pelo estado.

Fora deste conjunto de relações com o estado e para estado, lutas inclusive, toda força que não esteja organizada segundo os parâmetros hierárquicos do estado é entendida como alienígena e passível de repressão e exclusão custe o que custar.

Sintomático também é a conduta dos partidos da esquerda socialista na relação com estas perseguições e prisões. Quando não são eles os verdugos e os gendarmes da burguesia, são omissos na relação e na denúncia da suspensão dos direitos políticos e dos direitos humanos para com os militantes anarquistas e autonomistas prisioneiros e processados pelo estado por resistir ao avanço do capitalismo e da repressão.

Seja a militância vegana do Chile, sejam os 23 presos e processados por resistirem à gentrificação do Rio de Janeiro, sejam os anarquistas espanhóis processados pela operação Pandora ou os ambientalistas turcos perseguidos por Erdogan, e nem menciono os curdos que sofrem ataques da Turquia ou do ISIS apoiado pela mesma Turquia de foram “oculta” e “fantasma”, todos fazem parte de um tipo de resistência que busca a horizontalidade e a retirada de suas ações do âmbito da institucionalidade, e todos são perseguidos de forma brutal pelo sistema.

Não é possível que ações como essas, que compõe um cenário internacional de forte questionamento populacional à luta institucional, não teçam uma teia de coordenação de repressão a tudo o que foge da luta institucional.

O caso do Brasil e do Chile são mais graves ainda dado que parte dos comandantes da repressão, sejam os governos federais ou os dos estados, são do Partido dos Trabalhadores, outrora partido socialista e que tinha em seu programa a superação do capital e boa parte dos seus quadros são ex-perseguidos pela ditadura militar que durou de 1964 a 1985, ou, no caso do Chile, de uma consertación de centro-esquerda onda a presidente Michelet foi vítima de perseguição política por Pinochet.

Estes elementos deixam claro que a ação do estado não é isolada e busca centrar o combate pelas forças repressivas às organizações e forças que não atuam no teatro de operações do estado, na institucionalidade burguesa.

É preciso assim que estejamos atentos e fortes para a perseguição política em curso, dado que esta conta com a omissão e cumplicidade da esquerda partidária e que tendem a reforçar o avanço conservador.

Em um cenário de profundo retrocesso, esta perseguição tem poder para desarticular as lutas políticas pra fora da institucionalidade e com isso destruir mais do que a luta de anarquistas e autonomistas, mas todas elas e mais, permitir que as forças da reação assumam mais do que ameaçam hoje.

Esse tipo de ataque mundial às lutas “sem líder” são sintomas de uma profunda ofensiva do aparato estatal e do capital contra qualquer tipo de horizontalidade e democracia real. E é sintomático o silêncio da esquerda partidária sobre estas ações do aparato estatal na direção de anarquistas e autonomistas, quando não é cúmplice o silêncio.

A turba anti-partido e que busca ações por fora da institucionalidade é um profundo corte na construção estratégica da luta institucional e aponta para a construção de organizações independentes e horizontais nas periferias, nas ocupações, que independem de lideranças e de mediações com o estado e o confrontam com a autonomia e autogestão como forma de libertação e de combate ao estado.

Esse corte metodológico é adversário da centralização e do centralismo hierárquico das organizações partidária, sindicais e da maioria dos movimentos sociais que vivem na órbita da esquerda partidária.

Sendo adversário da centralização e do centralismo hierárquico da esquerda partidária, o corte metodológico anarquista e autonomista é um inimigo da busca de popularização de programas de conciliação de classe em andamento pela esquerda partidária, cujo desejo de rompimento e transformação para na ameaça de perda de espaço eleitoral e de controle sobre a massa populacional que chamam de povo e que buscam liderar de forma vertical e autoritária.

Filhos da cultura hierárquica de fábrica os partidos, sindicatos e movimentos acabam por serem simulacros da organização estatal e reprodutores de sua cultura de domínio vertical e autoritário da população. Qualquer ameaça ao eixo de sua ação política e seu próprio cerne organizativo é tratado como um inimigo pior que o próprio capitalismo.

E é por isso que precisamos de um senso de urgência que arme cada coletivo, cada organização horizontal, cada frente de lutas de antídotos e de proteção contra estados, partidos, sindicatos e movimentos que são cúmplice da repressão mundial a anarquistas e autonomistas. Ao mesmo tempo em que precisamos entender que isso também é um sintoma do crescimento da repulsa ao estado no seio da população.

Por isso precisamos nos proteger e avançar, buscando criar a cada coletivo, em cada rua, bairro e cidade meios de construirmos conselhos, coletivos e organizações libertárias que confrontem mais e mais a hierarquização estatal e sua reprodução que nos reprime.

O Movimento Anarcopunk e a luta anti-fascista no Brasil – Parte 1: anos 90

Postado em MAP-SP, Movimento Anarcopunk de São Paulo, 26 de fevereiro de 2015

Sem Título-1* por Imprensa Marginal

O Movimento Anarco Punk no Brasil é fruto de uma crescente politização dentro de parte da cena punk que se dá em meados dos anos 80 e início dos 90. Uma de suas principais bandeiras de luta, desde os primórdios, foi o combate ao nazi-fascismo, o racismo e o preconceito. Em muitas das localidades onde se formou o Movimento Anarco Punk, desenvolveu-se também um trabalho dentro da luta anti-fascista e anti-racista. Tal bandeira de luta já era levantada anteriormente no meio anarquista em diversas partes do mundo desde o surgimento das primeiras tentativas de ascensão de ideologias de extrema direita como o fascismo e o nazismo. No Brasil não foi diferente, e o surgimento do integralismo gerou um fervoroso combate por parte do movimento anarquista que a partir da década de 30 ganha muita intensidade.

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O início dos anos 90 é marcado pela ocorrência de diversos casos de agressão e violência protagonizados por grupos de skinheads White Powers, Carecas do Subúrbio e Carecas do ABC. Esse contexto contava também com a aparição e evidência na mídia de políticos de extrema direita como Armando Zanini Junior, presidente do Partido Nacionalista Revolucionário Brasileiro (PNRB). Assim, desde o final dos anos 80 vão se intensificando cada vez mais as relações entre skinheads e organizações políticas integralistas e nazistas, culminando na entrada de Carecas nos quadros do PNRB e em ações públicas como, por exemplo, o evento de homenagem ao aniversário de cem anos do nascimento de Hitler, que ocorreu em 1989 com participação de Carecas do Subúrbio, Carecas do ABC, Ação Integralista e integrantes de outros partidos nacionalistas na Praça da Sé.

Em meio a este forte processo de tensão e buscando formas efetivas de combater a ação nazi-fascista destes grupos, anarcopunks partiram em busca de contatos com outros movimentos sociais e agrupações que também pudessem estar de alguma forma envolvidas no combate ao avanço da extrema direita. Surgia a percepção de que somente por meio desta parceria poderiam fazer frente à crescente ação dos grupos de extrema direita e desenvolver uma ação efetiva de combate. Em 1992, ante ao ataque de skinheads White Power à Rádio Atual, de programação dirigida à comunidade nordestina em São Paulo, e logo após a realização de uma edição do programa “Documento Especial” que deu voz aos neonazistas de São Paulo, diversos movimentos sociais anti-racistas se reúnem para uma discussão conjunta no mês de outubro. Entre novembro e dezembro o Movimento Anarcopunk realiza pedágios de rua para conseguir dinheiro para confecção de faixas e panfletos para uma campanha anti-fascista, e no dia 12 de dezembro é organizada uma passeata. Pouco depois, em 1993, com a morte do estudante negro Fábio dos Santos em Santo André, em decorrência de espancamento por 30 skinheads, este processo de atuação política do Movimento Anarco Punk se amplia, ocorrendo com maior força os contatos com outros movimentos sociais para parcerias de combate. Vai tomando corpo a criação de um fórum contra a ação dos neonazistas, com participação tanto de anarcopunks, quanto de diversos outros grupos, como movimentos negros, de mulheres, nordestinos, organizações judaicas, grupos de pesquisa, movimentos populares, entre outros. A reunião ocorreu no Conselho Participativo da Comunidade Negra de São Paulo, e o resultado foi uma grande passeata com cerca de 4 mil pessoas no dia 13 de maio de 1993. Grupos e movimentos punks, negros, feministas, e de atuação artística, cultural e política se reuniram em frente à embaixada sul-africana na Av. Paulista/MASP, para uma passeata anti-racista. A passeata passou pela Av. Brigadeiro e foi até a Praça da Sé, acabando com apresentação musical de diversas bandas.  No decorrer de todo o ato foram feitas muitas falas contra a atuação de grupos nazi-fascistas de Carecas e White Powers. Infelizmente, passado algum tempo, a dimensão inicial do fórum anti-racista foi esvaziado, e os meios de comunicação iam deixando de divulgar o caso.

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Este momento marcou também o início dos trabalhos do projeto ACR – Anarquistas Contra o Racismo, que com o passar do tempo teve formação  de núcleos em diversas localidades para além de São Paulo – como Santos, Criciúma, Rio de Janeiro e Curitiba. A proposta era, dentro da cena punk, incitar a politização no que se refere à questão anti-fascista e, para muito além, estreitar laços com outros movimentos sociais e ampliar a rede de combate ao fascismo de forma concreta. Neste período há forte relação com movimentos LGBT, negros e judaicos, e realização de atividades diversas sobre a questão. Respeitavam-se as peculiaridades específicas de cada movimento, buscando construir a partir dos pontos de afinidade parcerias, compartilhamento de informações e apoio em ações de combate aos grupos e instituições nazi-fascistas nas diversas localidades.

Já era claro para o Movimento Anarco Punk e o Projeto ACR que o combate ao fascismo não poderia se limitar apenas a grupos skinheads, que em última instância eram apenas uma pequena parte de um problema muito maior, que envolvia setores diversos da sociedade com atuação em muitos âmbitos diferentes. O Projeto ACR também não acreditava no simples uso da violência como estratégia de combate, visto que a apologia e uso da violência, o culto à força física e a intolerância extremada são características próprias destes grupos de skinheads nazi-fascistas, e não seria possível combate-los a partir de práticas semelhantes. Ainda assim, as táticas de auto-defesa à esses grupos sempre estiveram em pauta, mas para além disso anarcopunks buscaram construir parcerias com vários setores da sociedade, para que em conjunto fossem traçadas estratégias eficientes para coibir a ação da extrema direita e combater as manifestações cotidianas de racismo na sociedade, propondo o respeito, a valorização da diversidade e da liberdade.

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Diversos eventos públicos foram organizados nesta época, com mostras de vídeos, debates, palestras, panfletagens e ciclos de atividades anti-fascistas. Em novembro de 1994, por exemplo, foi organizado o Ciclo Anti-Fascista, uma série de três eventos com apresentações de bandas anarcopunks, palestras com a Unegro, Ben Abrahan (comunidade judaica ), passeata de rua e outras atividades. Foi um importante evento de discussão da luta anti-fascista que ia se tornando cada vez mais concreta e consistente.  Outro ciclo de atividades e debates sobre a questão foi organizado em 1995 em Curitiba pelo Grupo Anarquista Via Direta de Ação (GRAVIDA), contando com seis palestras, debates, exposições e outras atividades de 30 de outubro a 02 de dezembro. Também foram organizadas, no decorrer dos anos 90, diversas atividades de vídeo-debate anti-fascistas e eventos musicais contra o racismo.

Os núcleos ACR de cada localidade mantinham contato frequente entre si, realizando encontros gerais periódicos e fazendo circular os informes locais mensalmente, e organizaram diversas manifestações públicas e atividades de debate, editaram boletins e materiais de denúncia, produziram dossiês, e ainda criaram um forte canal de diálogo com a imprensa e outros movimentos. Agindo localmente, cada um dos grupos articulava materiais de denúncia e dossiês, realizava manifestações públicas e outras atividades; em conjunto, também organizavam campanhas coletivas, materiais impressos e outras ações que ultrapassavam as fronteiras de cada localidade. Dentre os casos que tiveram forte mobilização nos anos 90 estão a morte de Fábio dos Santos em Santo André em 1993; o assassinato de Carlos Adilson Siqueira por skinheads Carecas do Brasil em 1996 na cidade de Curitiba; a realização de um encontro neonazista de skinheads do Paraná também em 1996; dentre tantos outros. Em março de 96, alguns punks foram abordados pela polícia e, enquanto eram revistados, o moicano de um dos punks foi arrancado à faca por um policial que gritava “Oi!” e “Skin!”, dizendo “não gosto de punks e muito menos de negros”. Depois que os policiais saíram, alguns punks tiraram foto do camburão, prestaram queixa dos policiais e denunciaram na imprensa. O punk agredido levou vinte pontos na cabeça e dois dos policiais foram afastados conforme nota da imprensa oficial. O ACR desenvolveu campanha de denúncia sobre esta agressão.

A primeira edição da Parada Gay em São Paulo, em 1997, também teve participação ativa do Movimento Anarcopunk, que ficou diretamente envolvido na questão da segurança do evento no combate a possíveis ataques durante a manifestação.

Outra campanha que teve ampla e ativa participação dos núcleos ACR e anarcopunks da época foi a questão de Mumia Abu-Jamal, militante negro afro-americano que foi injustamente acusado pelo assassinato de um policial branco e, após um julgamento pautado em inúmeras inconsistências, permanece preso até os dias de hoje, completando mais de 30 anos no cárcere e a maior parte deste tempo no corredor da morte. Foram realizados eventos, debates, publicações e atividades diversas que pudessem dar visibilidade a este emblemático caso do racismo estatal.

Brasil afora, outros coletivos e iniciativas anti-fascistas foram se formando, como é o caso do Coletivo Monanoz, que surge em 1995 em Florianópolis por anarcopunks que tinham como intuito a formação de um grupo de estudos sexuais e realização de atividades de denúncia e combate à homofobia e ao nazi-fascismo. O frequente intercâmbio entre os grupos anti-fascistas gerou também campanhas conjuntas e parcerias. Em outubro de 1995, um encontro de grupos do Projeto ACR no Rio de Janeiro tem como resultado a união dos materiais de denúncia existentes em cada localidade para criação de um grande dossiê anti-fascista, a ser utilizado como instrumento de combate a ação dos grupos nazi-fascistas. Nessa época também se intensificam as discussões sobre a luta afro-punk e sua importância.

Em meio a esse trabalho ocorreram por diversas vezes casos de ameaças ou violência por parte de grupos neonazistas. Dois dos coletivos anarcopunks que sofreram ameaças foram o KRAP (Koletivo de Resistência Anarco Punk) e o Coletivo Altruísta, ambos tendo recebido cartas de ameaça assinadas por grupos skinheads em meados da década de 90. Houve também casos de agressão física, que tornaram cada vez mais importante a prática da auto-defesa por parte de militantes anarcopunks. Em geral, as ações coletivas de resposta também seguiram politicamente no sentido de tornar públicas as ameaças e agressões sofridas, denunciar o caráter nazi-fascista dos grupos de extrema-direita, e reafirmar o engajamento e comprometimento com a luta anti-fascista e anti-racista, o que gerou apoio direto de diversos grupos e indivíduos.

Por questões diversas, muitos dos núcleos do Projeto Anarquistas Contra o Racismo se dissolveram durante os últimos anos da década de 90, desta época restando ativo o núcleo de Criciúma/SC, que desenvolveu trabalhos ligados a esta questão em escolas, junto a comunidade LGBT, negra, pessoas usuárias de CAPS, entre outros, e possui um grande acervo de materiais anti-fascistas. As experiências que estes núcleos obtiveram no decorrer de seu trabalho, porém, foram grandes contribuições para as movimentações anti-fascistas que surgiriam a seguir. Ainda assim, as discussões e ações de denúncia e combate referentes à luta anti-fascista permaneceram vivas, seja por meio de fanzines e panfletos, discussões e debates, seja por meio de ações de rua e manifestações.

