(Estado espanhol) CNT contra a perseguição ao movimento anarquista

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

A CNT solidariza-se com todos os detidos na operação policial de 30 de Março

O Estado volta a recorrer à repressão e tenta, de novo, criminalizar a ideologia e os colectivos anarquistas. Para isso põe em marcha todo o seu poder mediático e judicial, tentando desta maneira instalar na sociedade um clima de medo e insegurança que justifique a aprovação e a aplicação de novas leis, cada vez mais repressivas e reaccionárias. Precisam de um inimigo e fabricam-no. Primeiro fazem as leis; depois procuram alegados culpados a quem elas se apliquem. Com isto pretendem esconder ao serviço de quem está toda a máquina do estado, que não é senão as grandes empresas e a banca.

Quando, apesar dos apelos à participação nos processos eleitorais, se mantêm ou aumenta a resposta na rua contra os cortes sociais e laborais e a perda de direitos, o estado necessita reforçar as suas ferramentas repressivas e de controlo social. E põem-nas em acção contra aqueles que o enfrentam.

As prisões e as buscas de hoje acontecem, precisamente, poucos dias depois de ser aprovada a nova Lei de Segurança Cidadã, mais conhecida como Lei Mordaça, à qual não só se opõem os movimentos sociais e sindicais mais combativos. Instituições tão pouco suspeitas de serem “anarquistas Terroristas” como ONG’s e outros movimentos sociais, a União Europeia ou a ONU também manifestaram o seu repúdio ou as suas reservas face a esta lei.

A relação entre os dois factos parece-nos nítida. As operações policiais acompanham a aprovação de uma lei tão controversa, jogando aqui o movimento e os colectivos anarquistas o papel de vitimas “à mão de semear”: como não se apresentam a eleições nem têm lugar fixo nas tertúlias televisivas, as suas denúncias ficam silenciadas pelo ensurdecedor ruído mediático. Ao mesmo tempo que a lei gera alarme social e procura uma base de apoio a política do quero e posso reprime qualquer reivindicação que ponha em perigo o seu controlo sobre a resposta social e sindical aos seus ataques-

 O único terrorismo real de que sofre a classe trabalhadora é o que se exerce a partir do poder: os despejos, o desemprego, o desmantelamento do sistema de saúde e de educação… Como gritamos nas ruas “violência é o dinheiro não chegar ao fim do mês”. Não podemos permitir que espezinhem os nossos direitos mais básicos. Antes prendiam manifestantes e grevistas. Hoje prendem anarquistas. Amanhã serás tu. E então já será tarde.

 Não à repressão. Não à prisão de quem luta.

Secretariado Permanente do Comité Confederal da CNT

http://www.cnt.es/noticias/cnt-en-contra-de-la-persecuci%C3%B3n-al-movimiento-anarquista

relacionado: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2015/03/30/novas-detencoes-de-anarquistas-no-estado-espanhol/

https://directa.cat/policia-espanyola-dete-28-persones-en-una-operacio-contra-collectius-anarquistes

https://www.diagonalperiodico.net/libertades/26261-26-detenciones-madrid-la-segunda-parte-la-operacion-pandora.html

Desobediência: A virtude original do homem

FreeHuey[1]

-Oscar Wilde em The Soul of Man Under Socialism, 1891.

Fonte: Aversão ao Estado

Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser lamentadas. Muitas vezes ouvimos que os pobres são gratos à caridade. Alguns o são, sem dúvida, mas os melhores entre eles jamais o serão. São ingratos, descontentes, desobedientes e rebeldes – e têm razão. Consideram que a caridade é uma forma inadequada e ridícula de restituição parcial, uma esmola sentimental, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir gratidão pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar sentados nela e agora começam a percebê-lo. Quando ao descontentamento, qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.

Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. O pregresso é uma conseqüência da desobediência e da rebelião. Muitas vezes elogiamos os pobres por serem econômicos. Mas recomendar aos pobres que poupem é algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que está morrendo de fome a comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar ou fazer greve – o que para muitos é uma forma de roubo.

Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar. Não! Um pobre que é ingrato, descontente, rebelde e que se recusa a poupar terá, provavelmente, uma verdadeira personalidade e uma grande riqueza interior. De qualquer forma, ele representará uma saudável forma de protesto. Quanto aos pobres virtuosos, devemos ter pena deles mas jamais admirá-los. Eles entraram num acordo particular com o inimigo e venderam os seus direitos por um preço muito baixo. Devem ser também extraordinariamente estúpidos. Posso entender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita que ela seja acumulada enquanto for capaz de realizar alguma forma ed atividade intelectual sob tais condições. Mas não consigo entender como alguém que tem uma vida medonha graças a essas leis possa ainda concorda dar com a sua continuidade.

Entretanto, a explicação não é difícil, pelo contrário. A miséria e a pobreza são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralisante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência de seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá-lo e mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas.

O que os patrões dizem sobre os agitadores é totalmente verdadeiro. Os agitadores são um bando de pessoais intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vive e semeiam o descontentamento nele.

É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria. A abolição da escravatura nos EUA não foi uma consequência da ação direta dos escravos nem uma expressão do seu desejo de liberdade. A escravidão foi abolida graças à conduta totalmente ilegal de certos agitadores vindos de Boston e de outros lugares,que não eram escravos, não tinham escravos nem qualquer relação direta com o problema.  Foram eles, sem dúvida que começaram tudo. É curioso observar que dos próprios escravos eles só receberam pouquíssima ajuda material e quase nenhuma solidariedade. E quando a guerra terminou e os escravos descobriram que estavam livres, tão livres que podiam até morrer de fome livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situação.

Para o pensador, o fato mais trágico na Revolução Francesa não foi que Maria Antonieta tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendée tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo.

 

(Nota do Editor: Wilde cometeu um erro comum à sua época ignorando a ação dos próprios escravos como protagonistas de sua libertação. Hoje se sabe na historiografia que houve um feroz protagonismo escravo na obtenção de sua liberdade, atuando desde em  movimentos abolicionistas organizados até promovendo rebeliões e revoltas que constituiam mecanismo de negociação e conflito. Um dos exemplos foram as Ferrovias Subterrâneas, que eram rotas de libertação de escravos que contavam com forte militância de escravos).

Excertos de O Anarquismo frente aos Novos Tempos

Anarquismo-Social-ou-Anarquismo-de-Estilo-De-VidaFonte: Protopia

Por Murray Bookchin

O capitalismo, inevitavelmente por sua própria natureza, utilizará cada progresso técnico com objetivos autoritários e destrutivos.

E quando digo destrutivos, não me refiro só ao destino da humanidade, mas também ao desse mundo natural do qual dependem, para sua sobrevivência, todas as espécies em seu conjunto. Sentido fala-se tanto de bombas ou de antibióticos, de gás venenoso ou de substancias químicas para a agricultura, de radar ou de comunicações telefônicas. As vantagens que a Humanidade pode colher do progresso técnico são tão somente migalhas caídas de um banquete orgiástico de destruição que, só neste século, sacrificou mais vítimas que em qualquer outro período histórico.

Nos parâmetros temporais que definem a unidade de nossa época, o projeto libertador se encontra frente aos problemas típicos de um período de transição: a exigência de trabalhar com estratos sociais em declínio que constituem, todavia, elementos decisivos de mutação social; a exigência de trabalhar com estratos sociais em declínio que constituem, todavia, elementos decisivos de mutação social; a exigência de trabalhar com estratos sociais emergentes que estão convertendo-se em fatores decisivos das mudanças sociais como, por exemplo, os técnicos e profissionais altamente qualificados; a exigência de trabalhar com os oprimidos de sempre, que sempre serão elementos potenciais decisivos de mudança social, como as mulheres e as minorias étnicas; a exigência de trabalhar com os denominados “grupos marginais”, categorias socialmente não bem definidas que podem tornar-se elementos cruciais para a mudança social, como a inteligência radical, que jogou um papel estratégico em todas as situações revolucionárias, e os indivíduos que escolhem estilos e normas de vida cultural e sexual não ortodoxas.

Presumivelmente a tecnologia cibernética, que se encontra apenas em sua infância, converterá em economicamente supérflua a maioria dos norte- americanos que hoje trabalham. Não estou fazendo retórica. Cada década leva em si profundas mudanças técnicas que vão tornando “inúteis” quase todo tipo de trabalho tradicional.

Ainda que alguns milhões de pessoas fiquem de alguma maneira implicadas nestas operações, elas constituirão as “margens” da economia, não o seu núcleo. Devemos enfrentar o fato de que é possível uma tão imponente substituição do trabalho humano, assim como de que é inevitável, se o capitalismo seguir seu curso.

O que significa existencialmente essa ilimitada revolução tecnológica? Significa que o capitalismo deverá enfrentar o problema dos incontáveis milhões de pessoas que, a partir do ponto de vista burguês, não contarão com nenhum posto na sociedade.

Hoje, e nos anos que estão por vir, esse mesmo capitalismo que produziu Hitler é seguramente capaz de produzir instituições que acabem com a população supérflua sem se importar quão numerosa e recalcitrante ela possa ser. Sofreremos qualquer outra estratégia genocida similar a de Hitler? Não excluamos tão facilmente uma “solução” que já tenha sido dada no passado. Os métodos podem ser mais indiretos, como os atuais sistemas chineses de “controle demográfico” ou o escandaloso sistema de esterilização forçada imposto por Indira Gandhi.

A reestruturação do Estado “democrático burguês” esta na ordem do dia em quase todos os paises industrializados do mundo. A única coisa que detém o capitalismo rumo á totalização completa desses países é o enorme peso das tradições que, em todas as partes do ocidente, frustra o poder executivo, e, em particular, a tradição libertária dos Estados Unidos, com sua ênfase sobre os direitos individuais, sobre a autonomia, sobre o controle local, sobre o federalismo.

Na década de 30, era um mundo da extensa família em que várias gerações viviam juntas ou em íntimo contato umas com as outras, preservando a cultura e as tradições de um não-burguês. Era o mundo da “pequena pátria”: a vila, a cidade, o bairro, onde a amizade era íntima e onde existia um espaço público que nutria uma esfera pública e um corpo político que nutria uma esfera pública e um corpo político ativo.

Existiam, no entanto, centros comunitários que contavam com um lugar para a instrução, a conferência, o apoio mútuo, os livros, os períodos, a exposição de “idéias avançadas” e ainda para a ajuda material quando os tempos eram difíceis. Os famosos meetings em uma esquina da rua, onde uma surpreendente variedade de oradores radicais falava a um público cativo,ou no mínimo expectante. Esse fantástico mundo das “caixas de sabão”, era uma fonte de ativo intercambio político, um mundo que habilitava tanto oradores como público na arte da atividade pública. O Estado e sociedade industrial destruíram esse mundo social e político descentralizado. As grandes famílias, ricas em diversidades geracionais e culturais, murcharam para a família nuclear, constituída por dois genitores intercambiáveis e por seus dois ou três filhos intercambiáveis também. Os anciãos foram oportunamente despachados para bairros residenciais, para “cidadãos da terceira idade”, assim como a história e a cultura pré-industrial foram enterradas nos museus, nas academias e nos bancos de dados dos computadores. A venda de alimentos, de artigos domésticos e de vestuário, bem como de diversos instrumentos, que, em um tempo, foi uma atividade muito personalizada, própria de comerciantes locais (muito freqüentemente negócios de gestão familiar) em conexão estreita com os bairros ou com a cidade, é hoje um grande negócio de enormes empresas.

As ruas estão congestionadas de veículos e não de seres humanos e as praças se converteram em estacionamentos e não em lugares aonde as pessoas se reúnam e dialoguem.

As ruas e avenidas dilaceram os centros da cidade e irradiam os bairros com efeitos espantosamente destrutivos para a integridade cultural da comunidade.

O discurso é preferencialmente eletrônico. Debater nas horas mais importantes é reservado a pretensos experts e à estrelas dos meios de comunicação de massa que o fazem com uma passiva insanidade, o que está produzindo uma geração de mudos e de idiotas.

