Marx e o Anarquismo

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Rudolf rocker

Fonte: Notícias y Anarquia

I

Há alguns anos, pouco depois da morte de Friedich Engels, o senhor Eduardo Bernstein, um dos membros mais ilustres da comunidade marxista, assombrou seus companheiros com algumas descobertas notáveis. Bernstein manifestou publicamente suas dúvidas em relação à exatidão da interpretação materialista da história, da teoria marxista da mais-valia e da concentração do capital; até atacou o método dialético, chegando à conclusão de que não era possível falar de um socialismo crítico. Homem prudente, Bernstein guardou para si suas descobertas até a morte do velho Engels, e só então as tornou públicas diante do espanto dos sacerdotes marxistas. Mas nem sequer essa prudência pôde salvá-lo, pois o atacaram por todos os lados. Kautsky escreveu um livro contra o herege, e o pobre Eduardo viu-se obrigado a declarar no congresso de Hannover que era um frágil pecador mortal e que se submetia à decisão da maioria científica.

Contudo, Bernstein não tinha revelado nada novo. As razões que opunha contra os fundamentos da doutrina marxista já existiam quando ele ainda era apóstolo fiel da igreja marxista. Esses argumentos tinham sido retirados da literatura anarquista, e o único importante era o fato de que um dos social-democratas mais conhecidos se valesse deles pela primeira vez. Nenhuma pessoa sensata negará que a crítica de Bernstein tenha causado uma impressão inesquecível no campo marxista: Bernstein tinha tocado nos pontos mais importantes da economia metafísica de Karl Marx, e não é estranho que os respeitáveis representantes do marxismo ortodoxo tenham se agitado.

Não teria sido tão grave tudo isso se não mediasse outro inconveniente pior que o anterior. Desde cerca de um século os marxistas não param de pregar que Marx e Engels foram os descobridores do chamado socialismo científico; inventando-se uma distinção artificial entre os socialistas intitulados utópicos e o socialismo científico dos marxistas, diferença que existe apenas na imaginação destes últimos. Nos países germânicos, a literatura socialista foi monopolizada pelas teorias marxistas, e todo socialdemocrata as considera como produtos puros e absolutamente originais das descobertas científicas de Marx e Engels.

Mas também essa ilusão foi quebrada: as pesquisas históricas modernas estabeleceram de uma maneira irrefutável que o socialismo científico não é mais que uma consequência dos antigos socialistas ingleses e franceses, e que Marx e Engels conheceram perfeitamente a arte de roubar as ideias alheias. Depois das revoluções de 1848, iniciando-se na Europa uma reação terrível, a Santa Aliança tornou a estender suas redes em todos os países com o propósito de afogar o pensamento socialista, que tão riquíssima literatura produzira na França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Itália. Tal literatura foi quase totalmente esquecida durante essa época de obscurantismo que começou depois de 1848. Muitas das obras mais importantes foram destruídas até que se reduzisse seu número a poucos exemplares que acharam um lar em algum lugar tranquilo de certas grandes bibliotecas públicas ou de algumas pessoas privadas. Só nos fins do século XIX e começo do século XX essa literatura foi novamente descoberta e hoje causam admiração as ideias fecundas que se encontram nos velhos escritos das escolas posteriores a Fourier e Saint-Simon, nas obras de Considerant, Demasi, Mey e muitos outros. E nessa literatura se achou, ainda, a origem do chamado socialismo científico. Nosso velho amigo W. Tcherkesoff foi o primeiro a oferecer um conjunto sistemático de todos esses fatos; demonstrou que Marx e Engels não são os inventores dessas teorias que durante tanto tempo foram consideradas seu patrimônio intelectual (1); até chegou a provar que alguns dos mais famosos trabalhos marxistas, como por exemplo o “Manifesto Comunista”, não são, na verdade, outra coisa que traduções livres do francês, feitas por Marx e Engels. E Tcherkesoff obteve o triunfo de que suas afirmações a respeito do Manifesto Comunista fossem reconhecida pelo “Avanti”, o órgão central da socialdemocracia italiana (2) depois de ter tido o autor a oportunidade de comparar o Manifesto Comunista com o Manifesto da Democracia de Vitor Considerant, que apareceu cinco anos antes que opúsculo de Marx e Engels.

O “manifesto Comunista” é considerado uma das primeiras obras do socialismo científico e o conteúdo desse trabalho foi tirado dos escritos de um “utopista”, pois o marxismo inclui a Fourier entre os socialistas utópicos. É esta uma das ironias mais cruéis que se pode imaginar e não constitui, seguramente, um fator favorável para legitimar o valor científico do marxismo. Víctor Considerante foi um dos primeiros escritores socialistas que Marx conheceu; já o menciona na época em que ainda não era socialista. Em 1842, a “AlgemeineZeitung” atacou a “RheinischeZeitung” da qual era redator-chefe Marx, criticando-lhe por ser simpatizante do comunismo. Marx respondeu então com um editorial (3), em que declarava o seguinte:

“Obras como as de Leroux, Considerant e, especialmente, o livro perspicaz de Proudhon não podem ser criticados com algumas observações superficiais, é preciso estudá-las atenciosamente antes de lançar críticas.”

O socialismo francês exerceu uma enorme influência sobre o desenvolvimento intelectual de Marx; mas de todos os escritores socialistas da França é P. J. Proudhon quem mais poderosamente influiu em seu espírito. Até é evidente que o livro de Proudhon “O que é a propriedade?” induziu Marx a abraçar o socialismo. As observações críticas de Proudhon sobre a economia nacional e as diversas tendências socialistas mostraram para Marx um mundo novo e foi principalmente a teoria da mais-valia, tal como foi desenvolvida pelo genial socialista francês, o que maior impressão causou na mente de Marx. A origem da doutrina da mais-valia, essa grandiosa “descoberta científica”, de que tanto se orgulham nossos marxistas, a encontramos nos escritos de Proudhon. Graças a ele, Marx chegou a conhecer essa teoria, que modificou mais tarde mediante o estudo dos socialistas ingleses Bray e Thompson.

Marx até reconheceu publicamente o grande significado científico de Proudhon, e num livro especial, hoje completamente desaparecido do mercado, chama à sua obra, “O que é a propriedade?” de “o primeiro manifesto científico do proletariado francês”. Essa obra não tornou a ser editada pelos marxistas, nem foi traduzida a outro idioma, apesar de que os representantes oficiais do marxismo fizeram os maiores esforços para difundir em todas as línguas os escritos de seu mestre. Esse livro foi esquecido, se sabe o porquê: sua reimpressão revelaria ao mundo a colossal contradição e a insignificância de tudo que foi escrito por Marx mais tarde sobre o eminente teórico do anarquismo.

Marx não somente tinha sido influenciado pelas ideias econômicas de Proudhon, mas também se sentiu influído pelas teorias anárquicas do grande socialista francês, e em um de seus trabalhos daquele período, combate o estado da mesma forma que o fez Proudhon.

II

Todos aqueles que tenham estudado atentamente a evolução socialista de Marx devem reconhecer que a obra de Proudhon “O que é a propriedade?” foi a que o converteu ao socialismo. Os que não conhecem de perto os detalhes dessa evolução e aqueles que não tiveram oportunidade de ler os primeiros trabalhos socialistas de Marx e Engels, julgaram estranham e inverossímil esta afirmação. Porque em seus trabalhos posteriores Marx fala de Proudhon com deboche e desprezo, e são precisamente estes escritos os que a socialdemocracia voltou a publicar e reimprimir constantemente.

Deste modo, tomou forma pouco a pouco a opinião de que Marx foi, desde o princípio, o adversário teórico de Proudhon e que jamais existiu entre ambos ligação alguma. E verdadeiramente, quando se lê o que o primeiro deles escreveu a respeito do segundo em seu conhecido livro “Miséria da Filosofia”, no “Manifesto Comunista” e na necrologia que publicou no “Sozialdemokrat” de Berlim, pouco depois da morte de Proudhon, não é possível ter outra opinião.

Em “Miséria da Filosofia” ataca Proudhon da pior maneira, valendo-se de todos os recursos para demonstrar que as ideias dele carecem de valor e que não tem nenhuma importância nem como socialista, nem como crítico da economia política.

“O sr.Proudhon – diz – tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Na França, tem o direito de ser mau economista porque passa por ser um bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser mau filósofo, porque passa por ser um dos melhores economistas franceses. Nós na nossa qualidade de alemão e economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra este duplo erro. (4).

E Marx vai ainda mais longe: acusa Proudhon, sem oferecer nenhuma prova, de ter plagiado suas ideias do economista inglês Bray. Escreve:

“acreditamos ter aí encontrado a chave das obras passadas, presentes e futuras do sr.Proudhon.”

É interessante observar como Marx, que tantas vezes utilizava ideias alheias e cujo “Manifesto Comunista” não é na realidade nada além de uma cópia do “Manifesto da Democracia” de Victor Considerant, denuncia a outrem como plagiadores.

Mas prossigamos. No “Manifesto Comunista”, Marx aponta Proudhon como representante burguês e conservador (6). E na necrologia que escreveu no “Sozialdemokrat” (1865), lemos as seguintes palavras:

“Em uma história, rigorosamente científica da economia política, esse livro (se refere a ‘O que é a propriedade?”) apenas mereceria ser mencionado. Porque semelhantes obras sensacionais desempenham nas ciências exatamente o mesmo papel que na literatura romanesca.”

E nesse mesmo artigo necrológico reitera Marx sua afirmação de que Proudhon carece de todo valor como socialista e como economista, opinião que já emitira em “Miséria da Filosofia”.

É fácil compreender que semelhantes afirmações, que Marx lançava contra Proudhon, tinham que divulgar a crença, aliás, a convicção, de que entre ele e o grande escritor francês não existiu nunca o menor parentesco. Na Alemanha, Proudhon é quase totalmente desconhecido. As edições germânicas de suas obras, feitas em torno do ano 1840, estão esgotadas. O único livro seu que voltou a ser publicado em alemão é “O que é a propriedade?” e ainda esta edição se difundiu num círculo restrito. Esta circunstância explica o fato de que Marx tenha conseguido apagar os rastros de sua primeira evolução como socialista. Que seu conceito de Proudhon era bem diferente a princípio, tivemos a oportunidade de ver mais acima e as conclusões que seguem corroborarão nossa tese.

Sendo redator chefe da “RheinischeZeitung”, um dos principais jornais da democracia alemã, Marx chegou a conhecer os escritores socialistas mais importantes da França, embora ele mesmo não fosse ainda socialista. Já mencionamos uma citação sua que alude a Victor Considerant, PierraLeroux e Proudhon, e não resta dúvida de que exerceu, sem dúvida alguma, a maior influência no desenvolvimento socialista de Marx; assim, no período mencionado, chama o genial Proudhon de “o mais consequente e sagaz dos escritores socialistas” (7). Em 1843, a “RheinischeZeitung” foi suprimida pela censura prussiana: Marx partiu para o exterior, e durante esse período evoluiu para o socialismo. Tal evolução se percebe muito bem em suas cartas ao conhecido escritor Arnold Ruge, e melhor ainda em sua obra “A Sagrada Família, ou crítica da crítica”, que publicou conjuntamente com Friedich Engels. O livro apareceu em 1845 e tinha por objetivo polemizar contra a nova tendência do pensador alemão Bruno Bauer (8). Além de questões filosóficas, essa obra se ocupa também de economia política e de socialismo e são precisamente essas partes as que nos interessam aqui.

De todos os trabalhos que publicaram Marx e Engels, é “A Sagrada Família” o único texto que não foi traduzido a outros idiomas e do qual os socialistas alemães não fizeram outra edição. É verdade que Franz Mehrin, herdeiro literário de Marx e Engels, publicou por encargo do Partido Socialista alemão, “A Sagrada Família” junto com outros escritos correspondentes ao primeiro de atuação socialista dos autores, mas isso se fez sessenta anos depois de ter saído a primeira edição, e, por outro lado, a reedição estava destinada aos especialistas, pois seu custo era excessivo para um trabalhador. Fora isso, Proudhon é tão escassamente conhecido na Alemanha, que muitos poucos terão sido os que perceberam a funda discrepância que há entre os primeiros juízos que Marx emitiu sobre ele e os que sustentou mais tarde.

E, entretanto, este livro demonstra claramente o processo evolutivo do socialismo de Marx e a influência poderosa que nele exerceu Proudhon. Tudo o que os marxistas atribuíram depois a seu mestre, Marx o reconhecia, Na obra “Sagrada Família”, como méritos de Proudhon.

Vejamos o que diz a este respeito na página 36:

“Todo o desenvolvimento da economia nacional considera a propriedade privada como hipótese inevitável; esta hipótese constitui para ela um fator incontestável que nem sequer trata de investigar e ao qual só se refere acidentalmente, segundo a ingênua expressão de Say(9). Proudhon se propôs a analisar de um modo crítico a base da economia nacional, a propriedade privada, e foi a sua a primeira investigação enérgica, considerável científica ao mesmo tempo. Nisso consiste o notável progresso científico que realizou, progresso que evoluiu a economia nacional, criando a possibilidade de fazer dela uma verdadeira ciência. ‘O que é a propriedade?’ de Proudhon tem para a economia a mesma importância que a obra de Say ‘O que é o terceiro estado?’ teve para a política moderna.”

É interessante comparar estas palavras de Marx com as que escreveu depois sobre o grande teórico anarquista. No “A Sagrada Família” diz que “O que é a propriedade?” foi a primeira análise científica da propriedade privada e que deu a possibilidade de fazer da economia nacional uma verdadeira ciência; mas em sua conhecida necrologia, publicada no “Sozialdemokrat”, o mesmo Marx assegura que em uma história rigorosamente científica da economia essa obra apenas merece ser mencionada.

Onde está a causa de semelhante contradição? Esta é a pergunta que os representantes do chamado socialismo científico não esclareceram ainda. Na verdade, não há senão uma resposta: Marx queria ocultar a fonte na qual tinha bebido. Todos os que tenham estudado a questão e não se sintam arrastados pelo fanatismo partidário terão que reconhecer que esta explicação não é instável.

Sigamos escutando o que manifesta Marx sobre a importância histórica de Proudhon. Na página 52 do mesmo livro lemos:

“Proudhon não somente escreve a favor do proletariado, mais também é ele um proletário, um operário; sua obra é um manifesto científico do proletariado francês.”

Aqui, como se vê, Marx expressa em termos precisos que Proudhon é um expoente do socialismo proletariado e que sua obra constitui um manifesto científico do proletariado francês. Em troca, no Manifesto Comunista assegura que Proudhon encarna o socialismo burguês e conservador. Cabe maior contradição? Em quem temos que acreditar, no Marx de “A Sagrada Família” ou no autor do Manifesto Comunista? E a que se deve a divergência? É uma pergunta que nos propomos novamente e como é natural, a resposta também é a mesma: Marx queria ocultar ao mundo tudo o que devia a Proudhon e para isso qualquer meio era viável. Não pode ter outra explicação para esse fenômeno: os meios que Marx empregou mais tarde em sua luta contra Bakunin evidenciam que não era muito delicado na escolha deles.

Como Marx tinha sido influenciado pelas ideias de Proudhon e até por suas ideias anarquistas demonstram seus escritos políticos daquele período; por exemplo o artigo que publicou no “Vorwaerts” de Paris.

O “Vorwaerts” era um jornal que era publicado na capital francesa durante 1844-1845, sob a direção de Enrique Bernstein. Sua tendência era, em princípio, liberal apenas. Porém mais tarde, pois da desaparição dos “Anais Germano-Franceses”, Bernstein travou relação com os antígos colaboradores desta última publicação, os quais o conquistaram para a causa socialista. Desde então o “Vorwaerts” se converteu em um órgão oficial de socialismo e numerosos colaboradores da extinta publicação de A. Ruge, entre eles Bakunin, Marx, Engels, Enrique Heine, Georg Herwergh etc., contribuíram para ele com seus trabalhos.

No número 63 desse jornal (7 de agosto de 1844), Marx publicou um trabalho polêmico, “Glosas críticas Marginais ao artigo O rei da Prússia e reforma social”. Nele estuda a natureza do Estado e demonstra a incapacidade absoluta desse organismo para reduzir a miséria social e para suprimir o pauperismo. As ideias que o autor desenvolve nesse artigo são ideias puramente anarquistas e estão em perfeita concordância com os conceitos que Proudhon, Bakunin e outros teóricos do anarquismo estabeleceram a esse respeito. Pelo seguinte fragmento do estudo de Marx poderão julgar os leitores:

“O estado é incapaz de suprimir a miséria social e anular a pobreza. E ainda quando se preocupa com este problema, se é que se decide a fazer algo, não dispõe de outros recursos que a beneficência pública e as medidas de caráter administrativo e frequentemente nem sequer isso”.

“Nenhum estado pode proceder de outra forma; porque para suprimir a miséria deveria suprimir-se a si mesmo, posto que a causa do mal reside na essência, na própria natureza do estado, e não é uma forma determinada dele como supõe muita gente radical e revolucionária que aspira a modificar essa forma por outra melhor”.

“É um gravíssimo erro acreditar que a miséria e os terríveis males do pauperismo podem ser curados mediante uma forma qualquer do estado. Se o estado reconhece a existência de certos males sociais, trata de explicá-los, tanto como leis naturais contra as quais nada pode fazer o homem, como resultados da vida privada, na qual não pode meter-se, ou também como defeitos da administração pública. Por isso na Inglaterra a miséria é considerada uma consequência de uma lei natural, segundo a qual os homens aumentam em proporção maior os meios de vida. Outros afirmam que a má vontade dos homens é a causa de sua pobreza: o rei da Prússia, Federico Guillermo I, vê a causa deles com os corações pouco cristãos dos ricos; e a Convenção, o parlamento revolucionário francês, sustenta que os males sociais são consequência do espírito contrarrevolucionário que demonstram os proprietários. Por conseguinte, na Inglaterra se castiga os pobres, o rei da Prússia lembra aos ricos seus deveres cristãos e a Convenção francesa corta as cabeças dos proprietários.”

“Ademais, todos os estados procuram a causa da miséria nos defeitos fortuitos ou intencionais da Administração, e portanto acham possível reduzir o mal mediante reformas administrativas. Mas o estado não possui o poder de salvar a contradição existente entre a boa vontade da administração e sua capacidade real; porque si assim fosse, teria que anular-se a si mesmo, já que ele se baseia nessa contradição que reina entre a vida pública e a privada, entre os interesses gerais e os particulares. Por isso a administração se encontra limitada por uma função exclusivamente formal e negativa, pois onde principia a vida civil termina o poder da administração. O estado não pode impedir jamais as consequências que se desenvolvem logicamente por causa do caráter antissocial da vida civil, da propriedade privada, do comércio, da indústria e do despojo mútuo dos diferentes grupos sociais. A baixeza e a escravidão da sociedade burguesa constituem o fundamento natural do estado moderno. A existência do estado e a da escravidão não podem ser separadas. Do mesmo modo como o antigo estado e a escravidão antiga – contradições clássicas e francas -, estão intimamente vinculadas entre si, assim também o estado moderno e o atual mundo de mercadores – contradição cristã e hipócrita – estão fortemente ligados um ao outro”.

Esta interpretação essencialmente anarquista da natureza do estado, parece tão estranha se se lembra das doutrinas posteriores de Marx, é uma prova evidente da origem anárquica de sua primeira evolução socialista. No mencionado artigo se refletem os conceitos da crítica do estado feita por Proudhon, crítica que teve sua primeira expressão em seu famoso livro “O que é a propriedade?”. Esta obra imortal exerceu a influência mais decisiva na evolução do comunista alemão, apesar de ele ter se esforçado para, de todos os modos – e não foram estes os mais nobres – para negar as primeiras fases de sua atuação como socialista. Naturalmente, os marxistas apoiaram nisto o seu mestre e desta maneira desenvolve-se pouco a pouco o falso conceito histórico acerca do caráter das primeiras relações entre Marx e Proudhon.

Principalmente na Alemanha, sendo este último quase desconhecido, puderam circular as mais estranhas afirmações nesse sentido. Mas quanto mais se consegue conhecer as importantes obras da velha literatura socialista, mais se percebe tudo o que o chamado socialismo científico deve àqueles “utopistas” que durante longo tempo foram esquecidos por causa do “reclame” gigantesco que a escola marxista e de outros fatores que levaram ao esquecimento a literatura socialista do primeiro período. E um dos mestres mais importantes de Marx e o que esteve nas bases de toda a sua evolução posterior foi precisamente Proudhon, o anarquista tão caluniado e mal compreendido pelos socialistas verídicos.