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A década de 90 chegava ao fim e os anos subsequentes não seriam menos problemáticos. Diversos casos de agressão protagonizados por grupos de skinheads e nazi-fascistas se faziam frequentes, e um caso muito emblemático ocorre então em fevereiro de 2000: a morte do adestrador de cães Edson Neris, morto a chutes e golpes de soco inglês por dezenas de Carecas do ABC na Praça da República. O caso, de extrema brutalidade e intolerância, gera reações de repúdio e comoção de diversos grupos lgbt, de direitos humanos, agrupações punks e libertárias, ocorrendo manifestações conjuntas e atos diversos. Na ocasião, anarcopunks participam das mobilizações, organizando atividades de denúncia. A partir deste ano, começa a se formar a Jornada Anti-Fascista, que passa a ser organizada anualmente, durante o mês de fevereiro, e acontece até os dias de hoje. Inicia-se como uma manifestação de um único dia para, com o passar dos anos, tornar-se um mês inteiro de atividades sobre a questão, com apresentação de bandas, debates, palestras, vídeos, atos de rua e outros. Ultrapassando os limites de São Paulo, anarcopunks de outras localidades organizaram também atividades antifascistas durante o mês de fevereiro. A morte de Carlos Adilson em 1996, no mês de março, fará com que posteriormente, sejam organizados em Curitiba atividades do Março Anti-Fascista, com proposta semelhante à Jornada criada em São Paulo.

Continua…

 

Escuta, Marxista!

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Fonte: Protopia

Murray Bookchin

«Um dos mais conhecidos panfletos de Murray Bookchin, Escuta, Marxista! visava predominantemente estudantes influenciados pelo Maoist Progressive Labor Party[1] que estava fortemente ativo (altamente destrutivo)  no movimento de massa Estudantes para uma Sociedade Democrática nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970. Suas críticas ao “marxismo” e à terminologia marxista não são aplicáveis ao marxismo por inteiro, mas algumas se aplicam às políticas cruas do PLP. A despeito dessa significativa incompletude, reproduzimos o documento aqui devido a sua importância em termos de esquerda e de esquerda libertária nos EUA»

Toda a velha bobagem dos anos trinta está novamente de volta à besteira sobre a “linha de classe”, o “papel da classe trabalhadora”, o “revolucionário profissional treinado”, o “partido de vanguarda”, e a “ditadura do proletariado”. Tudo está de volta novamente, e de uma forma mais vulgarizada que nunca. O Maoist Progressive Labor Party não é o único exemplo, é somente o pior. Alguns cheiram à mesma besteira em vários descendentes da SDS[2], e nos clubes marxistas e socialistas em campi, sem falar nos grupos trotskistas, os Clubes da Internacional Socialista e a Juventude contra Guerra e Fascismo.

Nos anos trinta, isso ao menos era compreensível. Os Estados Unidos estavam paralisados por uma crise econômica crônica, a mais profunda e mais longa de sua história. As únicas forças vivas que pareceram estar batendo nos muros do capitalismo foram as grandes organizações dirigidas do CIO [Congresso de Organizações Industriais], com suas dramáticas greves sentadas, sua militância radical, e seus confrontos sangrentos com a polícia. A atmosfera política através do mundo inteiro estava carregada pela eletricidade da Guerra Civil Espanhola, a última das revoluções clássicas de trabalhadores, quando todo setor radical na esquerda americana podia se identificar com suas próprias colunas de milícia em Madri e Barcelona. Isso foi há trinta anos. Era um tempo em que qualquer um que gritasse “Faça amor, não guerra” seria tido como louco; o grito de então era “Faça empregos, não guerra”; o grito de uma idade atormentada pela escassez, quando o alcance do socialismo requeria “sacrifícios” e um “período de transição” para uma economia de abundância material. Para um jovem de dezoito anos em 1937 o próprio conceito de cibernética teria parecido com a mais fantástica ficção científica, uma fantasia comparável a visões de viagens espaciais. Aquele jovem de dezoito anos atingiu agora cinquenta anos de idade, e suas raízes estão fixadas em uma era tão remota a ponto de diferir qualitativamente das realidades do presente período nos Estados Unidos. O próprio capitalismo mudou desde então, introduzindo crescentes formas estratificadas que poderiam ser antecipadas somente obscuramente trinta anos atrás. E agora estão nos pedindo para voltarmos atrás para a “linha de classe”, as “estratégias”, os “revolucionários profissionais” e as formas organizacionais daquele distante período em quase óbvia ignorância dos novos assuntos e possibilidades que emergiram.

Quando diabos vamos criar finalmente um movimento que olhe para o futuro ao invés do passado? Quando começaremos a aprender do que está nascendo ao invés do que está morrendo? Marx, pelo seu crédito que perdura, tentou fazer isso no seu próprio tempo; ele tentou evocar um movimento futurista no movimento revolucionário dos anos 1840 e 1850. “A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro da viva”, ele escreveu em “O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”. “E quando elas parecem estar engajadas em revolucionar a si mesmas e as coisas, em criar algo inteiramente novo, precisamente em tais épocas de crise revolucionária, eles ansiosamente conjuram os espíritos do passado a seu serviço e pegam emprestado seus nomes, gritos de guerra e costumes para apresentar a nova cena da história do mundo nessa fantasia saudosista e linguagem emprestada. Assim como Lutero usou a máscara do Apóstolo Paulo, a revolução de 1789 a 1814 se vestiu alternativamente como a República Romana e o Império Romano, e a revolução de 1848 não soube nada mais que parodiar, por sua vez, 1789 e a tradição de 1793 a 1795… A revolução social do século dezenove não pode buscar sua poesia no passado, mas apenas no futuro. Ela não pode começar consigo mesmo antes de se ver sem toda superstição relativa ao passado… Para chegar ao seu conteúdo, a revolução do século dezenove tem de deixar os mortos enterrarem seus mortos. Lá a frase ia além do seu conteúdo, aqui o conteúdo vai além da frase”.

O problema é algo diferente hoje, quando chegamos ao século vinte? Mais uma vez os mortos estão caminhando entre nós – ironicamente, cobertos com o nome de Marx, o homem que tentou enterrar os mortos do século dezenove. Assim a revolução de nossos dias não pode fazer nada melhor que uma paródia, sucessivamente, da Revolução de Outubro de 1917 e da Guerra Civil de 1918-1920, com sua “linha de classe”, seu “Partido Bolchevique”, sua “ditadura do proletariado”, sua moralidade puritana, e até mesmo sua frase, “poder soviético”. A revolução completa, de todos os lados de nossos dias, pode finalmente resolver a “questão social”, “histórica”, nascida de escassez, dominação e hierarquia, segue a tradição das revoluções parciais, incompletas, de apenas um lado do passado, a qual meramente mudou a forma da “questão social”, substituindo um sistema de dominação e hierarquia por outro. Em uma época em que a própria sociedade burguesa está no processo de desintegrar todas as classes sociais que uma vez deram-lhe estabilidade, ouvimos as vazias exigências de uma “linha de classe”. Em uma época em que todas as instituições políticas da sociedade hierárquica estão entrando em um período de profunda decadência, ouvimos as vazias exigências de um “partido político” e um “estado dos trabalhadores”. Em uma época em que a hierarquia como tal está sendo trazida à discussão, ouvimos as vazias exigências de “revolucionários profissionais”, “vanguardas” e “líderes”. Em uma época em que centralização e estado têm sido trazidos ao mais explosivo ponto de negatividade histórica, ouvimos as vazias exigências de um “movimento centralizado” e um “ditadura do proletariado”.

Essa perseguição de segurança no passado, essa tentativa de encontrar em abrigo em um dogma fixo e em uma hierarquia organizacional como substitutos do pensamento e práticas criativas é uma triste prova de quão pouco tantos revolucionários são capazes de “revolucionar a si mesmos e as coisas”, muito menos do que revolucionar a sociedade como um todo. O conservadorismo profundamente enraizado dos “revolucionários” do PLP [3] é na maior parte dolorosamente evidente; o líder autoritário e a hierarquia substituem o patriarcado e a burocracia escolar; a disciplina do movimento substitui a disciplina da sociedade burguesa; o código autoritário de obediência política substitui o estado; a crença na “moralidade proletária” substitui as tradições de puritanismo e a ética de trabalho. A velha essência de sociedade exploradora reaparece em novas formas, coberta com uma bandeira vermelha, decorada com retratos de Mao (ou Castro ou Che) e adornada com o pequeno “Livro Vermelho” e outras ladainhas sagradas.

A maior parte das pessoas que permanecem no PLP hoje merecem isso. Se eles podem viver com um movimento que cinicamente dubla seus próprios slogans em fotografias de piquetes do DRUM[4]; se eles podem ler uma revista que pergunta se Marcuse é um “fujão ou um tira”; se eles podem aceitar uma “disciplina” que os reduz a autômatos programados e inexpressivos; se eles podem usar as técnicas mais repulsivas (técnicas pegas emprestadas da cloaca das operações de negócios burguesas e do parlamentarismo) para manipular outras organizações; se eles podem virtualmente parasitar cada ação e situação para meramente promover o crescimento de seu partido – mesmo que isso signifique serem derrotados pela própria ação – então eles estão abaixo de qualquer crítica. Para essas pessoas, para todos eles comunistas e atacá-los dizendo que são comunistas é uma forma de macarthismo ao contrário. Para parafrasear a viva descrição de Trótski sobre o stalinismo, eles são a sífilis do movimento jovem radical hoje. E para a sífilis há um único tratamento – um antibiótico, não um argumento.


Nossa preocupação aqui é com aqueles honestos revolucionários que se voltaram ao marxismo, leninismo ou trotskismo porque eles seriamente procuram uma perspectiva social coerente e uma estratégia eficiente de revolução. Nós também estamos preocupados com aqueles que são intimidados pelo repertório teórico da ideologia marxista e estão dispostos a ter interesse passageiro por alternativas mais sistemáticas. A essas pessoas nos dirigimos como irmãos e irmãs e pedimos uma discussão séria e uma ampla reavaliação. Acreditamos que o marxismo parou de ser aplicável à nossa época não porque é muito visionário ou revolucionário, mas porque não é visionário ou revolucionário o bastante. Acreditamos que ele nasceu em uma era de escassez e foi apresentado como uma brilhante crítica daquela era, especificamente do capitalismo industrial, e que uma era está nascendo, a qual o marxismo não abarca adequadamente e cujos contornos ele apenas parcialmente antecipou. Argumentamos que o problema não é “abandonar” o marxismo, ou “anulá-lo”, mas transcendê-lo dialeticamente, como Marx transcendeu a filosofia hegeliana, a economia ricardiana e as táticas e modos de organização blanquistas. Devemos argumentar que em um estágio mais avançado do capitalismo que aquele com que Marx lidou um século atrás, e em um estágio mais avançado de desenvolvimento tecnológico do que Marx jamais poderia ter claramente antecipado, uma nova crítica é necessária, a qual por sua vez produz novos modos de luta, ou organização, de propaganda e estilo de vida. Chame esses novos modos do que quiser. Escolhemos chamar essa nova abordagem pós-escassez de anarquismo, por várias forçadas razões que se tornarão mais evidentes nas páginas que seguem.

Tabela de conteúdo

 [esconder]

[editar]Os limites históricos do marxismo

A ideia de que um homem cujas grandes contribuições teóricas foram feitas entre 1840 e 1880 poderia “antever” a dialética inteira do capitalismo é, a julgar pela aparência, completamente absurda. Se ainda podemos aprender muito das compreensões de Marx, podemos aprender até mesmo mais dos erros inevitáveis de um homem que era limitado por uma era de escassez material e uma tecnologia que mal envolvia o uso da energia elétrica. Podemos aprender o quão diferente nossa própria era é daquela de toda história do passado, o quão qualitativamente novas são as potencialidades que nos confrontam, o quão únicas são as questões, análises e práticas que estão diante de nós se estamos para fazer uma revolução e não um outro aborto histórico.

O problema não é que o marxismo é um “método” que tem de ser reaplicado a “novas situações” ou que o “neo-marxismo” tem de ser desenvolvido para superar as limitações do “marxismo clássico”. A tentativa de resgatar a linhagem do marxismo enfatizando o método mais que o sistema ou acrescentar “neo” a uma palavra sagrada é pura mistificação se todas as conclusões práticas do sistema contradizem esses esforços.[5] Ainda hoje isso é precisamente o estado das coisas na exegese marxista. Os marxistas apoiam-se no fato de que o sistema provê uma brilhante interpretação do passado enquanto propositadamente ignora suas características completamente enganosas no lide com o presente e com o futuro. Eles citam a coerência que o materialismo histórico e a análise de classe dão à interpretação da história, as compreensões econômicas que o Capital provê dentro do desenvolvimento do capitalismo industrial, e a inteligência das análises de Marx das primeiras revoluções e das conclusões táticas que ele estabeleceu, sem outrora reconhecer que qualitativamente surgiram novos problemas que nunca existiram nos dias dele. É concebível que problemas históricos e métodos de análise de classe baseados inteiramente em uma escassez inevitável possa ser transportado para uma nova era de abundância em potencial? É concebível que uma análise econômica focada primariamente em um sistema “livremente competitivo” do capitalismo industrial possa ser transferida para um sistema gerenciado de capitalismo, onde estado e monopólios unem-se para manipular a vida econômica? É concebível que um repertório estratégico e tático formulado em período em que aço e carvão constituíam a base da tecnologia industrial possam ser transferidos para uma época baseada novas fontes de energia radicalmente novas, na eletrônica e na cibernação?

Como resultado dessa transferência, um corpo teórico que era libertador um século atrás torna-se uma camisa de força hoje. Pedem-nos para focar na classe trabalhadora como o “agente” da mudança revolucionário no momento em que o capitalismo visivelmente antagoniza e produz revolucionários virtualmente em todos os estratos da sociedade, particularmente entre os jovens. Pedem-nos para guiarmos nossos métodos táticos por uma visão de uma “crise econômica crônica”, apesar do fato de que tal crise esteve iminente nos últimos trinta anos.[6] Pedem-nos para aceitar uma “ditadura do proletariado” – um longo “período de transição” cuja função não é meramente a supressão de contrarrevolucionário, mas, acima de tudo o desenvolvimento de uma tecnologia de abundância – em um período em que uma tecnologia de abundância está ao alcance da mão. Pedem-nos para orientarmos nossas “estratégias” e “táticas” entre pobreza e miséria material em um período em que o sentimento revolucionário está sendo gerado pela banalidade da vida sob condições de abundância material. Pedem-nos para estabelecer partidos políticos, organizações centralizadas, hierarquias e elites “revolucionárias”, e um novo estado em um período em que instituições políticas como tais são decadentes e em que centralismo, elitismo e o estado estão sendo trazidos à tona em uma escala que nunca ocorreu antes na história da sociedade hierárquica.

Pedem-nos, em suma, para retornar ao passado, para diminuir ao invés de crescer, para forçar a palpitante realidade de nossos tempos, com nossas esperanças e promessas, aos decadentes preconceitos de uma idade ultrapassada. Pedem-nos para operar com princípios que foram ultrapassados não apenas teoricamente, mas pelo próprio desenvolvimento da sociedade. A história não estancou desde Marx, Engels, Lênin e Trótski morreram, nem seguiu a direção simplista que foi traçada pelos pensadores – mesmo que brilhantes – cujas mentes ainda tem raízes no século XIX ou nos primeiros anos do XX. Vimos o próprio capitalismo realizar muitas das tarefas (incluindo o desenvolvimento de uma tecnologia de abundância) que eram tidas como socialistas; vimos-no “nacionalizar” a propriedade, fundir a economia com o estado sempre que necessário. Vimos a classe trabalhadora neutralizada como o “agente da mudança revolucionária”, embora ainda lutando com uma estrutura burguesa por mais salário, menos horas e pequenos benefícios. A luta de classes no sentido clássico não desapareceu; ela teve um destino pior sendo cooptada pelo capitalismo. A luta revolucionária dentro dos países de capitalismo avançado tornou-se historicamente um novo terreno: ela tornou-se uma luta entre uma geração de jovens que não conheceram crise econômica crônica, e a cultura, valores, e instituições de uma geração mais antiga e conservadora cujas perspectivas de vida foram moldadas pela escassez, culpa, renúncia, o trabalho ético e a busca de segurança material. Nossos inimigos não são somente a burguesia visivelmente entrincheirada e o aparato estatal, mas também uma perspectiva que encontra seu apoio entre liberais, social-democratas, os subordinados de uma mídia de massa corrupta, os partidos “revolucionários” do passado, e, doloroso como possa ser para os acólitos do marxismo, o trabalhador dominado pela hierarquia da fábrica, pela rotina industrial, e pela ética do trabalho. A questão é que as divisões agora virtualmente suprimem todas as linhas de classe tradicionais e levantam um espectro de problemas que nenhum dos marxistas, baseando-se em analogias com sociedades da escassez, poderia prever.