Está surgindo uma geração que não aprecia o pensamento enquanto tal e que tem sido adestrada a não generalizar. A atividade cerebral captura a forma de imagens vulgares idênticas àquelas apresentadas pela televisão e de uma mentalidade (se assim pode-se chamar) reduzida, que “trabalha com freios” antes quantitativos de informação que com conceitos qualitativos. Considero tal desenvolvimento simplesmente aterrador, na medida em que subverte a mente, impedindo a capacidade de imaginar espontaneamente pela alternativa de trabalhar de maneira que contradiga as imagens pré-fabricadas que a indústria publicitária (política e comercial) tende a imprimir no cérebro humano.

As imagens, na realidade, começam a substituir a imaginação, e a figura imposta pelo externo começa a substituir a idéia formada internamente.

Em 1983, quando escrevi Ecologia e Pensamento Revolucionário, recordo que falava do “efeito invernal”, que poderia elevar a temperatura do globo o suficiente para derreter parte das calotas polares em alguns séculos.

Defrontamo-nos não só com uma sociedade moribunda, mas também com um planeta moribundo e ambos sofrem da mesma doença e da mesma causa: nossa mentalidade histórica de domínio, cuja pretensão de “progresso” é hoje em dia uma dramática troça da realidade.

Como podemos, enquanto anarquistas, fazer frente às mudanças radicais no campo técnico, econômico, social e ecológico, das quais falamos até aqui? Quais são as “prioridades programáticas”, qual é a “ordem do dia” do nosso movimento para os anos subseqüentes a que possa compreender nossos esforços a nível internacional, ao lado de nossa oposição ao Estado e ao autoritarismo de todas as formas?

Dos nossos ideais de autogestão, descentralização, federalismo e apoio mútuo têm-se apropriado despudoradamente e sem uma palavra de agradecimento, escritores marxistas.

Nós os anarquistas, tempos sido há muito tempo os progenitores de uma sensibilidade orgânica, naturalista e mutualista da qual se tem apropriado o movimento ecológico, com escassíssimas referências às fontes: o naturalismo de Kropotkin e a ética de Guyau.

Aquilo que unifica o anarquismo do mundo clássico e também do mundo tribal até nossos dias, esta todo nessa idéia: nenhum domínio do homem sobre o homem. Esta postura anti-autoritária é o coração e a alma do anarquismo e sua autodefinição, corpo da idéia e da prática.

Devemos estar prontos para definir as novas questões emergentes, como a ecologia, o feminismo, o racismo, o municipalismo e aqueles movimentos culturais que se ocupam da qualidade de vida no mais amplo sentido do termo, para não falar das tentativas de opor-se à alienação de uma sociedade espiritualmente vazia.

Devemos estar dispostos a sair das velhas trincheiras ideológicas para olhar com honestidade, clareza e inteligência o mundo autoritário que se vai modelando a nossa volta e a tomar nota das tensões que existem entre as tradições utópicas das revoluções democráticas burguesas e a maré ascendente do militarismo e centralismo que ameaça cancelar essas tradições. Podem-se ignorar a política localista, os movimentos democráticos contra as tentativas de incrementar a autoridade do poder executivo? Humanismo anárquico universal.

Palavras como “contracultura”, ou seja, uma reivindicação programática que pode ser orquestrada pela base contra a cúpula, contra o poder estatal centralizado. Não posso chegar aos operários em suas fabricas e sindicatos , porque ambos são escolas de hierarquia e de domínio, mas assim posso chegar a eles – e a muita gente- no meu bairro e ás localidades próximas à minha comunidade. Em Burlington, Vermont, os anarquistas têm sido os primeiros a instituir assembléias de bairro –versão urbana dos meetings citadinos da Nova Inglaterra – que, em essência podem ser instituídas em qualquer parte: Milão, Turim, Veneza, Marselha, Paris, Genebra, Frankfurt, Amsterdã, Londres… O que obstrui seu nascimento não são dificuldades logísticas ou problemas de dimensão demográfica, senão o nível de consciência e não é justamente o problema da consciência – consciência de classe ou consciência libertária – o problema central de todo o projeto libertador?

Dirijo-me a sua fé nos direitos individuais, na descentralização, em uma concepção ativa da cidadania, no apoio mútuo e em sua aversão pela cidadania governamental. Eu não critico em demasia a conjugação liberdade-propriedade.

Lembro-lhe das instituições libertarias típicas de sua tradição revolucionária norte-americana: assembléias de cidadãos, formas associativas confederadas, autonomia municipal, procedimentos democráticos… Meu objetivo é claro: criar, a partir das tradições libertárias norte-americanas, aquelas formas de liberdade que possam opor-se ao crescente poder do Estado e à concentração da autoridade política e econômica. O núcleo central do meu planejamento é tanto municipalista quanto ecológico e contracultural.

Meu programa consiste em criar um poder popular dual, antagônico ao poder estatal que ameaça os resíduos de liberdade do povo um poder popular que reconstitua em forma anárquica, aqueles valores libertários e aqueles elementos utópicos que são o patrimônio mais vital da Revolução Americana.

  • Os excertos acima foram retirados da obra ‘O Anarquismo frente aos Novos Tempos’.

Somos Todos Grupelhos

JL

Felix Guattari

Fonte: Protopia

Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos. É fácil falar, sobretudo em países onde as forças materiais estão cada vez mais na dependência das máquinas técnicas e do desenvolvimento das ciências.


Derrubar o czarismo implicava na ação em massa de dezenas de milhares de explorados e sua mobilização contra a atroz máquina repressiva da sociedade e do Estado russo, era fazer as massas tomarem consciência da sua força irresistível face à fragilidade do inimigo de classe; fragilidade a ser revelada, a ser demonstrada pela prova de forças.


Para nós, nos países “ricos”, as coisas se passam de outro jeito; não é tão óbvio que tenhamos que enfrentar apenas um tigre de papel. O inimigo se infiltrou por toda parte, ele secretou uma imensa interzona pequeno-burguesa para atenuar o quanto for possível os contornos de classe. A própria classe operária está profundamente infiltrada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas… Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático. Primeiro, participação material em escala planetária: as classes operárias dos países economicamente desenvolvidos estão implicadas objetivamente, mesmo que seja só pela diferença crescente de níveis de vida relativos, na exploração internacional dos antigos países coloniais. Depois, participação inconsciente e de tudo quanto é jeito: os trabalhadores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da burguesia – maldição do roubo, da preguiça, da doença, etc. Eles reproduzem, por conta própria, objetos institucionais alienantes, tais como a família conjugal e o que ela implica de repressão intrafamiliar entre os sexos e as faixas etárias, ou então se ligando à pátria com seu gostinho inevitável de racismo (sem falar do regionalismo ou dos particularismos de toda espécie: profissionais, sindicais, esportivos, etc., e de todas as outras barreiras imaginárias que são erguidas artificialmente entre os trabalhadores. Isto fica bastante claro, por exemplo, na organização, em grande escala, do mercado da competição esportiva).


Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do “socialismo” burocrático são corroídas por uma angústia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de auto-sujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. A obtenção deste resultado repousa sobre o desenvolvimento de um antagonismo reforçado entre um ideal imaginário, que inculcamos nos indivíduos por sugestão coletiva, e uma realidade totalmente outra que os espera na esquina. A sugestão audiovisual, os meios de comunicação de massa, fazem milagres! Obtém-se assim uma valorização fervorosa de um mundo imaginário maternal e familiar, entrecortado por valores pretensamente viris, que tendem à negação e ao rebaixamento do sexo feminino, e ainda por cima à promoção de um ideal de amor mítico, uma mágica do conforto e da saúde que mascara urna negação da finitude e da morte. No final das contas, todo um sistema de demanda que perpetua a dependência inconsciente em relação ao sistema de produção; é a técnica do intéressement (2).


O resultado deste trabalho é a produção em série de um indivíduo que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas importantes de sua vida. É completamente desarmado que ele enfrentara a realidade, sozinho, sem recursos, emperrado por toda esta moral e este ideal babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz de se desfazer. Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar no resto… Agora, toda a sua vida ficará envenenada em maior ou menor grau pela incerteza de sua condição em relação aos processos de produção, de distribuição e de consumo, pela preocupação com seu lugar na sociedade, e o de seus próximos. Tudo passa a ser motivo de grilo: um novo nascimento, ou então “a criança não vai muito bem na escola”, ou ainda “os mais grandinhos se enchem e aprontam mil loucuras”; as doenças, os casamentos, a casa, as férias, tudo é motivo de aborrecimento…


Assim, tornou-se inevitável um mínimo de ascensão nos escalões da pirâmide das relações de produção. Não precisa nem fazer um desenho ou uma lição. Diferentemente dos jovens trabalhadores, os militantes de origem estudantil que vão trabalhar na fábrica estão seguros de se virar caso sejam despedidos; queiram ou não, eles não podem escapar à potencialidade que os marca de uma inserção hierárquica “que poderia ser bem melhor”. A verdade dos trabalhadores é uma dependência de fato e quase absoluta em relação à máquina de produção; é o esmagamento do desejo, com exceção de suas formas residuais e “normalizadas”, o desejo bem pensante ou bem militante; ou, então, o refúgio numa droga ou em outra, se não for a piração ou o suicídio! Quem estabelecerá a porcentagem de “acidentes de trabalho” que, em realidade, não eram senão suicídios inconscientes?


O capitalismo pode sempre dar um jeito nas coisas, retoca-las aqui e ali, mas no conjunto e no essencial tudo vai cada vez pior. Daqui a 20 anos alguns dentre nós terão 20 anos a mais, mas a humanidade terá quase duplicado. Se os cálculos dos especialistas no assunto se revelam exatos, a Terra atingirá pelo menos 5 bilhões de habitantes em 1990. Isto deveria colocar no decorrer do processo alguns problemas suplementares! E como nada nem ninguém está em condições de prever ou organizar alguma coisa para acolher estes recém-chegados – à parte alguns porra-loucas nos organismos internacionais, que aliás não resolveram um só problema político importante durante os 25 anos em que estiveram aí instalados -, podemos imaginar que seguramente acontecerá muita coisa nos próximos anos. E de tudo quanto é tipo, revoluções, mas também, sem sombra de dúvida. Umas merdas do tipo fascismo e companhia. E dai o que é que se deve fazer? Esperar e deixar andar? Passar à ação? Tudo bem, mas onde, o quê, como? Mergulhar com tudo, no que der e vier. Mas não é tão simples assim, a resposta a muitos golpes está prevista, organizada, calculada pelas máquinas dos poderes de Estado. Estou convencido de que todas as variações possíveis de um outro Maio de 1968 já foram programadas em IBM. Talvez não na França, porque eles estão fodidos, e ao mesmo tempo bem pagos para saber que este tipo de baboseira não constitui garantia alguma e que não se encontrou ainda nada de sério para substituir os exércitos de tiras e de burocratas. Seja o que for, já está mais do que na hora de os revolucionários reexaminarem seus programas, pois há alguns que começam a caducar. Já está mais do que na hora de abandonar todo e qualquer triunfalismo – note-se o falismo – para se dar conta de que não só estamos na merda até o pescoço, mas que a merda penetra em cada um de nós mesmos, em cada uma de nossas “organizações”.


A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorado: autoridade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá-la a partir do vocabulário de uns e de outros, seu jeito de falar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim! A luta de classe contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou o interior de cada um de nós com seu eu, com o ideal de status que acreditamos ter de adotar para nós mesmos. Já está mais do que na hora de se organizar em todos os níveis para encarar esta luta de classe generalizada. Já é hora de elaborar uma estratégia para cada um destes níveis, pois eles se condicionam mutuamente. De que serviria, por exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização antiautoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos superativos, se eles se comportam com os militantes dos outros grupos, no interior de seu próprio grupo, com seus próximos ou cada um consigo mesmo, como perfeitos canalhas, perfeitos carolas? De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? Os fins políticos são pessoas desencarnadas. Eles acham que se pode e se deve poupar as preocupações neste domínio para mobilizar toda a sua energia em objetivos políticos gerais. Estão muito enganados! Pois na ausência de desejo a energia se auto-consome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia. E pelo tempo que já estão nessa, já podiam ter se dado conta destas coisas por si mesmos!