IV

No dia 20 de julho de 1870, Karl Marx escrevia para Friedich Engels: “a França deve ser golpeada rudemente, pois si a Prússia consegue sair vitoriosa, o poder estatal ficará mais centralizado e o mesmo ocorrerá com todo o movimento operário da Alemanha. A potência alemã mudará o centro do movimento operário da França para a Alemanha. Só é necessário comparar o movimento nestes dois países, desde 1866 até nossos dias, para se convencer da superioridade da classe operária alemã sobre a francesa, tanto na teoria como na organização e sua maior potência nos acontecimentos internacionais significa um triunfo para nossa doutrina sobre a de Proudhon…”

Marx tinha razão: o triunfo da Alemanha sobre a França significou uma nova rota na história do movimento operário europeu.

O socialismo revolucionário e liberal dos países latinos foi deixado de lado, deixando o campo para as teorias estatais e anti-anarquistas do marxismo. A evolução daquele socialismo vivaz e criador se viu turvada pelo novo dogmatismo férreo que pretendia possuir um pleno conhecimento da realidade social, quando era apenas um conjunto de fraseologias teológicas e de sofismos fatalistas, e se tornou logo o sepulcro de todo o verdadeiro pensamento socialista.

Com as ideias, mudaram também os métodos de luta do movimento socialista. Em vez de grupos revolucionários para a propaganda e para a organização das lutas econômicas, nos quais os internacionalistas tinham visto a semente da sociedade futura e os órgãos aptos para a socialização dos meios de produção e intercâmbio, começou então a era dos partidos socialistas e da representação parlamentar do proletariado. Pouco a pouco se esqueceu da antiga educação socialista que levava aos operários a conquista da terra e das fábricas, pondo em seu lugar a nova disciplina do partido que considerava a conquista do poder político como seu mais supremo ideal.

Mikhail Bakunin, o grande crítico de Marx, observou com clarividência a mudança da situação e com o coração amargado predisse que, com o triunfo da Alemanha e a queda da Comuna de Paris, começava um novo capítulo na história da Europa. Fisicamente esgotado e olhando de frente para a morte, escreveu, no dia 11 de novembro de 1874, estas importantes palavras a Ogaref: “O bismarkismo – que vem a ser militarismo, regime policial e monopólio financeiro fundidos em um sistema que se intitula o Novo Estado – está triunfando em todas as partes. Mas talvez dentro de dez ou quinze anos a instável evolução da espécie humana iluminará novamente os caminhos do triunfo”. Bakunin errou nessa ocasião, não calculando que teria de passar meio século até que, no meio de uma terrível catástrofe mundial, fosse derrotado o bismarkismo.

V

Assim como o triunfo da Alemanha em 1871 e a queda da Comuna de Paris foram os sinais da desaparição da velha Internacional, assim a grande guerra de 1914 foi o início da bancarrota do socialismo político.

E aqui acontece um estranho curso que se torna às vezes verdadeiramente grotesco e que só encontra sua explicação na falta de todo o conhecimento sobre a história do velho movimento socialista. Bolcheviques, independentes, comunistas etc. não deixaram de acusar os herdeiros da velha Social-democracia de uma vergonhosa abdicação dos princípios do marxismo. Acusaram-nos de ter afogado o movimento socialista na estagnação do parlamentarismo burguês, de ter interpretado mal a atitude de Marx e Engels sobre o estado etc.

O diretor espiritual dos bolcheviques, Vladimir Lenin, tratou de fundamentar sua acusação sobre bases sólidas em seu conhecido livro “O Estado e a Revolução”, que é definido por seus discípulos como a verdadeira e pura interpretação do marxismo. Por meio de uma coleção de citações perfeitamente arrumadas, Lenin pretende demonstrar que “os fundadores do socialismo científico” foram sempre inimigos declarados da democracia e do pântano parlamentar e que todas as suas aspirações estavam encaminhadas à desaparição do estado.

Não se deve esquecer do que Lenin fez após descobrir que seu partido, contra todas as esperanças, estava em minoria depois das eleições para a Assembleia Constituinte. Até então os bolcheviques tinham participado ao lado dos demais partidos nas eleições e se cuidavam para não entrar em conflito com os princípios da democracia. Nas últimas eleições para a Assembleia Constituinte de 1918, tomaram parte com um programa grandioso, esperando obter uma maioria importante. Mas ao ver que, apesar de tudo, ficaram em minoria, declararão guerra à democracia e dissolveram a Assembleia Constituinte, publicando então Lenin sua obra “O Estado e a Revolução” como justificativa pessoal.

VI

A tarefa de Lenin não era simples, com certeza: de um lado se via obrigado a fazer concessões dirigidas às tendências antiestatais dos anarquistas e do outro a demonstrar que sua atitude não era de modo algum anarquista, mas sim marxista unicamente. Como inevitável consequência de tudo isso, sua obra está cheia de erros contra a lógica do são pensamento do homem. Um exemplo provará esta afirmação: querendo Lenin acentuar o máximo possível uma suposta tendência anti-estatal de Marx, cita o conhecido parágrafo de “Guerra civil na França”, onde Marx dá sua aprovação à Comuna por ter começado desterrando o estado parasitário. Mas Lenin não se dá ao trabalho de lembrar que Marx se via obrigado com estas palavras – que estão em clara contradição com toda sua atitude anterior – a fazer uma concessão aos partidários de Bakunin, com os quais mantinha, naquele momento, uma luta muito inflamada.

Até mesmo Franz Mehring – a quem não se pode suspeitar da simpatia pelos socialistas majoritários – teve que reconhecer essa contradição em seu último livro “Karl Marx”, onde diz: “Apesar de serem totalmente verdadeiros os detalhes dessa obra, não resta dúvidas de que o pensamento ali expresso contradiz todas as opiniões que Marx e Engels vinham proclamando desde o “Manifesto Comunista” 25 anos antes”.

Bakunin estava certo ao dizer naquele momento: “A impressão da Comuna levantada em armas foi tão imponente que até os marxistas, cujas ideias tinham sido completamente desalojadas pela revolução de Paris, tiveram que abaixar a cabeça ante os feitos da Comuna. Fizeram mais ainda: em contradição com toda a lógica e com as suas conhecidas convicções tiveram que se relacionar com a Comuna e se identificar com seus princípios e aspirações. Foi uma carnavalesca brincadeira cômica… mas necessária. Pois o entusiasmo provocado pela Revolução era tão grande que teriam sido rechaçados e expelidos de todas as partes se tivessem tentado permanecer em seus dogmatismos.

VII

Outra coisa também esquece Lenin, algo que é, por certo, de capital importância nessa questão. É o seguinte: que foram precisamente Marx e Engels que obrigaram as organizações da velha Internacional a desenvolver uma ação parlamentar, fazendo-se, deste modo, responsáveis diretos da estagnação coletiva do movimento operário socialista no parlamentarismo burguês. A internacional foi a primeira tentativa de unir os trabalhadores organizados de todos os países em uma grande união, cuja aspiração final seria a libertação econômica dos trabalhadores. Diferenciando-se entre si as ideias e os métodos das diferentes seções, era de capital importância estabelecer os pontos semelhantes para a obra comum e reconhecer a ampla autonomia e a autoridade independente das diversas seções. Enquanto isso se fez, a internacional cresceu poderosamente e floresceu em todos os países. Mas tudo mudou completamente desde o momento em que Marx e Engels se empenharam em empurrar as diferentes federações nacionais para a ação parlamentar. Isto aconteceu pela primeira vez na infeliz conferência de Londres de 1871, onde conseguiram aprovar uma resolução que terminava com as seguintes palavras:

“Considerando: que o proletariado só pode permanecer como classe se constituindo em partido político aparte, em oposição a todos os velhos partidos das classes dominantes; que esta constituição do proletariado em partido político é necessária para chegar ao triunfo da Revolução Social e a sua finalidade, a desaparição das classes; que a união das forças proletárias que se vem conseguindo pelas lutas econômicas é também um meio de que se valem as massas na ação contra as forças políticas do Capitalismo; a conferência lembra aos membros da Internacional a necessidade de manter nas lutas operárias indissoluvelmente unidas suas atividades econômicas e políticas”.

Que uma só seção ou federação da Internacional adotasse tal resolução era coisa bem possível, pois só aos seus componentes envolveria o cumprimento dela; mas que o Conselho Executivo a impusesse a todos os componentes da Internacional, e especialmente se tratando de um assunto que não foi apresentado ao Congresso Geral, constituía um proceder arbitrário, em grande contradição com o espírito da Internacional e que tinha necessariamente que levantar o protesto enérgico de todos os elementos individualistas e revolucionários.

O Congresso com vergonha d’A Faia, em 1872, concluiu a obra empreendida por Marx e Engels para transformar a Internacional em uma maquinaria de eleições, incluindo a este efeito uma cláusula que obrigava as diferentes seções a lutar pela conquista do poder político. Foram, então, Marx e Engels os culpados do divisionismo da Internacional, com todas as suas consequências funestas para o movimento operário, e os que pela ação política trouxeram a estagnação e a degeneração do Socialismo.

VIII

Quando se iniciou a revolução da Espanha em 1973, os membros da Internacional – quase todos anarquistas – ignoraram as petições dos partidos burgueses e seguiram seu próprio caminho para a expropriação da terra e dos meios de produção, com um espírito socialmente revolucionário. Organizaram greves gerais e revoltas em Alcoy, San Lúcar de Barrameda, Sevilha, Cartagena e outros lugares, que tiveram de ser sufocadas à força. Mais tempo resistiu a cidade portuária de Cartagena, a qual se manteve nas mãos dos revolucionários por vários meses até que finalmente caiu devido ao fogo dos navios de guerra prussianos e ingleses. Naquele momento Engels atacou duramente no “Fol.-Stat” aos bakuninianos espanhóis e os repreendeu por não querer aderir aos cidadãos republicanos. Como teria o mesmo Engels, se ainda vivesse, criticado seus discípulos comunistas da Rússia e Alemanha!

Depois do célebre Congresso de 1891, quando os dirigentes dos chamados “Jovens” foram expulsos do Partido Socialdemocrata, por levantar a mesma acusação que Lenin dirigia aos “oportunistas” e “kautzkianos”, fundaram estes um partido diferente com um órgão próprio: “Der Socialist” em Berlim. Em princípio, este movimento foi extremamente dogmático e representou ideias quase idênticas às do atual Partido Comunista. Se se lê, por exemplo, o livro de Teistle “O Parlamentarismo e a classe operária”, se encontrarão idênticos conceitos presentes em “O Estado e a Revolução” de Lenin. Igual aos bolcheviques russos e aos membros do Partido Comunista alemão, os socialistas independentes daquele momento rechaçavam os princípios da Democracia e se negavam a participar nos parlamentos burgueses sobre a base dos princípios reformistas do marxismo.

E como falava Engels desses “Jovens” que se compraziam iguais aos comunistas, em acusar os dirigentes do Partido Socialdemocrata de traição ao marxismo? Numa carta a Sorge, em outubro de 1891, faz o velho Engels os amáveis comentários: “Os asquerosos berlinenses se transformaram em acusados em vez de continuarem sendo acusadores e tendo agido como covardes infelizes foram obrigados a trabalhar fora do Partido, se é que desejam fazer algo. Sem dúvida, há entre eles espiões policiais e anarquistas disfarçados que desejam trabalhar secretamente entre nossa gente. Junto a eles há anos, estudantes iludidos e palhaços insolentes de todo tipo. No total são umas duzentas pessoas”.

Seria verdadeiramente curioso saber com que adjetivos simpáticos teria hoje honrado Engels nossos “comunistas”, que se dizem ser “os possuidores dos princípios marxistas”.

IX

Não é possível caracterizar os métodos da velha social-democracia. Em relação a tal ponto Lenin não diz uma só palavra e menos ainda seus amigos alemães. Os socialistas majoritários devem se lembrar deste detalhe sugestivo para demonstrar que são eles os verdadeiros representantes do marxismo; qualquer um que conhece algo de história deve dar a eles a razão. O marxismo foi quem impôs a ação parlamentar à classe operária e marcou a rota da evolução operada no Partido Social-democrata alemão. Só quando isso for compreendido se entenderá que a rota da libertação social nos leva à terra feliz do anarquismo, passando por cima do marxismo.

Reforma política é segunda demão no estado

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Por Gilson Moura Henrique Junior

O uso pelos partidos da ordem e pela esquerda partidária da reforma política como panaceia para a solução dos problemas do país esconde uma preguiça intelectual fortemente aliada ao oportunismo eleitoreiro.

O primeiro problema das propostas de reforma política que ela não é política em seu inteiro teor, ela é uma reforma eleitoral, e tímida. Enquanto reforma não abrange sequer outras formas de políticas fora do eixo eleitoral, mas ainda dentro da institucionalidade, como a expansão dos comitês e conselhos que já existem na esfera municipal, para além de conselhos consultivos ou expansão para as esferas estaduais e federais com ganho de poderes e capilaridade. Enquanto política as propostas de reforma sequer tangenciam uma discussão sobre o caráter democrático do estado e a necessária repactuação deste para que o exercício do poder não seja platônico, onde uma elite dirigente quase intocável conduz a população conforme foi eleita para fazer, nas palavras de Eduardo cunha, presidente da câmara.

E isso ainda sendo discutida a reforma política nos parâmetros reformistas do estado conforme se propõe a esquerda partidária e os partidos da ordem, sequer comecei a debater o problema sob a luz da superação do sistema e do estado, coisa que pelo menos superficialmente os partidos da oposição de esquerda se dizem desejosos.

Sob o ponto de vista para além do estado é preciso dizer que o que se deveria exigir é mais que reforma do estado, que nada mais é que uma segunda demão na pintura exterior do aparato estatal ampliando direitos e deveres sob o ponto de vista eleitoral reduzindo pontual e mediocremente a questão política à financiamento público de campanha, recall e plebiscito.

Até por exigência ecológica é preciso que se exija uma descentralização absoluta do processo decisório sobre economia, energia e gestão a ponto de obrigar a um repensar de produção e consumo a níveis radicais, não por uma preferência ideológica descolada da realidade, mas por absoluta necessidade de manutenção da vida na terra.

Enquanto a economia não for lógica ou ecológica, enquanto a gestão de recursos entendê-los ainda como infinitos e ignorar resíduos, ignorar a ruptura metabólica causada pela extração de recursos e pela geração de resíduos, em escala geométrica e reproduzida de forma praticamente infinitesimal, enquanto a compreensão da casa (oykos+logos) for secundarizada pela administração da casa (oykos+nomos), correremos o risco da casa cair.

E é esse o eixo que grita a necessidade de ir além da reforma da casa, ou de parte dela ou de parte superficial de parte dela, é fundamental que se grite a obrigatoriedade da exposição á população do risco do modelo em curso de gestão da vida das pessoas e recursos para a vida no planeta, para a existência das civilizações e a partir disto é fundamental horizontalizar os processos decisórios, torná-los comunais, organizados de rua a rua, bairro a bairro, vila a vila, cidade a cidade, estado a estado, para que cada ponto onde a ação econômica atinge e afeta, produzindo danos ambientais, sociais, comunitários,etc, tenha poder para decidir sobre seus rumos, para decidir sobre como é afetado, para além da decisão distante de gestores que sequer sabem da existência dos pontos atingidos por suas ações.

Se nem como reforma isso é posto em perspectiva, diante da absoluta necessidade de por em prática uma gestão democrática radical da produção de alimentos, da produção industrial, de energia, e do consumo disso tudo, inclusive sob o ponto de vista da saúde, se isto não é visto como política e parte do que se propõe como reforma para a política, que reforma e que política é essa?

Que política e essa onde diante da absoluta necessidade de, por exemplo, discutirmos a produção de alimentos centralizada e cujo resultado dela percorre milhares de quilômetros para chegar às mesas dos consumidores, recebendo para isso uma carga absoluta de produtos químicos para sua conservação até lá e com eles afetando a saúde dos consumidores, o que ocorre é a omissão, o silêncio e a troca disso por plebiscitos aqui e ali e um recall ou outro?

Que política é essa onde transgênicos e agrotóxicos são naturalizados e entendidos como algo externo à população que no máximo que se terá de acesso á decisão é se um dia vier, no fantástico mundo da institucionalidade, a plebiscito? E como viria? Por que o inteiro teor das leis não pode ser discutido por quem sofre com elas?

Cadê a política dessas reformas?

A grande reforma que daria solução para os problemas do país, dos países, com a democracia só pode ser a reforma definitiva do estado, que é sua superação e substituição por processos horizontais de decisão, organizados em confederações de conselhos organizadas em cantões, pela descentralização da própria ideia artificial de nação, de Brasil, França ou seja lá o que os estados nacionais tomam pra si como se fossem proprietários da população que reside entre as cercas embandeiradas que separam quintais. População esta forçada a se entender como parte de uma ficção, por vezes na base da porrada, que não tem nenhuma raiz na constituição coletiva além de elementos políticos externos à ela, construído nos altos fornos das elites políticas.

Pra que perder tempo com reformas desta ficção? Não é melhor criar uma outra estória, um outro riso, uma outra peça, um outro poema, uma outra canção?

Sacco & Vanzetti e o Significado da Palavra “Anarquista”

Postado em em 29 de novembro de 2014

A poetisa americana Edna St. Vincent Millay

O texto original, da autoria de Maria Popova, foi publicado no site Brainpickings. A tradução é de Camila Nogueira.

Em 1921, os imigrantes italianos Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, de trinta e poucos anos, foram presos sob acusação assassinato de um guarda e de um contador durante um assalto em Massachusetts. A evidência balística utilizada para condená-los era altamente duvidosa e múltiplas testemunhas afirmaram ter visto Sacco em outra cidade no dia do suposto crime. O caso se arrastou por anos a fio, até que Sacco e Vanzetti foram condenados à morte em abril de 1927. Muitos, inclusive um grande número de intelectuais, acreditavam que a condenação era equivocada e que sua principal intenção era punir ambos os homens por suas históricas como ativistas sociais e anarquistas – e que, assim sendo, a sentença representava o fracasso não apenas da justiça – e sim da própria humanidade. Edna St. Vincent Millay constava entre os ultrajados – poetisa, amante da música, escritoras de cartas de amor apaixonadas e a terceira mulher a receber o Prêmio Pulitzer de Poesia.

No dia 22 de agosto de 1927, Millay, na época com trinta e cinco anos, enviou uma carta ao governador de Massachusetts, Alvan T. Fuller, na época um dos homens mais ricos da América. A carta pode ser encontrada na compilação The Letters of Edna St. Vincent Millay. Millay, que estava escrevendo um artigo sobre aquele caso, o havia entrevistado naquela mesma tarde.

Millay escreveu:

Vossa Excelência,

[…]

Esta noite, com a humanidade em dúvida, com esta nação imersa na dúvida, com os olhos da Europa inteira voltados para Massachusetts e para os Estados Unidos em lancinante dúvida e angústia – o senhor ainda tem certeza? Nem mesmo uma leve sombra de dúvida atormenta a sua consciência? Porque, embora seu espírito seja de fato forte, continua sendo o espírito vulnerável de um ser humano. O senhor não necessita, nesse momento, do auxílio de um espírito superior ao seu próprio?

Tente refletir. Reflita tanto quanto puder.

Que caminho Ele teria percorrido, este Jesus em quem o senhor acredita? Certamente não o senhor percorreu!

Você me prometeu, e eu acredito em você, que pensaria em tudo o que eu disse. Quero que cumpra sua promessa agora mesmo. Fique, por um instante, sozinho consigo mesmo. Olhe para dentro da sua própria alma. Deixe que tudo abandone sua mente perturbada, tudo exceto isso: – “Que caminho Ele teria percorrido, o Jesus em quem eu acredito?”

Milhões de vozes formam a minha própria quando imploro: Responda às nossas dúvidas. Exerça a clemência, pois sua posição permite que o faça.

Esta noite, Massachusetts exige um grande homem. Não é tarde demais para que o senhor seja esse homem.

Edna St. Vincent Millay”

St. Vincent Millay protesta contra a condenação: "A honra americana morre com Sacco e Vanzetti".

O governador jamais ascendeu à grandiosidade. Millay foi presa por participar de protestos públicos contra a sentença e da “vigília da morte”. Sacco e Vanzetti foram executados pouco depois da meia-noite do dia 23 de agosto.

Nos três meses que seguiram a execução, Millay continuou a investir na história e na ampla implicação cultural da mesma. No dia 9 de novembro de 1927, a revista semanal nova-iorquina The Outlook publicou seu artigo sobre a decisão. Seu título era “Fear” [“Medo”] – uma espécie de carta aberta ao público, uma opinião contra a execução dos dois homens e, em um sentido mais amplo, da própria pena de morte. Ela escreveu:

Na superfície de um Cristianismo já tão desonrado e desfigurado pelos crimes cometidos pela Igreja, esta mancha não é tão escura. Frente a uma liberdade enigmática, cutilada por todos os crimes cometidos pelo próprio Estado, um dilaceramento como este é distinguido com sofrível dificuldade.