[editar]O mito do proletariado

Coloquemos de lado todos os fragmentos ideológicos do passado e olhemos para as raízes teóricas do problema. Para a nossa época, a maior contribuição de Marx ao pensamento revolucionário é sua dialética do desenvolvimento social. Marx desnudou o grande movimento desde o comunismo primitivo através da propriedade privada até o comunismo na sua mais elevada forma – uma sociedade comunal apoiada em uma tecnologia libertadora. Nesse movimento, de acordo com Marx, o homem passa da dominação do homem pela natureza para a dominação do homem pelo homem, e finalmente à dominação da natureza pelo homem[7] e da dominação social dela. Dentro desta dialética maior, Marx examina a dialética do próprio capitalismo – um sistema social que constitui o último “estágio” histórico na dominação do homem pelo homem. Aqui, Marx não somente faz profundas contribuições ao pensamento revolucionário contemporâneo (particularmente em sua brilhante análise da relação da mercadoria), mas também exibe as limitações de tempo e lugar que têm um papel tão restritivo em nossa própria época.

A mais séria dessas limitações emerge da tentativa de Marx de explicar a transição do capitalismo para o socialismo, de uma sociedade de classes para uma sociedade sem classes. É vitalmente importante enfatizar que essa explicação tinha origem quase que inteiramente na analogia com a transição do feudalismo para o capitalismo – isto é, de uma sociedade de classes para outra sociedade de classes, de um sistema de propriedade para outro. Do mesmo modo, Marx aponta que assim como a burguesia desenvolveu-se dentro do feudalismo como resultado da cisão entre cidade e campo (mais precisamente, entre ofício e agricultura), assim o proletariado moderno desenvolveu-se dentro do capitalismo como resultado do avanço da tecnologia industrial. Ambas as classes, disseram-nos, desenvolveram interesses sociais próprios – de fato, interesses sociais revolucionários que as lançam contra a antiga sociedade na qual foram geradas. Se a burguesia obteve controle sobre a vida econômica muito antes de destruir a sociedade feudal, o proletariado, por sua vez, obtém seu próprio poder revolucionário pelo fato de ser “disciplinado, unido, organizado” pelo sistema da fábrica.[8] Em ambos os casos, o desenvolvimento de forças produtivas torna-se incompatível com o sistema tradicional de relações sociais. “O revestimento está rompido”. A nova sociedade é substituída pela nova.

A questão crítica com que nos deparamos é a seguinte: podemos explicar a transição de uma sociedade de classes para uma sociedade sem classes através da mesma dialética que considera a transição de uma sociedade de classes para outra? Esse não é um problema teórico que envolve o julgamento de abstrações lógicas, mas um assunto muito real e concreto para nossa época. Há diferenças profundas entre o desenvolvimento da burguesia sob o feudalismo e o desenvolvimento do proletariado sob o capitalismo que Marx ou falhou por antecipar ou nunca encarou claramente. A burguesia controlava a vida econômica muito antes de tomar o poder estatal; ela tornou-se a classe dominante material, cultural e ideologicamente, antes de afirmar sua dominação política. O proletariado não controla a vida econômica. A despeito de seu papel indispensável no processo industrial, a classe trabalhadora industrial não é nem mesmo a maioria da população, e sua posição econômica estratégica está diminuindo pela cibernação e outros avanços tecnológicos.[9] Por isso, é preciso um ato de alta consciência para o proletariado usar seu poder para alcançar uma revolução social. Até agora, o alcance dessa consciência foi bloqueado pelo fato de que o meio da fábrica é uma das mais entrincheiradas arenas da ética do trabalho, de sistemas hierárquicos de gestão, de obediência a líderes, e, em tempos recentes, de produção empenhada a mercadorias supérfluas e armamentos. A fábrica não serve apenas para “disciplinar”, “unir” e “organizar” os trabalhadores, mas também para fazê-lo de um modo completamente burguês. Na fábrica, a produção capitalista não apenas renova as relações sociais do capitalismo com cada dia de trabalho, como observou Marx, ela ainda renova a psique, ideias, valores e ideologias do capitalismo.

Marx percebeu suficientemente esse fato para procurar razões mais fortes que o mero fato da exploração ou que conflitos sobre salários e horas de trabalho para impulsionar o proletariado à ação revolucionária. Em sua teoria geral de acumulação capitalista, ele tentou delinear as severas e objetivas leis que forçam o proletariado a assumir um papel revolucionário. Do mesmo modo, ele desenvolveu sua famosa teoria da imiseração: a competição entre capitalistas leva-os a diminuir os preços dos outros, o que, por sua vez, leva a uma contínua redução de salários e ao absoluto empobrecimento dos trabalhadores. O proletariado é compelido a se revoltar porque, com o processo de competição e de centralização do capital, “cresce a massa de miséria, opressão, escravidão e degradação”.[10]

Mas o capitalismo não estancou desde os tempos de Marx. Escrevendo em meados do século XIX, não se pode esperar que Marx compreendesse todas as consequências de seus entendimentos sobre a centralização do capital e o desenvolvimento da tecnologia. Não se pode esperar que ele tivesse previsto que o capitalismo se desenvolveria não somente do mercantilismo para a forma industrial dominante de seu tempo – dos monopólios comerciais ajudados pelo Estado para unidades industriais altamente competitivas – mas mais, que com a centralização do capital, o capitalismo retornasse às suas origens mercantilistas em um nível mais alto de desenvolvimento e reassumisse a forma monopolista com ajuda estatal. A economia tende a se fundir com o Estado e o capitalismo começa a “planejar” seu desenvolvimento, ao invés de deixá-lo exclusivamente para a interação de competição das forças do mercado. Para estar seguro, o sistema não abole a luta de classes tradicional, mas manobra para contê-la, usando seus imensos recursos tecnológicos para assimilar as partes mais estratégicas da classe trabalhadora.

Assim, o impulso inteiro da teoria da miséria é diminuído e, nos Estados Unidos, a luta de classes tradicional falha em se tornar a guerra de classes. Ela permanece inteiramente dentro de dimensões burguesas. O marxismo, na verdade, torna-se uma ideologia. É assimilado pelas mais avançadas formas de movimento de Estado capitalista –particularmente a Rússia. Por uma ironia incrível da história, o “socialismo” marxista torna-se, em grande parte, o verdadeiro Estado capitalista que Marx não conseguiu antecipar na dialética do capitalismo.[11] O proletariado, ao invés de desenvolver-se como uma classe revolucionária dentro do ventre do capitalismo, torna-se um órgão dentro do corpo da sociedade burguesa.

A pergunta que devemos fazer neste recente momento da história é se uma revolução social que pretende alcançar uma sociedade sem classes pode emergir de um conflito entre classes tradicionais em uma sociedade de classes, ou se tal revolução social pode emergir somente da decomposição das classes tradicionais, realmente da emergência de uma “classe” inteiramente nova cuja verdadeira essência é que ela é uma não-classe, um crescente estrato de revolucionários. Na tentativa de responder essa questão, podemos aprender mais retornando à dialética mais ampla que Marx desenvolveu para a sociedade humana como um todo do que do modelo que ele pegou emprestado da passagem da sociedade feudal para a capitalista. Assim como os clãs de consanguinidade começaram a se dividir em classes, em nossos dias há uma tendência de as classes se decomporem em subculturas inteiramente novas que têm semelhança com formas não capitalistas de relacionamentos. Elas não mais são grupos econômicos estritamente; refletem, na verdade, a tendência do desenvolvimento social transcender as categorias econômicas da sociedade da escassez. Elas constituem, com efeito, uma pré-formação crua e ambígua do movimento da sociedade da escassez para a da pós-escassez.

O processo da decomposição de classe tem de ser entendido em todas as suas dimensões. A palavra “processo” tem de ser enfatizada aqui: as classes tradicionais não desaparecem, nem a luta de classe. Somente uma revolução social pode remover a estrutura da classe prevalecente e as causas do conflito. A questão é que a luta de classes tradicional deixa de ter implicações revolucionárias; ela se revela como a fisiologia da sociedade prevalente, não como as dores de trabalho de parto. Na realidade, a luta de classes tradicional estabiliza a sociedade capitalista “corrigindo” seus abusos (em salários, horas de trabalho, inflação, emprego etc.). Os sindicatos, na sociedade capitalista, constituem um “contramonopólio” em relação aos monopólios industriais e são incorporados à economia estatizada neomercantil como um Estado. Dentro desse Estado, há conflitos maiores ou menores, mas, tomados como um todo, os sindicatos fortalecem o sistema e servem para perpetuá-lo.

Reforçar essa estrutura de classe tagarelando sobre o “papel da classe trabalhadora”, reforçar a luta de classes tradicional dando-lhe um caráter “revolucionário”, infectar o novo movimento revolucionário de nossa época com “trabalhite” é tornar o núcleo reacionário. O quão frequentemente as doutrinas marxistas têm de ser lembradas que a história da luta de classes é a história de uma doença, das feridas abertas pela famosa “questão social”, do desenvolvimento monofacetado do homem na tentativa de obter controle sobre a natureza e dominar seu companheiro homem? Se o efeito colateral dessa doença foi avanço tecnológico, os efeitos principais foram repressão, um horrível derramamento de sangue humano e uma aterrorizante distorção da psique humana.

À medida que a doença se aproxima de seu fim, que a ferida começa a curar em seus mais profundos recônditos, o processo agora se desdobra em direção à totalidade; as implicações revolucionárias da luta de classes tradicional perdem seu significado como construções teóricas e como realidade social. O processo de decomposição envolve não somente a estrutura tradicional de classes, mas também a família patriarcal, modos autoritários de aceitação, a influência da religião, as instituições do Estado, e as tradições construídas ao redor de trabalho, renúncia, culpa e sexualidade reprimida. O processo de desintegração, em suma, agora se torna generalizado e virtualmente afeta todas as classes, valores e instituições. Ele cria questões inteiramente novas, modos de luta e formas de organização e chamadas para uma abordagem inteiramente nova à teoria e prática.

O que isso significa concretamente? Deixe-nos contrastar duas abordagens, a marxista e a revolucionária. A doutrina marxista teria nos mostrado o trabalhador – ou melhor, “entrado” na fábrica – e feito proselitismo a ele em “preferência” a qualquer outra pessoa. O objetivo? Formar a “consciência de classe” do trabalhador. Para citar os exemplos mais neandertais da velha esquerda, corta-se o cabelo, arruma-se em roupas esportivas convencionais, troca-se maconha por cigarros e cerveja, dança-se convencionalmente, aparentam-se maneirismos rudes, e se desenvolve uma aparência sem humor, inexpressiva e jactanciosa.[12]

Essa pessoa torna-se, em resumo, o trabalhador em sua pior caricaturização: não um “burguês trivial degenerado”, verdade, mas um burguês degenerado. Essa pessoa torna-se uma imitação do trabalhador na medida em que o trabalhador é uma imitação de seus mestres. Sob a metamorfose do estudante para o “trabalhador” se esconde um cinismo depravado. Essa pessoa tenta usar a disciplina inculcada pelo ambiente da fábrica para disciplinar o trabalhador para o ambiente do partido. Essa pessoa tenta usar o respeito do trabalhador pela hierarquia industrial para ligar o trabalhador à hierarquia partidária. Esse processo lamentável, que, se bem-sucedido, pode levar somente à substituição de uma hierarquia por outra, é alcançado pela preocupação fingida com as reivindicações econômicas cotidianas do trabalhador. Mesmo a teoria marxista é degradada para concordar com essa imagem falsificada do trabalhador. (Veja quase toda cópia do Challenge – o National Enquirer da esquerda. Nada chateia mais o trabalhador do que esse tipo de literatura.) No final, o trabalhador é inteligente o suficiente para saber que obterá melhores resultados na luta de classes cotidiana através de sua burocracia sindical que através de uma burocracia partidária marxista. Os anos quarenta revelaram isso tão dramaticamente que, em um ou dois anos, com apenas algum protesto de seus membros, os sindicatos conseguiam expulsar milhares de “marxistas” que fizeram os trabalhos pioneiros por mais de uma década, até mesmo ascendendo à liderança da velha CIO internacional.

O trabalhador torna-se um revolucionário não tornando-se mais um trabalhador, mas desfazendo seu “trabalhidade”[13]. E nisso ele não está sozinho; o mesmo se aplica ao fazendeiro, ao soldado, ao burocrata, ao profissional – e ao marxista. O trabalhador não é menos um “burguês” que o fazendeiro, o estudante, o caixeiro, o soldado, o burocrata, o profissional – e que o marxista. Sua “trabalhidade” é a doença de que ele sofre, a aflição social encaixada em dimensões individuais. Lênin entendeu isso em Que fazer?, mas ele o introduzir na velha hierarquia sob uma bandeira vermelha e alguma verborreia revolucionária. O trabalhador começa a tornar-se revolucionário quando desfaz sua “trabalhidade”, quando vem a detestar seu status de classe aqui e agora, quando começa a largar exatamente essas características que o marxismo mais preza nele – sua ética de trabalho, sua estrutura de caráter derivada da disciplina industrial, seu respeito pela hierarquia, sua obediência a líderes, seu consumismo, seus vestígios de puritanismo. Nesse sentido, o trabalhador torna-se um revolucionário no grau em que larga seu status de classe e alcança uma consciência de não classe. Ele degenera – e ele degenera magnificamente. O que ele está abandonando são precisamente aquelas amarras de classe que o ligam a todos os sistemas de dominação. Ele abandona esses interesses de classe que o escravizam ao consumismo, à vida suburbana e uma visão mercantil da vida.[14]

O desenvolvimento mais promissor nas fábricas hoje em dia é a emergência dos jovens trabalhadores que fumam maconha, estão se fodendo para seus trabalhos, entram e saem das fábricas, deixam o cabelo crescer, exigem mais lazer ao invés de mais salários, roubam, acossam todas as figuras de autoridade, vão a greves não aprovadas pelo sindicato e incitam seus companheiros trabalhadores. Ainda mais promissora é a emergência desse tipo humano nas escolas vocacionais[15] e ensino médio, o suprimento da classe trabalhadora industrial por vir. Ao nível que trabalhadores, estudantes vocacionais e estudantes de ensino médio ligam seus estilos de vida a vários aspectos da cultura anárquica jovem, nesse nível o proletariado será transformado de uma força de conservação da ordem estabelecida para uma força revolucionária.

Uma situação qualitativamente nova emerge quando o homem enfrenta a transformação de uma sociedade de classes repressiva, baseada na escassez material, para uma sociedade sem classes libertadora, baseada na abundância material. Da decomposição da estrutura tradicional de classes, um novo tipo humano é criado em números sempre crescentes: o revolucionário. Esse revolucionário começa a desafiar não somente as premissas econômicas e políticas da sociedade hierárquica, mas a hierarquia em si. Ele não somente levanta a necessidade de uma revolução social, mas também tenta viver de uma maneira revolucionária no nível em que isso é possível na sociedade existente.[16] Ele não apenas ataca as formas criadas pelo legado de dominação, mas também improvisa novas formas de libertação que tomam sua poesia do futuro.

Essa preparação para o futuro, essa experimentação com formas libertadoras pós-escassez de relações sociais pode ser ilusória se o futuro envolve uma substituição de uma sociedade de classe por outra; é indispensável, contudo, se o futuro envolve uma sociedade sem classes construída nas ruínas de uma sociedade de classes. O que, então, será o “agente” da mudança revolucionária? Ela será literalmente a grande maioria da sociedade, retirada de todas as diferentes classes tradicionais e fundida em uma força revolucionária comum pela decomposição das instituições, formas, valores e estilos sociais da estrutura de classes prevalente. Tipicamente, seus elementos mais avançados são a juventude – uma geração que não conheceu crise econômica crônica e que está se tornando menos e menos orientada ao mito de segurança material tão disseminado entre a geração dos anos trinta.