A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica – a libido – em objetivos de luta social. É fácil reduzir tudo às famosas contradições principais. É demasiadamente abstrato. É até mesmo um meio de defesa, um troço que ajuda a desenvolver phantasias (3) de grupo, estruturas de desconhecimento, um troço de burocratas; se entrincheirar sempre atrás de alguma coisa que está sempre atrás, sempre em outro lugar, sempre mais importante e nunca ao alcance da intervenção imediata dos interessados; é o princípio da “causa justa”, que serve para te obrigar a engolir todas as mesquinharias, as míseras perversões burocráticas, o prazerzinho que se tem em te impor – “pela boa causa” – caras que te enchem o saco, em forçar tua barra para ações puramente sacrificiais e simbólicas, para as quais ninguém está nem aí, a começar pelas próprias massas. Trata-se de uma forma de satisfação sexual desviada de seus objetivos habituais. Este gênero de perversão não teria a menor importância se incidisse em outros objetos que não revolução – e olha que não faltam objetos! O que é chato é que estes monomaníacos da direção revolucionária conseguem, com a cumplicidade inconsciente da “base”, enterrar o investimento militante em impasses particularistas. É meu grupo, é minha tendência, é meu jornal, a gente é quem tem razão, a gente tem a linha da gente, a gente se faz existir se contrapondo às outras linhas, a gente constitui para si uma pequena identidade coletiva encarnada em seu líder local… A gente não se enchia tanto em Maio de 68! Enfim, tudo ocorreu mais ou menos bem até o momento em que os “porta-vozes” disto ou daquilo conseguiram voltar à tona. Como se a voz precisasse de portador. Ela se porta bem sozinha e numa velocidade louca no seio das massas, quando ela é verdadeira. O trabalho dos revolucionários não é ser portador de voz, mandar dizer as coisas, transportar, transferir modelos e imagens; seu trabalho é dizer a verdade lá onde eles estão, nem mais nem menos, sem tirar nem por, sem trapacear. Como reconhecer este trabalho da verdade? É simples, tem um troço infalível: está havendo verdade revolucionária, quando as coisas não te enchem o saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, aconteça o que acontecer, correndo até o risco de morte. A verdade, a vimos atuando em Maio de 68; todo mundo a entendia de cara. A verdade não é a teoria nem a organização. É depois dela ter surgido que a teoria e a organização têm de se virar com ela. Elas sempre acabam se situando e recuperando as coisas, mesmo que para isso tenham de deformá-la e mentir. A autocrítica cabe à teoria e à organização e nunca ao desejo.


O que está em questão agora, é o trabalho da verdade e do desejo por toda parte onde pinte encanação, inibição e sufoco. Os grupelhos de fato e de direito, as comunas, os bandos, tudo que pinta no esquerdismo tem de levar um trabalho analítico sobre si mesmo tanto quanto um trabalho político fora. Senão eles correm sempre o risco de sucumbir naquela espécie de mania de hegemonia, mania de grandeza que faz com que alguns sonhem alto e bom som em reconstituir o “partido de Maurice Thorez” ou o de Lenin, de Stalin ou de Trotsky, tão chatos e por fora quanto seus Cristos ou de Gaulles, ou qualquer um desses caras que nunca acabam de morrer.


Cada qual com seu congressinho anual, seu mini-Comitê Central, seu super-birô político, seu secretariado e seu secretário-ge(ne)ral e seus militantes de carreira com seu abono por tempo de serviço, e, na versão trotskista, tudo isso duplicado na escala internacional (congressos mundiais, comitê executivo internacional, seção internacional, etc.).


Por que os grupelhos, ao invés de se comerem entre si, não se multiplicam ao infinito? Cada um com seu grupelho! Em cada fábrica, cada rua, cada escola. Enfim, o reino das comissões de base! Mas grupelhos que aceitassem ser o que são, lá onde são. E, se possível, uma multiplicidade de grupelhos que substituiriam as instituições da burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo, etc. Grupelhos que não temessem, além de seus objetivos de luta revolucionária, se organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam.


Ah, então trata-se de anarquia! Nada de coordenação, nada de centralização, nada de estado-maior… Ao contrário! Tomem o movimento Weathermen nos Estados Unidos: eles estão organizados em tribos, em gangues, etc., mas isto não os impede de se coordenar e muitíssimo bem.


O que é que muda se a questão da coordenação, ao invés de se colocar para indivíduo, se coloca para grupos de base, famílias artificiais, comunas?… O indivíduo tal como foi moldado pela máquina social dominante é demasiado frágil, demasiado exposto às sugestões de toda espécie: droga, medo, família, etc. Num grupo de base, pode-se esperar recuperar um mínimo de identidade coletiva, mas sem megalomania, com um sistema de controle ao alcance da mão; assim, o desejo em questão poderá talvez fazer valer sua palavra, ou estará talvez mais em condições de respeitar seus compromissos militantes. É preciso antes de mais nada acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico, uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contingência, sua finitude e para seus objetivos de luta. O movimento revolucionário deve portanto construir para si uma nova forma de subjetividade que não mais repouse sobre o indivíduo e a família conjugal. A subversão dos modelos abstratos secretados pelo capitalismo, e que continuam caucionados até agora, pela maioria dos teóricos, é um pré-requisito absoluto para o reinvestimento pelas massas de luta revolucionária.


Por enquanto, é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não, quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados.

[editar]NOTAS

1. No original, groupuscule. Corresponde ao “grupelho” no Brasil, nome dado aos grupos de dissidência do partido comunista, da década de 60 – anarquistas, trotskistas, guevaristas, maoístas -, época da desestalinização que o PCF parece ter ignorado. O termo grupelho traz em si um sentido pejorativo, pois desde a perspectiva do PC, perspectiva adotada na época pelos próprios esquerdistas uns contra os outros, ser minoritário era ser facção insignificante, marginal, acometida pela “doença infantil do comunismo”, justificativa suficiente para sua exclusão, como medida sanitária, visão aliás compartilhada pela direita: em junho de 68, de Gaulle, já no controle da situação, através de seu ministro do Interior, proibiu a existência desses grupelhos, baseando-se numa lei da Frente Popular contra as milícias fascistas armadas e paramilitares.

Ora, o autor retoma aqui a própria idéia de grupelho como afirmação de uma posição política. “Somos todos grupelhos”: a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define um grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. É neste devir que a luta se generaliza. “Saúde infantil” do político, que se contrapõe à tendência a generalizar a luta em torno de uma representação totalizadora, sua “doença senil”. Desta perspectiva, tamanho não é documento, e um pequeno grupo também pode ser acometido de “doença senil”.

A noção de grupelho pode ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de “grupo sujeito”, contraposto a “grupo sujeitado” (cf. nota 7 de “A Transversalidade”), à idéia de “agenciamento coletivo de enunciação” e, na década de 70, ao conceito de “molecular”, contraposto a “molar”. (N. do Trad.).

2. O intéressement, pedra de toque da doutrina social do gaullismo, designa uma modalidade de participação dos operários nos lucros da empresa, através de uma remuneração que se acrescenta ao salário fazendo com que o trabalhador se “interesse” pela produtividade da empresa. Esta doutrina, considerada mistificadora pela esquerda francesa, foi por ela amplamente denunciada. (N. do T.).

3. No original alemão Phantasie, traduzido em francês por fantasme. Na tradução de Freud para o português (edição da Standard), optou-se por “fantasia”, de acordo com as traduções inglesa (fantasy ou phantasy, o primeiro consciente e o segundo inconsciente, segundo proposta de Susan Isaacs) e espanhola (fantasia). Preferimos adotar o termo “phantasia”, sugerido na tradução para o português dos Escritos de Lacan (Perspectiva, SP, 1978), que preserva o arcaísmo do termo francês fantasme (cf. nota 14 dos Escritos). (N. do T.).

Tradução de Suely Rolnik

Fontes: GUATTARI, Félix. Revolução Molecular. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 13-19.

Predefinição:Origem-sabotagem

1º de abril de 1964, a data que não podemos esquecer e a ideologia que seguimos combatendo

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Federação Anarquista Gaúcha – Integrante da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Fonte: Federação Anarquista Gaúcha – Integrante da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)


Fazer memória ao golpe militar levado a efeito em 1º de abril de 1964 com o amplo apoio das elites e do empresariado nacional e internacional é dever de todo campo da esquerda que se reivindica combativa e, especialmente, do Anarquismo organizado que desde os primórdios tem estampado no alto da sua bandeira a luta contra todas as formas de opressão representadas pelo Estado, pelo capital e pelos lacaios de farda que lhes dão sustentação. Para além de fazer a denúncia e trazer a tona à memória da barbárie sem escrúpulos materializada nos sequestros, desaparecimentos forçados, torturas e assassinatos que se tornaram lugar comum durante os longos 21 anos de chumbo é fundamental que se aponte as heranças desse período. Heranças essas evidenciadas objetivamente no judiciário e nas ações militares das polícias que seguem fazendo da história fato presente através da criminalização da pobreza, do protesto, das perseguições às e aos que lutam, das torturas, dos assassinatos, dos indiciamentos sem provas, das condenações políticas, entre tantos outros fatos que fazem da memória histórica subsídio para pensar e atuar no presente.

Para nós é fundamental fazer memória as e aos que tombaram lutando contra o arbítrio e a opressão do Estado ditatorial, não apenas pela necessária lembrança e reconhecimento, mas também pela força que o elemento de luta e de resistência carrega em si. Se ontem foram eles que através da organização resistiam e lutavam contra a ditadura escancarada, hoje segue posto para nós seguir combatendo o Estado e suas heranças ditatoriais que mantém a gênese autoritária e opressora muito viva, mesmo escondida sob mal camuflada democracia. O Estado continua servindo como aparelho de classe para manutenção dos interesses dos “de cima”, da mesma elite podre que apoiou a ditadura. Longe de querer comparar o período ditatorial e a exceção permanente tornada regra com o cenário que vivemos hoje, é fundamental que a memória daqueles tempos tome lugar nos nossos debates e nas nossas lutas cotidianas. Essa atitude tem potencial efetivo para garantir acúmulo de forças para a luta dos “de baixo” e para que opressão – em todas as suas formas – tenha fim.

É muito difundido entre amplos setores sociais o entendimento sobre o que representa e o que representou a ditadura empresarial-militar para a história do Brasil, bem como para a história dos países do cone sul. Contudo, muito devido à timidez de parte da esquerda em fazer essa denúncia, da dificuldade de criar espaços de difusão das memórias do período ditatorial e, principalmente, pela ausência de punição aos agentes da ditadura e aos seus cúmplices, que ainda pairam muitas dúvidas e desconhecimentos entre o grosso da população. As disputas que atravessam o tema da ditadura bem como as heranças daquele período que seguem presentes nos dias de hoje estão intimamente ligadas às práticas de esquecimento e à ausência do elemento de justiça na tríade composta por memória e verdade.

Se torna ineficiente tocar nesse tema apenas em datas pontuais. Os exemplos dos demais países que passaram por ditaduras nos ensinam desde há muito tempo que é a organização desde as ruas, sindicatos, escolas, locais de trabalho que impulsiona o debate social e que pode garantir a punição aos crimes cometidos pelos agentes e apoiadores da ditadura. Que em nossos atos e em nossas lutas se façam sempre presentes àquelas e àqueles que lutaram e em muitos casos entregaram suas vidas para que hoje pudéssemos falar, distribuir, ler e opinar sobre a covardia que é uma ditadura.

Ontem e hoje, seguir organizando, resistindo e lutando com os “de baixo”!

Arriba todas e todos os que lutaram e todas e todos que seguem lutando!

Pelo socialismo e pela liberdade!

Cuidados e segurança: um texto sobre as UPPs

Nós, do Anarquia ou barbárie, somos absolutamente contra essa política de extrema marginalização e de terror contra o povo da favela. E, frente ao último incidente, a morte de um garoto de apenas 10 anos, postamos este texto para mostrar nosso posicionamento e fazer nosso repúdio a tal acontecimento.

Retirado do Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol

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No Brasil, certos candidatos às eleições de 2010 lançam mão da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) como “sinônimo de ação que pode dar certo”.

Na América do Norte e na Europa fortalecem-se, desde 2008, as “Unidades Territoriais de Bairro (UTB)”, atualmente denominadas “Brigadas Especializadas de Terreno (BET)”, adaptações francesas da community policing, executadas em Chicago e Londres.

Autoridades governamentais, à direita e à esquerda, proclamam: “queremos uma sociedade respeitosa e não uma sociedade rígida, violenta, brutal e egoísta”!