E você está certo; o melhor é esquecer que os homens morrem. Até agora, não inventamos nenhuma maneira de derrotar, enganar ou subornar a morte. A qualquer momento, uma nuvem pode se partir sobre nós e deixar que a lança dourada da morte penetre em nossos corações. A qualquer momento, a terra pode se partir ao meio e a mão da morte pode segurar nossos tornozelos e nos arrastar ao abismo. A qualquer momento, o vento pode soprar e varrer o teto de nossas casas, transformando-nos em poeira. Se isso não acontecer, e daí? De qualquer modo, vamos morrer em breve. E o melhor é esquecer que as coisas são assim.

Mas que homens, antes da hora, impiedosa e arbitrariamente, sejam arrebatados da luz do sol em direção a escuridão do túmulo devido à cegueira ou ao medo de seus companheiros; – não podemos nos esquecer disso.”

Millay argumenta que a atrocidade da sentença em si foi amplificada pelo equívoco da justiça; que, em sua opinião, condenou dois homens inocentes à morte a fim de puni-los por seu ativismo social:

“Se você se deslocasse de seu próprio corpo por um instante e contemplasse sua existência, você se sentiria perturbado, eu imagino, e muito menos tranquilo e confiante, ao descobrir que é possível que um homem como você, inocente de qualquer crime, seja preso e condenado à morte. Não importa se aqueles homens, a quem não pretendo nomear, cometeram ou não assassinato – o fato é que não foi este o motivo de sua execução. O crime pelo qual os executaram foi o seguinte: Eles respiraram sobre a janela congelada e olharam para fora.

[…]

É assim que você enxerga a situação: Esses homens eram anarquistas, e é melhor mesmo que fiquem fora do caminho… É provável que fossem assassinos. Não que importe de verdade. Em qualquer caso, é muito melhor que eles fiquem longe do seu caminho. Foi a palavra Anarquista que os conduziu à cadeira elétrica, a palavra e asua ignorância do significado dela.

Um anarquista, insiste você, é um homem que produz bombas e as coloca sob a Casa Civil, e isso é tudo. Mas não é verdade. Ao contrário do que você pensa, isso não é tudo. A pessoa que você tem em mente não é um anarquista, e sim um bombardeiro – e você poderá encontrá-lo em qualquer lugar, em qualquer grupo; entre anarquistas, fascistas, modernistas, agentes da Lei Seca, fundamentalistas e principalmente entre membros da Ku Klux Klan. Ele é aquele indivíduo que, quando não gosta de determinada coisa, lincha-a, despedaça-a, arranca-a, amaldiçoa-a… – ou a bombardeia. O nome dele é legião, e você o encontrará em toda parte.

Um anarquista, segundo o dicionário, é uma pessoa que acredita na bondade natural dos seres humanos; e que, se deixados por conta própria, eles governariam a si mesmos – a partir de um acordo mútuo – de modo muito mais efetivo e mais pacífico do que se fossem governados por um governo violento.”

Bartolomeo Vanzetti (esquerda) e Nicola Sacco, algemados

Millay argumenta também que a posição dos homens como imigrantes os tornou mais vulneráveis à injustiça.

Esses homens eram náufragos em nosso litoral, e nós, uma tribo ignorante e selvagem, os matamos porque seu discurso e seus modos não eram compatíveis com os nossos – e porque, para a mente inculta, aquilo que é estranho é necessariamente diabólico e perigoso.

Esses homens foram executados porque preocupavam você; e seus filhos sabem disso. Sim – As mentes dos seus filhos são como piscinas límpidas que refletem fielmente tudo que passa por sua margem; na piscina de sua própria mente, quando uma imagem alheia se curva, um peixe de terror pula para encontrá-la, danificando sua reflexão”.

As palavras selecionadas por Millay para encerrar sua linha de raciocínio mostra a profundidade com a qual o caso havia tocado uma parte secreta da sua própria humanidade e, até os dias de hoje, quase um século depois, sua mordacidade é usada em debates sobre a pena de morte:

“Eu sou livre para dizer tais coisas porque não sou anarquista, embora você vá dizer que sou. Na sua visão, a pessoa que consente em arriscar-se para o bem de outra é muito insensata, a menos que ambas pertençam à mesma família, à mesma fraternidade ou no mínimo ao mesmo partido político. No que diz respeito a você e ao seu vizinho, você quer o bem dele; mas nem tanto assim.

[…]

Eu me atrevo a dizer tais coisas porque não sou anarquista, mas não só por isso. Eu me atrevo a dizer tais coisas porque minha liberdade individual, meu poder de escolha e até mesmo minha vida pessoal não são, atualmente, tão importantes para mim como foram um dia. Mesmo a morte, aquela intrusa, aparece para mim de vez em quando, principalmente quando penso no que aconteceu em Boston há dois meses. Nesses momentos, a morte aparece para mim como uma espécie de cômodo escuro onde podemos descansar nossos corpos desgastados afastados do resto do mundo, deixando a varredura da travessia para aqueles que ainda acham importante varrê-la. Como se realmente importasse se a travessia está limpa ou não quando, de todas as pessoas que passam por ela no curso de um dia, uma em cada dez mil possui uma faísca de coragem em seu coração e um pouquinho só de amor (além do amor que um gato sente por uma lareira) por qualquer criatura além de si própria. O mundo, o mundo físico, que um dia foi tudo para mim, de tempos em tempos me parece um labirinto sem saída, um oceano sem ilha, e então nada é capaz de me consolar. A beleza de algumas coisas não mais compensa a feiúra do homem, sua maldade, sua ganância, sua hipocrisia”

[Chile] Órgãos de resistência Mapuche realizam três ações incendiárias contra florestais

O povo mapuche nativo da região centro-sul chilena e do sudoeste argentino, teve o reconhecimento de sua autonomia pela Coroa Espanhola em 1641, após muita resistência. No processo de independência e de formação dos estados nacionais do Chile e da Argentina houve a busca de integração cultural e de aproveitamento econômico de seu território (a mesma lógica que se estende até os dias atuais), sem o devido respeito à autonomia mapuche. Desde então, a resistência cultural e a luta pelo controle de suas próprias terras é combatida com forte repressão política. Na década de 90 foi criada a Coordinadora Arauco-Malleco (CAM), responsável pela coordenação da resistência. A organização é classificada como ‘terrorista’ pelo estado chileno e, nos últimos anos, vários de seus integrantes vem sofrendo perseguições políticas, muitos deles presos.
(Introdução do Coletivo Anarquia ou Barbárie).

Fonte da matéria: Unio Mystika, 19 de março de 2015

Mediante um comunicado público enviado ao www.werken.cl, os Órgãos de Resistência Williches da Coordenação Mapuche Arauco Malleco (CAM) assumiram a autoria de três atos de resistência, que afetaram diretamente as florestais que se encontram localizadas em território Mapuche, e além do mais advertem, seguirão com os atos de sabotagem contra as empresas multinacionais que dia a dia destroem o território da nação indígena.
A CAM assume as seguintes ações: o ataque a um acampamento florestal ocupado como base militar no dia 14 de março de 2015 no fundo Lo Suarez da propriedade Florestal Arauco próximo a Lanco, também a queima de maquinários no dia 14 de outubro de 2014 em um prédio da Florestal Arauco próximo a San Juan de la Costa e por último a queima de máquinas florestais em 11 de janeiro de 2015 e a queima de um caminhão em 8 de março de 2014 em um prédio da Florestal Valdivia próximo a Malalhue.
REPRODUZIMOS O COMUNICADO PÚBLICO
Nós, dos Órgãos de Resistência Territorial Williche, declaramos a nosso Povo-Nação Mapuche e a opinião pública internacional o seguinte:
1 – O estado chileno segue considerando nosso território como uma soma de recursos sub-explorados a disposição do capital transnacional. Se multiplicam as florestais, as hidrelétricas, as mineradoras e projetos turísticos levando assim a cabo seu plano de invasão do território Mapuche. Vemos todas estas inversões como um perigo de morte para o ixtrofil mongen, para nosso rakiduam e então para nossa existência como povo.
2 – Devido a isso, os Weichafe decidiram acionar no Willimapu e dentro deste contexto, reivindicamos como O.R.T. Williche as seguintes ações contra as florestais e pela recuperação de nosso território:
– o ataque a um acampamento florestal ocupado como base militar em 14 de março de 2015 no fundo Lo Suarez da propriedade Florestal Arauco, próximo a Lanco.
 
– a queima de maquinários em 13 de outubro de 2014 em um prédio da Florestal Arauco perto de San Juan de la Costa.
– a queima de máquinas florestais em 11 de janeiro de 2015 e a queima de um caminhão em 8 de março de 2014 em um prédio da Florestal Valdivia, próximo a Malalhue.
3 – Não somos nem queremos ser os indígenas do Chile para sermos integramos a um projeto econômico e político que nos considere como uma riqueza étnica do Estado. Chamamos a nossos peñi e lamgen a não baixar os braços depois de séculos de resistência e seguir lutando com dignidade contra a invasão wingka expressando-se hoje através das transnacionais e do Estado chileno: nossa mapu, nosso sangue não estão a venda e não se negociam. Sem sabotagem as empresas que destroem nosso Wallmapu, não haverá autonomia para nosso Povo-Nação.
Fora inversões capitalistas de Wallmapu!
 
Exercitando controle territorial, avançamos em direção a libertação nacional!
 
Liberdade aos presos políticos Mapuche!
 
Marichiweu!
 
O.R.T. Williche.

A Resistência é a Vida!, por Abdullan Ocalan

Foto da página Kurdish Female Fighters Y.P.J

Postado em Jornalismo B, em 26 de fevereiro de 2015

Texto de Abdullan Ocalan, militante curdo e preso político, no livro “Liberando la vida: la revolución de las mujeres”

Tradução: Lorena Castillo

A modernidade democrática: a era da revolução das mulheres

A liberdade da mulher desempenhará um papel estabilizador e igualador na formação da nova civilização e ocupará seu lugar em condições de respeito e igualdade. Para conseguir isso, temos que trabalhar no nível teórico, programático, de organização e implementação. A realidade da mulher é um fenômeno ainda mais concreto e analisável do que conceitos como “proletariado” e “nações oprimidas”. O grau de transformação possível da sociedade está determinado pelo grau de transformações que consigam as mulheres. Da mesma forma, o nível de liberdade e igualdade da mulher determina a liberdade e igualdade de todos os setores da sociedade. Por isso, o nível de democracia que alcance as mulheres é decisivo para o estabelecimento permanente da democratização e secularização. Para uma nação democrática, a liberdade da mulher tem uma grande importância, já que uma mulher livre constitui uma sociedade livre. A sociedade livre constitui por sua vez uma nação democrática. Por outra parte, a necessidade de mudar o papel do homem é de uma importância revolucionária.

O amanhecer de uma era de civilização democrática representa não somente o renascimento de todos os povos, se não também, de forma mais específica o auge da liberdade das mulheres. A mulher, que foi a deusa criativa da sociedade neolítica, sofreu perdas incessantes no decorrer das sociedades de classes. Inverter esta história acarretará inevitavelmente transformações sociais mais profundas. A mulher, renascida para a liberdade, se somará a liberdade e justiça no âmbito geral da sociedade, em todas as instituições, em todos seus níveis. Convencerá a todos que a paz, e não a guerra é mais valiosa e desejável. O triunfo da mulher é o triunfo da sociedade e do indivíduo em todos os níveis. O século XXI deve ser a era do despertar, a era da mulher livre e emancipada. Isto é mais importante ainda que libertação de classes ou de nação. A era da civilização democrática deve ser a era em que a mulher se alce e triunfe completamente.

É realista considerar nosso século como o século em que a vontade da mulher livre florescerá. Por isso é preciso estabelecer instituições permanentes para as mulheres e mantê-las quem sabe por século. Se necessitam partidos para a liberdade das mulheres. É vital também que se formem círculos ideológicos políticos e econômicos baseados na liberdade das mulheres.

As mulheres em geral, mas, mais especificamente as mulheres do Oriente Próximo, são a força mais enérgica e ativa da sociedade democrática, devido as características anteriormente descritas. A vitória definitiva da sociedade democrática só será possível com a mulher. Os povos e as mulheres são devastados pela sociedade de classes desde a era neolítica. Serão eles, como agentes fundamentais do progresso democrático, os que agora não só se vingaram da história, senão que também formaram a antítese necessária posicionando-se a esquerda da nascente sociedade democrática. As mulheres são verdadeiramente os agentes sociais mais confiáveis no caminho para uma sociedade igualitária e libertária. No Oriente Próximo, vai depender das mulheres e jovens assegurar a antítese necessária para a democratização da sociedade. O despertar da mulher e o fato de será força social líder neste cenário histórico, tem um valor de autentica antítese.

Devido às características de classes das civilizações, seu desenvolvimento está baseado pela dominação masculina. Isto é o que situa a mulher na posição de antítese. De fato, para superar a divisão de classes da sociedade e a superioridade masculina, sua posição adquire o valor de uma nova síntese. Por conseguinte, a posição de liderança dos movimentos de mulheres na democratização do Oriente Próximo possui características históricas que as constituem tanto como uma antítese (pelo fato de se desenvolverem no Oriente Próximo) e uma síntese (a nível global). Esta área de trabalho é a obra mais importante que jamais tinha feito. Acredito que deveria ter prioridade na liberdade das pátrias e a liberação do trabalho. Mas, se quero ser um lutador pela liberdade, não posso ignorar isso: a liberdade das mulheres é a revolução dentro da revolução.

A missão final fundamental da nova liderança é proporcionar o poder intelectual e a vontade necessária para conseguir os três aspectos cruciais para a conformação de um sistema de modernidade democrática, assim como ética desde um ponto de vista tanto econômico como ecológico. Para conseguir isso, devemos estabelecer um número suficiente de estruturas acadêmicas com uma qualidade adequada. Não é suficiente criticar o mundo acadêmico moderno, temos que desenvolver uma alternativa. Estas unidades acadêmicas alternativas deveriam ser criadas sobre as prioridades e necessidades de todos os campos sociais, tais como a economia e a tecnologia, ecologia e agricultura, políticas democráticas, segurança e defesa, cultura, história, ciência e filosofia, a religião e as artes. Sem um marco acadêmico forte os elementos da modernidade democrática não podem ser construídos. Os marcos acadêmicos e os elementos da modernidade democrática são igualmente importantes para alcançar êxito. A inter-relação é uma necessidade para alcançar êxito.

A luta pela liberdade (não só das mulheres, senão de todas as etnias e todos os setores da comunidade) é tão antiga quanto a história da escravidão e exploração da humanidade. O anseio pela liberdade é intrínseco à natureza humana.

Temos aprendido muito destas lutas, também da que estamos mantendo nos últimos quarenta anos. A sociedade democrática tem coexistido com diferentes sistemas de civilizações dominantes. A modernidade democrática, o sistema alternativo ao capitalismo moderno, é possível por meio de uma mudança radical da nossa mentalidade e as correspondentes mudanças, radicais e apropriadas, na nossa realidade material. Estas mudanças, devemos criar em conjunto.

Para terminar, eu gostaria de assinalar que a luta pela liberdade das mulheres deve ser levada a cabo através do estabelecimento de seus próprios Partidos Políticos, conseguindo um movimento popular de mulheres, construindo suas próprias organizações não governamentais e estruturas políticas democráticas. Tudo isso deve ser trabalhado ao mesmo tempo, simultaneamente. As melhores mulheres são capazes de escapar das garras da dominação masculina e da sociedade. As melhores serão capaz de viver e atuar de acordo como sua livre iniciativa e independência. Quanto mais as mulheres se empoderarem, mais reconstituirão sua personalidade e identidade em liberdade. Por conseguinte, apoiando a ira das mulheres, o movimento de conhecimento e liberdade é o maior aporte de companheirismo e prova de humanidade. Tenho plena confiança de que as mulheres, a margem de suas diferenças culturais e étnicas, todas as que têm sido excluídas do sistema, triunfarão. O século XXI será o século da libertação das mulheres.

Espero fazer minhas contribuições não só escrevendo, mas ajudando a colocar em prática estas mudanças.

Anarquistas e a Perseguição Internacional

Por Gilson Moura Henrique Junior

A perseguição internacional a anarquistas neste início de século XXI remete à perseguição a anarquistas no início do século XX num exercício superficial de comparação histórica, mas vai mais longe que isso e tem relação profunda com novos quadros conjunturais que incluem a presença de partidos considerados de esquerda e centro esquerda no poder.

Seja na Turquia, na Espanha, no Chile, no Brasil ou em tantos outros lugares no mundo, a perseguição a anarquistas e autonomistas ocorrem de forma a não deixar dúvidas que o estado implementa uma ação consciente para não permitir nenhum tipo de resistência que não seja a consentida.

Toda luta institucional se mantém controlada dentro das regras do estado de direito e da lógica republicana, mesmo com parte dela sendo travada nas ruas, e neste aspecto mantém-se como parte da própria organização política da burguesia, que exerce sua ação dentro do arcabouço das regras da burguesia, dentro do conceito hierárquico e altamente centralizado que é também a lógica de organização estatal.

A luta sindical, as organizações sociais contestatórias, ONGs e até movimentos como o MST e MTST acabam reproduzindo em seu interior a mesma lógica da luta institucional, especialmente sindicatos, que acabam sendo parte da institucionalidade ao lidarem sempre com a mediação do e para com o estado na busca de resolução de seus objetivos e metas táticas ou estratégicas. Neste sentido qualquer luta que saia do âmbito da organização estatal ou para estatal é combatida pelo estado.

Fora deste conjunto de relações com o estado e para estado, lutas inclusive, toda força que não esteja organizada segundo os parâmetros hierárquicos do estado é entendida como alienígena e passível de repressão e exclusão custe o que custar.

Sintomático também é a conduta dos partidos da esquerda socialista na relação com estas perseguições e prisões. Quando não são eles os verdugos e os gendarmes da burguesia, são omissos na relação e na denúncia da suspensão dos direitos políticos e dos direitos humanos para com os militantes anarquistas e autonomistas prisioneiros e processados pelo estado por resistir ao avanço do capitalismo e da repressão.

Seja a militância vegana do Chile, sejam os 23 presos e processados por resistirem à gentrificação do Rio de Janeiro, sejam os anarquistas espanhóis processados pela operação Pandora ou os ambientalistas turcos perseguidos por Erdogan, e nem menciono os curdos que sofrem ataques da Turquia ou do ISIS apoiado pela mesma Turquia de foram “oculta” e “fantasma”, todos fazem parte de um tipo de resistência que busca a horizontalidade e a retirada de suas ações do âmbito da institucionalidade, e todos são perseguidos de forma brutal pelo sistema.

Não é possível que ações como essas, que compõe um cenário internacional de forte questionamento populacional à luta institucional, não teçam uma teia de coordenação de repressão a tudo o que foge da luta institucional.

O caso do Brasil e do Chile são mais graves ainda dado que parte dos comandantes da repressão, sejam os governos federais ou os dos estados, são do Partido dos Trabalhadores, outrora partido socialista e que tinha em seu programa a superação do capital e boa parte dos seus quadros são ex-perseguidos pela ditadura militar que durou de 1964 a 1985, ou, no caso do Chile, de uma consertación de centro-esquerda onda a presidente Michelet foi vítima de perseguição política por Pinochet.

Estes elementos deixam claro que a ação do estado não é isolada e busca centrar o combate pelas forças repressivas às organizações e forças que não atuam no teatro de operações do estado, na institucionalidade burguesa.

É preciso assim que estejamos atentos e fortes para a perseguição política em curso, dado que esta conta com a omissão e cumplicidade da esquerda partidária e que tendem a reforçar o avanço conservador.

Em um cenário de profundo retrocesso, esta perseguição tem poder para desarticular as lutas políticas pra fora da institucionalidade e com isso destruir mais do que a luta de anarquistas e autonomistas, mas todas elas e mais, permitir que as forças da reação assumam mais do que ameaçam hoje.

Esse tipo de ataque mundial às lutas “sem líder” são sintomas de uma profunda ofensiva do aparato estatal e do capital contra qualquer tipo de horizontalidade e democracia real. E é sintomático o silêncio da esquerda partidária sobre estas ações do aparato estatal na direção de anarquistas e autonomistas, quando não é cúmplice o silêncio.

A turba anti-partido e que busca ações por fora da institucionalidade é um profundo corte na construção estratégica da luta institucional e aponta para a construção de organizações independentes e horizontais nas periferias, nas ocupações, que independem de lideranças e de mediações com o estado e o confrontam com a autonomia e autogestão como forma de libertação e de combate ao estado.

Esse corte metodológico é adversário da centralização e do centralismo hierárquico das organizações partidária, sindicais e da maioria dos movimentos sociais que vivem na órbita da esquerda partidária.