Se é verdade que a revolução social não pode ser alcançada sem o apoio ativo ou passivo dos trabalhadores, não é menos verdade que ela não pode ser alcançada sem o apoio ativo ou passivo dos agitadores, técnicos e profissionais. Acima de tudo, uma revolução social não pode ser alcançada sem o apoio da juventude, da qual a classe dominante recruta suas forças. Se a classe dominante retém seu poder armado, a revolução está perdida, não importam quantas greves de trabalhadores em seu apoio sejam feitas. Isso foi vividamente demonstrado não somente pela Espanha dos anos trinta, mas pela Hungria dos anos cinquenta e pela Tchecoslováquia dos anos sessenta. A revolução de hoje – pela sua própria natureza, de fato, por sua perseguição da totalidade – conquista não somente o soldado e o trabalhador, mas a própria geração da qual soldados, trabalhadores, técnicos, fazendeiros, cientistas, profissionais e até mesmo burocratas foram recrutados. Descartando os manuais revolucionários do passado, a revolução do futuro segue o caminho de menor resistência, seguindo seu caminho nas áreas mais suscetíveis da população, independentemente de sua “posição de classe”. Ela é nutrida por todas as contradições na sociedade burguesa, não somente pelas contradições da década de 1860 e de 1917. Assim, ela atrai todos aqueles que sentem o peso da exploração, pobreza, racismo, imperialismo e, sim, aqueles cujas vidas são frustradas por consumismo, vida suburbana, a mídia de massa, a família, a escola, o supermercado e o sistema prevalente de sexualidade reprimida. Aqui a forma da revolução torna-se tão total quanto seu conteúdo – sem classe, sem propriedade, sem hierarquia, e totalmente libertadora.

Cambalear nesse desenvolvimento revolucionário com as receitas gastas do marxismo, tagarelar sobre uma “divisão de classes” e o “papel da classe trabalhadora”, corresponde a uma subversão do presente e do futuro pelo passado. Elaborar essa entediante ideologia tagarelando sobre “revolucionários profissionais”, um “partido de vanguarda”, “centralismo democrático” e a “ditadura do proletariado” é pura contrarrevolução. É a esse assunto da “questão organizacional” – essa contribuição vital do leninismo ao marxismo – a que devemos dar agora alguma atenção.

[editar]O mito do partido

Revoluções sociais não são feitas por partidos, grupos ou profissionais, elas ocorrem como resultado de forças históricas profundamente assentadas e contradições que ativam amplos setores da população. Elas não ocorrem meramente porque as “massas” consideram a sociedade existente intolerável (como argumentou Trótski), mas também por causa da tensão entre o real e o possível, entre o que é e o que poderia ser. Extrema miséria, por si só, não produz revoluções; mais frequentemente, ela produz uma desmoralização sem propósito, ou, pior, uma luta privada e pessoal pela sobrevivência.

A Revolução Russa de 1917 pesa nas mentes dos vivos como um pesadelo, porque ela foi produto amplamente de “condições intoleráveis”, de uma guerra imperialista devastadora. Quaisquer sonhos que ela tivesse foram virtualmente destruídos por uma guerra civil ainda mais sangrenta, pela fome e pela traição. O que emergiu da revolução foram as ruínas não de uma antiga sociedade, mas de quaisquer esperanças existentes de alcançar uma nova. A Revolução Russa falhou miseravelmente; ela substituiu o czarismo pelo Estado capitalista.[17] Os bolcheviques foram as trágicas vítimas de sua própria ideologia e pagaram com suas vidas em grande número durante os expurgos dos anos trinta. Tentar obter alguma sabedoria única dessa revolução da escassez é ridículo. O que podemos aprender das revoluções do passado é o que todas as revoluções têm em comum e suas profundas limitações comparadas às enormes possibilidades que agora nos estão abertas.

O aspecto mais notável das revoluções do passado é que elas começaram espontaneamente. Examinar as fases iniciais da Revolução Francesa de 1789, as revoluções de 1848, a Comuna de Paris, a revolução de 1905 na Rússia, a deposição do czar em 1917, a Revolução Húngara de 1956 ou a greve geral na França em 1968 mostra que os estágios iniciais são geralmente os mesmos: um período de agitação explode espontaneamente em uma insurreição de massa. Se a insurreição é bem-sucedida ou não, depende de sua determinação e de se as tropas são aceitas pelo povo.

O “partido glorioso”, quando há um, quase que invariavelmente ri por trás dos eventos. Em fevereiro de 1917, a organização dos bolcheviques de Petrogrado opôs-se à convocação de greves precisamente na véspera da revolução que estava destinada a destituir o czar. Felizmente, os trabalhadores ignoraram as “diretivas” bolcheviques e fizeram a greve. Nos eventos que se seguiram, ninguém estava mais surpreso com a revolução que os partidos “revolucionários”, incluindo os bolcheviques. Como o líder bolchevique Kayurov lembrou: “Absolutamente nenhuma iniciativa diretiva do partido foi sentida… o comitê de Petrogrado foi preso e o representante do Comitê Central, Camarada Shliapnikov, não podia dar nenhuma diretiva para o dia seguinte”. Talvez tenha sido sorte. Antes do comitê de Petrogrado ser detido, sua avaliação da situação e seu próprio papel foram tão ineptos que, tivessem os trabalhadores seguido suas ordens, é duvidoso que a revolução tivesse ocorrido quando ocorreu.

O mesmo tipo de história pode ser contada sobre as insurreições que antecederam 1917 e aquelas que se seguiram – para citar somente a mais recente, a insurreição e greve geral na França durante maio e junho de 1968. Há uma conveniente tendência de se esquecer que perto de uma dezena de organizações bolcheviques “fortemente centralizadas” existiam em Paris naquele tempo. É raramente mencionado que virtualmente todos desses grupos de “vanguarda” desdenharam da insurreição estudantil de 7 de maio, quando as lutas intensamente estouraram nas ruas. A trotskista Jeunesse Communiste Révolutionnaire [Juventude Comunista Revolucionária] foi uma notável exceção – e saiu-se somente bem, essencialmente seguindo as iniciativas do Movimento 22 de Março.[18] Em 7 de maio, todos os grupos maoístas criticaram a insurreição estudantil, caracterizando-a como periférica e não importante; a trotskista Fédération des Etudiants Révolutionnaires [Federação dos Estudantes Revolucionários] a considerou “aventurosa” e tentou fazer com que os estudantes saíssem das barricadas em 10 de maio; o Partido Comunista, claro, teve um papel completamente traiçoeiro. Longe de liderar o movimento popular, os maoístas e trotskistas foram seus cativos do começo ao fim. Ironicamente, a maioria desses grupos bolcheviques usavam vergonhosamente técnicas manipuladoras na assembleia estudantil na Sorbonne, em uma tentativa de “controlá-la”, introduzindo uma atmosfera disruptiva que desmoralizava o grupo inteiro. Finalmente, para completar a ironia, todos esses grupos bolcheviques puderam tagarelar sobre a necessidade de uma “liderança centralizada” quando o movimento popular colapsou – um movimento que ocorreu apesar de suas “diretivas” e geralmente em oposição a elas.

Revoluções e insurreições dignas de qualquer nota não têm uma fase inicial que seja magnificamente anárquica, mas também tendem a criar espontaneamente suas próprias formas de autogestão revolucionária. As seções parisienses de 1793-94 eram as mais notáveis formas de autogestão a serem criadas por qualquer uma das revoluções sociais na história.[19] Mais familiar na forma eram os conselhos ou “sovietes” que os trabalhadores de Petrogrado estabeleceram em 1905. Apesar de menos democráticos que as seções, os conselhos iriam reaparecer em várias revoluções posteriores. Ainda outra forma de autogestão revolucionária eram os comitês de fábricas que os anarquistas estabeleceram na Revolução Espanhola de 1936. Finalmente, as seções reapareceram como assembleias estudantis e comitês de ação na insurreição de maio e junho e na greve geral de 1968 em Paris.[20]

Neste momento, temos de questionar que papel o partido “revolucionário” exerce em todos esses desenvolvimentos. No começo, como vimos, ele tende a uma função inibitória, não um papel de “vanguarda”. Onde exerce influência, tende a desacelerar o fluxo dos eventos, não “coordenar” as forças revolucionárias. Isso não é acidental. O partido é estruturado em camadas hierárquicas que refletem a mesma sociedade a que eles professam se opor. Apesar de suas pretensões teóricas, é um organismo burguês, um Estado em miniatura, com um aparato e um profissional cuja função é conquistar o poder, não dissolver o poder. Enraizado no período pré-revolucionário, ele assimila todas as formas, técnicas e mentalidade da burocracia. Seus membros são treinados para obedecer e para os preconceitos de um dogma rígido e é ensinado a sempre reverenciar a liderança. A liderança do partido, por sua vez, é treinada em hábitos de comando, autoridade, manipulação e egocentrismo. Essa situação é piorada quando o partido participa das eleições parlamentares. Nas campanhas eleitorais, o partido de vanguarda se modela completamente nas formas burguesas existentes e adquire até mesmo a parafernália do partido eleitoral. A situação assume proporções realmente críticas quando o partido obtém muitos correligionários, sedes custosas, e um grande inventário de periódicos controlados centralizadamente, e desenvolve um “aparato” pago – em resumo, uma burocracia com interesses materiais explícitos.

À medida que o partido cresce, a distância entre liderança e as fileiras invariavelmente aumentam. Seus líderes não somente tornam-se “personalidades”, eles perdem contato com a situação de vida abaixo de si. Os grupos locais, que conhecem melhor sua situação imediata própria que qualquer líder afastado, são obrigados a subordinar suas compreensões a diretivas superiores. A liderança, carecendo de qualquer conhecimento direto de problemas locais, responde lenta e prudentemente. Mesmo assim, ela exalta a “visão ampla”, a grande “competência teórica”, a competência da liderança tende a diminuir à medida que se ascende na hierarquia de comando. Quanto mais se chega ao nível no qual são tomadas as decisões reais, mais conservadora é a natureza do processo de tomada de decisão, mais burocráticos e alheios são os fatores que estão em jogo, mais considerações de prestígio e economia suprimem a criatividade, imaginação e uma dedicação desinteressada por objetivos revolucionários.

Quanto mais o partido procura eficiência por meio de hierarquia, profissionais e centralização, menos eficiente ele fica de um ponto de vista revolucionário. Apesar de todos marcharem conforme a música, as ordens estão normalmente erradas, especialmente quando os eventos começam a se suceder rapidamente e tomam contornos inesperados – como acontece em todas as revoluções. O partido é eficiente em apenas um quesito – moldar a sociedade à sua própria imagem hierárquica se a revolução obtém sucesso. Ele recria a burocracia, a centralização e o Estado. Ele fomenta a burocracia, a centralização e o Estado. Ele fomenta as condições sociais genuínas que justificam esse tipo de sociedade. Desse modo, ao invés de “desaparecer”, o Estado controlado pelo “partido glorioso” preserva as mesmas condições que “necessitavam” da existência de um Estado – e de um partido para “preservá-lo”.

Por outro lado, esse tipo de partido é extremamente vulnerável em períodos de repressão. A burguesia tem apenas de prender sua liderança para destruir o movimento por inteiro. Com seus líderes na prisão ou no exílio, o partido torna-se paralisado; os membros obedientes não têm a quem obedecer e tendem a se atrapalhar. A desmoralização chega rapidamente. O partido se decompõe não somente por causa da atmosfera repressiva, mas também por causa de sua pobreza de recursos internos.

A história a seguir não é uma série de inferências hipotéticas, é um esquete misto de todos os partidos de massa marxistas do século passado – os social-democratas, os comunistas e o partido trotskista do Ceilão (o único partido de massa desse tipo). Afirmar que esses partidos falharam em levar seus princípios marxistas a sério somente esconde outra questão: em primeiro lugar, por que ocorreu esse fracasso? O fato é que esses partidos foram cooptados pela sociedade burguesa porque eram estruturados em modelos burgueses. A semente da traição existia neles desde o nascimento.

O Partido Bolchevique foi poupado dessa sina entre 1904 e 1917 unicamente por uma razão: era uma organização ilegal durante a maior parte dos anos que antecederam a revolução. O partido estava sendo continuamente rachado e reconstituído, resultando que, até tomar o poder, nunca realmente se solidificou como uma máquina centralizada, burocrática e hierárquica. Além disso, ele foi rachado por facções; a intensa atmosfera faccionária persistiu por todo o ano de 1917, até durante a guerra civil. Contudo, a liderança bolchevique era, como é comum, extremamente conservadora, um traço contra o qual Lênin teve de lutar durante 1917 – primeiro em seus intentos de reorientar o Comitê Central contra o governo provisório (o famoso conflito sobre as “Teses de Abril”), depois guiando o Comitê Central à insurreição em outubro. Em ambos os casos, ele ameaçou renunciar ao Comitê Central e levar suas visões para “fileiras inferiores do partido”.

Em 1918, disputas faccionárias sobre a questão do tratado de Brest-Litovsk[21] quase provocou a cisão em dois partidos comunistas rivais. Grupos bolcheviques rivais como os Centralistas Democráticos e a Oposição Operária promoveram severas brigas dentro do partido em 1919 e 1920, sem falar dos movimentos rivais que se desenvolveram dentro do Exército Vermelho sobre a inclinação de Trótski pela centralização. A completa centralização do Partido Bolchevique – a realização da “unidade leninista”, como foi chamada posteriormente – não ocorreu até 1921, quando Lênin promoveu a persuasão para banir facções no décimo congresso do Partido. Por essa época, a maior parte do Exército Branco tinha sido vencida e os intervencionistas estrangeiros tinham retirado as tropas da Rússia.

Não pode ser muito fortemente enfatizado que os bolcheviques tenderam a centralizar seu partido ao nível de ficarem isolados da classe trabalhadora. Esse relacionamento foi raramente investigado em círculos leninistas posteriores, mesmo que Lênin fosse honesto o suficiente para admiti-lo. A história da Revolução Russa não é meramente a do Partido Bolchevique e seus apoiadores. Por trás da aparência dos eventos oficiais descritos pelos historiadores soviéticos havia outro desenvolvimento, mais básico – o movimento espontâneo dos trabalhadores e camponeses revolucionários, que depois entraram fortemente em choque com as políticas burocráticas dos bolcheviques. Com a deposição do czar em fevereiro de 1917, os trabalhadores estabeleceram espontaneamente comitês de fábricas em praticamente todas elas, fazendo valer direitos nas operações industriais. Em junho de 1917, uma conferência de comitês de fábricas de toda a Rússia teve lugar em Petrogrado e demandou a “organização através do controle do trabalho sobre a produção e distribuição”. As reivindicações dessa conferência são raramente mencionadas em relatos leninistas da Revolução Russa, apesar do fato de ela ter se alinhado aos bolcheviques. Trótski, que descreve os comitês de fábricas como “a mais direta e indubitável representação do proletariado no país inteiro”, aborda-os superficialmente em sua extensa história da revolução. Tão importantes eram esses organismos espontâneos de autogestão que Lênin, desesperado em ganhar os sovietes no verão de 1917, estava preparado para mudar o slogan “Todo o poder para os sovietes” por “Todo o poder para os comitês de fábricas”. Essa reivindicação teria lançado os bolcheviques a uma posição completamente anarcossindicalista, mesmo que seja duvidoso que tivessem continuado assim por muito tempo. Com a Revolução de Outubro, todos os comitês de fábrica tomaram o controle das plantas, expulsando os burgueses e tomando controle completo da indústria. Ao aceitar o conceito de controle dos trabalhadores, o famoso decreto de Lênin de 14 de novembro de 1917 meramente tomou conhecimento de um fato consumado; os bolcheviques não ousaram se opor aos trabalhadores nesse momento inicial. Mas eles começaram a tirar poder dos comitês de fábricas. Em janeiro de 1918, dois meses depois de “decretar” o controle dos trabalhadores, Lênin começava a defender que a administração das fábricas fosse posta sob o controle dos sindicatos. A história de que os bolcheviques experimentaram o controle operário “pacientemente”, somente para achá-lo “ineficiente” e “caótico”, é um mito. Sua “paciência” não durou mais que algumas semanas. Não somente Lênin opôs-se ao controle direto dos trabalhadores em uma questão de semanas depois de decreto de 14 de novembro, mas até mesmo o controle dos sindicatos chegou ao fim brevemente depois de ter sido estabelecido. Pelo verão de 1918, quase toda a indústria russa tinha sido colocada sob formas de gestão burguesas. Como Lênin colocou, a “revolução exige… precisamente nos interesses do socialismo que as massas obedeçam inquestionavelmente a única vontade dos líderes do processo de trabalho”.[22] Consequentemente, o controle operário foi denunciado não somente como “ineficiente”, “caótico” e “impráticável”, mas também como “trivialmente burguês”! Osinsky, da esquerda comunista, atacou asperamente todas essas reivindicações falsas e avisou o Partido: “Socialismo e organização socialista devem ser estabelecidos pelo próprio proletariado, ou não estabelecidos; outra coisa será estabelecer um Estado capitalista” Sob os “interesses do socialismo”, o Partido Bolchevique tirou do proletariado todo domínio que este tinha conquistado por suas próprias forças e iniciativas. O Partido não coordenou a revolução, ou a guiou; ele a dominou. Primeiro o controle operário e depois o controle sindical foram substituídos por uma hierarquia elaborada, tão monstruosa quanto qualquer estrutura que existia em tempos pré-revolucionários. Como os tempos seguintes demonstraram, a profecia de Osinsky tornou-se realidade.