Reconhecem que o cidadão deixa de ser uma ficção, quando o sujeito de direito caminha para se tornar o “indivíduo portador de direitos de uma igualdade formal, rumo à igualdade real”, ou seja, quando se dispõe a cuidar de si e dos outros.

Este cidadão “evoluiu” no interior das lutas de minorias, e reinscreveu o universal na pluralidade e na multiplicidade das demandasidentitárias, relacionadas umas às outras. Ele reconhece suas vulnerabilidades específicas e a interdependência das necessidades.

A expansão do pluralismo político em cada indivíduo ampliou o leque de escolhas racionais em variadas organizações da sociedade civil, para além das arregimentações partidárias.

É uma realidade neoliberal em função da cooperação e do bem comum, não apenas como sistema de governo de Estado e dos indivíduos. Todos devem cuidar de si e dos demais, porque todos dependem de algo, e para obtê-lo, de modo seguro, devem pautar suas condutas por meio da tolerância e da confiança de uns nos outros pela difusão da transparência.

A educação de cada um como capital humano, apesar da crise que eclodiu no sistema financeiro em 2008, não teve sua racionalidade abalada.

Os chamados países emergentes, como o Brasil, almejam despontar como potências do século XXI. Orientam-se com base na política participativa, na economia sustentável com responsabilidade sócio-ambiental, na variedade de direitos e em segurança modulada por cada cidadão e pelas tecnologias de informação e comunicação.

A expansão do pluralismo político propiciou o pluralismo policial, projetando o sujeito cosmopolita real.

Em poucas palavras: o súdito passou a ser cidadão e este a sujeito portador de direitos; em suma, permanece amando a sua condição e aspirando a uma “evolução” dentro da ordem.

Ele, ou ela, não se rebela contra a sujeição e amplia suas condutas como assujeitado, um amante das melhorias, na sua condição inquestionável de vida. Sobrevive como força reativa, exercitando a apatia ativa e conformando-se como um policial de si e dos outros.

É um zelador, ou melhor, um gestor que aspira conjugar o empreendedorismo de si com o empreendedorismo social, almejando a felicidade.

Chama-se isso de política de pacificação ou polícia da paz!

A UPP funciona como uma modulação da prática ditatorial contra a subversão em nome da profilaxia do meio ambiente.

A UPP incide sobre territórios devastados pela empresa-tráfico que acossa e encarcera a população local ao seu regime de governo.

A UPP combate seu inimigo preferencial e produz, por meio de uma intervenção violenta, o assombro na população acossada.

Esta responde, surpreendentemente, de maneira favorável à ação repressiva como população libertada e disponível à revitalização cuidadosa do seu território.

Agora, uma criança pode ir a uma padaria sem se assustar mais com o policial, e descrer da proteção efêmera proporcionada pelas organizações do tráfico ou das milícias.

Em pouco tempo e de maneira gradual, uma prática de governo ditatorial realiza-se como um programa democrático.

Possibilita a cooperação como restauração do amor à comunidade, fortalece a ação das ONGs, favorece o investimento de empresas e bancos, e reafirma a crença na segurança por meio da polícia do Estado, que permanecerá no local integrada à comunidade emancipada à condição de polícia de si

Quando o sujeito portador de direitos se sentir fortalecido em sua família, apto ao trabalho regulamentado, dependente e solidário aos cuidados, mais uma vez, os lucros econômicos, políticos e policiais serão maiores.

A polícia repressiva transforma-se em fomentadora da polícia comunitária composta pela totalidade dos cidadãos e dos futuros cidadãos.

É essa prática totalitária pelo seu avesso que faz da UPP, não uma metáfora, e sim o programa mais efetivo e eficiente de segurança na atualidade.

A UPP habita desde os territórios devastados até o discurso político partidário, redesenhando as práticas punitivas, a moral do castigo e a sociabilidade autoritária.

Para viver é preciso aderir ao não pode! Eis o cuidado.

Atenção: há outro perigo na esquina; querem nos fazer crer que o manto do cuidado nos protege do potencial perigo que está em cada um de nós.

Nessa sociedade, para haver segurança, todos devem ser monitorados.

Somos todos virtuais terroristas!

Isto não é só neoliberalismo, é a maneira pela qual somos educados para nos governar e governar os outros.

Configura-se uma nova subjetividade do capital humano em que cada um deve se sentir seguro de si, por depender do outro!

          Porque as pessoas não cuidam de si para serem livres?

Fonte: http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=151

 

As máscaras e o Black Bloc

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Fonte: Protopia

Por Black Bloc

Uma matéria sobre as origens do Black Bloc para desmistificar o caráter “porra-louca” que recebe de alguns camaradas, no mínimo, desinformados…

A história pré-Seattle

Aqueles que possuem autoridade, temem a máscara pelo seu poder em identificar, rotular e catalogar comprometido: em saber quem você é… nossas máscaras não servem para esconder ou ocultar a nossa identidade, mas para revelá-la… hoje nós devemos dar um rosto a essa resistência; colocando nossas máscaras mostramos a nossa união; e levantando as nossas vozes nas ruas, nós botamos pra fora toda a raiva contra os poderoso sem rosto…”

(Tirado de uma mensagem imprimida dentro das 9000 máscaras distribuídas no dia 18 de junho de 1999, carnaval anti-capitalista, que destruiu o distrito financeiro central de Londres.)


Nos protestos contra a OMC em Seattle ano passado, havia entre 100 e 300 anarquistas e outros vestidos de preto que literalmente demoliram as vitrines das odiosas corporações multinacionais. Desde então a tática do Black Bloc vem despertando o interesse e chamando a atenção de diferentes pessoas preocupadas com transformação social. Todos os setores da classe média alta, progressistas e liberais tem pregado moralmente a grande distância sobre como não existe vez para tal comportamento no movimento deles. Ao mesmo tempo, o Black Bloc em Seattle inspirou e renovou o interesse nas táticas militantes, as quais não aceitam autoridade e nem baixam a cabeça perante o seu poder. O Black Bloc N30, junto com muitos outros aspectos dos eventos de Seattle, tem inspirado também anarquistas radicais a parar de se esconder dentro de grupos ativistas liberais com pautas reformistas, e começar a Ter mais voz ativa nas suas exigências pela revolução e total transformação social. Além da rápida proliferação de organizações e publicações anarquistas, está clara a evidência do ressurgimento do anarquismo nos EUA, que pode ser vista nos Black Blocs maiores, os quais estavam presentes no dia 16 de abril em Washington DC, na Assembléia Nacional dos Republicanos e Democratas, neste verão. Pra bem ou pra mal, parece que no último ano, o Black Bloc virou uma tradição americana, e tudo começou com aqueles bravos garotos e garotas em Seattle…

Será?! De fato, 30 de novembro esteve longe de ser a primeira vez que um grande grupo de radicais vestidos de preto com máscaras pretas estiveram prontos para se empenhar na militância com solidariedade e anonimato. O Black Bloc como uma associação pra estratégia em protesto pode ter mais de 20 anos. Sua origem, de fato, vem dos Autônomos Europeus, um movimento social radical que não necessariamente se proclamou anarquista, mas muitas das suas táticas e idéias tem se tornado bem apreciadas e adotadas pelos auto-proclamados anarquistas.

Sobre autonomia

Autonomia, autônomos, ou autonomistas têm sido os nomes usados por vários movimentos populares de transformação social e contra-cultura na Itália, Alemanha, Dinamarca, Holanda e outras partes da Europa nas últimas três décadas. Todos esses diferentes movimentos têm procurado se opor radicalmente à autoridade, dominação e violência, onde quer que ela exista na vida cotidiana (quase todo lugar). Autonomia, neste caso, não significa um tipo de superioridade complexa regional, ou isolamento, como o nacionalismo, estatismo… e também não significa autonomia individual ás custas da maioria, como existe na base do capitalismo. O que os autônomos valorizam e desejam, é a liberdade para os indivíduos que escolheram outros com os quais possa dividir afinidades, e unir-se com eles para sobreviver e preencher todas as necessidades e desejos coletivamente, sem interferência da ganância, indivíduos violentos ou enormes burocracias desumanas.

Os primeiros assim chamados autônomos foram aqueles indivíduos envolvidos no movimento Autonomia Italiana, que começou no quente verão de 1969, uma época de intensa inquietação social. Através da década de 70, um grande movimento pela transformação social total era formado na Itália pelos grupos autônomos de operários, mulheres e estudantes. Capitalistas, sindicatos e a burocracia estatistas do Partido Comunista não tinham nada a ver com esse movimento, e de fato, deu duro para reprimí-lo e pará-lo.

Ainda, a estrutura do poder estava, frequentemente, prejudicada em como lidar com a recusa completa, de vários setores da população, a obedecer as ordens das autoridades. Apesar da rápida proliferação da ação direta, greves moratórias, ocupações de massa, batalhas urbanas, ocupações de universidades e outras ações radicais popularmente apoiadas durante a década de 70, o movimento dos Italianos “acalmou-se”. Isto era em parte, devido aos ataques violentos, prisões e assassinatos de radicais pela polícia e pelo governo centralizador do Partido Comunista. Ao mesmo tempo, a reação à esta escala de violência estatal era, frequentemente, a escolha do terrorismo pelos grupos de guerrilha urbana radical.

O terrorismo de auto-defesa, muitas vezes serviu para afastar as pessoas do movimento público de transformação social. Alguns escolheram se tornar mais militantes e reservados enquanto outros abandonaram a política, para viver uma aparente pacífica vida de obediência à autoridade.

Construindo o poder de enfrentamento revolucionário – A cultura dos autônomos

Apesar do potencial revolucionário do Autonomia Italiana de 70 ter sucumbido, sua agitação, confiança e “atrevimento” serviram de inspiração para os jovens da Alemanha Ocidental de 1980. Inspirados também pelo movimento squatter de Amsterdam e as organizações jovens na Suíça, Alemanha e outras cidades maiores, começaram a formar a sua própria cultura autônoma com grupos sociais baseados na resistência radical e formas de vida alternativas.

A direção e a composição da organização radical na Alemanha Ocidental de 1980 era em parte determinado pelo domínio da recessão econômica e os caminho que ela seguiu. Por causa das conecções bem-estabelecidas entre os industriais e o governo alemão, os efeitos da recessão não foram tão sentidos pelos blue collar workers, mas pelos jovens que acharam impossível assegurar trabalho e moradia, e, que antes haviam se mudado da casa do pais e se tornaram economicamente e socialmente “independentes”. Consequentemente, os motivos para a mobilização da juventude autônoma incluíram abalar o conformismo da sociedade rural alemã e da família nuclear, sérias deficiências domésticas, alto desemprego –bem como o status ilegal de aborto e planos governamentais para a expansão massiva do poder nuclear.

Como resultado da recessão econômica e visitas aos subúrbios, no fim de 1970, enormes regiões prediais residenciais, em diferentes cidades interioranas alemãs, especialmente na Alemanha Ocidental, foram abandonadas pelos empreendedores e as agências do governo. Ocupar esses prédios era uma opção viável para os jovens empobrecidos que procuravam independência da casa da família nuclear. Comunidades squatters cresceram na vizinhança de Kreusberg, em Berlim; os squats de Haffenstrasse, em Hamburgo; e em outros pontos de concentração. A pedra angular dessas comunidades era a vida em comum, e a criação de centros sociais radicais: infoshops, livrarias, cafeterias, lugares de encontro, bares, galerias de arte, e outros espaços multivalentes, onde as raízes políticas artísticas e culturais são desenvolvidas como uma alternativa para a vida da família nuclear, utopias de TV, e “cultura” pop de massa. Desses espaços sociais seguros, cresceram maiores iniciativas radicais para lutar contra o poder nuclear, ou centralizador; destruir a sociedade patriarcal e os papéis de gênero; mostrar solidariedade com os oprimidos do mundo atacando corporações multinacionais européias ou instituições financeiras como o Banco Mundial; e depois da reunificação alemã, lutar contra o crescente neo-nazismo.