Sendo adversário da centralização e do centralismo hierárquico da esquerda partidária, o corte metodológico anarquista e autonomista é um inimigo da busca de popularização de programas de conciliação de classe em andamento pela esquerda partidária, cujo desejo de rompimento e transformação para na ameaça de perda de espaço eleitoral e de controle sobre a massa populacional que chamam de povo e que buscam liderar de forma vertical e autoritária.

Filhos da cultura hierárquica de fábrica os partidos, sindicatos e movimentos acabam por serem simulacros da organização estatal e reprodutores de sua cultura de domínio vertical e autoritário da população. Qualquer ameaça ao eixo de sua ação política e seu próprio cerne organizativo é tratado como um inimigo pior que o próprio capitalismo.

E é por isso que precisamos de um senso de urgência que arme cada coletivo, cada organização horizontal, cada frente de lutas de antídotos e de proteção contra estados, partidos, sindicatos e movimentos que são cúmplice da repressão mundial a anarquistas e autonomistas. Ao mesmo tempo em que precisamos entender que isso também é um sintoma do crescimento da repulsa ao estado no seio da população.

Por isso precisamos nos proteger e avançar, buscando criar a cada coletivo, em cada rua, bairro e cidade meios de construirmos conselhos, coletivos e organizações libertárias que confrontem mais e mais a hierarquização estatal e sua reprodução que nos reprime.

A Sustentabilidade Está Destruindo A Terra

Ecologia Profunda
Postado originalmente em Coletiva Mente, depois em Unio Mystika
Por Kim Hill
Não fale comigo sobre sustentabilidade. Você quer questionar a minha vida, o meu impacto, a minha pegada ecológica? Há um monstro de pé sobre nós, com uma pegada tão grande que pode pisar o planeta inteiro sob os pés, sem perceber ou se importar. Este monstro é a Civilização Industrial. Recuso-me a sustentar o monstro. Para a Terra viver, o monstro deve morrer. Esta é uma declaração de guerra.
O que estamos tentando sustentar? Um planeta vivo ou a civilização industrial? Não podemos ter os dois.
Em algum lugar ao longo de seu caminho, o movimento ambientalista – com base em um desejo de proteger a Terra – foi em grande parte engolido pelo movimento da sustentabilidade – baseado em um desejo de manter nosso estilo de vida confortável. Quando e por que isso aconteceu? E como é possível que ninguém tenha percebido? Esta foi uma mudança fundamental nos valores, indo de compaixão por todos os seres vivos e pela terra, para um desejo egoísta de se sentir bem em relação ao nosso modo de vida inerentemente destrutivo.
O movimento por sustentabilidade diz que nossa capacidade de suportar é de responsabilidade dos indivíduos, que devem fazer escolhas de estilo de vida no âmbito das estruturas da civilização. Alcançar uma cultura verdadeiramente sustentável por este meio é impossível. A infraestrutura industrial é incompatível com um planeta vivo. Para a vida na Terra sobreviver, as estruturas políticas e econômicas globais precisam ser destruídas.
Defensores da sustentabilidade nos dizem que reduzir nosso impacto, causar menos danos à Terra, é uma coisa boa a se fazer e que nos sentiremos bem com nossas ações. Eu discordo. Menos dano não é bom. Menos dano ainda é muito dano. A não ser que nenhum dano mais seja causado, por qualquer pessoa, não pode haver sustentabilidade. Sentir-se bem com pequenos atos não ajuda ninguém.
Apenas um quarto de todo o consumo é realizado por indivíduos. O resto é realizado pela indústria, agronegócio, exército, governos e corporações. Ainda que todos nós fizéssemos todo o esforço para reduzir nossa pegada ecológica, isso ainda faria apenas uma pequena diferença no consumo total.
Se as ações de estilo de vida defendidas realmente tivessem o efeito de manter nossa cultura de pé por mais tempo do que de outra forma, então elas iriam causar ainda mais dano ao mundo natural do que se tais medidas não fossem tomadas. Quanto mais tempo uma cultura destrutiva for sustentada, mais estrago ela causa. O título desse artigo não é apenas para chamar atenção e gerar polêmica, ele é, literalmente, o que está acontecendo.
Quando enquadramos o debate da sustentabilidade em torno da premissa de que as escolhas de estilo de vida dos indivíduos são a solução, então o inimigo se torna outros indivíduos que fizeram escolhas de vida diferentes e aqueles que não têm o privilégio de escolher. Enquanto isso o verdadeiro inimigo – a estrutura opressiva da civilização – está livre para continuar suas práticas destrutivas e assassinas sem nenhuma oposição. Essa não é uma maneira eficaz de criar um movimento social significativo. Dividir para ser conquistado.
A sustentabilidade é popular entre as corporações, mídia e governo porque ela se encaixa perfeitamente em seus objetivos. Mantêm o poder e o crescimento. Faz de você um bom rapaz. Faz com que as pessoas acreditem que elas têm poder quando na verdade não têm. Diz a todos para se manterem calmos e seguirem comprando. Controla a linguagem que é usada para debater as questões. Ao criar e reforçar a crença de que votar em pequenas mudanças e comprar mais coisas irá resolver todos os problemas, aqueles que estão no poder têm uma estratégia altamente efetiva para manter o crescimento econômico e a democracia controlada pelas corporações.
Aqueles que estão no poder mantêm as pessoas acreditando que a única maneira que temos de mudar qualquer coisa é dentro das estruturas que eles mesmo criaram. Eles constroem essas estruturas de forma que as pessoas nunca possam mudar qualquer coisa dentro delas. Voto, petições e manifestações todas essas práticas reforçam as estruturas de poder e nunca poderão fazer mudanças significativas sozinhas. Essas táticas dão uma escolha para as corporações e governos. Estamos dando àqueles que estão no poder a escolha de aceitar ou recusar nosso pedido por reformas mínimas. Animais em fazendas industriais não têm escolha. Milhões de pessoas que trabalham suando em fábricas na maior parte do mundo não têm escolha. As 200 espécies que foram extintas hoje também não tiveram escolha. E ainda assim damos uma escolha aos responsáveis por todos esses assassinatos e sofrimento. Estamos colocando os desejos de uma minoria rica acima das necessidades da vida na Terra.
A maioria das ações mais populares que os defensores propõem para alcançar a sustentabilidade não têm efeito real, e algumas ainda causam mais danos do que benefícios. As estratégias incluem reduzir o consumo de energia elétrica, reduzir o uso de água, criar uma economia verde, reciclagem, construções sustentáveis e fontes de energia eficientes e renováveis.

ENERGIA ELÉTRICA

Nos dizem para reduzirmos nosso consumo de energia elétrica ou obtê-la a partir de fontes alternativas. Isso não fará nenhuma diferença para a sustentabilidade de nossa cultura como um todo, porque a rede elétrica é inerentemente insustentável. Nenhuma quantidade de redução ou as auto-intituladas fontes renováveis de energia vão mudar isso. Mineração para produzir fios elétricos, componentes, dispositivos elétricos, painéis solares, turbinas eólicas, usinas geotérmicas, fornos de biomassa, hidrelétrica e qualquer outra coisa que seja ligada à rede elétrica, são todas insustentáveis. A fabricação de todas essas coisas, com toda a exploração humana, poluição, desperdício, impactos na saúde e na sociedade geram lucros corporativos. Combustíveis fósseis são necessários para manter todos esses processos em andamento. Insustentável. Nenhuma quantidade de escolhas individuais de estilo de vida com relação ao uso e produção de energia elétrica vai mudar isso. Energia elétrica fora da rede elétrica também não é diferente – ela precisa de baterias e inversores.

 

CONSERVAÇÃO DA ÁGUA

Banhos mais curtos. Chuveiros de baixo fluxo. Restrições ao uso de água. Tudo isso é exaltado como se pudessem fazer A diferença. Enquanto toda a infraestrutura que fornece essa água – grandes barragens, dutos de longa distância, bombas, esgotos, fossas – é totalmente insustentável. Barragens destroem a vida de uma bacia hidrográfica inteira. É como bloquear uma artéria, impedindo que o sangue flua para seus membros. Ninguém pode sobreviver a isso. Rios morrem quando os peixes são impedidos de viajar de lá para cá neles. Toda a comunidade natural à que esses peixes pertencem morre, tanto a montante quanto à jusante da barragem. Barragens causam um rebaixamento do nível de água, tornando impossível para que as raízes das árvores cheguem à água. Zonas alagadas dependem de alagamentos sazonais e colapsam quando barragens acima do rio impedem isso. Resultam em erosão do fundo e das margens. A decomposição anaeróbica de matéria orgânica em barragens libera metano para a atmosfera. Não importa o quão eficientemente você usa sua água, essa infraestrutura nunca será sustentável. Isso precisa ser destruído para permitir que essas comunidades se regenerem.
ECONOMIA VERDE
Empregos verdes. Produtos verdes. Uma economia sustentável. Não. Esse tipo de coisa não existe. A totalidade da economia global é insustentável. A economia funciona com a destruição do mundo natural. A Terra é tratada como nada mais do que combustível para o crescimento econômico. Chamam isso de recursos naturais. E a escolha de algumas pessoas por se retirar dessa economia não faz diferença. Enquanto essa economia existir, não haverá sustentabilidade.
Enquanto qualquer uma dessas estruturas existir: energia elétrica, redes de fornecimento de água, economia globalizada, agricultura industrial – não haverá sustentabilidade. Para alcançar uma verdadeira sustentabilidade, essas estruturas precisam ser desmontadas.
O que é mais importante para você – sustentar um estilo de vida confortável por mais algum tempo ou a continuação da vida na Terra, para as comunidades naturais que ainda restam e para as futuras gerações?
RECICLAGEM
Somos levados a acreditar que comprar um determinado produto é bom porque a embalagem pode ser reciclada. Você pode optar por jogar ela em uma lixeira colorida. Não importa que ecossistemas frágeis estejam sendo destruídos, comunidades indígenas sendo deslocadas, pessoas em lugares distantes precisem trabalhar em condições de escravidão, que rios sejam poluídos, tudo só para que essa embalagem exista. Não importa que ela seja reciclada para se tornar outro produto inútil que irá, em seguida, para o lixão. Não importa que para reciclar isso seja necessário transportá-la para longe, usando maquinário que funciona com energia elétrica e combustíveis fósseis, causando poluição e desperdício. Não importa que se você colocar algo na lixeira com a cor errada, toda a carga vai para um lixão devido à contaminação.

CONSTRUÇÕES SUSTENTÁVEIS
Princípios da construção sustentável: construir mais casas, mesma que já existam casas perfeitamente boas suficiente para todos morar. Limpar a terra para construir casas, destruindo cada coisa viva que antes vivia nessa comunidade natural. Construir com madeira proveniente de florestas plantadas, que exige que as florestas nativas sejam exterminadas para que possam ser substituídas por uma monocultura de pinos onde nada mais pode viver. Usar materiais de construção que são um pouco menos prejudiciais do que outros materiais. Convencer as pessoas de que tudo isso é benéfico para a Terra.
PAINÉIS SOLARES
Painéis solares. A mais recente onda na moda da sustentabilidade. E no verdadeiro estilo sustentável, incrivelmente destrutivos para a vida na Terra. De onde vêm essas coisas? Você deveria acreditar que eles são feitos do nada, uma fonte de energia livre e não poluente.
Se você ousar perguntar de onde vêm os painéis solares, e como eles são feitos, não será difícil descobrir a verdade. Painéis solares são feitos de metais, plásticos, terras raras, componentes eletrônicos. Eles exigem mineração, fabricação, guerra, desperdício, poluição. Milhões de toneladas de chumbo são despejadas em rios e terras agrícolas em torno das fábricas de painéis solares na China e na Índia, causando problemas de saúde para os humanos e para as comunidades naturais que ali vivem. O polisilicone é outro produto residual venenoso e poluente que é despejado na China. A produção de painéis solares faz com que trifluoreto de nitrogênio (NF3) seja emitido para a atmosfera. Esse gás tem 17.000 vezes o potencial de aquecimento global do dióxido de carbono.
As terras raras vêm da África, e guerras estouram pelo direito de escavar suas minas. Pessoas estão sendo mortas para que você tenha a sua confortável Sustentabilidade. Os painéis são fabricados na China. As fábricas emitem tanta poluição que as pessoas que vivem nas proximidades ficam doentes. Lagos e rios morrem com a poluição. Essas pessoas não podem beber a água, respirar o ar ou cultivar a terra, como resultado direto da fabricação de painéis solares. Sua sustentabilidade é tão popular na China que os aldeões mobilizam-se em massa em protesto contra a fabricação desses painéis. Eles estão se unindo para invadir as fábricas e destruir os equipamentos, forçando as fábricas a fechar. Eles valorizam suas vidas mais do que a sustentabilidade dos ricos.
Painéis duram cerca de 30 anos, então vão direto para o lixão. Mais poluição, mais lixo. Algumas partes dos painéis solares podem ser recicladas, mas outras não, e ainda têm o bônus de serem altamente tóxicas. Para serem reciclados, os painéis solares precisam ser enviados para países onde trabalhadores de baixa renda são expostos a substâncias tóxicas no processo de desmontagem. O próprio processo de reciclagem requer energia e transporte, além de gerar produtos residuais.
A indústria de painéis solares é encabeçada pela Siemens, Samsung, Bosch, Sharp, Mitsubishi, BP, Sanyo, entre outros. É para eles que as isenções fiscais para painéis solares e as contas para energia verde estão indo.
ENERGIA EÓLICA 
O processamento de metais lantanídeos (terras raras) necessário para a produção de imãs para as turbinas eólicas acontece na China, onde as pessoas das aldeias vizinhas lutam para respirar o ar altamente poluído. Um lago de cinco milhas de largura de lodo tóxico e radioativo agora toma o lugar de suas terras.
Cadeias de montanhas inteiras são destruídas para a extração dos metais. Florestas são derrubadas para erguer turbinas eólicas. Milhões de aves e morcegos são mortos pelas lâminas. A saúde de pessoas que vivem perto das turbinas é afetada pelos ruídos.
Como o vento é uma fonte de energia inconsistente e imprevisível, é necessário um gás de back-up para disparar a fonte de alimentação. Como o sistema de back-up só funciona de forma intermitente, é menos eficiente, por isso produz mais CO2 do que se ele estivesse sendo executado constantemente, se não houvesse turbinas. A energia eólica soa muito bem na teoria, mas não funciona na prática. Outro produto inútil que não beneficia ninguém, a não ser os acionistas.
EFICIÊNCIA ENERGÉTICA
E se nós melhorarmos a eficiência energética? Isso não pode reduzir a poluição e o consumo de energia? Bem, não. Muito pelo contrário. Você já ouviu falar do paradoxo de Jevon? Ou do postulado de Khazzoom-Brookes? Estes afirmam que os avanços tecnológicos para aumentar a eficiência levam a um aumento no consumo de energia, não a uma diminuição. Eficiência faz com que mais energia esteja disponível para outros fins. Quanto mais eficiente nos tornarmos no consumo, mais nós consumiremos. Quanto mais eficientemente trabalharmos, mais trabalho será realizado. E estamos trabalhando com eficiência em enterrar nós mesmos em um buraco.
ECONOMIA DE OFERTA E PROCURA
Muitas ações tomadas em nome da sustentabilidade podem ter o efeito oposto. Aqui está algo para refletir: a decisão de uma pessoa de não fazer viagens aéreas, por causa da preocupação com a mudança climática ou a sustentabilidade, não terá qualquer impacto. Se algumas pessoas pararem de fazer viagens aéreas, as companhias aéreas vão reduzir os seus preços, e amplificar sua comercialização, e mais pessoas vão poder fazer viagens aéreas. E porque eles estão fazendo isso a preços mais baixos, a companhia aérea tem de fazer mais vôos para alcançar o lucro que tinha antes. Mais vôos, mais emissões de carbono. E se a indústria enfrentar problemas financeiros, como resultado da demanda reduzida, ela será socorrida pelos governos. Esta estratégia de “escolher recusar” não pode vencer.
A decisão de não fazer viagens aéreas não está fazendo nada para reduzir a quantidade de carbono que está sendo emitida, só faz com que você não esteja participando neste caso. E qualquer pequena redução na quantidade de carbono emitido não faz nada para deter as mudanças climáticas.
Para realmente ter um impacto no clima global, vamos precisar impedir cada avião e cada máquina que queima combustíveis fósseis de operar novamente. E parar cada máquina que queima combustíveis fósseis está longe de ser o objetivo impossível que pode parecer. Não vai ser fácil, mas é definitivamente possível. E não é apenas desejável, mas essencial para que a vida neste planeta sobreviva.
O mesmo vale para qualquer outro produto destrutivo que podemos optar por não comprar. Carne de criadouros industriais, óleo de palma, madeira da floresta, alimentos processados. Enquanto houver produtos a serem vendidos, haverá compradores. A tentativa de reduzir a procura terá pouco, se algum, efeito. Haverá sempre mais produtos que chegando aos mercados. Campanhas para reduzir a demanda de produtos individuais nunca serão capazes de manterem-se. E a cada novo produto, a crença de que este é uma necessidade, não um luxo, se torna cada vez mais forte. Posso convencê-lo a não comprar um smartphone, um laptop, um café? Duvido.
Para interromper a devastação, precisamos cortar permanentemente o fornecimento de tudo o que a produção exige. E visar empresas ou práticas individuais não terá qualquer impacto sobre as estruturas de poder globais que se alimentam da destruição da Terra. Toda a economia global precisa ser levada à um impasse.
O QUE VOCÊ REALMENTE QUER?
O que é mais importante – energia sustentável para você assistir TV, ou a vida dos rios, florestas, oceanos e animais do mundo? Será que você pode viver sem isso, sem a Terra? Mesmo se isso fosse uma opção, se você não estivesse fortemente ligado na interconectada teia da vida, você realmente preferiria ter eletricidade para suas luzes, computadores e equipamentos, em vez de compartilhar o êxtase de estar com toda a vida na Terra? Um mundo sem vida, governado por máquinas, é realmente o que você quer?
Se conseguir o que você quer requer a destruição de tudo que você precisa – ar e água limpos, comida e comunidades naturais – então você não vai durar muito tempo, e nem ninguém.
Eu sei o que eu quero. Eu quero viver em um mundo que está se tornando cada vez mais vivo. Um mundo em regeneração da destruição, onde todos os anos há mais peixes, aves, árvores e diversidade do que no ano anterior. Um mundo onde eu possa respirar o ar, beber dos rios e comer da terra. Um mundo onde os humanos vivem em comunidade com toda a vida.
A tecnologia industrial não é sustentável. A economia mundial não é sustentável. Valorizar a Terra apenas como um recurso para os seres humanos explorar não é sustentável. A civilização não é sustentável. Se a civilização entrasse em colapso hoje, ainda seria 400 anos antes da existência humana no planeta tornar-se verdadeiramente sustentável. Então, se é sustentabilidade genuína que você quer, destrua a civilização hoje, e continue trabalhando para regenerar a Terra por 400 anos. Este é mais ou menos o tempo que levamos para criar as estruturas destrutivas em que vivemos hoje, então é claro que vai demorar pelo menos esse tempo para substituir estas estruturas por alternativas que beneficiem toda a vida na Terra, e não apenas a minoria rica. Isso não vai acontecer imediatamente, mas isso não é motivo para não começar.
Você pode dizer, vamos apenas abandonar a civilização, construir alternativas, e deixar todo o sistema apenas desmoronar quando ninguém mais prestar qualquer atenção nele. Eu costumava gostar dessa idéia também. Mas isso não funciona. Quem está no poder usa as armas do medo e da dívida para manter seu controle. A maioria das pessoas do mundo não têm a opção de abandonar isso. Seu medo e dívida os mantém trancados na prisão da civilização. Seu abandono não pode ajudá-los. A destruição da estrutura dessa prisão pode.
Nós não temos tempo para esperar o colapso da civilização. Noventa por cento dos grandes peixes nos oceanos desapareceram. 99% das florestas antigas foram destruídas. Todos os dias mais de 200 espécies são extintas, para sempre. Se esperarmos mais, não haverá peixes, nem florestas, nem vida em qualquer lugar na Terra.
O QUE VOCÊ PODE FAZER?
Espalhe a mensagem. Confronte as crenças dominantes. Compartilhe esse artigo com todos que você conhece.
Escute a Terra. Vá conhecer seus vizinhos não-humanos. Cuidem um do outro. Aja coletivamente, não individualmente. Construa alternativas, como economias de dádiva, sistemas policultores de cultivo de alimentos, educação alternativa e governança comunitária. Crie uma cultura de resistência.
Ao invés de tentar reduzir a demanda dos produtos de um sistema destrutivo, corte o fornecimento. A economia é o que está destruindo o planeta, então pare a economia. A economia global é dependente de um fornecimento constante de energia elétrica, por isso pará-la é (quase) tão fácil quanto desligar um interruptor.
Os governos e a indústria nunca vão fazer isso por nós, não importa o quão gentilmente pedirmos, ou quão firmemente pressionarmos. Cabe a nós defender a terra da qual nossas vidas dependem.
Nós não podemos fazer isso como consumidores, ou trabalhadores, ou cidadãos. Precisamos agir como seres humanos, que valorizam a vida mais do que consumir, trabalhar e reclamar do governo.
Nas palavras de Lierre Keith, co-autora do livro Deep Green Resistance, “A tarefa de um ativista não é navegar por sistemas de poder opressivo com o máximo de integridade pessoal possível, é destruir esses sistemas.