O problema de “quem deve prevalecer” – os bolcheviques ou as “massas” russas – não era de modo algum limitado pelas fábricas. O assunto reapareceu tanto no campo quanto nas cidades. Uma ampla guerra camponesa manteve o movimento dos trabalhadores com apoio. Ao contrário dos relatos oficiais de Lênin, a insurreição agrária não foi de modo algum limitada a uma redistribuição da terra em lotes privados. Na Ucrânia, camponeses influenciados pelas milícias anarquistas de Nestor Makhno e guiados pela máxima comunista “de cada um de acordo com suas possibilidades; para cada um de acordo com suas necessidades”, estabeleceu muitas comunas rurais. Alhures, no norte e na Ásia Soviética, alguns milhares desses organismos foram estabelecidos, parcialmente na iniciativa dos Revolucionários da Esquerda Social e em larga escala como resultado dos impulsos coletivistas tradicionais que vinham das aldeias russas, o mir[23] Pouco importa se essas comunas eram numerosas ou abarcavam grande número de camponeses; a questão é que eram organismos populares autênticos, os núcleos de uma moral e espírito social que ficava muito acima dos valores desumanizantes da sociedade burguesa.

Os bolcheviques viam com desagrado esses organismos desde o começo e, por fim, os condenaram. Para Lênin, a forma de empreendimento agrícola preferida, a mais “socialista” estava representada pela fazenda estatal – uma fábrica agrícola na qual o Estado possuía a terra e os equipamentos, indicando gerentes que contratavam camponeses a um salário base. Vê-se nessas atitudes em relação ao controle operário e às comunas agrícolas essencialmente o espírito e a mentalidade burguesa que permeavam o Partido Bolchevique – espírito e mentalidade que não provieram somente de suas teorias, mas também de seu modo corporativo de organização. Em dezembro de 1918, Lênin lançou um ataque contra as comunas, com o pretexto de que os camponeses estavam sendo “forçados” a ingressar nelas. Na realidade, pouca, se não nenhuma coerção era usada para organizar essas formas comunistas de autogestão. Como Robert G. Wesson, que estudou as comunas soviéticas detalhadamente, conclui: “Aqueles que ingressavam em comunas tinham de tê-lo feito de sua própria vontade”. As comunas não foram suprimidas, mas seu crescimento foi desencorajado até que Stálin desapareceu com o desenvolvimento por inteiro nas coletivizações forçadas no fim dos anos vinte e início dos trinta.

Pela década de 1920, os bolcheviques isolaram-se da classe trabalhadora e campesinato russos. Tomadas juntas, a eliminação do controle operário, a supressão do Makhnovtsy[24], a atmosfera politicamente restritiva no país, a burocracia inflada e a esmagadora pobreza material herdada dos anos de guerra civil geraram uma profunda hostilidade ao comando bolchevique. Com o fim das hostilidades, um movimento surgiu das profundezas da sociedade russa para uma “terceira revolução” – não para restaurar a passada, como reivindicavam os bolcheviques, mas para realizar os verdadeiros objetivos de liberdade, tanto econômica como política, que reuniram as massas ao redor do programa bolchevique de 1917. O novo movimento encontrou sua forma mais consciente no proletariado de Petrogrado entre os marinheiros de Kronstadt. Ele também encontrou expressão no Partido: o crescimento de tendências anticentralistas e anarcossindicalistas entre os bolcheviques chegou a um ponto em que um bloco de grupo de oposição, favorável a essas questões, conquistou cento e vinte e quatro assentos na conferência provincial de Moscou, contra cento e cinquenta e quatro do Comitê Central.

Em 2 de março de 1921, os “marinheiros vermelhos” de Kronstadt se amotinaram, levantando a bandeira de uma “Terceira Revolução dos Troilers[25]”. O programa de Kronstadt centrava-se em demandas de eleições livres para os sovietes, liberdade de expressão e de imprensa para os anarquistas e partidos da esquerda socialista, sindicatos livres, e a libertação de todos os prisioneiros que pertencessem a partidos socialistas. As histórias mais vergonhosas eram fabricadas pelos bolcheviques para relatar essa insurreição, conhecidas em anos posteriores como mentiras descaradas. A revolta era caracterizada como uma “conspiração do Exército Branco”, apesar do fato de que a grande maioria dos membros do Partido Comunista em Kronstadt se juntou aos marinheiros – precisamente como comunistas – ao denunciar os líderes do partido como traidores da Revolução de Outubro. Como observa Robert Vincent Daniels em seu estudo dos movimentos oposicionistas bolcheviques: “Comunistas comuns eram de fato tão inconfiáveis… que o governo não contava com eles, seja no próprio ataque a Kronstadt ou na manutenção da ordem em Petrogrado, onde as esperanças de Kronstadt por apoio especificamente se depositavam. O principal grupo de tropas empregadas eram chekistas[26] e cadetes oficiais das escolas de treinamento do Exército Vermelho. O ataque final a Kronstadt foi liderado pelo funcionalismo superior do Partido Comunista – um grupo grande de delegados do Décimo Congresso do Partido foi deslocado para esse propósito”. Tão fraco era o regime internamente que a elite tinha de fazer ela mesma seu próprio trabalho sujo.

Ainda mais significativo que a revolta de Kronstadt foi o movimento grevista que se desenvolveu entre os trabalhadores de Petrogrado, um movimento que estimulou a insurreição dos marinheiros. Histórias leninistas não contam esse desdobramento criticamente importante. As primeiras greves estouraram em 23 de fevereiro de 1921. Em uma questão de dias, o movimento varreu fábrica após fábrica, até, em 28 de fevereiro, a famosa planta Putilov – o “bastião da Revolução” – entrou em greve. Não foram somente feitas exigências econômicas, os trabalhadores fizeram distintas exigências políticas, antecipando todas as exigências que seriam feitas pelos marinheiros de Kronstadt alguns dias depois. Em 24 de fevereiro, os bolcheviques declararam “estado de sítio” em Petrogrado e prenderam os líderes grevistas, suprimindo as manifestações dos “trabalhadores” com cadetes oficiais. O fato é que os bolcheviques não apenas suprimiram um “motim de marinheiros”; eles esmagaram a própria classe trabalhadora. Foi nesse momento que Lênin demandou o banimento de facções no Partido Comunista Russo. A centralização do Partido agora estava completa – e o caminho estava aberto para Stálin.

Discutimos esses eventos em detalhe porque eles levaram à conclusão de que o grupo recente de marxistas-leninistas tende a evitar: o Partido Bolchevique atingiu seu grau máximo de centralização no tempo de Lênin, não para lograr uma revolução ou suprimir a contrarrevolução do Exército Branco, mas para gerar uma contrarrevolução própria contra as verdadeiras forças sociais que ele professava representar. Facções foram proibidas e um partido monolítico criado não para evitar uma “restauração capitalista”, mas para conter um movimento de massas de trabalhadores pela democracia soviética e liberdade social. O Lênin de 1921 encontrava-se oposto ao Lênin de 1911.

Depois disso, Lênin simplesmente se perdeu. Esse homem que, acima de tudo, queria esconder os problemas de seu partido sob contradições sociais, encontrou-se literalmente apostando em um “jogo de azar” em uma última tentativa de parar a própria burocratização que ele havia criado. Não há nada mais patético e trágico que os últimos anos de Lênin. Paralisado por um grupo simplista de fórmulas marxistas, ele não pode pensar em nenhuma contramedida que não fosse organizacional. Ele propõe a formação de Inspeções de Operários e Camponeses para corrigir reformas burocráticas no Partido e no Estado – e esse grupo rui sob o controle de Stálin e torna-se altamente burocrático por si mesmo. Lênin então sugere que o tamanho das Inspeções de Operários e Camponeses seja reduzido e que ele seja unido à Comissão de Controle. Ele defende aumentar o Comitê Central. E assim vai: esse grupo é aumentado, aquele é juntado a outro, um terceiro é modificado ou abolido. O estanho balé de formas organizacionais continua até sua morte, como se o problema pudesse ser resolvido por meios organizacionais. Como Mosche Lewin, um admirador confesso de Lênin, admite, o líder bolchevique “abordou os problemas de governo mais como um chefe executivo de um pensamento estritamente ‘elitista’”. Ele não aplicou métodos de análise social ao governo e ficou satisfeito em considerá-lo puramente em termos de métodos organizacionais”.

Se é verdade que nas revoluções burguesas a “expressão ia além do conteúdo”, na revolução bolchevique as formas substituíram o conteúdo. Os sovietes substituíram os trabalhadores e seus comitês de fábricas, o Partido substituiu os sovietes, o Comitê Central substituiu o Partido, e o Departamento Político substituiu o Comitê Central. Em suma, meios substituíram fins. Essa incrível substituição de forma por conteúdo é um dos traços mais característicos do marxismo-leninismo. Na França, durante os eventos de maio e junho, todas as organizações bolcheviques estavam preparadas para destruir a assembleia estudantil da Sorbonne para aumentar sua influência e número de membros. Sua preocupação principal não era a revolução ou as formas sociais autênticas criadas pelos estudantes, mas o crescimento de seus próprios partidos.

Somente uma força poderia ter parado o crescimento da burocracia na Rússia: uma força social. Tivesse o proletariado e o campesinato russos o domínio de autogestão através do desenvolvimento de comitês de fábricas viáveis, comunas rurais e sovietes livres, a história do país talvez sofresse uma alteração dramaticamente diferente. Não pode haver dúvidas de que o fracasso das revoluções socialistas na Europa depois da Primeira Guerra Mundial levou ao isolamento da revolução na Rússia. A pobreza material da Rússia, juntamente com a pressão do mundo capitalista, claramente militou contra o desenvolvimento de uma sociedade socialista ou consistentemente libertária. De modo algum foi determinado que a Rússia tivesse de desenvolver-se com contornos de estado capitalista; ao contrário das expectativas iniciais de Lênin e Trótski, a revolução foi derrotada por forças internas, não pela invasão dos exércitos estrangeiros. Tivesse o movimento restaurado a partir de baixo as realizações da Revolução de 1917, um estrutura social multifacetada poderia ter se desenvolvido, baseada no controle operário da indústria, em uma economia de livre desenvolvimento camponês na agricultura, e em uma viva interação de ideias, programas e movimentos políticos. No mínimo, a Rússia não teria sido aprisionada em correntes totalitaristas e o stalinismo não teria envenenado o movimento revolucionário, abrindo caminho para o fascismo e a Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento do Partido Bolchevique, contudo, impediu esse desenvolvimento – apesar das “boas intenções” de Lênin e Trótski. Destruindo o poder dos comitês de fábricas na indústria e esmagando o Makhnovtsy, os trabalhadores de Petrogrado e os marinheiros de Kronstadt, os bolcheviques garantiram virtualmente o triunfo da burocracia na sociedade russa. O partido centralizado – uma instituição completamente burguesa – tornou-se refúgio da contrarrevolução em sua forma mais sinistra. Essa foi uma contrarrevolução coberta que se vestia com a bandeira vermelha e a terminologia de Marx. Por último, o que os bolcheviques suprimiram em 1921 não foi uma “ideologia” ou uma “conspiração do Exército Vermelho”, mas uma luta fundamental do povo russo para se libertar de suas algemas e “tomar o controle de seu próprio destino”.[27] Para a Rússia, isso significava o pesadelo da ditadura stalinista; para a geração dos anos trinta, significava o horror do fascismo e a traição dos partidos comunistas na Europa e nos Estados Unidos.

[editar]As duas tradições

Seria uma ingenuidade incrível supor que o leninismo foi produto de um único homem. A doença encontra-se muito mais profundamente, não nas limitações da teoria marxista, mas nas limitações da era social que produziu o marxismo. Se isso não for claramente entendido, permaneceremos tão cegos à dialética de eventos hoje em dia como Marx, Engels, Lênin e Trótski eram em suas épocas. Para nós, essa cegueira será repreensível com maior razão, porque atrás de nós se situa uma riqueza de experiência que faltava a esses homens no desenvolvimento de suas teorias.

Karl Marx e Friedrich Engels eram centralizadores – não somente política, mas também social e economicamente. Eles nunca negaram esse fato e seus escritos estão cheios de entusiasmados louvores à centralização política, organizacional e econômica. Como em março de 1850, em sua famosa “Mensagem da Direção Central da Liga Comunista”, eles convocam os trabalhadores a lutar não somente pela “única e indivisível república alemã, mas também lutar nela pela mais resoluta centralização de poder nas mãos da autoridade estatal”. Para que a reivindicação não seja superficialmente tomada, é repetida continuamente no mesmo parágrafo, que conclui: “Como na França de 1793, assim hoje na Alemanha a realização da centralização estrita é a tarefa do verdadeiro partido revolucionário”.

O mesmo tema reaparece continuamente em anos seguintes. Com a deflagração da Guerra franco-prussiana, por exemplo, Marx escreve a Engels: “A França precisa de uma surra. Se os prussianos vencerem, a centralização de poder estatal será útil para a centralização da classe trabalhadora alemã”.

Marx e Engels, contudo, não eram centralizadores por acreditar nas virtudes da centralização por si só. Pelo contrário: o marxismo e o anarquismo sempre concordaram com uma sociedade libertada e comunista vinculada a uma ampla descentralização, à dissolução da burocracia, à abolição do Estado, e à dispersão das cidades grandes. “A abolição da antítese entre cidade e campo simplesmente não é possível”, escreve Engels em Anti-Düring. “Ela se tornou uma necessidade direta… o presente envenenamento do ar, água e solo somente pode ter um fim com a fusão da cidade e do campo…”. Para Engels, isso envolve uma “distribuição uniforme da população pelo país inteiro” – em suma, a descentralização física das cidades.

As origens da centralização marxista estão entre os problemas que surgem da criação do Estado nacional. Até meados da segunda metade do século XIX, Alemanha e Itália estavam divididas em ducados, principados e reinos independentes. A consolidação dessas unidades geográficas em nações unificadas, acreditavam Marx e Engels, era uma condição sine qua non[28] para o desenvolvimento da indústria moderna e do capitalismo. Seu elogio à centralização não foi produzido por alguma mística centralizadora, mas pelos eventos do período em que viveram – o desenvolvimento de tecnologia, comércio, uma classe trabalhadora unificada, e o Estado nacional. Sua preocupação com esse assunto, em suma, é com a emergência do capitalismo, com as tarefas da revolução burguesa em uma era de inevitável escassez material. Por outro lado, a abordagem de Marx para a “revolução proletária”é notadamente diferente. Ele exaltava entusiasticamente a Comuna de Paris como um “modelo para todos os centros industrias franceses”. “Esse regime”, escreve, “uma vez estabelecido em Paris e nos centros secundários, o velho governo centralizado teria de, também nas províncias, dar lugar ao autogoverno dos produtores.” A unidade da nação, verdade, não desapareceria, e um governo central existiria durante a transição para o comunismo, mas suas funções seriam limitadas.

Nosso objetivo não é alternar entre citações de Marx e Engels, mas enfatizar como princípios chave do marxismo – que são aceitos até hoje tão passivamente – eram na realidade o produto de uma era que foi há muito ultrapassada pelo desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Em sua época, Marx não estava preocupado somente com os problemas de uma “revolução proletária”, mas também com os problemas da revolução burguesa em Alemanha, Espanha, Itália e Europa Ocidental. Ele tratou de problemas de transição do capitalismo para o socialismo em países que não tinham avançado muito além da tecnologia do carvão e aço da Revolução Industrial, e com os problemas de transição do feudalismo para o capitalismo em países que tinham escassamente avançado além de artesanato e das corporações de ofício. Para expressar essas preocupações mais amplamente, Marx estava, acima de tudo, mais ocupado com as pré-condições de liberdade (desenvolvimento tecnológico, unificação nacional, abundância material) do que com as condições de liberdade (descentralização, a formação de comunidades, a escala humana, democracia direta). Suas teorias estavam ainda baseadas no campo da sobrevivência, não no campo da vida.