Iniciativas semelhantes para uma vida alternativa como resistência estavam acontecendo nos anos 80 ( e em alguns lugares, bem antes) na Holanda, Dinamarca, e qualquer lugar da Europa Setentrional. Eventualmente, todas essas vivências norte-européias em grupos sociais descentralizados, os quais estavam dedicados a criar uma sociedade não-coercitiva e anti-hierárquica, tornaram-se rotulados como Autônomas. Com o tempo, as idéias e táticas autonomistas também migraram através da reunida Cortina de Ferro européia. Eu, pessoalmente, tenho visitado centros sociais autônomos radicais na Inaglaterra, Espanha, Itália, Croácia, Eslovênia e República Tcheca.

Repressão linha dura, resistência militante e o Black Bloc

Desde o começo, a Alemanha Ocidental não encarou bem os jovens autônomos, quer quando eles estavam ocupando usinas nucleares ou prédios desabitados. No inverno de 1980, o governo da cidade de Berlim decidiu reprimir duramente os milhares de jovens squatters pela cidade: eles decidiram incriminá-los, atacá-los e despejá-los nas ruas geladas do inverno. Essa foi uma ação muito mais chocante e diferente na Alemanha, do que seria nos EUA, e teve como resultado o repúdio e condenação da polícia e do governo pela opinião pública.

De 1980 em diante, houve um ciclo crescente de prisões em massa, batalhas urbanas, e novas ocupações em Berlim e no resto da Alemanha. Os autônomos não estavam assustados, e cada despejo era respondido como novas ocupações. Quando os squatters de Freiburg foram presos, passeatas e manifestações os apoiaram, e, condenaram a política de despejo da polícia estatal, em quase todas as grandes cidades do país. Naquele dia, em Berlim, posteriormente chamado “sexta-feira negra”, 15000 a 20000 pessoas tomaram as ruas e destruíram uma área de consumo da classe média alta.

Esse era o caldeirão fervente de opressão e resistência, do qual o Black Bloc surgiu…

Em 1981, o governo alemão começou a legalizar certo squats, numa tentativa de dividir a contra-cultura e marginalizar os segmentos mais radicais. Mas, essas táticas eram lentas demais para pacificar o movimento popular radical –especialmente, desde 1980-81 não só se havia visto tamanha brutalidade como os squatters, mas além disso, a maior mobilização policial da Alemanha desde o III Reich, com o objetivo de atacar manifestantes não-violentos na “livre república de Wendland”, um acampamento de 5000 ativistas que bloquevam a construção da usina Gorlebein de lixo nuclear. Mesmo anteriormente, ardentes pacifistas haviam sido radicalizados pela experiência da violenta repressão policial contra diversos squats e ocupações.

Em resposta à violenta repressão estatal, os ativistas desenvolveram a tática do Black Bloc: eles foram protestar e marchar, usando capacetes pretos de motoqueiros, máscaras de ski, e vestindo-se de preto (ou, para os mais preparados, estofamento de espuma e botas com ponta de aço, carregando seus próprios escudos). No Black Bloc, os autônomos e outros radicais poderiam se defender ou desviar, mais eficientemente, dos ataques policiais; sem serem reconhecidos como indivíduos, evitando prisões e batidas posteriores. E, como todos rapidamente perceberam, ter um grupo grande de pessoas, todas vestidas com a mesma cor de roupa, com os rostos cobertos, não só ajuda a escapar da polícia, mas também deixa mais fácil a tarefa dos sabotadores em destruir vitrines, bancos, e muitos outros símbolos materiais do poder do capitali$mo e do Estado. Nesse sentido, o Black Bloc é uma forma de militância que alivia a problemática entre desobediência civil não-violenta e, sabotagem e “terrorismo” guerrilheiro.

Realizações do Black Bloc e da resistência Autônoma

Black Blocs, militância autônoma e resistência popular ào Estado-polícia e à Nova Ordem Mundial se espalharam entre os europeus nos anos 80. Apesar dos radicais holandeses não se intitularem autônomos desde o começo (até 1986), os ativistas contraculturais holandeses dividiram táticas, organizaram estruturas e militâncias com os auto-proclamados Autônomos. O movimento squatter da Holanda realmente começou em 1968, e por volta de 1981, mais de 1000 casas e apartamentos foram ocupadas em Amsterdam, e havia por volta de 15000 squats no resto do país. Restaurantes, bares, cafés e centros de informação ocupados eram lugar comum, e os organizados squatters (costumeiramente chamado kraakers) tinham seu próprio conselho para planejar a direção do movimento e sua própria estação de rádio.

Contudo, alguns autônomos holandeses se recusaram a usar máscaras de ski enquanto estavam no Black Bloc, isso não quer dizer que o movimento deixou de ser militante. Um livro sobre o movimento squatter holandês mostra que “ desde o início havia existido uma ‘brigada de capacetes pretos’, a qual parecia Ter entrado numa batalha”.

Batalhas nos despejos dos squats de Amsterdam, frequentemente, mostravam a construção de enormes barricadas e, encurralados squatters arremessando mobília e outros projéteis, de vários tamanhos e formatos, pelas janelas, visando abater a polícia. Nos anos iniciais, existiam certos limites para o uso da violência, a qual os squatters usariam para retaliar os ataques policiais. De qualquer maneira, em 1985, quando um squatter chamado Hans Kok morreu sob custódia policial, ao ser preso durante um brutal despejo e evacuação, os limites foram superados. Seguindo as notícias de sua morte, uma noite de ávida destruição reinou em Amsterdam, e mesmo carros da polícia foram queimados em frente de vários distritos. Um squatter disse: “todos tinham a idéia, agora nós usaremos dos últimos meios, apenas antes das armas mesmo: Molotovs…todos caminhavam com Molotovs em seus bolsos, todos tinham garrafas cheias com gasolina…era o novo método de ação direta”. Apesar da morte de Hans Kok e da resposta á altura terem tido um efeito negativo sobre o movimento, a nova estratégia se mostrou útil em alguns meios ativistas. Em 1985, o grupo holandês Ação Anti-racista (RARA), fez uma campanha bem-sucedida forçando a rede de supermercados holandeses MARKO a sair da África do Sul: a campanha foi realizada através de numerosos bombardeios, extremamente caros e danosos para eles, nas lojas e escritórios da MARKO.

Na Alemanha, em 1986, crescentes ataques policiais e tentativas de despejo, contra um complexo de casas ocupadas em Hamburgo, chamada Haffenstrasse, foram recebidas pela contra-ofensiva marcha de 10000 pessoas, entre elas, no mínimo, 1500 do Black Bloc, carregando uma faixa enorme que dizia: “Construa o poder de enfrentamento revolucionário!”. No fim da passeata, o Black Bloc foi capaz de, vitoriosamente, levar á cabo uma batalha de rua, na qual a polícia bateu em retirada. No dia seguinte, 13 lojas de departamentos foram queimadas, causando um prejuízo de $10 milhõe$ de dólare$.

Naquele mesmo ano, o desastre de Chernobyl trouxe uma nova onda de manifestações contra a construção de novas usinas nucleares na Alemanha. Um relato dessas manifestações anti-nuclear mostrou: “essas cenas lembram uma ‘guerra civil’; capacetes, Autônomos e anarquistas armados com estilingues, Molotovs e maçaricos colidiram brutalmente com a polícia, a qual usou canhões d’água, helicópteros e gás CS (oficialmente banido para uso em civis)”.

Em junho de 1987, quando Ronald Reagan foi à Berlim, cerca de 50000 pessoas se manifestaram contra a Guerra Fria, incluindo 3000 pessoas do Black Bloc. Um par de meses depois, os ataques policiai à Haffenstrasse se intensificaram novamente. Em novembro de 1987, moradores e milhares de outros autônomos fortificaram o complexo, construíram barricadas nas ruas e lutaram contra a polícia cerca de 24 horas. No fim, a cidade decidiu legalizar as residências ocupadas.

Mais de 10 anos antes de Seattle e o protesto contra a OMC, os Autônomos mobilizaram um evento semelhante com um grande grupo de resistentes. Em setembro de 1988, o Banco Mundial e o FMI se encontraram em Berlim. Os Autônomos se valeram deste encontro como foco para a resistência mundial contra o capitali$mo corporativo globalizante e, contra a destruição governamental de bases autônomas e comunitárias. Milhares de ativistas de toda a Europa e EUA foram mobilizados, e 80000 manifestantes foram “encontrar” os banqueiros (no mínimo, 30000 a mais que Seattle). A polícia, completamente superada em número, e a segurança privada do evento tentaram manter a “ordem” banindo todos os manifestantes e atacando brutalmente qualquer assembléia pública, mas as revoltas ainda estraçalharam os centros consumistas de classe média (já era tradição).

Black Blocs pré-Seattle

Em novembro de 1999, a tática do Black Bloc parecia nova para muitos americanos porque, em parte, as ações e as idéias do movimento Autônomo europeu eram obscurecidas ou ignoradas pela mídia americana e quase nem foram divulgadas. Contudo, a ignorância pelo Black Bloc também provém do fato que muitos americanos recebem notícias de acontecimentos regionais de uma mídia manipuladora, a qual ignora quaisquer acontecimento que não servem para os seus propósitos, apresentando qualquer evento que tom o lugar como um espétaculo singular, desconectado do passado e do futuro, a ser esquecido em pouco tempo, mesmo se aconteceu recentemenete.

Radicais nos EUA nunca foram totalmente ignorantes a respeito das idéias e ações dos Autônomos europeus, e o desenvolvimento da subcultura punk/hardcore, dos anos 80, nos EUA, se espelhou na cultura Autônoma. Desde o começo de 1990, anarquistas e outros radicais nos EUA, estavam usando máscaras nas passeatas e protestos, criando laços de solidariedade entre os manifestantes e o anonimato perante as autoridades. Enquanto durava a Guerra do Golfo, um protesto nas ruas de Washington D.C. incluiu o Black Bloc, que quebrou as vidraças do prédio do Banco Mundial. Naquele mesmo ano, no Columbus Day, em São Francisco, um Black Bloc apareceu para mostrar à resistência militante, o contínuo genocídio da dominação norte-americana pelos europeus. Pessoalmente, o maior Black Bloc que eu já vi foi no M4M (millions for Mumia), na Filadélfia, em abril de 1999.

Eu diria que havia, no mínimo, 1500 vestidos de preto, mascarados e carregando faixas como: “Vegans por Mumia”. Apesar de não ter acontecido nenhuma batalha de rua e, particularmente, nenhuma destruição de propriedade privada, alguns garotos entraram em um estacionamento, ao longo da passeata, e subiram no teto, agitando a bandeira negra.

O futuro global da máscara preta

O símbolo do militante autônomo mascarado se espalhou pelo terceiro mundo. Ao mesmo tempo que o NAFTA, política econômica destrutiva neoliberal foi declarado no dia 1 de janeiro de 1994, a revolta guerrilheira explodiu em Chiapas, um estado do sul do México. O levante procurava criar espaços, para o desenvolvimento de uma organização social autônoma entre a marginalizada população indígena. A ala armada dessa luta pela autonomia comunitária e a democracia direta sem coerção ou hierarquia, tem sido e continua sendo, os Zapatistas, homens e mulheres que sam máscaras negras sempre que aparecem em público. Muitos autônomos e anarquistas têm os visitado e tentado ajudá-los com conhecimento, dinheiro, materiais, e criando solidariedade e atenção internacional para a situação em Chiapas.

Voltando a Alemanha, os Autônomos passam por tempos difíceis. Dizem por aí que os squatters anteriores tomavam conta de, no mínimo, 165 grandes apartamentos na Alemanha Ocidental, mas até 1997, sobraram apenas 3 apartamentos. Legalizar alguns squats enquanto brutalmente despejavam outros, funcionou como política eficiente para o Estado-polícia. Muitas pessoas que vivem em squats legalizados estão impedidos de virar o jogo, encorajando e expressando solidariedade com estratégias praticadas por outros squatters, e essa marginalização deixa mais fácil a derrota squatter, nas batalhas urbanas, pelas crescentes forças policiais.

O ressurgimento do neo-nazismo, no que um dia foi Alemanha Ocidental, e em outras áreas do país significou maiores problemas para os Autônomos alemães. Eles enfrentam a violência e o assassinato de ataques neo-nazistas, onde essas gangues policiam as ruas como uma “tropa contra punks e imigrantes”.