O Movimento Anarcopunk e a luta anti-fascista no Brasil – Parte 1: anos 90

Postado em MAP-SP, Movimento Anarcopunk de São Paulo, 26 de fevereiro de 2015

Sem Título-1* por Imprensa Marginal

O Movimento Anarco Punk no Brasil é fruto de uma crescente politização dentro de parte da cena punk que se dá em meados dos anos 80 e início dos 90. Uma de suas principais bandeiras de luta, desde os primórdios, foi o combate ao nazi-fascismo, o racismo e o preconceito. Em muitas das localidades onde se formou o Movimento Anarco Punk, desenvolveu-se também um trabalho dentro da luta anti-fascista e anti-racista. Tal bandeira de luta já era levantada anteriormente no meio anarquista em diversas partes do mundo desde o surgimento das primeiras tentativas de ascensão de ideologias de extrema direita como o fascismo e o nazismo. No Brasil não foi diferente, e o surgimento do integralismo gerou um fervoroso combate por parte do movimento anarquista que a partir da década de 30 ganha muita intensidade.

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O início dos anos 90 é marcado pela ocorrência de diversos casos de agressão e violência protagonizados por grupos de skinheads White Powers, Carecas do Subúrbio e Carecas do ABC. Esse contexto contava também com a aparição e evidência na mídia de políticos de extrema direita como Armando Zanini Junior, presidente do Partido Nacionalista Revolucionário Brasileiro (PNRB). Assim, desde o final dos anos 80 vão se intensificando cada vez mais as relações entre skinheads e organizações políticas integralistas e nazistas, culminando na entrada de Carecas nos quadros do PNRB e em ações públicas como, por exemplo, o evento de homenagem ao aniversário de cem anos do nascimento de Hitler, que ocorreu em 1989 com participação de Carecas do Subúrbio, Carecas do ABC, Ação Integralista e integrantes de outros partidos nacionalistas na Praça da Sé.

Em meio a este forte processo de tensão e buscando formas efetivas de combater a ação nazi-fascista destes grupos, anarcopunks partiram em busca de contatos com outros movimentos sociais e agrupações que também pudessem estar de alguma forma envolvidas no combate ao avanço da extrema direita. Surgia a percepção de que somente por meio desta parceria poderiam fazer frente à crescente ação dos grupos de extrema direita e desenvolver uma ação efetiva de combate. Em 1992, ante ao ataque de skinheads White Power à Rádio Atual, de programação dirigida à comunidade nordestina em São Paulo, e logo após a realização de uma edição do programa “Documento Especial” que deu voz aos neonazistas de São Paulo, diversos movimentos sociais anti-racistas se reúnem para uma discussão conjunta no mês de outubro. Entre novembro e dezembro o Movimento Anarcopunk realiza pedágios de rua para conseguir dinheiro para confecção de faixas e panfletos para uma campanha anti-fascista, e no dia 12 de dezembro é organizada uma passeata. Pouco depois, em 1993, com a morte do estudante negro Fábio dos Santos em Santo André, em decorrência de espancamento por 30 skinheads, este processo de atuação política do Movimento Anarco Punk se amplia, ocorrendo com maior força os contatos com outros movimentos sociais para parcerias de combate. Vai tomando corpo a criação de um fórum contra a ação dos neonazistas, com participação tanto de anarcopunks, quanto de diversos outros grupos, como movimentos negros, de mulheres, nordestinos, organizações judaicas, grupos de pesquisa, movimentos populares, entre outros. A reunião ocorreu no Conselho Participativo da Comunidade Negra de São Paulo, e o resultado foi uma grande passeata com cerca de 4 mil pessoas no dia 13 de maio de 1993. Grupos e movimentos punks, negros, feministas, e de atuação artística, cultural e política se reuniram em frente à embaixada sul-africana na Av. Paulista/MASP, para uma passeata anti-racista. A passeata passou pela Av. Brigadeiro e foi até a Praça da Sé, acabando com apresentação musical de diversas bandas.  No decorrer de todo o ato foram feitas muitas falas contra a atuação de grupos nazi-fascistas de Carecas e White Powers. Infelizmente, passado algum tempo, a dimensão inicial do fórum anti-racista foi esvaziado, e os meios de comunicação iam deixando de divulgar o caso.

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Este momento marcou também o início dos trabalhos do projeto ACR – Anarquistas Contra o Racismo, que com o passar do tempo teve formação  de núcleos em diversas localidades para além de São Paulo – como Santos, Criciúma, Rio de Janeiro e Curitiba. A proposta era, dentro da cena punk, incitar a politização no que se refere à questão anti-fascista e, para muito além, estreitar laços com outros movimentos sociais e ampliar a rede de combate ao fascismo de forma concreta. Neste período há forte relação com movimentos LGBT, negros e judaicos, e realização de atividades diversas sobre a questão. Respeitavam-se as peculiaridades específicas de cada movimento, buscando construir a partir dos pontos de afinidade parcerias, compartilhamento de informações e apoio em ações de combate aos grupos e instituições nazi-fascistas nas diversas localidades.

Já era claro para o Movimento Anarco Punk e o Projeto ACR que o combate ao fascismo não poderia se limitar apenas a grupos skinheads, que em última instância eram apenas uma pequena parte de um problema muito maior, que envolvia setores diversos da sociedade com atuação em muitos âmbitos diferentes. O Projeto ACR também não acreditava no simples uso da violência como estratégia de combate, visto que a apologia e uso da violência, o culto à força física e a intolerância extremada são características próprias destes grupos de skinheads nazi-fascistas, e não seria possível combate-los a partir de práticas semelhantes. Ainda assim, as táticas de auto-defesa à esses grupos sempre estiveram em pauta, mas para além disso anarcopunks buscaram construir parcerias com vários setores da sociedade, para que em conjunto fossem traçadas estratégias eficientes para coibir a ação da extrema direita e combater as manifestações cotidianas de racismo na sociedade, propondo o respeito, a valorização da diversidade e da liberdade.

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Diversos eventos públicos foram organizados nesta época, com mostras de vídeos, debates, palestras, panfletagens e ciclos de atividades anti-fascistas. Em novembro de 1994, por exemplo, foi organizado o Ciclo Anti-Fascista, uma série de três eventos com apresentações de bandas anarcopunks, palestras com a Unegro, Ben Abrahan (comunidade judaica ), passeata de rua e outras atividades. Foi um importante evento de discussão da luta anti-fascista que ia se tornando cada vez mais concreta e consistente.  Outro ciclo de atividades e debates sobre a questão foi organizado em 1995 em Curitiba pelo Grupo Anarquista Via Direta de Ação (GRAVIDA), contando com seis palestras, debates, exposições e outras atividades de 30 de outubro a 02 de dezembro. Também foram organizadas, no decorrer dos anos 90, diversas atividades de vídeo-debate anti-fascistas e eventos musicais contra o racismo.

Os núcleos ACR de cada localidade mantinham contato frequente entre si, realizando encontros gerais periódicos e fazendo circular os informes locais mensalmente, e organizaram diversas manifestações públicas e atividades de debate, editaram boletins e materiais de denúncia, produziram dossiês, e ainda criaram um forte canal de diálogo com a imprensa e outros movimentos. Agindo localmente, cada um dos grupos articulava materiais de denúncia e dossiês, realizava manifestações públicas e outras atividades; em conjunto, também organizavam campanhas coletivas, materiais impressos e outras ações que ultrapassavam as fronteiras de cada localidade. Dentre os casos que tiveram forte mobilização nos anos 90 estão a morte de Fábio dos Santos em Santo André em 1993; o assassinato de Carlos Adilson Siqueira por skinheads Carecas do Brasil em 1996 na cidade de Curitiba; a realização de um encontro neonazista de skinheads do Paraná também em 1996; dentre tantos outros. Em março de 96, alguns punks foram abordados pela polícia e, enquanto eram revistados, o moicano de um dos punks foi arrancado à faca por um policial que gritava “Oi!” e “Skin!”, dizendo “não gosto de punks e muito menos de negros”. Depois que os policiais saíram, alguns punks tiraram foto do camburão, prestaram queixa dos policiais e denunciaram na imprensa. O punk agredido levou vinte pontos na cabeça e dois dos policiais foram afastados conforme nota da imprensa oficial. O ACR desenvolveu campanha de denúncia sobre esta agressão.

A primeira edição da Parada Gay em São Paulo, em 1997, também teve participação ativa do Movimento Anarcopunk, que ficou diretamente envolvido na questão da segurança do evento no combate a possíveis ataques durante a manifestação.

Outra campanha que teve ampla e ativa participação dos núcleos ACR e anarcopunks da época foi a questão de Mumia Abu-Jamal, militante negro afro-americano que foi injustamente acusado pelo assassinato de um policial branco e, após um julgamento pautado em inúmeras inconsistências, permanece preso até os dias de hoje, completando mais de 30 anos no cárcere e a maior parte deste tempo no corredor da morte. Foram realizados eventos, debates, publicações e atividades diversas que pudessem dar visibilidade a este emblemático caso do racismo estatal.

Brasil afora, outros coletivos e iniciativas anti-fascistas foram se formando, como é o caso do Coletivo Monanoz, que surge em 1995 em Florianópolis por anarcopunks que tinham como intuito a formação de um grupo de estudos sexuais e realização de atividades de denúncia e combate à homofobia e ao nazi-fascismo. O frequente intercâmbio entre os grupos anti-fascistas gerou também campanhas conjuntas e parcerias. Em outubro de 1995, um encontro de grupos do Projeto ACR no Rio de Janeiro tem como resultado a união dos materiais de denúncia existentes em cada localidade para criação de um grande dossiê anti-fascista, a ser utilizado como instrumento de combate a ação dos grupos nazi-fascistas. Nessa época também se intensificam as discussões sobre a luta afro-punk e sua importância.

Em meio a esse trabalho ocorreram por diversas vezes casos de ameaças ou violência por parte de grupos neonazistas. Dois dos coletivos anarcopunks que sofreram ameaças foram o KRAP (Koletivo de Resistência Anarco Punk) e o Coletivo Altruísta, ambos tendo recebido cartas de ameaça assinadas por grupos skinheads em meados da década de 90. Houve também casos de agressão física, que tornaram cada vez mais importante a prática da auto-defesa por parte de militantes anarcopunks. Em geral, as ações coletivas de resposta também seguiram politicamente no sentido de tornar públicas as ameaças e agressões sofridas, denunciar o caráter nazi-fascista dos grupos de extrema-direita, e reafirmar o engajamento e comprometimento com a luta anti-fascista e anti-racista, o que gerou apoio direto de diversos grupos e indivíduos.

Por questões diversas, muitos dos núcleos do Projeto Anarquistas Contra o Racismo se dissolveram durante os últimos anos da década de 90, desta época restando ativo o núcleo de Criciúma/SC, que desenvolveu trabalhos ligados a esta questão em escolas, junto a comunidade LGBT, negra, pessoas usuárias de CAPS, entre outros, e possui um grande acervo de materiais anti-fascistas. As experiências que estes núcleos obtiveram no decorrer de seu trabalho, porém, foram grandes contribuições para as movimentações anti-fascistas que surgiriam a seguir. Ainda assim, as discussões e ações de denúncia e combate referentes à luta anti-fascista permaneceram vivas, seja por meio de fanzines e panfletos, discussões e debates, seja por meio de ações de rua e manifestações.

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A década de 90 chegava ao fim e os anos subsequentes não seriam menos problemáticos. Diversos casos de agressão protagonizados por grupos de skinheads e nazi-fascistas se faziam frequentes, e um caso muito emblemático ocorre então em fevereiro de 2000: a morte do adestrador de cães Edson Neris, morto a chutes e golpes de soco inglês por dezenas de Carecas do ABC na Praça da República. O caso, de extrema brutalidade e intolerância, gera reações de repúdio e comoção de diversos grupos lgbt, de direitos humanos, agrupações punks e libertárias, ocorrendo manifestações conjuntas e atos diversos. Na ocasião, anarcopunks participam das mobilizações, organizando atividades de denúncia. A partir deste ano, começa a se formar a Jornada Anti-Fascista, que passa a ser organizada anualmente, durante o mês de fevereiro, e acontece até os dias de hoje. Inicia-se como uma manifestação de um único dia para, com o passar dos anos, tornar-se um mês inteiro de atividades sobre a questão, com apresentação de bandas, debates, palestras, vídeos, atos de rua e outros. Ultrapassando os limites de São Paulo, anarcopunks de outras localidades organizaram também atividades antifascistas durante o mês de fevereiro. A morte de Carlos Adilson em 1996, no mês de março, fará com que posteriormente, sejam organizados em Curitiba atividades do Março Anti-Fascista, com proposta semelhante à Jornada criada em São Paulo.

Continua…

 

Murray Bookchin: “Este Planeta Merece um Destino Melhor…”

Postado em Portal Anarquista, Ex-Colectivo Libertário de Évora, em 8 de fevereiro de 2015

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As ideias libertárias de Murray Bookchin ganharam recentemente uma nova actualidade aos serem adoptadas na organização dos territórios curdos no norte da Síria e reivindicadas pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão. São elas que animam e vivificam as milícias que ainda não há muitos dias libertaram Kobane e centenas de aldeias do avanço do chamado Estado Islâmico. Daí que exista também um renovado interesse por conhecer quer o libertário norte-americano M. Bookchin (1921-2006), quer as suas ideias assentes no municipalismo libertário. Em boa hora, António Cândido Franco traduziu para o ‘Portal Anarquista’ e para ‘A Batalha’, a parte final de um dos seus mais importantes livros, “The Ecology of Freedom”.

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A ECOLOGIA DA LIBERDADE – “EPÍLOGO”

Murray Bookchin publicou em 1984 The Ecology of Freedom, um dos seus livros mais densos e revolutivos, que, de forma enciclopédica tanto recorre ao domínio da biologia, da ecologia e da astrofísica como ao da história, da antropologia, do pensamento político e da filosofia. O livro constitui assim a súmula do pensamento de Bookchin e a peça mais significativa do ponto de vista daquilo que se chama ecologia social. A sua visão actualiza e desenvolve, como nenhuma outra, o pensamento libertário do século XIX, sobretudo o de Kropotkine, com o qual tem fundas afinidades, desde logo ao defender que nos organismos vivos a organização e a cooperação são muito mais essenciais do que a hierarquia e a dominação. O livro de 1984 pode com facilidade, pela originalidade das perspectivas e a vastidão dos saberes implicados, ombrear com as melhores obras teóricas do final do século XX e do início do século XXI. Ainda por traduzir em Portugal, apresentamos n’ A Batalha e no Portal Anarquista o epílogo do livro, que funciona em poucas páginas como um condensado das suas principais ideias e propósitos. [A.C.F.]

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bookchin008-2Neste livro tentei abalar em termos teóricos o mundo, como a seu modo tentaram no seu tempo os Digger, os Leveller, os Ranter. Intentei sacudi-lo com força e tentei analisar os traços mais significativos da sua evolução. Os meus esforços terão sido bem sucedidos se consegui demonstrar que a maldição da dominação impregnou quase todo o empreendimento humano depois do declínio da primeira sociedade orgânica. Quase nenhuma realização, no campo institucional, técnico, científico, ideológico, artístico, a própria racionalidade, se salvou desta praga. Distintamente da tendência, muito em moda hoje, de procurar a origem desta na luta doselvagem contra a natureza, encontrei-a eu no esforço sinistro da elite emergente em reduzir à escravatura os seres humanos. Sublinhei o papel potencialmente libertador da arte e da imaginação ao dar expressão ao que é autenticamente humano, utópico e livre na natureza humana.

Ao contrário de Marx e Freud, que identificaram “civilização” e “progresso” com auto-controle repressivo, defendi que a antropologia e a história dão uma imagem da humanidade em tudo adversa à de Hobbes. A mentalidade do sacrifício chegou com o conflito social e com a repressão que acompanham o aparecimento da hierarquia, não com a razão e a técnica. Os baixos-relevos egípcios e mesopotâmicos revelam um mundo no qual os seres humanos eram constrangidos a negarem não apenas os seus desejos e os seus impulsos mais humanos como ainda o mais elementar sentido da personalidade. Eva, a serpente e o fruto da árvore do conhecimento não foram a causa da dominação mas as suas vítimas. A sociedade, entendida como obra de laços maternos e logo de interdependência humana, está aí para nos recordar que o paraíso terrestre foi em muitos aspectos uma realidade concreta e que o verdadeiro “pecado original” corresponde à ideia gnóstica de “auto-transgressão”.

Não creio que se possa regressar ao Éden original, onde teve lugar esta violação. A história dá-nos uma esperança de solução para os problemas da hierarquia e da dominação. O conhecimento, a gnosis, quer dizer, conhecer e transcender o nosso primeiro acto de auto-transgressão, é o primeiro passo na terapia duma patologia pessoal de natureza repressiva. O pensamento sem a acção, a teoria sem a prática, significariam, porém, abdicar de qualquer responsabilidade social.

Viu-se no nosso tempo a dominação cobrir um tal âmbito colectivo que doravante parece estar fora do controle humano. Os milhares de bilhões de dólares gastos, depois da segunda guerra mundial, pelos vários Estados em meios de destruição e de controle – aquele armamento aterrador que figura em qualquer “orçamento de defesa” – são a expressão recente duma secular ansiedade de dominação que tomou por ora proporções demenciais. No confronto com esta monumental mobilização de matérias-primas, dinheiro, inteligência e trabalho humano, com fins exclusivamente destrutivos, os resultados obtidos em qualquer outro campo de acção empalidecem e quase se tornam irrelevantes. A arte, a ciência, a medicina, a literatura, a música ou a filantropia aparecem como meras migalhas caídas duma mesa sobre a qual, em sucessivos e sangrentos banquetes, se concentra a atenção dum sistema cuja fome de dominação não parece conhecer limite. É impossível não desconfiar dos actos de “generosidade” dum tal sistema, já que por detrás dos seus desígnios aparentemente meritórios – a tecnologia, a cibernética, os programas espaciais, o desenvolvimento agrícola, as inovações energéticas – se escondem motivações destrutivas e de sujeição da humanidade, através da violência, do medo e da ameaça.

1_2-216x300Este livro tentou dar um panorama da dominação a partir das suas origens numa oculta pré-história da hierarquia, que precedeu de muito a estratificação das classes económicas. A hierarquia esconde-se não só na pré-história da humanidade como ainda no mais profundo da nossa psique. Por esse motivo toda a riqueza da palavra liberdade parece ter sido traída no seio dos processos de socialização e no mais íntimo das nossas experiências. Esta traição vem ao de cima na forma como tratamos as crianças e as mulheres, nas relações interpessoais, na conduta física, nos pensamentos íntimos, na vida quotidiana e até no modo inconsciente com que organizamos a percepção da realidade. É uma traição que não se cumpre só nas instituições políticas e económicas mas no quarto, na cozinha, na escola, nos lugares de divertimento e nos centros de educação moral como as igrejas ou os círculos de terapia psíquica. A hierarquia e a dominação chegam até a presidir a movimentos de emancipação, como é o caso do marxismo nas suas formas mais vulgarizadas e convencionais, nas quais a organização autónoma das “massas” é vista com desconfiança e frequentemente denunciada como “desvio anárquico”.

A hierarquia desforra-se da nossa pretensão de termos superado a “animalidade”, atingindo a “liberdade” e a “individualidade”. Nos instrumentos que usamos para salvar vidas humanas, para criarmos belos objectos, que tornam mais aprazível o mundo que nos rodeia, há sempre qualquer coisa de desafinado que faz com que mesmo as nossas acções mais criativas acabem por ser percepcionadas como “triunfos”, tornando a “obra-prima” correlata à dominação. A grandeza da tradição dadaísta, a partir do gnosticismo ofita até à sua moderna expressão surrealista, é ter possibilitado, com a exaltação do direito à insubordinação, à imaginação, ao jogo, à fantasia, à inovação, à iconoclastia, ao prazer e à criatividade do não consciente, a ascensão e a consciência de tudo aquilo que a hierarquia nos ocultou. Fê-lo muito mais implacavelmente e lealmente do que os mais sofisticados jogos teóricos no campo hermenêutico, estruturalista e semiótico, tão em voga nas universidades da sociedade ocidental contemporânea.