Uma vez que isso seja compreendido, é possível colocar o legado teórico de Marx em uma perspectiva significativa – separar suas ricas contribuições de suas algemas historicamente limitadas, até mesmo paralisantes, de sua época. A dialética marxista, as muitas compreensões seminais providas pelo materialismo histórico, a ótima crítica da relação mercantil, muitos elementos das teorias econômicas, e, acima de tudo, a noção de que a liberdade tem pré-condições materiais – essas são contribuições permanentes ao pensamento revolucionário.

Contudo, a ênfase Marx no proletariado industrial como o “agente” da mudança revolucionária, sua “análise de classe” ao explicar a transição de uma sociedade de classes para uma sem classes, seu conceito de “ditadura do proletariado”, sua ênfase na centralização, sua teoria de desenvolvimento capitalista (que tende a misturar estado capitalista com socialismo), sua defesa de ação política através de partidos eleitorais – esses e muitos conceitos relacionados são falsos no contexto de nosso tempo e iludem, como devemos ver, mesmo em nossos próprios dias. Eles emergem das limitações de sua visão – mais propriamente, das limitações de seu tempo. Eles fazem sentido somente se se lembrar que Marx considerava o capitalismo como historicamente progressista, como um estágio indispensável para o desenvolvimento do socialismo, e têm aplicação prática somente para um tempo em que a Alemanha em particular era confrontada por objetivos burgueses-democráticos e pela unificação nacional. (Não estamos tentando dizer que Marx estava correto em manter essa abordagem, somente que essa abordagem faz sentido quando vista em seu próprio tempo e local).

Assim como a Revolução Russa incluía um movimento subterrâneo das “massas” que conflitavam com o bolchevismo, existe um movimento subterrâneo na história que conflita como todos os sistemas de autoridade. Esse movimento chegou a nosso tempo sob o nome de “anarquismo”, apesar de nunca ter sido abarcado por uma única ideologia ou conjunto de textos sagrados. O anarquismo é um movimento libidinoso da humanidade contra a coerção sob qualquer forma, remontando aos tempos da própria emergência da sociedade proprietária, de domínio de classe e do Estado. Desse período em diante, os oprimidos resistiram a todas as formas de procurar aprisionar o desenvolvimento de ordem social espontânea. O anarquismo veio a primeiro plano da arena social em períodos de maior transição de uma era histórica para outra. O declínio do mundo antigo e feudal testemunhou a insurreição de movimentos de massa, em alguns casos de caráter imoderadamente dionisíaco, que exigiram o fim de todos os sistemas de autoridade, privilégio e coerção.

Os movimentos anárquicos do passado fracassaram em grande medida porque a escassez material, em função da tecnologia rudimentar, contaminou uma harmonização orgânica de interesses humanos. Qualquer sociedade que pôde prometer materialmente um pouco mais que a igualdade na pobreza invariavelmente provocou que tendências profundamente assentadas reconstituíssem um novo sistema de privilégios. Na ausência de uma tecnologia que pudesse reduzir consideravelmente o dia de trabalho, a necessidade de trabalhar contaminou instituições sociais baseadas na autogestão. Os girondinos da Revolução Francesa notaram astutamente que poderiam usar o dia de trabalho contra a Paris revolucionária. Para tentar excluir os elementos radicais das seções, eles tentaram decretar uma lei que terminaria todas as assembleias antes das dez horas da noite, o horário em que os trabalhadores parisienses deixavam seus empregos. De fato, não foram somente as técnicas manipuladoras e a traição das organizações de “vanguarda” que deram cabo às fases anárquicas das revoluções do passado, foram também os limites materiais das eras passadas. As “massas” sempre foram compelidas a retornar a uma vida de trabalho pesado e foram raramente livres para estabelecer órgãos de autogestão que pudessem durar além da revolução.

Contudo, anarquistas como Bakunin e Kropotkin não estavam errados de modo algum ao criticar Marx por sua ênfase na centralização e suas noções elitistas de organização. A centralização era absolutamente necessária para avanços tecnológicos no passado? O Estado-nação era indispensável para a expansão do comércio? O movimento operário se beneficiou da emergência de empreendimentos econômicos altamente centralizados e do Estado “indivisível”? Tendemos a aceitar essas doutrinas do marxismo muito passivamente, em grande parte porque o capitalismo se desenvolveu em uma arena política centralizada. Os anarquistas do século passado avisaram que a abordagem centralizadora de Marx, até o ponto em que afetou os eventos da época, fortaleceria tanto a burguesia e o aparato estatal que a destruição do capitalismo se tornaria extremamente difícil. O partido revolucionário, reproduzindo essas características centralizadoras e hierárquicas, reproduziria a hierarquia e o centralização na sociedade pós-revolucionária.

Bakunin, Kropotkin e Malatesta não eram tão ingênuos para acreditar que o anarquismo pudesse ser estabelecido da noite para o dia. Ao atribuir essa opinião a Bakunin, Marx e Engels distorceram propositadamente as visões dos anarquistas russos. Os anarquistas do século passado também não acreditavam que a abolição do Estado envolveria “baixar armas” imediatamente após a revolução, para usar a escolha obscurantista de termos de Marx, repetida continuamente por Lênin em Estado e Revolução. Na verdade, muito do que se passa por “marxismo” em Estado e Revolução é puro anarquismo – por exemplo, a substituição de milícias revolucionárias por grupos armados profissionais e a substituição de órgãos de autogestão por grupos parlamentares. O que é a autenticamente marxista no panfleto de Lênin é a reivindicação de “centralização estrita”, a aceitação de uma “nova burocracia”, e a identificação dos sovietes com um Estado.

Os anarquistas do século passado estavam profundamente preocupados com a questão de realizar a industrialização sem esmagar o espírito revolucionário das “massas” ou criar novos obstáculos à emancipação. Eles temiam que a centralização reforçasse a capacidade de resistência da burguesia à revolução e instilasse nos trabalhadores um senso de obediência. Eles tentaram resgatar todas as formas comunais pré-capitalistas (como a mir russa e o pueblo espanhol) que pudessem prover uma rampa para uma sociedade livre, não somente em um sentido estrutural, mas também em espiritual. Assim, eles enfatizaram a necessidade da descentralização mesmo sob o capitalismo. Em contraste aos partidos marxistas, suas organizações davam atenção considerável ao que eles chamavam de “educação integral” – o desenvolvimento de um homem inteiro – para neutralizar a influência degradante e banalizadora da sociedade burguesa. Os anarquistas tentaram viver sob valores do futuro na medida em que isso era possível sob o capitalismo. Eles acreditavam na ação direta para promover a iniciativa das “massas”, para preservar o espírito de revolta, para encorajar a espontaneidade. Eles tentaram desenvolver organizações baseadas em ajuda mútua e fraternidade, nas quais o controle seria exercido de baixo para cima, não de cima para baixo.

Temos de parar aqui para examinar a natureza de formas organizacionais anarquistas em detalhes, somente porque o assunto foi obscurecido por uma espantosa quantidade de besteiras. Anarquistas, ou, ao menos, anarcocomunistas, aceitam a necessidade de organização.[29] É tão absurdo ter de repetir essa questão quanto discutir sobre se Marx aceitava a necessidade da revolução social.

A verdadeira questão em debate aqui não é organização versus não organização, mas mais que tipo de organização os anarcocomunistas tentam estabelecer. O que os diferentes tipos de organizações anarcocomunistas têm em comum são os desenvolvimentos orgânicos a partir de baixo, não são corpos planejados a partir de cima. Eles são movimentos sociais, combinando um estilo de vida revolucionário criativo com uma teoria revolucionária criativa, não partidos políticos cujo modo de vida é indistinguível do ambiente burguês ao redor e cuja ideologia é reduzida a rígidos “programas experimentados e testados”. Tanto quanto é humanamente possível, eles tentam refletir a sociedade libertada que procuram realizar, não reproduzir escravamente o sistema prevalente de hierarquia, classe e autoridade. Eles são construídos ao redor de íntimos grupos de irmãos e irmãs – grupos de afinidade – cuja capacidade de agir em comum é baseada em iniciativa, em convicções livremente atingidas, e em profundo envolvimento pessoal, não ao redor de um aparato burocrático engrossado por uma militância submissa e manipulada a partir de cima por uma porção de líderes oniscientes.

Os anarcocomunistas não negam a necessidade de coordenação entre grupos, de disciplina, de planejamento meticuloso e de unidade na ação. Mas eles acreditam que coordenação, disciplina, planejamento e unidade na ação devem ser alcançados voluntariamente, por meio de uma autodisciplina fomentada por convicção e entendimento, não por coerção e obediência absoluta e inquestionável de ordens superiores. Eles procuram alcançar a efetividade imputada à centralização por meio de voluntariedade e compreensão, não pelo estabelecimento de uma estrutura hierárquica e centralizada. Dependendo das necessidades ou circunstâncias, os grupos de afinidade podem alcançar essa efetividade através de assembleias, comitês de ação e conferências locais, regionais ou nacionais. Ele eles se opõem vigorosamente ao estabelecimento de uma estrutura organizacional que se torne um fim em si, de comitês que se demoram depois que suas tarefas práticas foram completadas, de uma “liderança” que reduz o “revolucionário” a um robô estúpido.

Essas conclusões não são resultado de impulsos levianos “individualistas”; pelo contrário, elas emergem de um estudo minucioso das revoluções passadas, do impacto que partidos centralizados tiveram no processo revolucionário, e da natureza da mudança social em uma era de potencial abundância material. Anarcocomunistas procuram preservar e estender a fase anárquica que abre todas as grandes revoluções sociais. Ainda mais que os marxistas, reconhecem que as revoluções são produzidas por profundos processos históricos. Nenhum comitê central “faz” uma revolução social; no melhor dos casos, ele pode promover um golpe de estado, substituindo uma hierarquia por outra – ou pior, barrar um processo revolucionário se exercer alguma influência muito disseminada. Um comitê central é um órgão para adquirir poder, criar poder, para pegar para si o que as “massas” realizam por seus próprios esforços revolucionários. É necessário ser cego para tudo que aconteceu nos dois séculos passados para não se reconhecer esses fatos essenciais.

No passado, os marxistas podiam fazer uma inteligível (ainda que inválida) reivindicação de um partido centralizado, porque a fase anárquica da revolução era anulada pela escassez material. Economicamente, as “massas” sempre foram compelidas a retornar a uma vida diária de trabalho duro. A revolução fechada às dez da noite, exatamente ao lado das intenções reacionárias dos girondinos de 1793, foi barrada pelo baixo nível da tecnologia. Hoje, mesmo essa justificativa foi excluída pelo desenvolvimento de uma tecnologia pós-escassez, notadamente nos EUA e Europa Ocidental. Chegou um ponto em que as “massas” podem começar, quase da noite para o dia, a expandir drasticamente o “campo da liberdade”, no sentido marxista – para adquirir o tempo livre necessário para atingir o mais alto nível de autogestão.

O que os eventos de maio e junho na França demonstraram não foi a necessidade de um partido tipo bolchevique, mas a necessidade de maior consciência entre as “massas”. Paris demonstrou que uma organização é necessária para propagar ideias sistematicamente – e não ideias sozinhas, mas ideias que promovam o conceito de autogestão. O que faltou às “massas” francesas não foi um comitê central para organizar ou comandá-las, mas a convicção de que elas poderiam ter operado as fábricas, ao invés de ocupá-las somente. Vale a pena ressaltar que nem um único partido tipo bolchevique reivindicou a autogestão. A reivindicação foi feita somente pelos anarquistas e situacionistas.

Há uma necessidade por uma organização revolucionária – mas sua função deve ser sempre mantida claramente em mente. Sua primeira tarefa é a propaganda, para “explicar pacientemente”, como colocou Lênin. Em uma situação revolucionária, a organização revolucionária apresenta as mais avançadas reivindicações: ela está preparada para toda mudança de eventos para formular – na forma mais concreta – a tarefa imediata que deve ser desempenhada para o processo revolucionário avançar. Ela fornece os elementos mais nítidos em ação e nos órgãos de tomada de decisão da revolução.

De que modo, então, grupos anarcocomunistas diferem do tipo bolchevique de partido? Certamente não nas em questões como a necessidade de organização, planejamento, coordenação, propaganda em todas as suas formas ou na necessidade de um programa social. Fundamentalmente, eles diferem do tipo bolchevique de partido em sua crença de que revolucionários genuínos devem funcionar dentro de estruturas de formas criadas pela revolução, não pelo partido. O que isso significa é que seu comprometimento se dá aos órgãos revolucionários de autogestão, não à “organização” revolucionária; às formas sociais, não às formas políticas. Anarcocomunistas buscam persuadir os comitês de fábricas, assembleias ou sovietes para fazerem-se órgãos genuínos de autogestão popular, não dominá-los, manipulá-los ou prender todos a um partido político onisciente. Anarcocomunistas não buscam criar uma estrutura estatal sobre esses órgãos revolucionários populares, mas, pelo contrário, dissolver todas as formas organizacionais desenvolvidas no período pré-revolucionário (incluindo as suas próprias) para dar lugar a esses órgãos genuinamente revolucionários.

Essas diferenças são decisivas. A despeito de sua retórica e slogans, os bolcheviques russos nunca acreditaram nos sovietes; eles os consideravam instrumentos do Partido Bolchevique, uma atitude que os trotskistas franceses lealmente reproduziram em suas relações com a assembleia de estudantes da Sorbonne, os maoístas franceses com os sindicatos franceses, e os grupos da Velha Esquerda com o SDS. Por volta de 1921, os sovietes estavam virtualmente mortos, e todas as decisões eram tomadas pelo Comitê Central Bolchevique e do Departamento Político. Os anarcocomunistas não buscam somente evitar que os partidos marxistas repitam isso; eles também desejam evitar que sua própria organização tenha um papel similar. Do mesmo modo, eles tentam evitar que burocracia, hierarquia e elites dominem seu meio. Não menos importante, eles tentam refazer-se; extirpar de suas personalidades aqueles traços autoritários e propensões elitistas que são assimiladas na sociedade hierárquica quase desde o nascimento. O interesse do movimento anarquista com o estilo de vida não é meramente uma preocupação com sua própria integridade, mas com a integridade da própria revolução.[30]

No meio de todas essas confusas correntes ideológicas de nosso tempo, uma questão sempre permanece em primeiro plano: para que diabos estamos tentando fazer uma revolução? Estamos tentando fazer uma revolução para criar novamente hierarquia, mantendo um futuro sombrio de liberdade futura diante dos olhos da humanidade? É para promover mais avanços tecnológicos, criar uma abundância ainda maior de bens que a hoje existente? É para levar o PL ao poder? Ou o Partido Comunista? Ou o Partido Socialista dos Trabalhadores? É para emancipar abstrações como “O Proletariado”, “O Povo”, “História”, “Sociedade”?

Ou é para finalmente dissolver a hierarquia, domínio de classe e coerção – para fazer possível que cada indivíduo ganhe controle de sua vida cotidiana? É para fazer cada momento tão maravilhoso quanto possa ser e a extensão de vida de cada indivíduo uma experiência totalmente consumada? Se o verdadeiro objetivo da revolução é levar o homem neandertal do PL ao poder, não vale a pena fazê-la. Precisamos discutir bastante as inócuas questões de se o desenvolvimento individual pode ser separado do desenvolvimento social e comunal; obviamente os dois se dão juntos. A base para um ser humano completo é uma sociedade bem acabada; a base para um ser humano livre é uma sociedade livre.

Com essas questões de lado, ainda encaramos a questão que Marx levantou em 1850: quando começaremos a pegar nossa poesia do futuro, ao invés de do passado? Deve ser permitido que o morto enterre o morto. O marxismo está morto porque é baseado em uma era de escassez material, limitada em suas possibilidades pela carência material. A mais importante mensagem do marxismo é que a liberdade tem pré-condições materiais – devemos sobreviver para viver. Com o desenvolvimento de uma tecnologia que não poderia ter sido concebida nem pela mais mirabolante ficção científica nos dias Marx, a possibilidade de uma sociedade pós-escassez agora se encontra à nossa frente. Todas as instituições da sociedade proprietária – domínio de classe, hierarquia, a família patriarcal, burocracia, a cidade, o Estado – se exauriram. Hoje, a descentralização não é somente desejável como meio de restaurar a escala humana, é necessária para criar novamente uma ecologia viável, para proteger a vida neste planeta de poluentes destrutivos e erosão do solo, para preservar uma atmosfera respirável e o equilíbrio da natureza. A promoção de espontaneidade é necessária se a revolução social deve colocar cada indivíduo no controle de sua vida cotidiana.