A maior parte do tempo e esforço dos Autônomos, vai para a organização de ações e grupos anti-fascistas, mas isso também significa negligenciar as tarefas para o desenvolvimento de alternativas para uma sociedade anti-autoritária, um dos objetivos originais dos Autônomos. “Antifa” ou grupos anti-fascistas levam os Autônomos a confrontos ainda mais violentos com a polícia alemã, que basicamente apoia os grupos neo-nazistas e sua ideologia nacionalista, racista –isso quando oficiais da polícia não estão diretamente ligados a grupos fascistas.

Rumores dizem que muitos militantes na Europa Sententrional, onde o Black Bloc têm sido uma estratégia de manifestação comum, têm desistido ao mesmo tempo que paravam de atingir seu objetivo. O poder de repressão estatal tem desenvolvido e usado forças tecnológicas, legais e físicas ainda maiores para isolar, observar, perseguir e localizar os envolvidos com os Black Blocs. Um processo semelhante está acontecendo nos EUA, com o ressurgimento das táticas ao estilo COINTELPRO, tendo como alvo os radicais que se opõe ao império estatal americano de capitali$mo globalizante.

Mesmo que o Black Bloc continue como estratégia, ou seja abandonado, certamente, serviu ao seu propósito. Em certas épocas e lugares, o Black Bloc efetivamente, levou as pessoas a agir em solidariedade coletiva contra a violência do capitalismo e do Estado. É importante que nós não fiquemos presos à nostalgia como um ritual ou uma tradição ultrapassada, nem rejeitar tudo porque, ás vezes, parece inapropriado. Em vez disso, devíamos continuar lutando pragmaticamente (e teoricamente), para preencher nossa necessidades e desejos individuais através de várias táticas e objetivos, quando elas forem apropriadas ao momento específico. “Disfarçar-se” como um Black Bloc tem sua hora e seu lugar, assim como as outras estratégias que se confrontam com ela…


Será a Guerra – contra a Droga – a Saúde do Estado?

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Bob Black

Fonte: Protopia

Neste momento, nos Estados Unidos da América, 2.700.000 pessoas estão presas (o maior índice per capita do mundo). Todas as semanas são mais 1.600 as pessoas que entram na prisão para além das que saem. Mais de 40% dos presos estão lá por crimes não-violentos relacionados com drogas. Nas políticas da maioria dos governos do mundo o combate à droga assume crescente protagonismo. O seguinte artigo, escrito por Bob Black – anarquista e advogado de profissão –, lança uma visão diferente sobre este fenômeno. Ainda que baseada no contexto norte-americano, com ajustes de pormenor e de escala, a argumentação poderá ser extrapolável a outros países.

Ninguém alguma vez fez observação mais importante em sete palavras do que Randolph Bourne: “A guerra é a saúde do estado” (Resek, 1964 :71). A guerra tem sido o motor principal da extensão do poder estatal na Europa ao longo de 1000 anos, e não só na Europa. A guerra alarga o estado e aumenta a sua riqueza e os seus poderes. Promove obediência e justifica a repressão sobre dissidentes, redefinida como deslealdade. Serena tensões sociais dirigindo-as para fora, para um estado inimigo que simultaneamente faz, claro, exactamente o mesmo com semelhantes consequências. Da perspectiva do estado há só uma coisa errada nas guerras: elas terminam.

Que as guerras terminam é, em última análise, mais importante do que o facto de elas terminarem em vitória ou derrota. Ocasionalmente a derrota tem como consequência a destruição do estado, como aconteceu com os impérios Otomano e Austrohúngaro após a Primeira Guerra Mundial, mas não frequentemente, e mesmo quando isso sucede, esses estados dão origem a outros estados. O sistema estatal não só dura, como prevalece. Normalmente a guerra vale bem o risco — não para os combatentes ou para os civis sofredores, claro, mas para o estado.

A paz é, mais uma vez, um outro assunto. A consequência imediata poderá ser a recessão ou a depressão, como após a Revolução Americana ou a Primeira Guerra Mundial, cujas dificuldades são tão mais humilhantes quando recaem sobre a população que “ganhou” a guerra e que ingenuamente supõe ir partilhar os frutos de uma vitória que pertence ao estado, não ao povo. O regime pode prolongar artificialmente o clima de repressão e sacrifício, como fizeram os Estado Unidos fabricando o Red Scare (Pânico Vermelho) após a Primeira Grande Guerra, mas cedo o povo suplicaria por aquilo que Warren Harding lhe prometera, o regresso à normalidade. Os vencidos, é certo, raramente se saem tão bem como o Japão ou a Alemanha ocupadas se saíram após a Segunda Guerra Mundial, mas mesmos os alemães inicialmente conheceram a fome.

Houve épocas em que alguns estados estavam quase sempre em guerra, como acontecia na Roma republicana, cujas oligarquias, tal como Livy (1960) repetidamente demonstrou, estavam bem conscientes de como a guerra consistia numa válvula de escape para dissipar conflitos de classe. As guerras coloniais servem bem este fim já que são travadas longe de casa e normalmente empreendidas contra antagonistas que, apesar de corajosos, são largamente inferiores em termos militares.

O império britânico nos séculos dezoito e dezanove é um bom exemplo. Congestionados com a riqueza do capitalismo comercial (em breve inimaginavelmente engrandecida pela revolução industrial), seguros pela sua insularidade, escudados pela maior armada do mundo, com uma robusta e desumana classe dirigente, sábia da arte de governar, o estado britânico poderia suportar uma guerra quando dela precisasse. Existiam, no mercado, completos mercenários, tais como os Hessianos. E os inimigos de ontem eram as tropas de hoje. Os irlandeses, repetidamente esmagados no século dezassete, eram uma fonte. Começando em 1746, os ingleses aniquilariam a sociedade e a cultura dos escoceses, recrutando depois regimentos de entre os que sobreviveram. Viriam a repetir estes “métodos económicos” na Índia, em África, em todo o lado. E depois existiam as fontes ingleses de dispensáveis: os camponeses expulsos das terras pelo emparcelamento, e os pobres da cidade. Não deixariam saudades, e havia sempre mais de onde estes vieram.

Mas os tempos mudaram. Alguns estados possivelmente podem continuar, por algum tempo, agindo à moda antiga – talvez a Sérvia, Coreia do Norte, Iraque – mas os Estados Unidos não, no mínimo por duas razões: somos demasiado escrupulosos, e somos demasiado pobres. Demasiado escrupulosos no sentido em que, enquanto Saddam Hussein se vangloriou antes da segunda Guerra do Golfo*, a América é uma sociedade que não consegue tolerar 10.000 mortos. Ele tinha razão, embora isso não lhe tenha valido de nada já que foi incapaz de infligir 10000 ou mesmo 1000 mortos. Granada e Panamá foram um divertimento, mas mesmo guerras de dois tostões como o Líbano e Somália já não o foram, e ninguém tem mais estômago para uma guerra no Haiti ou na Bósnia. Os americanos estão a perder rapidamente o seu gosto por guerras mediáticas, para já não falar das verdadeiras guerras.

E demasiado depauperados para qualquer guerra suficientemente longa para produzir um efeito durável no índice de popularidade de um qualquer presidente. O ataque ao Iraque foi o ponto de viragem. Como habilidosamente a manipulação das massas ocorreu, os americanos somente foram para a frente com a guerra na condição de que os “aliados” pagassem. Mesmo mentes pouco capacitadas estão conscientes que a parte de leão dos seus impostos federais vai para pagar dívidas de guerra e gastos militares dos quais eles nunca colherão quaisquer benefícios. A contrapartida para as vidas numa fotogénica guerra de alta tecnologia é dinheiro. Custa mais, imensamente mais, do que alguma vez a guerra custou. Mas os Estados Unidos não têm mais, imensamente mais riqueza do que alguma vez tiveram. Têm progressivamente menos e menos e menos.

Mesmo com as forças maciças da ABC, NBC, CBS, CNN e todo o resto dos grandes media por detrás (Black, 1992), e apesar de uma esmagadora vitória que deveu tanto à sorte como ao engenho, George Bush tornou-se o primeiro presidente americano a ganhar uma guerra e a perder uma eleição — para um fumador de erva e mulherengo que não cumpriu o serviço militar.

Deste modo o regime é apanhado no que os marxistas costumavam chamar de “contradição”. Precisa de guerra, já que a guerra é a saúde do estado, mas (com efémeras excepções ocasionais) não consegue suportar tanto ganhar como perder guerras. Mas que tipo de guerra é possível travar, com um custo tolerável, que evite esta dupla armadilha — uma guerra que não possa ser ganha ou perdida?

A “Guerra Contra a Droga”. Que não é uma verdadeira guerra, claro, mas apenas aquilo que os alemães chamariam um “sitzkrieg”, uma falsa guerra. Antes venderam-nos a guerra para acabar com todas as guerras. Agora vendem-nos uma guerra interminável.

Tal é a utilidade, para o estado, da Guerra Contra a Droga. Não pode ser perdida, já que não existe um inimigo a derrotar. E por incontáveis razões não pode ser ganha. O governo não consegue interditar mais do que uma fracção da cocaína, heroína, marijuana e outras drogas que, ao ilegalizálas, o governo fez subir o seu preço até ao ponto de valer a pena traficá-las. E alguma droga, tal como a marijuana e o ópio, é facilmente produzida dentro dos Estados Unidos. Dezenas de milhões de americanos já se entregaram ao consumo de drogas ilegais, incluindo o Presidente. Os filhos não vêem qualquer razão para não experimentar aquilo que os pais já consumiram, independentemente daquilo que os pais agora preguem. As crianças tendem a não prestar atenção aos pais quando sabem que estes estão a mentir. Para além disso, há sempre o álcool.

E nos subúrbios, tal como nos guetos, ilegalizar as drogas fez disparar o seu preço até níveis tão altos que prendendo vendedores não tem qualquer efeito no lado da oferta. Tirar um vendedor de droga das ruas apenas abre uma vaga para outro empresário. Na verdade, é prática corrente dos vendedores fazer com que os seus competidores sejam presos, com o fim de ganharem uma parcela adicional de competitividade. Mas não faz mais diferença quem trafica a droga ou quem dirige o estado. De facto, até podem ser as mesmas pessoas! A Guerra Contra a Droga é a saúde do estado.

Porque apenas é uma falsa guerra, a Guerra Contra a Droga é fiscalmente comportável. O governo pode gastar tanto mais ou tanto menos quanto desejar, já que o resultado será sempre o mesmo. Mesmo os custos para o contribuinte são disfarçados, divididos como são por governos federais, regionais e locais, e confundidos com financiamento ao sistema de justiça. A maior despesa individual, as prisões, é aquela que a maior parte das pessoas erradamente interpretam como a melhor coisa que o governo faz por elas. Suportar este erro é um equívoco acerca sobre qual é o produto do sistema de justiça criminal. Não é o controlo do crime, se é que tal pudesse ser medido com alguma exactidão, não há qualquer prova de que a imposição da lei em geral reduza o crime (Jacob, 1984). O produto são índices de criminalidade (Black, 1970), que são uma função, não do nível de criminalidade, mas do nível de imposição da lei. Daí que as autoridades possam fabricar uma “onda de criminalidade” se quiserem mais dinheiro, ou abrandar o controlo se quiserem obter algum crédito por fazerem exactamente o oposto. Tirando eles próprios e os seus superiores hierárquicos, os únicos beneficiários daqueles 100 000 polícias adicionais que o Presidente Clinton quer colocar nas ruas serão os vendedores de donuts.

Para além disto, até um certo ponto a Guerra Contra a Droga paga-se a si mesma. Tal como os exércitos que costumavam subsistir largamente “através do terreno”, pilhando as zonas que atravessavam, também os guerreiros da droga amontoam os seus cofres com o saque de bens confiscados. E isto só a nível formal e legal. À margem da lei, claro que a polícia sempre confiscou muito mais droga do que aquela que chega à sala de provas. É improvável que os vendedores ou os drogados protestem (o cenário clássico: um polícia faz uma busca ilegal na rua. Ele encontra algo. Pergunta, com cortesia, “Isto é seu?” e a resposta é sempre “Não”). Alguma droga a polícia vende por sua conta. Alguma consomem-na eles próprios. E alguma utilizam para “tramar” (colocar drogas na posse de suspeitos vendedores ou adicionar mais droga àquela que foi encontrada para converter um delito menor num crime grave) (Knapp Commission, 1973).