Um mundo assim contaminado pela hierarquia, organizando-se do comando à obediência, exprime o seu espírito autoritário no modo como fomos habituados a ver-nos: como objectos a manobrar, coisas a usar. A nossa concepção de realidade, partindo desta imagem de nós próprios, alargou-se à imagem que temos da natureza “exterior”, assim se revelando que fomos encarando de forma cada vez mais mineral e inorgânica quer a nossa natureza quer a “exterior”. Simplificámos de forma tão perigosa a natureza, a sociedade e a personalidade, que comprometemos seriamente a integridade das formas complexas de vida, a riqueza das formas sociais e o ideal duma personalidade poliédrica.

Num tempo em que o mecanicismo materialista tem como concorrente um espiritualismo não menos mecânico, sublinhei a necessidade de prestar atenção à diversidade, visando alimentar uma noção de totalidade como princípio unificante duma ecologia da liberdade. Um tal acento é muito diverso daquilo que se acentua como “unitariedade”. Ao opor-me às tentativas correntes de dissolver a diversidade em denominadores comuns, materiais ou espirituais, exaltei a riqueza da variedade no desenvolvimento natural, social e pessoal. Propus uma interpretação, algo hegeliana, em que a história dum fenómeno – trate-se de subjectividade, de ciência ou de técnica – define esse fenómeno. Em cada um destes âmbitos, encontramos sempre vários graus e aspectos de compreensão, de intuição e de engenho, que devem ser sempre requeridos, caso se queira tomar a realidade nas suas várias graduações e aspectos. Ao invés, o pensamento ocidental procurou compreender a experiência e agir na realidade por meio dum único modo de subjectividade, de ciência e de técnica. Tendemos a fundar as nossas noções de realidade sobre bases reciprocamente exclusivas: económica num caso, técnica noutro, cultural noutro ainda. Destarte, linhas evolutivas fundamentais foram classificadas, da perspectiva dum limitado nível de desenvolvimento da evolução natural ou humana, como “basilares” ou “contingentes”, “estruturais” ou “supra-estruturais”.

municipalismo-libertarioTentei evidenciar que cada uma destas “linhas” ou de cada uma destas “super-estruturas” tinha a sua autenticidade e um direito histórico à sua identidade, sem dúvida interdependente com outras linhas evolutivas mas rica duma integridade só dela. O problema singular que mais me preocupou foi a interacção entre a evolução da dominação e a evolução da liberdade. Por liberdade não entendo só a diferença dos diferentes, mas também o alargamento das nossas noções de subjectividade, técnica, ciência e ética, com o reconhecimento da história delas e da capacidade de penetração que delas deriva a respeito dos vários estádios de desenvolvimento. Tentei mostrar não só como estes aspectos da liberdade formam um mosaico cada vez mais rico e completo, que apenas uma sensibilidade ecológica pode abalroar, mas também como esses aspectos interagem entre si, sem perderem, na multiforme variedade de tudo, a sua unidade. Não há uma “base” económica que reja a cultura, como não há uma “base” cultural que reja a economia. Na realidade, os próprios termos “base” e “supra-história” são estranhos à perspectiva que permeia este livro. Redutores e simplistas, estas palavras tendem a reflectir visões ingénuas duma realidade cuja riqueza desafia qualquer interpretação esquemática e estática.

Se a história pré-capitalista mostra alguma coisa é o facto dramático dos homens e das mulheres terem feito sacrifícios invulgares, por vezes até o da própria vida, pela crença na virtude, na justiça e na liberdade – crença que não se explicam apenas por interesses materiais e de estatuto social. A extraordinária história dos judeus, uma história de perseguições quase ininterruptas durante cerca de dois mil anos, a dos irlandeses no último século, e a dos movimentos populares revolucionários, da Reforma até à Comuna de Paris, estão aí a testemunhar a força dos ideais religiosos, nacionais ou sociais, capazes de empurrarem centenas de milhões de pessoas para actos de incrível heroísmo. Dizer que na “base” esses homens e essas mulheres foram empurrados por “factores económicos” de que não tinham consciência, quer dizer, manobrados pela dialéctica “económica” da história, significa presumir que estes factores eram de facto dominantes, quando na verdade ainda está sequer por provar que, em alguns casos, eles tenham sequer existido. Ainda quando esses factores pareçam evidentes, a sua importância nos actos humanos é tudo menos óbvia. Quando John Ball ou Gerrard Winstanley descrevem a avidez da classe dominante do seu tempo, sente-se que a sua crítica é menos guiada por interesses materiais do que por ideais de justiça e de liberdade.

A aversão à injustiça fervia no coração dos oprimidos não tanto por causa duma condição social particularmente pesada mas por via dum flagrante contraste entre as regras morais relativas à justiça e a sua transgressão no dia-a-dia. A história do cristianismo está impregnada desta contradição, que explica o papel catalisador que ele tantas vezes representou na história humana, gerando movimentos milenaristas revolucionários. Só quando o capitalismo contaminou a história com a ideia de “escassez”, fazendo dum mesquinho espírito de competição o motor de qualquer avanço social, é que grande parte destes ideais de virtude, de justiça e de liberdade degeneraram em grosseiros interesses materiais. Até os primeiros movimentos a favor duma redistribuição aparecem menos como grandes movimentos de saque e mais como esforços de reabilitação dum modo de vida revoluto, uma ordem social tradicional em que os hábitos de partilha e de não acumulação eram as normas prevalecentes. Muitas vezes estes movimentos destruíram não só os registos legais que legitimavam a autoridade e a propriedade do escol como ainda os palácios, as herdades, as mobílias e até os celeiros que pareciam encarnar o poder.

A revolução francesa, como notou Hannah Arendt (On Revolution, Viking Press, New York, 1965, pp. 36-52), assinala uma inversão das finalidades na mudança social: da aspiração ética passa-se a uma consciência da “questão social” expressa em termos de necessidades materiais. Na realidade esta alteração de perspectiva só parece ter chegado mais tarde, porventura já no nosso século. Marx exultou com este novo “realismo” ou “materialismo economicista”, mas o resultado é que, espartilhados entre a “fetichização das necessidades” e o desejo de significado ético e comunitário, acabámos por nos tornar produtos esquizofrénicos dum mundo condenado à imobilidade da sensação de impotência pessoal e social. Inventámos uma mística das “leis históricas” e do “socialismo científico” que serve mais, como construção, para compensar os nossos frustrados impulsos comunitários e a nossa malograda necessidade de sentido ético do que para explicar o motivo pelo qual comunidade e ética estão tão assentes no real e tão longe como fins.

Se não há um único aspecto da realidade, seja económico ou outro, que por generalização possa explicar a evolução social, se não existem leis sociais que orientem a nossa aproximação mental aos fenómenos, em que base e com que coordenadas podemos então interpretar os comportamentos sociais? Em meu entender o quadro de maior significado em que decorre a aventura humana está na distinção entre autoritário e libertário. Não quero com isto dizer que estes termos exprimam um sentido teleológico da história, nem tão pouco que estão isentos de ambiguidade. Não somos por certo nós que afirmaremos ou negaremos que exista na história humana um ponto de chegada, que possa corresponder ao “absoluto” hegeliano, ao “comunismo” marxista… ou então à extinção definitiva. É pura figura de estilo dizer que a “verdadeira história” da humanidade só começará no momento em que a “questão social” ficar resolvida. Por outro lado a crença iluminista no progresso tecnológico é o sistema menos fiável de que dispomos. Hoje, no mais tecnicizado dos mundos, em que a própria ética foi acoplada ao qualificativo “instrumental”, estamos dispostos a reconhecer que até os nossos projectos mais cativantes, não obstante os atributos que ostentam, “conviviais”, “apropriados” ou outros, possam ser empregues para criar estratégias “alternativas” à violência.

Nunca é de mais sublinhar que as palavras “libertário” e “autoritário” não se referem só a formas institucionais, técnicas e científicas antagónicas, mas sobretudo a sensibilidades e valores, em suma a epistemologias opostas. A definição que dou do termo “libertário” aparece modelada pela definição que dou de ecossistema: unidade na diversidade, espontaneidade e relações de complementaridade, em que está ausente qualquer forma de hierarquia e dominação. Com o termo “autoritário” refiro-me à hierarquia e à subordinação nas suas várias formas sociais: gerontocracia, patriarcado, relações de classe, elites de vários tipos e por fim o Estado, incluídas as suas várias formas socialmente mais parasitárias: o capitalismo de Estado. Mas se não incluirmos aí também as formas contrárias de sensibilidade, ciência, técnica e ética e as contrárias formas de razão aí implícitas, as palavras “libertário” e “autoritário” reduzem-se a termos meramente institucionais. Devem-se pois explicitar ao máximo aquelas implicações, e de igual modo as do arco de qualquer outra experiência, caso se queira que o seu recíproco antagonismo tenha um sentido dinâmico e transformador.

Reconheça-se à razão, na tensão que a disputa entre o autoritário e o libertário, o direito a uma racionalidade libertária. Do ponto de vista filosófico insistimos talvez até de mais que uma racionalidade libertária deve fundar-se em cânones de verdade e de coerência, mas também de intuição e de contradição, que invalidam por inteiro as pretensões de verdade do pensamento formal e analítico. Dado que intuição e contradição podem servir fins autoritários, como se vê na filosofia fascista e no materialismo dialéctico estalinista, e que ao invés a razão analítica teve momentos que serviu a liberdade de pensamento, não temos, além dos nossos critérios éticos, nenhum guia seguro e exclusivo, que garanta frutos indiscutíveis de emancipação ao nosso pensar. As figuras de Buda e de Cristo tanto foram usadas com propósitos de autoritarismo ou de liberdade. O misticismo e o espiritualismo radicais tanto se mostraram anti-naturais e anti-humanos como ecológicos e milenaristas. Aquilo que é decisivo no ajuizar dos critérios da razão, ou para ser mais preciso no modelar duma nova aproximação à subjectividade, é a forma como é ou não é impulsionado um modelo ético biologicamente variado, baseado na fecundidade da vida e na qualidade da complementaridade, resultado dum mosaico de experiências sempre mais ricas e acima duma concepção piramidal e hierarquizada da experiência. Nem sequer é preciso renunciar aoOrganum de Aristóteles, que durante tantos séculos serviu de base aos princípios lógicos do pensamento ocidental, ou à teoria dos sistemas, com o seu conceito de causalidade circular. Devemos apenas modelar a razão, linear ou circular que seja, sobre uma ética pessoal e socialmente emancipadora. A razão, cuja demolição por Horkheimer e Adorno, suscitou tanto pessimismo entre os colegas deles, pode ser devolvida à ética libertária, uma ética aberta à riqueza da sensibilidade humana, enquanto encarnação da faculdade mesma de sentir a todos os níveis da evolução da orgânica social.

Há uma base sobre a qual é possível edificar esta ética libertária, uma área que dá uma direcção e um significado que não dependem nem dos caprichos da opinião e do gosto nem da fria eficácia instrumental. À parte os lugares-comuns sobre o povo, a raça ou as “inevitáveis leis dialécticas”, parece existir na natureza uma espécie de direcção latente, uma evolução da auto-organização, que dá lugar à subjectividade e cujo termo final parece ser a auto-reflexão característica dos seres humanos. Semelhante visão pode constituir um preconceito antropormófico, prestando-se a um relativismo arbitrário, muito parecido à razão subjectiva, ou instrumentalismo, criticada por Horkheimer. Todavia, até a pretensão filosófica dum princípio sem pressupostos é um pressuposto da mente. Ainda não se concluiu que a antiga crença de que há valores intrínsecos na evolução natural é mais discutível do que a imagem russeliana da vida e da consciência humana como puros produtos do acaso.

Será fantasia avançar a hipótese que o nosso ser seja só por si uma epistemologia e uma ontologia, quer dizer, uma filosofia do organismo capaz de responder às acusações de antropomorfismo? A forma não é menos essencial à natureza do movimento e à finalidade da função. Qualquer coisa que se escolha por natural implica como função seja a forma seja o movimento. Invocar o acaso puro como deus ex machina dum desenvolvimento estupendamente organizado, que se presta a uma demonstração sintética matemática, é usar o acidental como túmulo da explicação. Argumentando com perspicácia a favor duma aproximação teleológica, Hans Jonas perguntou-se se uma análise estritamente psico-química da estrutura do olho e do seu estímulo tinha sentido e se não era correlata ao acto de ver. Diz Hans Jonas (The phenomenon of life, Delta Books, Nova Iorque, 1966: p. 90; sublinhados meus): Sempre se encontrará a intencionalidade do organismo enquanto tal e a sua ânsia de vida: presente já em cada tendência vegetativa estes atributos ganham a primeira forma de consciência nos reflexos indistintos, na reactiva excitabilidade, dos organismos inferiores, consciência que se avoluma nos impulsos, nos esforços e na ânsia da vida animal, atingindo a máxima clareza na sensibilidade, na vontade e no pensar humanos. Reflexos, impulsos, consciência… todos são aspectos essenciais do lado teleológico da “matéria” (…). Em cada caso, a estrutura e o comportamento teleológicos dos organismos não configuram simplesmente um modo alternativo de os descrever: são, e prova-o a consciência orgânica de cada um deles, a manifestação exterior da natureza íntima da substância. O que carreia que não exista organismo sem teleologia, que não exista teleologia sem essa natureza íntima e que só a vida possa conhecer a vida.

Poder-se-á acrescentar que só se conhece a vida como resultado da vida. Esta não pode nunca, pela sua natureza mesma, ser dissociada da sua capacidade potencial de conhecer. Poder-se-iam juntar muitas outras sequências às considerações de Jonas sobre teleologia. Pode-se conceber por exemplo a teleologia como actualização duma potencialidade, mais precisamente como o resultado final da tendência imanente para a auto-realização, uma tensão que deixa espaço à casualidade e à incerteza. Neste sentido, a teleologia expressa a auto-organização dum fenómeno para ser aquilo que é, sem certeza à partida que assim será. O nosso conceito de teleologia não necessita de nascer em linha recta de nenhuma “férrea necessidade”, de nenhum auto-desenvolvimento linear e preciso, que “inevitavelmente” assegure a realização final dum fenómeno a partir do seu ponto de partida. Não obstante um fenómeno não poder auto-constituir-se por acaso, a casualidade pode impedir a auto-realização. O seu “telos” apresenta-se assim como consequência duma tensão vitoriosa e não como uma necessidade inevitável.

rojavaO mais cativante, porém, que está hoje acontecendo é o facto de ser a própria natureza a escrever a filosofia e a ética natural, não os lógicos, os positivistas, os sociobiologistas, os místicos ou os herdeiros do cientismo de Galileu. É cada vez mais óbvio que não estamos sozinhos no universo, nem mesmo no vazio do espaço. Graças a uma revolução muito recente na astrofísica, talvez só equiparável às descobertas de Copérnico e Kepler, o entendimento do cosmos exige um volta-face especulativo da mente e uma aproximação mais qualitativa aos fenómenos naturais. Torna-se dia a dia mais plausível que o universo inteiro seja o berço da vida e não apenas o nosso planeta ou planetas de condições idênticas. O “big-bang”, a grande explosão, cujos ecos distantes, atravessando mais de quinze mil milhões de anos, ainda hoje são perceptíveis pelos instrumentos dos astrofísicos, pode ser a prova, mais que incidente casual, de uma forma de “respiração” cósmica, cujas expansões e contracções se estendem por um tempo infinito. Se assim é, e situamo-nos no plano das meras conjecturas, estamos diante de processos cósmicos, mais do que ante um episódio singular, na formação do universo. Se estes processos exprimem uma forma sem fim de história universal, nós, que estamos irrevogavelmente fechados na era cósmica que nos é própria, não estaremos nunca em condições sérias de interpretar a realidade e o significado deles. Não é porém despropositado perguntar se é dum vasto e contínuo desenvolvimento do universo que se trata ou se dum género de respiração rítmica universal.

Tudo isto se passa no campo das conjecturas, dizíamos, conquanto a formação de todos os elementos do hidrogénio e do hélio, a sua combinação em pequenas moléculas e depois a sua auto-formação em grandes, e por fim a organização destas nos componentes da vida e da mente, seguem uma sequência que desafia a imagem russeliana duma humanidade como faúlha acidental num vácuo privado de sentido. Certos passos desta sequência põem fortemente em dúvida tais concepções em que a palavra “acaso” se torna um cauteloso substituto duma substancial inevitabilidade. Um universo disseminado por um pó composto de hidrogénio, carbono, azoto e oxigénio pareceria inevitavelmente destinado à formação de moléculas orgânicas. Os radio-astrónomos encontraram no espaço inter-estelar cianogénio, óxido de carbono, ácido cianídrico, formaldeído, ácido fórmico, álcool metílico, acetal e formato de metilo. A imagem clássica do espaço como vácuo está, em suma, ultrapassada e dá lugar à imagem dum espaço como lugar de incessante actividade química e genética, a favor duma surpreendente sequência de compostos orgânicos cada vez mais complexos.

Daqui até à auto-organização de moléculas que constituam formas rudimentares de vida o passo é curto. A análise dos meteoritos com pequenas inclusões carbonáceas evidenciou a existência de hidrocarbonetos aromáticos de cadeia longa, como ácidos gordos, aminoácidos e porfirinas, isto é, compostos de que é feita a clorofila. Num conjunto de experiências de laboratório, iniciadas pela conhecida “spark.gap” de Miller Urey, produziram-se aminoácidos simples fazendo passar descargas eléctricas através dum recipiente que continha gás presumivelmente idêntico, enquanto combinação, à atmosfera terrestre primitiva. Modificando o gás a partir de teorias sobre a atmosfera originária, outros investigadores conseguiram obter aminoácidos complexos, precursores do ADN.

Sempre de modo hipotético, mas com um impressionante número de provas, é agora possível imaginar como os microrganismos anaeróbios puderam desenvolver membranas simples e como, num crescendo de complexidade, emergiram formas distintas de vida capazes de processos metabólicos altamente desenvolvidos. Outras hipóteses, nas conjecturas sobre a formação das estruturas genéticas, revelam num modo ainda mais impressionante a gradativa continuidade entre inorgânico e orgânico. Tais conjecturas conduzem-nos à característica central da vida mesma: a capacidade que tem um complexo mosaico de macro moléculas orgânicas de se reproduzir e, o que é mais, de o fazer com mutações suficientemente significativas para permitir a evolução. Já em 1944, Erwin Schrodinger tinha fornecido uma definição da reprodução e da evolução orgânica. No livro What is life? Mind and matter (Cambridge University Press, Nova Iorque, 1944: 5) este ilustre físico observava que “a parte essencial da célula viva – o cromossoma – podia ser definido como um cristal aperiódico”. Este na verdade não se limita a crescer por adição, como um periódico, mas modifica-se de modo significativo, dando lugar a formas evolutivas novas, mutações que iniciam e desenvolvem dados hereditários.

Rojava011Graham Cairns-Smith avançou uma outra hipótese, uma das muitas que hoje são avançadas, que pode ajudar a esclarecer a natureza dos primitivos processos reprodutivos. O  ADN é demasiado instável quimicamente, sublinha Cairns-Smith, para poder ter sobrevivido às radiações e às altas temperaturas a que estava exposta na origem a superfície terrestre. Com uma analogia, Cairns-Smith equipara o ADN a um “nastro magnético: é muito eficiente se provido dum ambiente protector indicado, de matérias-primas adequadas e dum complexo sistema de registo”. Estes atavios, sustém ele, podem-se até encontrar no mundo inorgânico (Genes Made of Clay, “The new scientist”, 24 de Outubro de 1974, p. 276): Em conjunto com numerosas outras considerações, isto leva a pensar num processo de cristalização como mecanismo de reprodução, um qualquer defeito nos cristais torna-se o modelo de formação dos novos modelos. Certas argilas de mica parecem-me oferecer cruciais e  promissoras possibilidades.

A hipótese de Cairns-Smith sugere no mínimo que a vida, por vias próprias e seguindo a sua própria evolução genética, não se retraiu com os fenómenos do mundo inorgânico. Não quero com isto dizer que a biologia possa ser reduzida à física, tanto como a sociedade não pode ser reduzida à biologia. Aquilo que Cairns-Smith sugere é que, se certos cristais de argila podem ser os precursores das sucessivas e das mais avançadas formas de material hereditário orgânico, a natureza pode ser unificada por algumas tendências comuns. Tais tendências partilhariam uma idêntica origem na realidade do universo, ainda que funcionando de forma diferente e em diversos níveis de auto-organização.

Reside aqui, do meu ponto de vista, o aspecto essencial: a substância e a sua propriedade são inseparáveis da vida. A concepção bergsoniana da biosfera como factor da redução da entropia, num  universo que se presume avançar para a perda de energia e para a desordem crescente, parece atribuir à vida uma razão cósmica para existir. Caso as formas de vida tenham esta função, isso não sugere de todo que a vida tenha sido projectada do exterior por um demiurgo sobrenatural. Sugere antes que a “matéria”, ou substância, tem propriedades auto-organizativas, não menos válidas que a massa e o movimento que a física newtoniana lhe atribui.