As antigas formas de luta não desaparecem totalmente com a decomposição da sociedade de classes, mas estão sendo ultrapassadas pela discussão de uma sociedade sem classes. Não pode haver nenhuma revolução social sem atingir os trabalhadores, por isso eles têm de ter nossa solidariedade ativa em toda luta que empreendem contra a exploração. Lutamos contra crimes sociais onde quer que ocorram – e exploração industrial é um crime social completo. Mas assim são o racismo, a negação do direito de autodeterminação, o imperialismo e a pobreza – e assim são a poluição, a urbanização sem condições, a perniciosa socialização dos jovens e a repressão sexual. No que diz respeito ao problema de ganhar a classe trabalhadora para a revolução, devemos ter em mente que uma pré-condição para a existência da burguesia é o desenvolvimento do proletariado. O capitalismo como um sistema social pressupõe a existência de ambas as classes e é perpetuado pelo desenvolvimento de ambas as classes. Começamos a minar as premissas de domínio de classe na medida em que libertamos as classes não burguesas, ao menos institucionalmente, psicologicamente e culturalmente.

Pela primeira vez na história, a fase anárquica que abriu todas as grandes revoluções do passado pode ser preservada como uma condição permanente pelo avanço da tecnologia de nosso tempo. As instituições anárquicas dessa fase – as assembleias, os comitês de fábrica – podem ser estabilizados como os elementos de uma sociedade libertada, como os elementos de um novo sistema de autogestão. Construiremos um movimento que possa defendê-las? Podemos criar uma organização de grupos de afinidades que seja capaz de dissolver-se dentro dessas instituições revolucionárias? Ou construiremos um partido hierárquico, centralizado e burocrático que tentará dominá-las, suplantá-las e, ao final, destruí-las?

Escuta, marxista: a organização que tentamos construir é o tipo de sociedade que nossa revolução criará. Ou largamos o passado – em nós mesmos, assim como em nossos grupos – ou simplesmente não haverá futuro para conquistar.


Nova Iorque

Maio de 1969

Notas

  1.  Partido estadunidense que pode ser traduzido por Partido Progressista Trabalhador Maoísta, cuja sigla é PLP (muita usada por Bookchin e que será mantida na forma original nesta tradução). Fundado em 1961 por uma dissidência do Partido Comunista dos EUA, existe até hoje (N. do T.).

  2.  Students for a Democratic Society, Estudantes por uma Sociedade Democrática, movimento estudantil estadunidense de esquerda (a chamada New Left) existente nos anos 1960. (N. do T.)

  3.  Essas linhas foram escritas quando o Partido Progressista Trabalhador (PLP) exercia uma grande influência na SDS. Apesar de o PLP ter perdido agora a maior parte de sua influência no movimento estudantil, a organização ainda é um bom exemplo da mentalidade e dos valores prevalentes na Velha Esquerda. A caracterização acima é igualmente válida para a maior parte dos grupos marxista-leninistas, assim essa passagem e outras referências ao PLP não foram substancialmente alteradas.

  4.  Dodge Revolutionary Union Movement, parte da Liga dos Trabalhadores Negros Revolucionários de Detroit.

  5.  O marxismo é acima de tudo uma teoria de prática, ou, para colocar esta relação em sua perspectiva correta, uma prática de teoria. Esse é o verdadeiro significado das transformações da dialética por Marx, que tomou isso da dimensão subjetiva (para a qual os Jovens Hegelianos ainda tentaram confinar a visão de Hegel) para o objetivo, de uma crítica filosófica para ação social. Se a teoria e a prática se separarem, o marxismo não será morto, ele cometerá suicídio. Essa é a mais admirável e digna característica. As tentativas dos cretinos que seguem o caminho de Marx de manter vivo o sistema com retalhos e emendas, exegese, e “conhecimento” meia-boca à la Maurice Dobb e George Novack são degradantes insultos ao nome de Marx e uma repulsiva poluição de tudo que ele sustentava.

  6.  Na verdade, os marxistas façam pouco sobre a “crise [econômica] crônica do capitalismo” hoje em dia – apesar do fato de esse conceito compor o foco das teorias econômicas de Marx.

  7.  Por razões ecológicas, não aceitamos a noção da “dominação da natureza pelo homem” no sentido simplista que foi transmitido por Marx um século atrás. Para uma discussão desse problema, ver Ecologia e Pensamento Revolucionário.

  8.  É irônico que os marxistas que falam sobre o “poder econômico” do proletariado estejam, na verdade, ecoando a opinião dos anarcossindicalistas, uma opinião a que Marx se opôs asperamente. Marx não estava preocupado com o “poder econômico” do proletariado, mas com seu poder político; particularmente com o fato de que ele se tornou a maioria da população. Ele estava convencido de que os trabalhadores industriais seriam guiados à revolução primeiramente pela destituição material que sucederia a tendência de acumulação capitalista; de modo que, organizado pelo sistema da fábrica e disciplinado por uma rotina industrial, eles seriam capazes de constituir sindicatos e, acima de tudo, partidos políticos, que em alguns países seriam obrigados a usar métodos insurrecionários e, em outros (Inglaterra, Estados Unidos e, anos depois, acrescentou Engels, França) poderiam chegar ao poder através de eleições e legislar para colocar em prática o socialismo. Distintamente, o Progressive Labor Party esteve com os leitores do Challenge [jornal bi-semanal do PLP (N. do T.)], deixando observações importantes não traduzidas, ou distorcendo grosseiramente a intenção de Marx.

  9.  Este é um bom local para descartar a noção de que qualquer um é um “proletário” que não tem nada a vender, exceto seu poder de trabalho. É verdade que Marx definiu o proletariado nesses termos, mas ele também elaborou uma dialética histórica sobre o desenvolvimento do proletariado. O proletariado se desenvolve a partir de uma classe explorada e sem propriedades, alcançando sua mais avançada forma no proletariado industrial, que corresponde à mais avançada forma de capital. Nos anos seguintes de sua vida, Marx veio a desprezar os trabalhadores parisienses, que estavam comprometidos principalmente na produção de bens de luxo, citando “nossos trabalhadores alemães” – o tipo mais robô da Europa – como o proletariado “modelo” do mundo.

  10.  A tentativa de descrever a teoria da imiseração em termos internacionais, ao invés de nacionais (como o fez Marx), é puro subterfúgio. Em primeiro lugar, esse truque teórico simplesmente tenta colocar à parte a questão de por que a imiseração não ocorreu dentro dos baluartes do capitalismo, as únicas áreas que formam um ponto de partida tecnologicamente adequado para uma sociedade sem classes. Se prendermos nossas esperanças no mundo colonial como “o proletariado”, essa posição esconde um perigo muito real: genocídio. Os Estados Unidos e sua recente aliada, a Rússia, têm todos os meios técnicos para colocar o mundo subdesenvolvido em submissão por seu poder bélico. Uma ameaça espreita no horizonte histórico – o desenvolvimento dos Estados Unidos como um império verdadeiramente fascista do tipo nazista. É besteira absoluta dizer que este país é um “tigre de papel” [expressão usada por Mao Tse-Tung se referindo aos EUA, em 1956 (N. do T.)]. Ele é um tigre termomolecular e a classe dominante americana, carecendo de qualquer limitação moral, é capaz até mesmo de ser mais cruel que a alemã.

  11.  Lênin o percebeu e descreveu “socialismo” como “nada mais que um monopólio do estado capitalista feito para beneficiar todo o povo”. Essa é uma afirmação extraordinária, se se estudam suas implicações, e uma grande contradição.

  12.  Sobre essa questão, a Velha Esquerda projeta sua própria imagem neandertal no trabalhador americano. Na verdade, essa imagem se aproxima mais do personagem do burocrata sindical ou do comissário stalinista.

  13.  No original, “workerness”, entre aspas. Deve ser entendido como um neologismo que se refere ao trabalho. (N. do T.)

  14.  O trabalhador, nesse sentido, começa a se aproximar dos tipos humanos socialmente transicionais que proveram a história com seus elementos mais revolucionários. Geralmente, o “proletariado” foi mais revolucionário em períodos transicionais, quando ele era menos “proletarizado” psiquicamente pelo sistema industrial. Os grandes focos das resoluções clássicas dos trabalhadores foram Petrogrado e Barcelona – lá os trabalhadores foram diretamente desarraigados de uma prática camponesa – e Paris – lá eles ainda se baseavam em ofícios, ou vinham diretamente de uma prática de ofícios. Esses trabalhadores tinham a maior dificuldade em se aclimatar à dominação industrial e se tornaram uma fonte contínua de inquietação social e revolucionária. Por outro lado, a classe trabalhadora hereditariamente estável tendia a ser surpreendentemente não revolucionária. Mesmo no caso de trabalhadores alemães que eram citados por Marx e Engels como modelos para o proletariado europeu, a maioria não apoiava os espartaquistas de 1919. Eles retornaram como ampla maioria de social-democratas no Congresso de Conselhos de Trabalhadores, e no Reichstag anos depois, e se reuniam consistentemente sob o Partido Social Democrata em 1933.

  15.  Escolas que ensinam certas características para ter certos empregos. Semelhante a um curso técnico. (N. do T.)

  16.  Esse estilo de vida revolucionário pode se desenvolver nas fábricas assim como nas ruas, em escolas assim como em crash pads [tipo de habitação coletiva parecida com okupas, e squats (N. do T.)], nos subúrbios assim como no leste da área da baía de San Francisco. Sua essência é a rebeldia, e uma “propaganda pelo ato” pessoal que corrói todas as tradições, instituições e lemas de dominação. À medida que a sociedade começa a se aproximar do princípio do período revolucionário, as fábricas, escolas e bairros tornam-se a verdadeira arena da “brincadeira” revolucionária – uma “brincadeira” que tem um núcleo muito sério. Greves tornam-se uma condição crônica e são convocadas por seu próprio interesse de quebrar a aparência da rotina, para desafiar a sociedade quase de hora em hora, para quebrar o ânimo da normalidade burguesa. Esse novo ânimo dos trabalhadores, estudantes e pessoas dos bairros é um precursor vital ao verdadeiro momento da transformação revolucionária. Sua mais consciente expressão é a reivindicação de “autogestão”; o trabalhador recusa-se a ser um ser “gestionado”, um ser de classe. Esse processo foi mais evidente na Espanha, às vésperas da revolução de 1936, quando trabalhadores em quase todo município e cidade convocaram greves “por prazer” – para expressar sua independência, seu senso de despertar, sua quebra com a ordem social e com as condições de vida burguesas. Foi também uma característica essencial da greve geral de 1968 na França.

  17.  A característica mais impressionante das revoluções do passado é que […]. Um fato que Trótski nunca compreendeu. Ele nunca investigou satisfatoriamente as consequências de seu conceito próprio de “desenvolvimento combinado” às suas conclusões lógicas. Ele viu (um pouco corretamente) que a Rússia czarista, o último país no desenvolvimento burguês europeu, necessariamente obteve as mais avançadas formas industriais e de classe ao invés de começar o desenvolvimento burguês desde o início. Ele negligenciou considerar aquela Rússia, dilacerada por grandes sublevações internas, pudesse correr à frente do desenvolvimento capitalista de algum lugar da Europa. Hipnotizado pela fórmula “propriedade nacionalizada é igual a socialismo”, ele falhou em reconhecer que o próprio capitalismo monopolista tende a se juntar ao Estado por sua própria dialética interna. Os bolcheviques, tendo acabado com as formas tradicionais de organização burguesas (que ainda agem como controle no desenvolvimento do Estado capitalista na Europa e na América), inadvertidamente prepararam o terreno para o desenvolvimento “puro” de um estado capitalista no qual o Estado finalmente torna-se a classe dominante. Carecendo de apoio de uma Europa tecnologicamente avançada, a Revolução Russa tornou-se uma contrarrevolução interna; a Rússia Soviética tornou-se uma forma de estado capitalista que não “beneficia todo o povo”. A analogia de Lênin entre “socialismo” e capitalismo de estado torna-se uma aterrorizante realidade com Stálin. A despeito de seu núcleo humanista, o marxismo falhou em compreender o quanto seu conceito de “socialismo” se aproxima de um estágio avançado do próprio capitalismo – o retorno de formas mercantis em um nível industrial mais alto. O fracasso de entendimento desse desenvolvimento levou a uma confusão teórica devastadora no movimento revolucionário contemporâneo, como testemunha de rachas entre os trotskistas a respeito dessa questão.

  18.  O Movimento 22 de Março funcionou como um agente catalisador nos eventos, não como liderança. Ele não comandou; ele instigou, deixando um livre desenrolar para os acontecimentos. Esse livre desenrolar, que permitiu aos estudantes agirem em seu próprio momento, foi indispensável para a dialética da insurreição, pois, sem ele, não haveria barricadas em 10 de maio, que, por sua vez, impulsionaram a greve geral dos operários.

  19.  Ver “The Forms of Freedom” (“As Formas de Liberdade”).

  20.  Como uma arrogância sublime, que é tributável parcialmente à ignorância, alguns grupos marxistas queriam nomear de “sovietes” praticamente todas as formas de autogestão acima. A tentativa de trazer todas essas diferentes formas sob um único nome não é o único engano intencionalmente obscurantista. Os verdadeiros sovietes eram as formas menos democráticas da revolução e os bolcheviques os usavam astutamente para transferir poder a seu próprio partido. Os sovietes não eram baseados em democracia cara a cara, como as seções parisienses ou as assembleias estudantis de 1968. Nem eram baseados em autogestão econômica, como os comitês de fábricas espanhóis anarquistas. Os sovietes formavam, na verdade, um parlamento de trabalhadores, um órgão hierárquico que retirava sua representação de fábricas e, depois, de unidades militares e aldeias camponesas.

  21.  Tratado de paz entre o governo bolchevique e os países da Tríplice Aliança, marcando a saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial. (N. do T.)

  22.  V. I. Lenin, “The Immediate Tasks of the Soviet Government,” em Obras Selecionadas, vol. 7 (International Publishers; New York, 1943), p. 342. Nesse ríspido artigo, publicado em abril de 1918, Lênin abandonava completamente a perspectiva libertária a que tinha avançado no ano anterior em “Estado e Revolução”. Os temas principais do artigo são a necessidade de “disciplina”, de controle autoritário sobre as fábricas, e da instituição do sistema Taylor [Taylorismo, sistema para aumentar a produção industrial (e os lucros, originalmente) (N. do T.)] (um sistema que Lênin denunciara antes, pois escravizaria o homem à máquina). O artigo foi escrito durante um período relativamente pacífico do governo bolchevique, cerca de dois meses depois da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, e um mês antes da revolta da Legião Tcheca no Ural – a revolta que começou a guerra civil em larga escala e abriu o período de intervenção direta dos Aliados na Rússia. Por fim, o artigo foi escrito perto de um ano antes da derrota da revolução alemã. Seria difícil ter em conta as “Tarefas Imediatas” somente em termos da guerra civil russa e do fracasso da revolução européia.

  23.  ”Mir”, em russo, pode significar “sociedade”. Eram comunidades agrárias camponesas. (N. do T.)

  24.  Exército Insurrecionário Revolucionário da Ucrânia, de tendência anarcocomunista, liderado por Nestor Makhno.(N. do T.)

  25.  Corrente política também conhecida como dos Trudoviks. (N. do T.)

  26.  Braço militar do governo bolchevique, responsável, entre outras coisas, pela perseguição aos adversários políticos, torturas e repressão em geral.(N. do T.)

  27.  Ao interpretar esse movimento fundamental dos operários e camponeses russos como uma série de “conspirações do Exército Branco”, “atos de resistência kulak [fazendeiros relativamente ricos (N. do T.)]” e “conspirações do capital internacional”, os bolcheviques atingiram uma baixeza teórica incrível e não enganaram ninguém, exceto a si mesmos. Um desgaste espiritual desenvolveu-se dentro do partido, o que abriu caminho para os políticos da polícia secreta, para assassinato político, e, finalmente, para os julgamentos de Moscou e a aniquilação do antigo revolucionário profissional bolchevique. Vê-se o retorno dessa mentalidade odiosa em artigos do PL [Progressive Labor, partido marxista-leninista estadunidense (N. do T.)] em artigos como “Marcuse: Fujão ou Tira?” – cujo tema é estabelecer Marcuse como agente da CIA (Ver o Progressive Labor de fevereiro de 1969). O artigo tem uma legenda sob uma fotografia de parisienses protestando que diz: “Marcuse foi a Paris muito tarde para parar a ação de maio”. Oponentes do PLP são invariavelmente descritos por esse jornaleco como “anticomunistas” ou “antitrabalhadores”. Se a esquerda americana não repudiar essa abordagem policial e o assassinato político, ela vai pagar caro nos próximos anos.