Ainda de uma outra maneira, a Guerra Contra a Droga oferece um dos benefícios de uma verdadeira guerra sem os seus custos e riscos. Toda a verdadeira guerra é um holocausto de liberdades cívicas (Murphy, 73). Mesmo ao nível formal e legal, a segurança nacional — um chamado “interesse obrigatório do estado” — tende a imporse aos direitos fundamentais, pelo menos até que o tiroteio pare. Entretanto vigilantes patrióticos levam a cabo as castrações, os linchamentos, e os incêndios — o trabalho demasiado sujo para o estado fazer mesmo numa suposta emergência de guerra, mas não demasiado sujo para o estado não fazer vista grossa depois. Os Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial e durante o Red Scare é um exemplo; a Itália que os liberais deixaram que os fascistas tomassem, depois de os deixarem, à margem da lei, esmagar socialistas, comunistas e anarquistas, é outro. Mas a paz regressa e o terreno legal perdido é, na sua grande parte, recuperado ou mais terreno ainda é retirado. Uma vez que o estado tenha demolido irreparavelmente a oposição radical, pode muito bem repor direitos constitucionais para os impotentes sobreviventes e gozar o calor da sua própria glória anunciada, desfilando a sua tolerância quando esta já não fizer qualquer diferença.

A falsa guerra é muito mais eficaz. Não pode ser conduzida sem massivas invasões de propriedade e limitações da liberdade. O mais importante direito individual implicado, e ameaçado pela Guerra Contra à Droga é a Quarta Emenda [da Constituição], que proíbe buscas e apreensões injustificadas. Este corpo legal efectivamente começou durante a Proibição e hoje é, como afirma Fred Cohen, “conduzido pelas drogas.” Os direitos de qualquer pessoa são definidos pelos direitos que a Justiça de má vontade concede aos delinquentes de casos de droga.

Outros direitos são, também, reduzidos. Sob a legislação de confisco, propriedade individual é retirada sem um processo ou justa compensação. Aplicada a nativos americanos e outros, a legislação sobre droga interfere com a liberdade de religião; como a prática comum de forçar condutores embriagados a participar em “reabilitações” para os doutrinar com dogmas religiosos dos Alcoólicos Anónimos. Até a campanha contra a posse de armas é uma consequência indirecta da Guerra Contra a Droga. A proibição tornou a droga uma comodidade muito valiosa: no interior das cidades, de longe uma das mais valiosas comodidades. Entretanto, os toxicodependentes roubam para suportar o seu vício. O resultado é uma corrida ao armamento e um clamor pelo controlo das armas. Uma proibição conduz a outra.

Para o criminoso, o último desafio é o crime perfeito. Para o estado é a legislação perfeita. Será a proibição?

Talvez não. A proibição da droga é actualmente muito mais popular do que a proibição do álcool alguma vez o foi, mas dentro da memória viva, a descriminalização foi um séria possibilidade. Poderá tornar-se assim novamente se a histeria anti-droga continuar a crescer até chegar a um ponto impossível de suportar. E provavelmente crescerá, porque a Guerra Contra a Droga foi institucionalizada. Várias agências e organizações têm direitos adquiridos sobre a sua ilimitada expansão, embora isso seja, não só impossível, como destituiria o estado da grande vantagem da Guerra Contra a Droga sobre a verdadeira guerra: a sua previsibilidade e exequibilidade. À medida que alguns órgãos governamentais crescem e crescem, sobra menos e menos para os outros. Já que a vitória, tal como a derrota é impossível, não existirão nunca “dividendos de paz” para repartir. O estado está, provavelmente, já a gastar mais fundos da sociedade civil do que seria consentâneo com os seus interesses a longo prazo. Se mais e mais for tirado, o parasita matará o hospedeiro — ou o hospedeiro matará o parasita.

Eventualmente o estado poderá sucumbir ao seu próprio sucesso. O estado é gigantesco. E é burocrático. Isto significa que está intrinsecamente subdividido por funções (ou por aquilo que era inicialmente considerada uma divisão do operariado por funções: de facto, jurisdição sobreposta e conflituosa é comum e tende a crescer com o tempo). Mesmo quando a mão esquerda sabe o que a mão direita faz, pode não ser capaz de fazer nada acerca disso. A cooperação entre agências torna-se mais difícil quando que se torna mais frequente e mais necessária. “A complexidade da acção em conjunto frusta a acção ou o seu objectivo” (Pressman & Wildausky, 1984).

É muito difícil administrativamente reduzir o orçamento de um gabinete, mas é fácil aumentálo. Os gabinetes resistem ferozmente aos orçamentos “zero-based” — isto é, partindo do zero, tem que haver uma rejustificação anual de cada linha do orçamento apresentado — como se tratasse do reinvento da roda. E é difícil as altas autoridades identificarem áreas para redução de custos, se quiserem apenas, já que a própria raison d’être da organização burocrática é a deferência para com os peritos institucionais. A maneira fácil é tomar o anterior orçamento como o presumível próximo; são apenas desvios do status quo, não o status quo em si, que necessitam de justificação. O gabinete, preenchido com supostos peritos, é ele próprio a fonte usual de justificação para desvios, e os desvios são sempre na direcção de mais dinheiro e mais poder para o gabinete. O que vai para cada gabinete vai para todos. Daí o governo cresce.

Referindo a forma como a competição entre trabalhadores faz descer os salários para todos eles, Fredy Perlman (1969) observou: “A prática diária de todos anula os objectivos de cada um.” Tal como acontece com a competição entre agências pelo dinheiro dos impostos. As implicações a longo termo da Guerra Contra a Droga são, para o estado, ameaçadoras. Quanto mais o estado estende o seu controlo sobre a sociedade, menos controlo ele tem sobre si mesmo, quanto mais o estado absorve a sociedade, mais fraco como entidade responsável por uma colectividade ele se torna. Ele desintegrase num pluralismo autoritário reminescente do feudalismo, ainda que carecendo do seu charme romântico. Algumas agências engordam à custa da Guerra Contra a Droga, mas muitas não. As que engordam são as primeiras a seguirem os seus próprios caminhos. A procuradora-geral Janet Reno não teve controlo sobre o Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms quando este exterminou os Branch Davidians para ganhar o que equivalia a nada mais do que um guerra de “gangs”: mas ela tomou a responsabilidade. A Drug Enforcement Administration é igualmente tão independente como o FBI de Hoover e a CIA de qualquer um.

Para o estado, outra consequência adversa inevitável da Guerra Contra a Droga é a corrupção (Sisk, 1982). Não que a corrupção seja necessariamente uma coisa má para o estado. Até certo ponto, as extorsões policiais a vendedores de droga, chulos e outros empresários extra-legais beneficiam o estado de diversas formas. Quanto mais os polícias recolherem em privilégios e confiscos, menos têm que ser pagos em salário. Os polícias cujos superiores sabem que eles estão envolvidos em extorsão (como decerto sabem já que eles próprios a isso se dedicam também) (Chambliss, 1988) fazem vista grossa a não ser que, por alguma razão, tenham necessidade de se livrar de um polícia em particular. A corrupção é, pois, uma ferramenta de gestão.

Mas alguns polícias tornam-se demasiado gananciosos e vão longe de mais. A maioria são “comedores de erva” (subornados) que aceitam aquilo que lhes aparecer, mas alguns são “comedores de carne” (extorsionários) — corrupção activa — que activamente buscam ou montam oportunidades de corrupção, como os detectives da Special Investigative Unit retratados no filme Serpico (Daley, 1978; Knapp Commission, 1973). Os comedores de erva dão cobertura aos comedores de carne (o “código de silêncio”) já que todos têm algo a esconder. Até recentemente, os administradores de polícia e os seus aliados académicos julgaram poder manter a corrupção sob controlo através de várias reformas institucionais, a maioria das quais foram inicialmente propostas pela Comissão Knapp (Sherman, 1978). Talvez as reformas resultassem, excepto numa coisa: na Guerra Contra a Droga. A corrupção está de regresso, mesmo na NYPD* reformada por Knapp (Dombrink, 1988). Já que as penalizações são mais severas e os lucros do tráfico de droga são mais altos, a protecção que a polícia vende dita um preço maior (Sisk, 1982). A corrupção motivada pela droga é o sector em maior crescimento nos abusos de conduta da polícia (Carter, 1990).

Para o estado, o problema da corrupção descontrolada é que ela não pode ser confinada ao espaço onde os benefícios excedem os custos. O estado necessita da polícia para um bocadinho de imposição selectiva da lei e, mais importante que isso, para controlo social — logo que a situação exija furar uma greve, evacuar squatters, suprimir tumultos, reprimir dissidentes e manter o tráfego a circular. Mesmo nestes tempos sofisticados, em que a manipulação é a estratégia de controlo mais em voga, frequentemente não há substituto para a arma e o cassetete.

Mas os polícias que impõem leis contra a droga ficam indisponíveis para impor outras leis. Tem havido um expansão tremenda no trabalho de polícias à paisana nos anos recentes (Marx, 1988), inevitavelmente acompanhada de mais corrupção (Girodo, 1991). Os polícias, como trabalhadores, são particularmente difíceis de gerir pois estão normalmente sós, não controlados. Os detectives, especialmente, estão numa posição de poderem ser reservados acerca das suas actividades (Skolnick, 1975; Daley, 1978), e mais controlo do tráfico de droga significa mais trabalho à paisana e de detective. Estes polícias estabelecem a sua própria agenda.

Os escândalos de corrupção desmoralizam a polícia a ilegitimam o estado. A maioria das pessoas obedece à lei na maior parte do tempo, não porque receiem ser punidas se não o fizerem, mas porque acreditam no sistema. Assim que deixem de acreditar, deixarão de obedecer — não só às leis que não importam (como “não consuma drogas”) como também àquelas que importam (como “pague os seus impostos”). E, ironicamente, operações anti-corrupção comprometem a eficácia policial em outras áreas (Kornblum, 1976).

O estado adquiriu um peso tão grande que esse peso começa a quebrar as suas fundações. Não é o tipo de elefantismo que pode ser aliviado através da privatização. Não importa quem recolhe o lixo. O que importa é quem tem as armas. A essência da soberania — os meios para impor a ordem — está deteriorada. O cancro é inoperável. Os estado pode bem morrer de uma overdose.

ReferênciasEditar

  • Black, Bob (1992) Friendly Fire. Brooklyn, NY: Autonomedia

  • Black, Donald (1970) “Production of Crime rates.” American Sociological Review 35: 733-748

  • Carter, David L. (1990) “Drug-Related Corruption of Police Officers: A Contemporary Typology.” Journal of Criminal Justice 18: 85-98

  • Chambliss, William J. (1988) On The Take: From Petty Crooks to Presidents. 2nd ed. Bloomington & Indianapolis, IN: Indiana University *Press

  • Daley, Robert (1978) Prince of the City: The True Story of a Cop Who Knew Too Much. Boston, MA: Houghton Mifflin Company

  • Dombrink, John (1988) “The Touchables: Vice and Police Corruption in the 1980’s.” Law and Contemporary Problems 51: 201-232

  • Girodo, Micahel (1991) “Drug Corruption in Undercover Work: Measuring the Risk.” Behavioral Science and the Law 9: 361370

  • Jacob, Herbert (1984) The Frustration of Policy: Responses to Crime by American Cities. Boston, MA: Little, Brown and Company

  • Knapp Commission (1973) The Knapp Commission Report on Police Corruption. NY: George Braziller

  • Kornblum, Allan M. (1976) The Moral Hazards: Police Strategies for Honesty and Ethical Behavior. Lexington, MA: Lexington Books

  • Livy (1960) The Early History of Rome. Translated by Aubrey de Sélincourt. Baltimore, MD: Penguin Books

  • Marx, Gary T. (1988) Undercover: Police Surveillance in America. Berkeley, CA: University of California Press

  • Murphy, Paul L. (1972) The Constitution in Crisis Times, 1918-1969. NY: Harper Torchbooks

  • Perlman, Fredy (1969) The Reproduction of Everyday Life. Detroit, MI: Black & Red

  • Pressman, Jeffrey L., and Aaron Wildavsky (1984) Implementation. 3rd ed., expanded. Berkeley, CA: University of California Press

  • Resek, Carl, ed. (1964) War and the Intellectuals: Essays by Randolph S. Bourne, 1915-1919. NY: Harper Torchbooks

  • Sherman, Lawrence M. (1978) Scandal and Reform: Controlling Police Corruption. Berkeley, CA: Univ. of California Press

  • Sisk, David E. (1982) “Police Corruption and Criminal Monopoly: Victimless Crimes.” Journal of Legal Studies 11: 395-403

  • Skolnick, Jerome H. (1975) Justice Without Trial: Law Enforcement in a Democratic Society. 2nd ed. NY: John H. Wiley & Sons

  • Tilly, Charles (1992) Coercion, Capital and European States, AD 900-1992. Rev. Paperback ed. Cambridge, MA: Blackwell.