Ao modo dos atributos tradicionais da “matéria”, não faltam dados para tornar plausíveis estas novas propriedades. No mínimo a ciência deve ser aquilo que na realidade a natureza é; e a vida na natureza, para usar a terminologia bergsoniana, é uma força que age em sentido contrário à segunda lei da termodinâmica, isto é, como factor de redução entrópica. A auto-organização da substância em formas cada vez mais complexas – e do mesmo modo da forma em correlação com a função e da função com a auto-organização – implica uma incessante actividade para chegar à estabilidade. Pode-se pois supor que a estabilidade, assim como a complexidade, seja um “objectivo” da substância, que a complexidade, e não apenas a inércia, favoreça a estabilidade e que, enfim, a complexidade seja a característica fundamental da evolução orgânica e duma interpretação ecológica das inter-relações bióticas. Todos estas noções são modos de compreender a natureza, não divagações místicas. São elementos probatórios e são-no muito mais do que os preconceitos teóricos que ainda hoje se opõem à ideia de que o universo tenha um significado, um significado moral, atrever-me-ei a dizer.

Parece claro que não nos podemos mais contentar com uma matéria “morta” e passiva que fortuitamente se junta em substância viva. O universo dá testemunho duma substância que está em constante tensão e se desenvolve, e não apenas se movimenta, uma substância cujo atributo dinâmico e criativo é a sua incessante capacidade auto-organizativa em formas sempre mais complexas. A fecundidade natural deriva antes de mais do crescimento, não da deslocação no espaço. Não podemos retirar às formas a sua situação central neste processo de crescimento e de desenvolvimento, nem podemos inferiorizar a função da forma que lhe é correlata. Aquele universo ordenado que torna a ciência um projecto possível e que dá sentido ao uso duma concisa linguagem lógico-matemática supõe esta correlação de forma e função. Nesta perspectiva, a matemática serve não apenas como “língua” da ciência mas também como seu logos. Este logos é sobretudo um projecto possível, já que toma em mãos um motivo que é inerente à natureza, “objecto” da indagação científica.

Uma vez superado o degrau do comportamento meramente instrumental nos embates da “linguagem” das ciências, podemos encontrar outros atributos para aquela substância que chamamos vida. Concebida como uma substância que infinitamente se conserva e se desenvolve, metabolismo incessante, a vida mostra também uma outra característica: a simbiose. Dados recentes confirmam a hipótese do naturalismo cooperante de Pedro Kropotkine não é só aplicável às relações dentro duma mesma espécie e entre espécies, mas ainda dentro das formas celulares complexas e entre elas. Há mais duma década observava já William Trager (Symbiosis, Van Nostrand Reinhold Co., Nova Iorque, 1970: VII): O conflito existente na natureza entre organismos diversos foi largamente divulgado e popularizado pelas expressões “luta pela vida” e “sobrevivência do mais forte”. Poucos se dão conta, porém, que a cooperação entre organismos diferentes – a simbiose – é igualmente  importante e que “o mais forte” pode ser aquele que mais ajuda o outro a sobreviver.

Consciente ou não, esta definição do “mais forte” não é só uma mera conjectura científica dum ilustre biólogo; é também um juízo ético idêntico ao que Kropotkine extraía do seu trabalho de naturalista e do seu ideal de anarquista. Trager sublinha que a integração “quase perfeita” dos “microrganismos simbióticos na economia do hospedeiro (…) levou à hipótese de que certos organismos intracelulares pudessem ter sido na origem microrganismos independentes.” Na verdade os cloroplastas, que desempenham a fotossíntese nas plantas de células eucarióticas, são estruturas definidas que se replicam por divisão, têm um ADN característico, semelhante ao das bactérias cocoformes, sintetizam as suas próprias proteínas e estão envolvidas por uma dupla membrana.

O mesmo se pode dizer das mitocôndrias, “centrais eléctricas” das células eucarióticas. As primeiras investigações neste campo remontam à década de 60 do século XX e foram desenvolvidas com muito entusiasmo por Lynn Margulis (Symbiosis in cell evolution, W. H. Freeman and Co., San Francisco, 1981) em numerosos artigos e livros sobre a evolução celular. Como se percebe a célula eucariótica é a unidade morfológica elementar de todas as formas complexas de vida vegetal e animal. Também os fungos apresentam esta estrutura celular provida de núcleo. As células eucarióticas são aeróbias e incluem várias subclasses claramente definidas. Ao invés, as células procarióticas não têm núcleo, são anaeróbias, menos especializadas e, segundo Margulis, são os antecedentes evolutivos das eucarióticas. As procarióticas são a única forma de vida que podia sobreviver e prosperar na atmosfera terrestre primitiva, onde apenas existia uma quantidade mínima de oxigénio.

Margulis conjecturou e largamente demonstrou que as células eucarióticas consistem numa adaptação simbiótica funcional de procarióticas tornados interdependentes umas com as outras.  Os flagelados eucarióticos tornaram-se espiras anaeróbias; as mitocôndrias fizeram-se bactérias capazes de respiração e de fermentação e os cloroplastídeos deram lugar às algas verde azuis recentemente classificadas como cianobactérias. Esta teoria, amplamente aceite hoje entre os biólogos, retém que os antepassados fagócitos das eucarióticas tinham absorvido, sem os digerir, espiras, protomitocôndrias (que Margulis sugere possam ter invadido os seus hospedeiros) e, no caso das células da fotossíntese, cianobactérias e clorobactérias de forma arredondada. As diversas formas aeróbias de vida teriam assim tido origem num processo simbiótico que integrou uma variedade de microrganismos naquele que pode ser definido como um organismo colónia: a célula eucariótica. O mutualismo cooperante, não predatório, aparece assim como o princípio guia para a evolução das formas da vida aeróbia altamente complexa que hoje conhecemos.

A perspectiva de que a vida e todos os seus atributos estão latentes na substância enquanto tal e de que a evolução biológica esteja profundamente radicada na simbiose e no mutualismo indica como é importante redireccionar a nossa noção de “matéria” como substância activa. Observava Manfred Eigen (Molecular self organization and the early stages of evolution, inQuartely review of biophysis, vol. IV, n.º 2/3, p. 202) que a auto-organização molecular sugere que a evolução “se apresenta como evento inevitável dada a presença duma certa matéria com específicas propriedades auto-catalíticas e dum fluxo limitado de energia livre, isto é, de energia solar, necessária para compensar a produção fixa de entropia.” Com efeito esta actividade auto-organizativa vai além da emergência e da evolução da vida e diz respeito àqueles factores aparentemente inorgânicos que produziram e mantêm “um ambiente bioticamente favorável ao desenvolvimento de formas de vida cada vez mais complexas”. Como sublinha Margulis, sintetizando a hipótese Gaia, elaborada por ela e por James E. Lovelock, não é mais sustentável que a vida haja sido constrangida a adaptar-se a um ambiente independente, geológica e meteorologicamente determinado. Este dualismo entre mundo vivente e não vivente – baseado em mutações casuais e pontuais das formas de vida, que por sua vez determinam quais as espécies que se salvam e as condenadas – aparece substituído pela noção mais estimulante que a vida, como diz Margulis, “produz grande parte do seu ambiente”. E ainda: “certas propriedades da atmosfera, da terra e da hidrosfera são controladas para e pela biosfera.”

Comparando planetas sem vida como Marte ou Vénus com a Terra, Margulis nota que a alta concentração de oxigénio na nossa atmosfera é anómala quando confrontada com o anidrido carbónico dos outros planetas. Demais “a concentração de oxigénio na atmosfera terrestre permanece constante, não obstante a presença de azoto, metano, hidrogénio e outros reagentes potenciais”. Na realidade a vida tem um papel activo na manutenção das moléculas de oxigénio livre na atmosfera. O mesmo se pode dizer para a alcalinidade e do nível moderado de temperatura da superfície terrestre. Diz Margulis (op. cit., pp.348-49): As anomalias da atmosfera terrestre são outra coisa que casualidade. As temperaturas das regiões tropicais e das temperadas divergem dos valores que teríamos por interpolação entre os valores correspondentes de Marte e Vénus e os desvios que têm lugar na maior parte dos organismos. O oxigénio mantém-se em cerca de vinte por cento, a temperatura média dos estratos inferiores da atmosfera é de cerca de 22 graus centígrados e o pH apenas acima de 8. Estas anomalias a escala planetária conservaram-se por longo tempo. A estranha composição química da atmosfera terrestre manteve-se por milhões de anos, apesar do tempo de permanência dos gases reagentes se medirem apenas em meses ou anos. Margulis conclui assim: É altamente improvável que o acaso possa explicar o facto da temperatura, o pH e a concentração de elementos nutritivos hajam sido por grande espaço  de tempo os adequados à vida. Ainda mais improvável, se pensarmos que os principais perturbadores dos gases atmosféricos são os organismos, antes de mais os micróbios. Ao invés, parece mais provável o investimento de energia, por parte dos viventes, numa actividade de conservação destas condições.

Em suma, até a Síntese Moderna, para usar a terminologia empregue por Julian Huxley para definir o modelo neo-darwinista de evolução orgânica introduzido nos anos 40, foi posta em discussão pela sua perspectiva limitada e talvez demasiado mecânica. A imagem dum ritmo evolutivo lento, saído da interacção de pequenas variações seleccionadas pela sua adequação ao ambiente, não se afigura sustentável, como parecia ser, a partir das descobertas fósseis disponíveis. A evolução aparece hoje mais esporádica, muitas vezes intervalada por longos períodos de estagnação. Espécies altamente especializadas tendem a modificar-se ou a desaparecer por causa dos reduzidos nichos ecológicos em que podem sobreviver, enquanto espécies menos especializadas se transformam mais lentamente e desaparecem com menos frequência, graças aos ambientes mais variados em que conseguem sobreviver. Esta hipótese, dita “hipótese de efeito”, adiantada por Elisabeth Vrba (citada por Robert Lewin, “Evolutionary theory under fire”, Science, vol. 210, 1980, p. 885), sugere que a evolução seja mais uma tendência imanente e não tanto o produto de forças selectivas externas. As mutações acasalam mais um mosaico voluntário do que pequenas e casuais modificações na estrutura e nas funções das formas de vida. Como alguém observou, enquanto a selecção das espécies atribui a força evolutiva às condições do ambiente, a “hipótese de efeito” endereça essa forças a parâmetros internos que determinam os níveis de especialização e de extinção.

A ideia de pequenas e graduais mutações casuais, uma teoria que concorda com a concepção vitoriana de transformações evolutivas estritamente fortuitas, pode ser posta em causa apenas por razões de base genética. Não só um gene mas um cromossoma, em mutáveis combinações entre si, podem ser modificados quimicamente e mecanicamente. As transformações genéticas podem ir de “simples” mutações pontuais a novas sistematizações de cromossomas muitos mais consistentes. Demais parece evidente, sobretudo no seguimento de resultados experimentais, serem possíveis trocas de mutações morfológicas geneticamente determinadas. Pequenas modificações genéticas podem dar lugar a transformações morfológicas, relevantes ou irrelevantes, e o mesmo vale para as grandes mutações genéticas.

A observação de Trager de que a espécie “mais adequada” pode ainda ser “aquela que mais ajuda uma outra viver” é uma fórmula excelente para refazer o quadro da evolução natural, vulgarmente pintado como drama insensato de sangrenta competição visando a sobrevivência. Existe uma rica literatura, que, remontando ao fim do século XIX, sublinha o papel desempenhado pela cooperação intra e entre específica na capacidade de sobrevivência das formas de vida no planeta. O famoso Apoio mútuo de Kropotkine sintetizou o conhecimento então disponível e juntou a palavra mutualismo  ao vocabulário biológico. Os primeiros capítulos desse livro resumem trabalhos contemporâneos de Kropotkine, as suas pesquisas na Ásia oriental e ainda uma montanha de dados novos sobre insectos, crustáceos, pássaros, as associações para caça dos “mamíferos carnívoros”, as sociedades de roedores, e outras sequências idênticas. O material é em grande parte intra-específico, mesmo que os biólogos mutualistas de há um século não tivessem ainda evidenciado os sistemas de apoio específico que nós sabemos hoje existirem numa quantidade muito maior do que Kropotkine podia imaginar. Buchner escreveu em 1953 um volume inteiramente dedicado à endo-simbiose dos animais com microrganismos vegetais; Henry, por sua fez,  no meado da década de 60 actualizou o estudo desta questão nos dois volumes de Symbiosis. As provas que este último apresenta sobre esse modo particular de mutualismo que é a simbiose inter-específica são, dizendo pouco, massivas. Ainda mais do que Apoio mútuo de Kropotkine, o trabalho de Henry documenta as relações mutualistas a partir da relação inter-específica entre rhizobium e legumes, passando pelas associações vegetais, pelo comportamento simbiótico entre animais, para chegar ao grande mecanismo homeostático de escala planetária ao nível das relações bioquímicas.

A adaptação raramente tem um significado biológico como pura sobrevivência e adequação ao meio das espécies. Se ficar por este nível de superfície, torna-se apenas uma empresa de adaptação individual que não consegue explicar a necessidade dos sistemas vitais de apoio que todas as espécies têm, seja por sistema autotrófico ou heterotrófico. A teoria evolutiva tradicional tende a abstrair uma espécie do seu ecossistema, isolando-a e considerando a sua sobrevivência de modo muito abstracto. Por exemplo, a interacção de mútuo apoio entre os organismos de fotossíntese e os herbívoros, longe de ser a forma mais simples de acção predatória ou de heterotrofia, é ao invés indispensável até para a fertilidade do solo, graças aos dejectos animais, à disseminação das sementes, à reciclagem dos cadáveres num ecossistema que se enriquece a cada momento. Mesmo os grandes carnívoros, predadores dos herbívoros, têm uma função vital, de controle demográfico selectivo, eliminando os animais doentes ou velhos, para os quais a vida estaria destinada a ser sobretudo sofrimento.

Paradoxalmente se desvalorizamos o significado do verdadeiro sofrimento e da crueldade reduzindo-o a dor e a acção predatória, do mesmo modo desvalorizamos o significado da hierarquia e da dominação roubando-lhes o sentido social e reduzindo-as a relações transitórias entre indivíduos mais ou menos violentos no seio duma específica comunidade gregária animal. O medo, a dor e a morte que um matilha de lobos dá a uma velha rena doente dão testemunho não da crueldade da natureza mas antes dum modo de morrer adequado à renovação orgânica e à estabilidade ecológica. O sofrimento e a crueldade pertencem ao mundo da angústia pessoal, da dor inutilmente infligida, da degradação moral de quem atormenta a vítima. Estas noções não são aplicáveis à eliminação dum organismo que já não pode funcionar a um nível que torna a vida tolerável. É perverso associar qualquer dor a sofrimento, qualquer acção predatória com crueldade. Sofrer a angústia da fome, os traumas psicológicos, a insegurança, o abandono, a solidão, a morte na guerra, as doenças incuráveis, nada disto pode ser comparado com a breve dor duma morte quase insciente dum acto predatório. As aflições da natureza são raramente tão cruéis como os sofrimentos sistemáticos e organizados infligidos pela sociedade humana aos seres vivos, animais ou homens, de perfeita saúde, sofrimento que só a mente humana pode conceber.

daf_in_kobaneNem a dor, nem a crueldade, nem a agressão, nem a competição explicam de forma satisfatória o aparecimento e o desenvolvimento da vida. Para uma melhor explicação devíamos tomar em consideração o mutualismo e um conceito de “adaptação” que reforce os sistemas de mútuo apoio e que responsabilize o mais adaptado. Se estamos dispostos a reconhecer a natureza auto-organizativa da vida, o papel decisivo do mutualismo e a sua dinâmica evolutiva impõem-nos a redefinição de “adaptação” em termos de ecossistema. E se estamos dispostos a ver a vida como um fenómeno que pode modelar e conservar aquele mesmo “ambiente” que se considera como fonte selectiva da sua evolução, uma pergunta crucial se impõe: faz sentido continuar a falar de “selecção natural” como força motriz da evolução biológica? Não precisaremos antes de falar em “interacção natural” para darmos conta de forma plena do papel da vida no criar e no orientar as forças que explicam a sua evolução? A biologia contemporânea dá-nos um quadro de interdependências muito mais importante na modelação das formas de vida do que tudo aquilo que um Darwin, um Huxley ou os autores da Síntese Moderna poderiam ter previsto. A vida é necessária não apenas em termos de auto-conservação mas até por causa da sua auto-formação. “Gaia” e a subjectividade são mais que efeitos da vida: são os seus atributos integrais. A grandeza duma autêntica sensibilidade ecológica, bem diferente do “ambientalismo” superficial hoje dominante, é que ela nos dá a possibilidade de generalizar de modo radical as inter-relações mutualistas, fazendo da variedade em que assenta o fundamento da estabilidade. A sensibilidade ecológica dá-nos uma perspectiva coerente que explica a realidade no sentido pleno do termo, dando-lhe uma explicitação ética.

Desde a longínqua idade helénica até ao primeiro Renascimento a “natureza” foi vista sobretudo como bússola de orientação ética, graças à qual o pensamento humano encontra o seu sentido e a sua coerência. A natureza não humana não era externa à natureza humana e à sociedade. Ao invés, a mente era apenas uma parcela dum logos cósmico que fornecia critérios objectivos para os conceitos pessoais e sociais de bem e de mal, justo e injusto, belo e feio, amor e ódio e, em suma, para todo um conjunto de valores, graças aos quais era possível caminhar em direcção da virtude e duma existência feliz. As palavras dike e andike – justiça e injustiça – compunham a cosmologia dos filósofos gregos da natureza. Sobraram até hoje traços desses valores em numerosa terminologia da moderna linguagem das ciências da natureza, por exemplo em palavras como “atracção” ou “repulsa”.

O erro da cosmologia antiga não reside na sua orientação ética mas na sua aproximação dualista à natureza. Por causa da maior importância atribuída à especulação sobre a experimentação, a antiga cosmologia cometeu o seu maior erro ao tentar ligar uma natureza fecunda auto-organizada com uma força vital alheia ao mundo natural. A dike de Parménides é, como o élan vital de Bergson, um substituto das propriedades auto-organizantes da natureza, não é uma força interna à natureza, uma força que explique a ordem do mundo. Até nas cosmologias monísticas que procuram juntar eticamente a humanidade e a natureza existe um dualismo latente, um deus ex machina que corrige os desníveis, seja num universo desequilibrado, seja numa sociedade insensata. A verdade tem uma coroa invisível, é uma espécie de verdade de Deus ou do Espírito, já que do mesmo modo que não se confia no desenvolvimento espontâneo da natureza também se espera que o Estado, como herança da “civilização”, funcione.

Estes arcaísmos, com as suas vagas teologias e as suas teleologias rigidamente elaboradas, foram justamente avaliados como armadilhas socialmente reaccionárias. Contaminaram as obras de Aristóteles e de Hegel, como magnetizaram as mentes escolásticas medievais. Mas os erros da antiga filosofia da natureza não residem tanto na tentativa de colher uma ética da natureza mas antes no espírito de dominação que desde o princípio a envenenaram, com a imposição dum “arbítrio” sobrenatural, quase sempre autoritário, que avaliava e corrigia os desequilíbrios ou injustiças que tinham lugar na natureza. Por isto os deuses antigos estavam sempre presentes, por muito racionais que estas primeiras cosmologias pudessem querer ser. Mereciam eles, os deuses, ser exorcismados para que se pudesse construir um contínuo mais significativo e democrático entre natureza e humanidade. Tragicamente, o pensamento do Renascimento tardio não foi mais democrático do que o pensamento anterior; nem Galileu na ciência, nem Descartes na filosofia conseguiram de modo satisfatório esta operação cirúrgica. Eles e os seus herdeiros separaram a natureza da mente, recriando outras divindades, sob a forma de preconceitos científicos e epistemológicos, não menos infectados pela dominação do que a tradição anterior que haviam demolido.

Encontramo-nos hoje ante a possibilidade da natureza – não como dike, justitia, Deus, Espírito ou mesmo élan vital – mostrar eticamente os seus próprios termos. O mutualismo é um bem em si, em virtude da sua função de estímulo à evolução da variedade natural. Não temos necessidade de nenhuma dike nem de nenhum cânone de “objectividade científica” para afirmar a esperança natural e social da vida e do seu papel. Do mesmo modo, a liberdade é um bem em si: a sua reivindicação funda-se naquela que Hans Jonas chamou com finura a “íntima natureza” das formas de vida, a sua “identidade orgânica”, a “aventura da forma”. O esforço visível de auto-identificação que qualquer ser vivo, no decurso da sua continuidade metabólica, para se conservar, põe em prática revela, até nos mais rudimentares organismos, um sentido de identidade e de actividade selectiva que Jonas apropriadamente viu como provas duma “liberdade embrionária”.