  28.  Termo em latim que significa “indispensável”, “fundamental”. (N. do T.)

  29.  O termo “anarquista” é uma palavra genérica, como o termo “socialista”, e há provavelmente tantos anarquistas diferentes quanto socialistas. Em ambos os casos, o espectro varia de indivíduos cujas visões derivam de uma extensão do liberalismo (os “anarquistas individualistas”, os social-democratas) a comunistas revolucionários (os anarcocomunistas, os marxistas, leninistas e trotskistas revolucionários).

  30.  É esse objetivo, podemos acrescentar, que motiva o dadaísmo anarquista, a loucura anarquista que produz as rugas de preocupação nas tolas faces dos tipos do PLP. A loucura anarquista tenta quebrar os valores internos inerentes à sociedade hierárquica, explodir a rigidez instilada pelo processo de socialização burguesa. Em suma, é uma tentativa de romper o superego que exerce um efeito tão paralisante sobre a espontaneidade, imaginação e sensibilidade e restaurar um senso de desejo, possibilidade e do maravilhoso – revolução como um festival libertador e jubiloso.


De “Anarquismo Pós-Escassez”, 1971.

Traduzido por oceano

O anarquismo que aí vem

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

(O texto que hoje traduzimos foi publicado no órgão da FAI, Tierra y Libertad, de Fevereiro, colocado na internet, mas depois apagado. No entanto, já tinha sido publicado em diversos outros sites de língua castelhana. É um texto polémico cujo autor afirma que os anarquistas têm que deixar as análises do passado e olhar mais para a sociedade em que vivem, onde as próprias relações de poder se estão a alterar).

Andrea Papi

Para muitos, o mundo actual é pouco atractivo e para muitos outros está-se a tornar inabitável. Uma condição difusa que, por si mesma, deveria ser suficiente para empurrar as massas humanas insatisfeitas para uma alternativa de libertação social. O fracasso histórico do bolchevismo, entre outras coisas, deveria ter, pelo menos em teoria, favorecido a adesão aos movimentos anarquistas que, neste momento, estariam cheios de adeptos e de simpatizantes atraídos de uma forma irresistível. Em vez disso assistimos a um empobrecimento da presença militante, enquanto se registam adesões, nalguns casos consistentes, para comportamentos práticos e experiências que podem reconduzir ao sentido e à qualidade das propostas anarquistas (decisões colectivas através de formas de democracia directa, recusa das hierarquias, tensões igualitárias, cooperação e solidariedade partilhadas de forma mútua, etc.), em geral sem se reconhecerem e definirem como tais e muito longe do que era a militância em sentido clássico.

Noutras palavras, o anarquismo está a mudar a forma e o modo de ser fora dos canais ligados à experiência “oficialmente” codificada enquanto tal. Por isso, suponho que se está a produzir uma renovação espontânea, feita de um impulso libertário sincero e genuíno que o velho anarquismo não está na disposição de absorver ou integrar (ou porque não quer, ou porque não o entende, ou porque não é capaz, à parte de algum esporádico e raro caso). Não seria afastarmo-nos da realidade afirmar que nesta fase está a tomar forma e a manifestar-se autonomamente um “anarquismo de novo sabor”, já que o seu nascimento está desligado daquele que existe e é historicamente reconhecido.

Não há nada de mau nisto. Inclusive, em certos aspectos pode ser visto como algo de bom. O considerado “velho”, sobretudo pelo peso intrínseco da sua poderosa história, desde há décadas que aparece facilmente esclerótico e frequentemente imóvel, quando, na realidade, considerado na sua natureza específica de “movimento” deveria estar permanentemente “animado”, genuinamente capaz de se renovar sem ficar pesadamente ancorado a esquemas que se tornaram velhos e obsoletos. Se o “novo” (acrescento eu), com toda a sua multiplicidade de manifestações, antes ou depois não se relaciona com o “velho”, inovando-o cultural e experimentalmente, com muita dificuldade poderá conservar essa integridade libertária que o distingue, para ser (maldito seja!) absorvido por lógicas e visões que o reconduzirão ao maléfico “bando autoritário”, sempre à espreita.

Saber renovar-se quer dizer, antes de mais nada, adquirir a capacidade de actualizar a leitura da realidade, para captar os movimentos, as mutações, as mudanças. Depois há que saber colocar hipóteses para os experimentar, meios e métodos aptos para contestar de forma eficaz e inteligente o contexto despótico que exerce a dominação, para tentar superá-la ou eliminá-la: em suma, para conseguir acabar com ela, com o objectivo de viver relações sociais livres através de tensões libertadoras e libertárias. Parece-me claro que um tal percurso, que não se pode definir senão quando se põe em prática, deverá necessariamente ser expurgado de esquematismos  e ideologismos que escondem o caminho, sabotando-o e, de facto, impedindo-o de ser percorrido.

Não temos que ter medo de abandonar os velhos esquemas que definem o percurso revolucionário, que propõem uma narração do conflito social que, de forma mais ou menos sabida, se apresenta como se fosse absoluta, quase sugerindo que não pode haver outra (a lógica dogmática da “única via possível”). E, nesta vertente, a adesão à “luta de emancipação” pode cair em atitudes cegas e religiosas.

Pensar e agir “em grande”

Na verdade, tudo mudou e continua a mudar, e o anarquismo, se for autêntico, não pode ser entendido como fixo ou parado. Como tudo o que está vivo e em movimento, não pode ser visto como se fosse imóvel: como um corpo que cresce tem continuamente constantes alterações de desenvolvimento. Mesmo em relação aos primeiros momentos em que foi concebido e pensado, realizado nos limites do possível, mudou também profundamente o contexto planetário circundante, como mudaram também os estímulos, o tipo de observações e o imaginário, tudo aquilo que em conjunto define uma visão do mundo. Como todas as visões do mundo pode transformar-se e dilatar-se mantendo intacta a sua substância. Tendo bem presente esta dinâmica, julgo que não deve ser entendido como uma ideologia, ainda que alguns o façam, por vezes, talvez na ilusão de fixarem uma globalidade que, de facto, não é sua.

A velha narrativa em que nos forjámos fala-nos, por exemplo, de insurreição revolucionária para tomar o poder e impor a ditadura do proletariado (como sustentava o marxismo-leninismo) ou para destruir o Estado (como sempre defenderam os anarquistas). Nos dois casos ter-se-ia que tomar os “Palácios do Poder”, num caso para se apossar deles, no outro para destrui-los e eliminar todas as formas de autoritarismo político. Hoje já não há nenhum “Palácio” a conquistar, enquanto que, pelas condições em que nos obrigam a viver, estamos permanentemente imersos num nível de confronto que pode inclusivamente desembocar em lógicas de guerra, sem inimigos nem lugares claramente identificados. Claro que algumas vezes vai-se conseguir vencer alguma escaramuça com as forças da polícia, mas como o verdadeiro poder já não está onde se encontrava dantes e gerou outras formas de poder enormemente sofisticadas, isso não resolve nada.

A velha narrativa dizia-nos que tudo gira em torno da luta irreconciliável entre a burguesia e o proletariado, um confronto permanente entre patrões e explorados intrínseco à estrutura sobre a qual se construiu a sociedade capitalista, vista quase como a ultima forma estrutural da história. Uma visão rígida, que não chega para perceber as dinâmicas da actual liquidez social (para dizê-lo como Bauman), nem a complexidade das redes globais que está a envolver o mundo no seu conjunto. A nova servidão e os novos escravos são massas humanas submissas que representam uma realidade muito mais complexa e articulada do que a working class da memória marxiana, enquanto que a rede global de especulação que alimenta e favorece a oligarquia financeira, capaz de sujeitar a economia produtiva à própria avidez, é algo muito mais complexo e estruturado do que a velha burguesia capitalista de antigamente. O mundo está a enredar-se em algo muito mais ilusório e multiforme do que o conflito dialéctico linear colocado como hipótese nessa altura.

Já não temos que nos confrontar simplesmente com generais, reis, chefes de governo, patrões e todas essas figuras que sempre personificaram o poder enquanto mando e vontade de imposição. Não me interpretem mal; todas essas figuras estão ainda presentes por todo o lado, mas já não representam o vértice da concentração de poder de que depende o destino do mundo. O despotismo, base fundamental da qualidade das relações, continua a crescer, mas tem sofrido mutações que alteram a qualidade das formas e dos métodos de imposição. Atravessamos um passo prepotente e significativo do “mando” para a “coerção objectiva”, como fundamento da capacidade de dominar.

Por tudo isto, não podemos continuar a desgastar-nos numa extenuante guerra de oposição, que se queria revolucionária, na ilusão perpétua de derrubar as estruturas caducas de poderes cada vez menos poderosos, nalguns casos, mesmo em extinção. Devemos, pelo contrário, começar a pensar e a agir “em grande” (entendendo grande em termos cósmicos), escolhendo e inaugurando de forma séria uma rota dedicada sobretudo a construir e a experimentar, de todas as formas criativas possíveis, o novo e diferente que acreditamos poderem concretizar a libertação e a liberdade desejadas, deixando de nos apresentarmos como se estivéssemos numa guerra permanente contra imagens fantoche, que só servem como espantalhos do poder para nos ter entretidos com “tarefas” destinadas ao nosso aniquilamento.

 

Pontes entre O Anarquismo e O Confederalismo Democrático

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Fonte: Kurdish Question, em 19 de Fevereiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Texto original por Bruno Lima Rocha

Introdução: discutindo o modelo de partido e sua missão   

Desde o início do cerco a Kobane pelo Daesh (ISIS), a esquerda curda, e, especificamente, o modelo de organização social em Rojava tem sido estudado e seguido por várias organizações, ativistas, redes e estudiosos comprometidos. Decidi colaborar com KurdishQuestion.com para produzir uma série de artigos curtos para expor (e provar) as semelhanças entre a tradição ocidental (e não ocidental também) anarquista e o Confederalismo democrático. Enquanto uma das minhas áreas centrais de estudo é a teoria política (e teoria política radical), decidi ajudar na elaboração dos paralelos entre os dois caminhos e familiarizando-os um ao outro. Espero que isso ajude e todas as críticas são bem vindas. 

Apresentação

O modelo de partido anarquista apresentado nesta série não é uma inovação em si mesmo para a teoria política e teoria política radical, e nem mesmo para a tradição de esquerda. Se os estudos sobre o tema são bastante desconhecidos (ou parecem ser novos ou inexistente), se este formato de organização política não se tornou um objeto de estudo (ou reconhecido como o modelo de partido para a auto-gestão e de democracia direta), isto ocorre devido à correlação de forças dentro do mainstream acadêmico, às derrotas sofridas pelos anarquistas classistas desde 1939 e também por causa da ausência de debates no seio da comunidade de esquerda, o espectro acadêmico e da mídia mainstream. Este modelo aproxima os militantes dentro de uma organização política especifica que adere a um corpo ideológico-doutrinário (também conhecido como partido de quadros). Porque não é uma proposta de massa, que tem o formato de ter a associação composta por quadros políticos, sem filiação aberta e cujo grau de compromisso aumenta à medida que eles entram mais para os círculos concêntricos (ver Bakunin). Tal modalidade adquiriu definições na história, tais como: organicismo, plataformismo, especifismo; todos estes são sinônimo da definição do partido anarquista (federação específica).

Introdução ao Papel do Partido

O modelo da matriz de esquerda libertária e a perspectiva apresentada nesta série, representa uma possível aplicação de um campo de intenções, motivações normativas e interesses estratégicos na América Latina em geral, e no Brasil, em particular. Mas, presumimos, que, desde que nos conhecermos melhor, as possibilidades de desenvolvimento político será reforçada a partir da experiência real na região oeste do Curdistão e o debate interno sobre o pensamento no contexto do PKK. É muito interessante entender que a missão desse partido não é ser parte de um poder institucional do Estado-Nação, mas ajudar na construção de uma sociedade baseada em legítimos direitos (individuais e coletivos), a auto-gestão, e da democracia direta e radical, e o mais longe possível do industrialismo e de uma economia centrada no mercado. A hipótese formulada dentro da perspectiva de uma verdadeira democracia social é a ação da minoria política como uma unidade para acumulação de força e radicalização democrática a longo prazo. Se nós compararmos este simples pressuposto e definição, podemos observar muitas semelhanças entre essa perspectiva e um escrito do companheiro Abdullah Ocallan em 2011:

“Enquanto isso, os Estados-nação se tornaram sérios obstáculos para qualquer desenvolvimento social. Confederalismo Democrático é o paradigma contrastante das pessoas oprimidas. Confederalismo Democrática é um paradigma social não-estatal. Ele não é controlado por um Estado. ” (Do website PKK em Inglês)

É óbvio que ninguém deve criticar este modelo de partido para não competir por posições institucionais dentro de um modelo de Estado-nação, quando sua missão está longe disso. Parto do princípio que determinadas condições prévias estão sempre presentes. Todo “modelo de partido” inclui em sua formatação de condições e regras pelo qual este partido/organização política vai seguir e o caminho que esta instituição (legal ou ilegal) está disposta a tomar de acordo com seus objetivos de médio e longo prazo. A fim de ser teoricamente coerente, é necessário apresentar modelos que podem ser testados, mas, acima de tudo, modelos que possam ser aplicáveis de acordo com as hipóteses sugeridas.

Eu discuto a organização política militante específica que adere a um corpo ideológico e doutrinário. Por outro lado, porque não é uma organização de massas que se estrutura dentro de quadros, sem filiação aberta e cujo nível de comprometimento ocorre dentro de círculos concêntricos, aumentando o nível de compromisso de acordo com o poder de votar e ser votado para os papéis principais atribuídos na estrutura interna. Essa concepção não pode ser mal compreendida ou interpretada equivocadamente. Ou, ninguém deve entender isso como uma espécie de “partido único de boas intenções”, mas como uma concepção estratégica que garanta que os quadros e estruturas partidárias serão colocados a serviço e dever de ajudar a construir novas instituições políticas com base em uma sociedade horizontal e igualitária. O fracasso do modelo de partido na URSS ou outras variações com base na liderança autoritária, centrada no Estado e no industrialismo provam que todo o pensamento de esquerda deve fazer uma grande autocrítica e reconhecer que as condições materiais devem amadurecer juntamente com as condições morais, ecológicas e fraternais. Apenas uma estrutura partidária dedicada a esta causa pode manter uma luta de longo prazo, alimentando projetos sociais, como o fez nas lutas de massa sindicais da América Latina no início do século 20, e como é hoje em dia com a União das Comunidades do Curdistão ( KCK) ou TeV-DEM especificamente em Rojava.

Denominações desta tradição dentro do anarquismo

Vou terminar este primeiro artigo curto lembrando a definição do modelo de partido anarquista. Apesar de não ser exclusivo, este tipo de organização é geralmente considerado como típico da ideologia anarquista: um modelo federal e não-massivo. Ao menos que ele não seja um modelo de partido de vanguarda como os partidos leninistas clássicos, os quadros do partido devem ser aqueles que reforçam a luta de massas e que serão tomadas por todas as comunidades, permitindo que elas tomem o seu próprio destino por e através de assembleias populares. Esta filiação partidária ocorre por meio de círculos concêntricos e com a preparação de militantes que possuem várias funções. Este tipo de modelo adquiriu definições ao longo de sua história, e todos eles também podem ser identificados com a definição do modelo de partido anarquista. Este modelo adquiriu definições específicas ao longo de sua história, como organicismo, plataformismo, especifismo.

Fui muito feliz em descobrir que estas duas tradições aparentemente distantes estão realmente tão próximas umas das outras. Essa proximidade pode ser facilmente detectada em uma simples leitura dos documentos, tanto do PKK quanto destas tradições anarquistas. A tradição e as experiências no Curdistão lideradas pelo PKK podem alimentar as tradições anarquistas de todo o mundo e vice-versa. Esta perspectiva é animadora e é a principal motivação por trás da razão para esta série de artigos curtos.

Bruno Lima Rocha é Doutor e Mestre em Ciência Política e professor de Estudos e Geopolítica Internacional em 3 universidades no Sul do Brasil.

site: www.estrategiaeanalise.com.br
e-mail: strategicanalysis@riseup.net
facebook: blimarocha@gmail.com