 

Reforma política é segunda demão no estado

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Por Gilson Moura Henrique Junior

O uso pelos partidos da ordem e pela esquerda partidária da reforma política como panaceia para a solução dos problemas do país esconde uma preguiça intelectual fortemente aliada ao oportunismo eleitoreiro.

O primeiro problema das propostas de reforma política que ela não é política em seu inteiro teor, ela é uma reforma eleitoral, e tímida. Enquanto reforma não abrange sequer outras formas de políticas fora do eixo eleitoral, mas ainda dentro da institucionalidade, como a expansão dos comitês e conselhos que já existem na esfera municipal, para além de conselhos consultivos ou expansão para as esferas estaduais e federais com ganho de poderes e capilaridade. Enquanto política as propostas de reforma sequer tangenciam uma discussão sobre o caráter democrático do estado e a necessária repactuação deste para que o exercício do poder não seja platônico, onde uma elite dirigente quase intocável conduz a população conforme foi eleita para fazer, nas palavras de Eduardo cunha, presidente da câmara.

E isso ainda sendo discutida a reforma política nos parâmetros reformistas do estado conforme se propõe a esquerda partidária e os partidos da ordem, sequer comecei a debater o problema sob a luz da superação do sistema e do estado, coisa que pelo menos superficialmente os partidos da oposição de esquerda se dizem desejosos.

Sob o ponto de vista para além do estado é preciso dizer que o que se deveria exigir é mais que reforma do estado, que nada mais é que uma segunda demão na pintura exterior do aparato estatal ampliando direitos e deveres sob o ponto de vista eleitoral reduzindo pontual e mediocremente a questão política à financiamento público de campanha, recall e plebiscito.

Até por exigência ecológica é preciso que se exija uma descentralização absoluta do processo decisório sobre economia, energia e gestão a ponto de obrigar a um repensar de produção e consumo a níveis radicais, não por uma preferência ideológica descolada da realidade, mas por absoluta necessidade de manutenção da vida na terra.

Enquanto a economia não for lógica ou ecológica, enquanto a gestão de recursos entendê-los ainda como infinitos e ignorar resíduos, ignorar a ruptura metabólica causada pela extração de recursos e pela geração de resíduos, em escala geométrica e reproduzida de forma praticamente infinitesimal, enquanto a compreensão da casa (oykos+logos) for secundarizada pela administração da casa (oykos+nomos), correremos o risco da casa cair.

E é esse o eixo que grita a necessidade de ir além da reforma da casa, ou de parte dela ou de parte superficial de parte dela, é fundamental que se grite a obrigatoriedade da exposição á população do risco do modelo em curso de gestão da vida das pessoas e recursos para a vida no planeta, para a existência das civilizações e a partir disto é fundamental horizontalizar os processos decisórios, torná-los comunais, organizados de rua a rua, bairro a bairro, vila a vila, cidade a cidade, estado a estado, para que cada ponto onde a ação econômica atinge e afeta, produzindo danos ambientais, sociais, comunitários,etc, tenha poder para decidir sobre seus rumos, para decidir sobre como é afetado, para além da decisão distante de gestores que sequer sabem da existência dos pontos atingidos por suas ações.

Se nem como reforma isso é posto em perspectiva, diante da absoluta necessidade de por em prática uma gestão democrática radical da produção de alimentos, da produção industrial, de energia, e do consumo disso tudo, inclusive sob o ponto de vista da saúde, se isto não é visto como política e parte do que se propõe como reforma para a política, que reforma e que política é essa?

Que política e essa onde diante da absoluta necessidade de, por exemplo, discutirmos a produção de alimentos centralizada e cujo resultado dela percorre milhares de quilômetros para chegar às mesas dos consumidores, recebendo para isso uma carga absoluta de produtos químicos para sua conservação até lá e com eles afetando a saúde dos consumidores, o que ocorre é a omissão, o silêncio e a troca disso por plebiscitos aqui e ali e um recall ou outro?

Que política é essa onde transgênicos e agrotóxicos são naturalizados e entendidos como algo externo à população que no máximo que se terá de acesso á decisão é se um dia vier, no fantástico mundo da institucionalidade, a plebiscito? E como viria? Por que o inteiro teor das leis não pode ser discutido por quem sofre com elas?

Cadê a política dessas reformas?

A grande reforma que daria solução para os problemas do país, dos países, com a democracia só pode ser a reforma definitiva do estado, que é sua superação e substituição por processos horizontais de decisão, organizados em confederações de conselhos organizadas em cantões, pela descentralização da própria ideia artificial de nação, de Brasil, França ou seja lá o que os estados nacionais tomam pra si como se fossem proprietários da população que reside entre as cercas embandeiradas que separam quintais. População esta forçada a se entender como parte de uma ficção, por vezes na base da porrada, que não tem nenhuma raiz na constituição coletiva além de elementos políticos externos à ela, construído nos altos fornos das elites políticas.

Pra que perder tempo com reformas desta ficção? Não é melhor criar uma outra estória, um outro riso, uma outra peça, um outro poema, uma outra canção?

A Resistência é a Vida!, por Abdullan Ocalan

Foto da página Kurdish Female Fighters Y.P.J

Postado em Jornalismo B, em 26 de fevereiro de 2015

Texto de Abdullan Ocalan, militante curdo e preso político, no livro “Liberando la vida: la revolución de las mujeres”

Tradução: Lorena Castillo

A modernidade democrática: a era da revolução das mulheres

A liberdade da mulher desempenhará um papel estabilizador e igualador na formação da nova civilização e ocupará seu lugar em condições de respeito e igualdade. Para conseguir isso, temos que trabalhar no nível teórico, programático, de organização e implementação. A realidade da mulher é um fenômeno ainda mais concreto e analisável do que conceitos como “proletariado” e “nações oprimidas”. O grau de transformação possível da sociedade está determinado pelo grau de transformações que consigam as mulheres. Da mesma forma, o nível de liberdade e igualdade da mulher determina a liberdade e igualdade de todos os setores da sociedade. Por isso, o nível de democracia que alcance as mulheres é decisivo para o estabelecimento permanente da democratização e secularização. Para uma nação democrática, a liberdade da mulher tem uma grande importância, já que uma mulher livre constitui uma sociedade livre. A sociedade livre constitui por sua vez uma nação democrática. Por outra parte, a necessidade de mudar o papel do homem é de uma importância revolucionária.

O amanhecer de uma era de civilização democrática representa não somente o renascimento de todos os povos, se não também, de forma mais específica o auge da liberdade das mulheres. A mulher, que foi a deusa criativa da sociedade neolítica, sofreu perdas incessantes no decorrer das sociedades de classes. Inverter esta história acarretará inevitavelmente transformações sociais mais profundas. A mulher, renascida para a liberdade, se somará a liberdade e justiça no âmbito geral da sociedade, em todas as instituições, em todos seus níveis. Convencerá a todos que a paz, e não a guerra é mais valiosa e desejável. O triunfo da mulher é o triunfo da sociedade e do indivíduo em todos os níveis. O século XXI deve ser a era do despertar, a era da mulher livre e emancipada. Isto é mais importante ainda que libertação de classes ou de nação. A era da civilização democrática deve ser a era em que a mulher se alce e triunfe completamente.

É realista considerar nosso século como o século em que a vontade da mulher livre florescerá. Por isso é preciso estabelecer instituições permanentes para as mulheres e mantê-las quem sabe por século. Se necessitam partidos para a liberdade das mulheres. É vital também que se formem círculos ideológicos políticos e econômicos baseados na liberdade das mulheres.

As mulheres em geral, mas, mais especificamente as mulheres do Oriente Próximo, são a força mais enérgica e ativa da sociedade democrática, devido as características anteriormente descritas. A vitória definitiva da sociedade democrática só será possível com a mulher. Os povos e as mulheres são devastados pela sociedade de classes desde a era neolítica. Serão eles, como agentes fundamentais do progresso democrático, os que agora não só se vingaram da história, senão que também formaram a antítese necessária posicionando-se a esquerda da nascente sociedade democrática. As mulheres são verdadeiramente os agentes sociais mais confiáveis no caminho para uma sociedade igualitária e libertária. No Oriente Próximo, vai depender das mulheres e jovens assegurar a antítese necessária para a democratização da sociedade. O despertar da mulher e o fato de será força social líder neste cenário histórico, tem um valor de autentica antítese.

Devido às características de classes das civilizações, seu desenvolvimento está baseado pela dominação masculina. Isto é o que situa a mulher na posição de antítese. De fato, para superar a divisão de classes da sociedade e a superioridade masculina, sua posição adquire o valor de uma nova síntese. Por conseguinte, a posição de liderança dos movimentos de mulheres na democratização do Oriente Próximo possui características históricas que as constituem tanto como uma antítese (pelo fato de se desenvolverem no Oriente Próximo) e uma síntese (a nível global). Esta área de trabalho é a obra mais importante que jamais tinha feito. Acredito que deveria ter prioridade na liberdade das pátrias e a liberação do trabalho. Mas, se quero ser um lutador pela liberdade, não posso ignorar isso: a liberdade das mulheres é a revolução dentro da revolução.

A missão final fundamental da nova liderança é proporcionar o poder intelectual e a vontade necessária para conseguir os três aspectos cruciais para a conformação de um sistema de modernidade democrática, assim como ética desde um ponto de vista tanto econômico como ecológico. Para conseguir isso, devemos estabelecer um número suficiente de estruturas acadêmicas com uma qualidade adequada. Não é suficiente criticar o mundo acadêmico moderno, temos que desenvolver uma alternativa. Estas unidades acadêmicas alternativas deveriam ser criadas sobre as prioridades e necessidades de todos os campos sociais, tais como a economia e a tecnologia, ecologia e agricultura, políticas democráticas, segurança e defesa, cultura, história, ciência e filosofia, a religião e as artes. Sem um marco acadêmico forte os elementos da modernidade democrática não podem ser construídos. Os marcos acadêmicos e os elementos da modernidade democrática são igualmente importantes para alcançar êxito. A inter-relação é uma necessidade para alcançar êxito.

A luta pela liberdade (não só das mulheres, senão de todas as etnias e todos os setores da comunidade) é tão antiga quanto a história da escravidão e exploração da humanidade. O anseio pela liberdade é intrínseco à natureza humana.

Temos aprendido muito destas lutas, também da que estamos mantendo nos últimos quarenta anos. A sociedade democrática tem coexistido com diferentes sistemas de civilizações dominantes. A modernidade democrática, o sistema alternativo ao capitalismo moderno, é possível por meio de uma mudança radical da nossa mentalidade e as correspondentes mudanças, radicais e apropriadas, na nossa realidade material. Estas mudanças, devemos criar em conjunto.

Para terminar, eu gostaria de assinalar que a luta pela liberdade das mulheres deve ser levada a cabo através do estabelecimento de seus próprios Partidos Políticos, conseguindo um movimento popular de mulheres, construindo suas próprias organizações não governamentais e estruturas políticas democráticas. Tudo isso deve ser trabalhado ao mesmo tempo, simultaneamente. As melhores mulheres são capazes de escapar das garras da dominação masculina e da sociedade. As melhores serão capaz de viver e atuar de acordo como sua livre iniciativa e independência. Quanto mais as mulheres se empoderarem, mais reconstituirão sua personalidade e identidade em liberdade. Por conseguinte, apoiando a ira das mulheres, o movimento de conhecimento e liberdade é o maior aporte de companheirismo e prova de humanidade. Tenho plena confiança de que as mulheres, a margem de suas diferenças culturais e étnicas, todas as que têm sido excluídas do sistema, triunfarão. O século XXI será o século da libertação das mulheres.

Espero fazer minhas contribuições não só escrevendo, mas ajudando a colocar em prática estas mudanças.