Enfim, a crescente complexidade e variedade que, através do curso da evolução, transforma as partículas subatómicas naquelas formas conscientes e auto-reflexivas que chamamos seres humanas, não pode senão levar-nos a reflectir sobre a existência dum telos, entendido este em sentido largo, e sobre uma subjectividade latente na substância que por fim dá lugar à mente e à inteligência. Na reactividade da substância, na sensibilidade dos microrganismos menos desenvolvidos, na formação dos nervos, dos gânglios, da espinal medula, no desenvolvimento estratificado do cérebro, percebe-se uma evolução da mente tão irresistivelmente coerente que a tentação de a definir, ao modo de Manfred Eigen, como “inevitável” é grande. É difícil acreditar que a casualidade pura possa explicar a capacidade que as formas de vida têm para responder neurologicamente aos estímulos, de desenvolver sistemas nervosos altamente organizados, de prever, ainda que de forma confusa, os resultados do seu comportamento e por fim  de conceptualizar de forma clara e simbólica esta antecipação. Uma verdadeira história da mente deveria começar com os atributos da substância, talvez logo nos obscuros esforços dos cristais mais simples para se perpetuarem, na evolução do ADN de fontes químicas ignoradas até ao momento em que manifesta a seu modo aquele princípio de replicação já presente no mundo inorgânico, e na diferenciação de moléculas orgânicas vivas ou não vivas como resultado daquelas características intrínsecas de auto-organização que definimos como propriedade da vida.

O estudo da natureza – deixando de lado todos os preconceitos das epistemologias antigas – mostra uma modelação autónoma da evolução, uma “semente”, por assim dizer, implicitamente ética. O mutualismo, a liberdade e a subjectividade não são valores exclusivamente humanos; estão presentes, ao menos de forma embrionária, nos mais amplos processos cósmicos e orgânicos, que não necessitam de ser movidos por nenhuma divindade aristotélica e não precisam de ser revivificados por nenhum espírito hegeliano. Se a ecologia social conseguir perspectivar de forma coerentemente unitiva o mutualismo, a liberdade e a subjectividade como aspectos duma sociedade cooperativa, livre de dominação e orientada pela reflexão e pela razão, conseguirá então remover as taras que envenenaram desde o início a ética naturalista e dar uma voz ética comum à natureza e à humanidade. Não teremos mais necessidade do dualismo cartesiano ou do mais recente dualismo neo-kantiano que deixa muda a natureza e isola a mente do vasto mundo que a rodeia. Desgastar a comunidade, paralisar a espontaneidade, que, no coração mesmo da realidade auto-organizada, se move em direcção a uma crescente complexidade e racionalidade, limitar a liberdade, tudo isto significa negar a “semente” da natureza, negar a nossa hereditariedade nos processos evolutivos, negar a nossa função no mundo da vida. Se não formos bem sucedidos na criação duma sociedade ecológica e na articulação duma ética ecológica, ficará em jogo, não entrando sequer em linha de conta com as péssimas consequências para o ambiente, nada menos do que a nossa legitimidade ética.

O mutualismo, a auto-organização, a liberdade e a subjectividade, sustentados pelos princípios ecológicos de unidade na diversidade, de espontaneidade e de relações não hierárquicas, são assim fins em si mesmos. À parte a responsabilidade ecológica que estes fins delegam na nossa espécie enquanto voz auto-reflexiva da natureza, eles definem-nos literalmente. A natureza não existe para nosso uso, ela limita-se a legitimar a nossa existência ecológica e a nossa unidade. Como a noção de ser, estes princípios de ecologia social não têm necessidade de explicações, apenas de verificações. São elementos dumaontologia ética, não regras dum jogo que possam ser mudadas para adequar exigências pessoais.

Uma sociedade que nega o núcleo essencial desta ontologia levanta o problema da sua realidade mesma como entidade significativa e racional. A “civilização” deixou-nos em herança uma concepção de alteridade como “polarização” e “desafio” e da essência orgânica, visando a identificação pessoal, como “guerra” permanente. Tais concepções arriscam-se a minar por inteiro a legitimidade ecológica da humanidade e a realidade da sociedade como dimensão potencialmente catalisadora do mundo que nos rodeia. Bombardeados por falsas percepções duma natureza em constante oposição à humanidade, redefinimos de tal modo a nossa essência humana que a guerra passou a ser o preço da paz, o controle o preço da consciência, a dominação o preço da liberdade, o antagonismo o preço da reconciliação. Num tal contexto auto-destrutivo, estamos a construir um Valhalla que por certo se tornará uma mina para as labaredas devoradoras de Ragnarok.

Não obstante, dos conceitos de alteridade e de essência da vida, pode tirar-se um sistema filosófico e social completamente distinto. Se tivermos uma ampla visão ecológica da natureza e concebermos um mundo benigno que a vida plasmou no curso da evolução, podemos então formular uma ética da complementaridade que se alimenta da diversidade em lugar duma ética que tutela a essência individual por meio duma alteridade ameaçadora e invasora. Na verdade a essência da vida pode ser vista como expressão de equilíbrio mais do que como mera resistência à entropia e ao fim de qualquer actividade. A própria entropia pode ser vista como uma das características dum mais vasto metabolismo cósmico, de que a vida é só a dimensão anabólica mais visível. Um tal metabolismo geral pode ser visto como resultante da integração, da comunidade e do apoio mútuo, sem que por isso se diminua a identidade individual e a espontaneidade singular.

Destarte duas alternativas estão neste momento frente a frente. Podemos tentar apaziguar o espírito guerreiro de Odin, pacificando-o a ele e à sua corte, abrindo o Valhalla ao vento da reflexão e da ponderação. Tentaremos então remendar os esfarrapados pactos que outrora sustinham precariamente em conjunto o mundo e passar com eles a melhores e mais benévolas situações. Podemos até esperar que Odin se convença a arrumar a lança, a guardar a armadura e a prestar ouvidos às doces vozes que aconselham o diálogo e a compreensão. Em alternativa os nossos esforços podem dar lugar a uma reviravolta radical: arruinar Odin, de cuja senilidade testemunha uma sociedade abortada. Abandonaremos então os mitos contratuais que “harmonizam” um mundo intrinsecamente dividido, esses mitos mantidos de pé pela épica nórdica com o exílio e as cadeias. O nosso desafio será então criar um novo mundo e uma nova sensibilidade, a partir duma base de reflexão pessoal e duma ética de que somos herdeiros enquanto resultado do incessante movimento evolutivo em direcção à consciência. Temos a possibilidade de nos legitimar como expressão acabada da mente no mundo da natureza, como racionalidade que favorece a diversidade natural e integra os processos naturais com sucesso, uma certeza e uma direcção que são porém incompletos na natureza não humana.

A “civilização” tal como a conhecemos hoje é mais muda do aquela natureza em nome da qual ela, a civilização, pretende falar e mais cega do que aquelas forças elementares que pretende controlar. Esta “civilização” vive mergulhada no ódio ao mundo que a rodeia e no ódio por si. As suas cidades estão feridas, esventradas, as terras degradadas, a água e o ar envenenados; a sua mesquinha cobiça é uma acusação diária à sua imoralidade odiosa. Um mundo assim empobrecido é talvez irrecuperável, ao menos no quadro das suas actuais estruturas institucionais e éticas. Se o fogo de Ragnarok purificou o mundo nórdico, o apocalipse nuclear que ameaça engolir o planeta poderá deixá-lo irremediavelmente inútil para a vida, cadáver testemunhando um fracasso cósmico. Este planeta merece um destino melhor do que aquele que parece esperá-lo no futuro – já que a sua história, incluída a humana, se não mais houvesse, foi rica de promessas, de esperanças, de criatividade.

MURRAY BOOKCHIN

[tradução de A. Cândido Franco]

[Curdistão] A primeira Kobanê, por Janet Biehl

Moradoras de Sere Kaniye

Moradoras de Sere Kaniye


Postado em Resistência Curda, por , em 12 de fevereiro de 2015

Originalmente postado em Ecology or Catastrophe, 1 de fevereiro de 2015
Tradução geral por Pedro Faria

Escrito por Janet Biehl

Em 7 de dezembro de 2014, a delegação de acadêmicos[1] viajou para Serê Kaniyê, onde visitaram o centro de comando local das Unidades de Proteção Popular (YPG) e do Partido de União Democrática (PYD), um bairro que fora um campo de batalha, e a área de fronteira com a Turquia.

O recente sucesso do YPG e do YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres) na libertação de Kobanê merece todos os elogios que tem recebido, mas Kobanê não foi a primeira vez que as forças de defesa de Rojava venceram os jihadistas fanáticos e assassinos. Em novembro de 2012, Jabhat al Nusra, um grupo derivado da Al Qaeda, atacou e ocupou a cidade de Serê Kaniyê, na fronteira oeste do cantão de Cirize. Assim como em Kobanê, o YPG derrotou as forças ocupantes e libertou a cidade.

Com 50 mil habitantes, em sua maioria curdos, mas também Chechênios, Armênios e Arameus e Árabes, Serê Kaniyê se situa exatamente na fronteira com a Turquia, que a separa da cidade de Ceylanpınar. As duas cidades foram separadas no fim da primeira guerra mundial, quando as potências vencedoras da guerra criaram os estados da Síria e da Turquia a partir das ruínas do Império Otomano.

As duas cidades permaneceram divididas depois de quase um século de relações tensas entre Síria e Turquia. “A fronteira nos separa de nossos parentes”, diz o guia à delegação. “As pessoas ainda se referem a Ceylanpinar como a Serê Kaniyê acima da linha, enquanto nós somos a Serê Kaniyê abaixo da linha”.
A revolta síria começou na primavera de 2011 e desenvolveu-se rapidamente para uma guerra civil brutal, com vários grupos radicais islâmicos dentre os grupos lutando contra o regime de Assad. Antes do amanhecer de 8 de Novembro de 2012, um desses grupos, a Frente Al Nusra, entrou num dos bairros residenciais de Serê Kaniyê, o som de metralhadores e helicópteros quebrando o silêncio. As centenas de invasores tomaram casas de habitantes locais e transfomaram-nas em bases militares.

Apesar de Al Nusra ser parte da oposição ao regime de Bashar al-Assad, os invasores entraram em Serê Kaniyê não pelo sul, mas pelo norte, a partir da Turquia — cruzaram a fronteira sem maiores problemas. Como apontou a co-presidenta do PYD, Asiya Abdullah, “os ataques estão vindo da Turquia, numa clara violação do direito internacional. Nós requisitamos a todos os Estados e à ONU que condenem o governo turco por essa violação dos direitos humanos”. No entanto, o apelo não recebeu respostas e foi pouco noticiado pelos grandes meios de comunicação internacionais.

Aviões do regime de Assad bombardearam a cidade, buscando atingir as posições dos jihadistas, mas as bombas mataram também ao menos dez civis, além de terem deixado outros setenta feridos. Cinquenta casas tiveram que ser demolidas e alguns milhares de residentes fugiram para o leste em um ou dois dias. O YPG começou a se mobilizar para defender a cidade.

Sete dias após o ataque inicial, em 19 de novembro, uma coalizão de partidos curdos chamou uma marcha para protestar contra a ocupação. Civis de Dirbespiye, Qamişlo e Amude — outras cidades de Rojava — tomaram as estradas que levam à Serê Kaniyê, mas se depararam com barreiras montadas pelo Al Nusra. O co-líder do conselho popular local, Abid Xelil, apareceu acompanhado de forças de segurança curdas (Asayiş) e exigiu que os extremistas armados removessem as barreiras e permitissem a continuação da marcha. Como respostas, os jihadistas abriram fogo, matando Xelil e um outro manifestante.

De acordo com a co-presidenta Abdullah, Xelil era tido como “uma figura simbólica da compreensão inter-étnica” em Serê Kaniyê. “Aqui, árabes, arameus, armênios e curdos vivem juntos harmoniosamente. […] A Turquia tentar destruir essa convivência harmoniosa e provocar uma guerra entre árabes e curdos”.

IMG_2451Em 20 de Novembro, o exército turco ajudou a invasão do Al-Nursa através de disparos de mísseis de curto alcance a partir do outro lado da fronteira. Os jihadistas em Sere Kaniyê deram aos turcos as coordenadas das posições do YPG, para melhor acertá-las.

Durante a resposta do YPG à ocupação da cidade, observadores notaram que os jihadistas feridos era levados em ambulâncias turcas para o lado norte da fronteira, em direção aos hospitais de Ceylanpinar, enquanto os feridos curdos eram impedidos de cruzar a fronteira para receber cuidados no mesmo hospital. Diante desses fatos, é difícil acreditar que a invasão de Serê Kaniyê não tenha sido uma operação turca, com ordens de Ancara e operada a partir de Ceylanpinar.

No dia 21 de novembro, cinco tanques turcos atravessaram a fronteira, mais uma vez para apoiar Al Nusra. Naquele momento, os jihadistas já ocupavam quase toda a cidade, exceto os distritos de Hawarna e Xiraba. No entanto, o YPG resistiu ao avanço até que, na manhã do dia 23, os jihadistas pediram uma trégua. Apesar de alguns pequenos combates, a trégua persistiu por dois meses.

Dois meses depois, em 16 de janeiro, mais ou menos 1500 jihadistas utilizaram novamente o território turco para entrar em Serê Kaniyê, dessa vez com vários tanques. O YPG resistiu bravamente mais uma vez, destruindo três tanques e matando entre 100 e 120 jihadistas e com apenas alguns mártires do nosso lado. O Al Nusra recebeu novos reforços e tentou investir sobre a estação de polícia, o palácio de governo e uma igreja cristã assíria. Mas nesse momento o YPG já havia liberado diversos bairros, inclusive o posto de fronteira com a Turquia. Em 30 de janeiro, o Al Nusra havia sido basicamente expulso da cidade.

IMG_2473O YPG e o Exército Livre da Síria (FSA) acordaram um cessar-fogo em 17 de Fevereiro, também aceito pelo Al Nusra. O acordo previa a saída de grupos armados de Serê Kaniyê e a constituição de um conselho civil, composto por representantes dos diversos povos sírios, que controlaria o posto de fronteira. Salih Muslim, co-presidente do PYD, afirmou que “o lado curdo está plenamente sustentando plenamente o acordo… Nós temos que formular e garantir os direitos dos diversos grupos étnicos e religiosos, assim como os das mulheres, por meio de uma constituição democrática.

Mas os invasores — apoiados pelos turcos — se recusaram a desistir e, em 16 de julho, os jihadistas atacaram Serê Kaniyê novamente. Dessa vez a resistência do YPG foi rápida e eficiente: os invasores foram repelidos em dois dias e o controle sobre a cidade foi restabelecido. Alguns passaportes turcos foram encontrados em áreas anteriormente ocupadas pelo Al Nusra.

Relegado às áreas rurais ao redor de Serê Kaniyê, o Al Nusra, agora com apoio do estado islâmico (ISIS), dedicou-se à pilhagem, ao sequestro e à execução de civis, tanto curdos quanto árabes. Entre o dia primeiro e o dia 5 de Novembro, o YPG efetuou uma operação de liberação das vilas rurais. Na medida em que as vilas eram liberadas, foram recuperados veículos, munição e armas, além de material logístico. Bens pilhados pelos jihadistas foram retornados aos seus donos e o conselho popular distribuiu pão aos habitantes. Os residentes árabes estavam tão aliviados quantos os curdos diante da liberação, expressando o alívio com slogans de “Long Live the YPG”.

O Centro de comando do YPG

Quando a delegação de acadêmicos chegou em Serê Kaniyê, a vida cotidiana já havia sido retomada, apesar da continuidade dos enfrentamentos contra o estado islâmico a 25km da cidade. No centro administrativo e de comunicação do YPG em Serê Kaniyê, um porta-voz nos contou que “o Deash [ISIS] está em uma posição defensiva… mantivemos uma operação contra eles nas últimas duas semanas… e até mesmo alguns de seus comandantes de alto escalão foram mortos. Agora estamos nos aproximando do centro da posição inimiga.”

At the YPG Command Center

 

O YPG e a sua contraparte feminina, o YPJ, se autodenominam “unidades de defesa popular”, explicou o porta-voz, Dr. Huseyin Koçer: eles defendem uma sociedade e não um estado, pois Rojava é auto-governada por meio de uma democracia popular. “Nós estamos aqui pelo povo, pela sociedade, é assim que nos compreendemos”. Mesmo assim, Dr. Koçer enfatizou que “a mobilização que vemos aqui é mais forte do que aquela que veríamos em dez Estados juntos!”

A cooperação inter-religiosa e inter-étnica entre curdos, assírios, árabes, aramaicos e outros grupos é crucial para a a auto-defesa popular: “Somente assim podemos derrotar aqueles que nos atacam, tentam nos expulsar e colocar uma comunidade contra a outra, disse o Dr. Koçer. Ao invés de discriminar contra as minorias não-curdas, a vontade comum das comunidades auto-governadas, expressa pelo YPG, é proteger os valores culturais e as tradições das minorias. “Centenas de árabes participam do YPG e do YPJ”, ele adicionou, e os assírios formaram uma milícia, chamada Sutoro, que opera sob a liderança do YPG. Um combatente chechênio nos contou também no centro de comando que seu povo chegou na região algumas gerações antes, “mas nós já nos tornamos um povo dessa região, assim como os outros. Aderimos às forças do YPG e do YPJ e juntos protegemos a região”.

“O que acontece quando o YPG e o YPJ liberam uma vila árabe?”, perguntamos.
“Muitos dos habitantes árabes apoiam o Daesh”, respondeu o Dr. Koçer, “mas nós não os atacamos… Sabemos que muitos não gostam do Daesh, mas sentem-se obrigados a apoiá-los por medo. O Daesh rouba e pilha onde quer que estejam… Dizem cometer esses crimes em nome do Islã, mas eles não tem nada em comum com o Islã… Nós tentamos fortalecer a capacidade de mobilização dos habitantes árabes… Tentamos criar consciência da liberdade e da liberação; tentamos comunicar a necessidade de auto-organização, não apenas para sustentar a vida cotidiana, mas também a vida política.”

O YPG, disse o porta-voz, está tentando levar o auto-governo democrático para as vilas árabes: “o conselho popular de Serê Kaniyê vai até as vilas que liberamos para ajudar e organizar e às vezes nós nos juntamos a eles… Nós ajudamos e apoiamos os habitantes locais a estabelecer conselhos em suas comunidades… Discutimos com eles e propomos nosso projeto democrático e seus objetivos”.

“E como eles recebem sua presença? Eles não aderem por medo também?”, perguntamos. “Nós não vamos a esses lugares para fazê-los parecidos conosco. Queremos nos assegurar que eles possam expressar sua própria vontade política. Por meio de discussões, nós tentamos criar uma consciência libertadora. Muitas vilas acabam nos apoiando e por fim aderindo ao YPG”.

Após a vitória sobre o Daesh em Serê Kaniyê e o progresso feito em Kobanê, a moral do YPG está em alta, nos diz Dr. Koçer, “não importa quantas vezes eles nos ataquem, nós não mais aceitaremos nenhuma ocupação… por nenhum grupo… Estamos preparados para ser ser o túmulo de todos aqueles que nos atacarem”. “O Daesh é um grupo que comete crimes contra toda a humanidade”, ele continuou, “eles representam uma ameaça a todas as comunidades do mundo. Nós resistimos a essa força: aqui e agora, mas em qualquer outro lugar no futuro”.

Apesar de toda a força da resistência, ela sofre com a falta de meios materiais, pois Rojava está sob um embargo político e econômico da Turquia e, com algumas exceções, do KRG (Governo Regional Curdo, que controla as áreas curdas no norte do Iraque). Por isso, “não podemos tratar os feridos adequadamente: temos médicos, mas não temos medicamentos… É extremamente necessário suspender esse embargo. Queremos ser vizinhos da Turquia, mas o estado turco se mobiliza ativamente contra nós, dando apoio e facilitando os ataques do Daesh”.

O porta-voz pediu à delegação acadêmica para levar ao mundo ocidental a mensagem de que é necessário pressionar a Turquia para afrouxar as restrições ou pelo menos abrir um corredor humanitário para Rojava para que medicamentos e armas possam alcançar as regiões curdas. Aqueles que se comprometem a lutar contra o terrorismo devem fazer ao menos isso em apoio a um aliado corajoso, aos combatentes-democratas de Rojava.

O relato da batalha de liberação de Serê Kaniyê é baseado em relatos de Firat, Civaka Azad e Rojava Report. Os comentários do YPG foram reduzidos para manter o texto conciso.

[1]Delegação de professores e estudantes que visitou Rojava em Desembro de 2014. Para o comunicado conjunto da delegação, acesse o link (inglês): http://roarmag.org/2015/01/statement-academic-delegation-rojava/