Reforma política é segunda demão no estado

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Por Gilson Moura Henrique Junior

O uso pelos partidos da ordem e pela esquerda partidária da reforma política como panaceia para a solução dos problemas do país esconde uma preguiça intelectual fortemente aliada ao oportunismo eleitoreiro.

O primeiro problema das propostas de reforma política que ela não é política em seu inteiro teor, ela é uma reforma eleitoral, e tímida. Enquanto reforma não abrange sequer outras formas de políticas fora do eixo eleitoral, mas ainda dentro da institucionalidade, como a expansão dos comitês e conselhos que já existem na esfera municipal, para além de conselhos consultivos ou expansão para as esferas estaduais e federais com ganho de poderes e capilaridade. Enquanto política as propostas de reforma sequer tangenciam uma discussão sobre o caráter democrático do estado e a necessária repactuação deste para que o exercício do poder não seja platônico, onde uma elite dirigente quase intocável conduz a população conforme foi eleita para fazer, nas palavras de Eduardo cunha, presidente da câmara.

E isso ainda sendo discutida a reforma política nos parâmetros reformistas do estado conforme se propõe a esquerda partidária e os partidos da ordem, sequer comecei a debater o problema sob a luz da superação do sistema e do estado, coisa que pelo menos superficialmente os partidos da oposição de esquerda se dizem desejosos.

Sob o ponto de vista para além do estado é preciso dizer que o que se deveria exigir é mais que reforma do estado, que nada mais é que uma segunda demão na pintura exterior do aparato estatal ampliando direitos e deveres sob o ponto de vista eleitoral reduzindo pontual e mediocremente a questão política à financiamento público de campanha, recall e plebiscito.

Até por exigência ecológica é preciso que se exija uma descentralização absoluta do processo decisório sobre economia, energia e gestão a ponto de obrigar a um repensar de produção e consumo a níveis radicais, não por uma preferência ideológica descolada da realidade, mas por absoluta necessidade de manutenção da vida na terra.

Enquanto a economia não for lógica ou ecológica, enquanto a gestão de recursos entendê-los ainda como infinitos e ignorar resíduos, ignorar a ruptura metabólica causada pela extração de recursos e pela geração de resíduos, em escala geométrica e reproduzida de forma praticamente infinitesimal, enquanto a compreensão da casa (oykos+logos) for secundarizada pela administração da casa (oykos+nomos), correremos o risco da casa cair.

E é esse o eixo que grita a necessidade de ir além da reforma da casa, ou de parte dela ou de parte superficial de parte dela, é fundamental que se grite a obrigatoriedade da exposição á população do risco do modelo em curso de gestão da vida das pessoas e recursos para a vida no planeta, para a existência das civilizações e a partir disto é fundamental horizontalizar os processos decisórios, torná-los comunais, organizados de rua a rua, bairro a bairro, vila a vila, cidade a cidade, estado a estado, para que cada ponto onde a ação econômica atinge e afeta, produzindo danos ambientais, sociais, comunitários,etc, tenha poder para decidir sobre seus rumos, para decidir sobre como é afetado, para além da decisão distante de gestores que sequer sabem da existência dos pontos atingidos por suas ações.

Se nem como reforma isso é posto em perspectiva, diante da absoluta necessidade de por em prática uma gestão democrática radical da produção de alimentos, da produção industrial, de energia, e do consumo disso tudo, inclusive sob o ponto de vista da saúde, se isto não é visto como política e parte do que se propõe como reforma para a política, que reforma e que política é essa?

Que política e essa onde diante da absoluta necessidade de, por exemplo, discutirmos a produção de alimentos centralizada e cujo resultado dela percorre milhares de quilômetros para chegar às mesas dos consumidores, recebendo para isso uma carga absoluta de produtos químicos para sua conservação até lá e com eles afetando a saúde dos consumidores, o que ocorre é a omissão, o silêncio e a troca disso por plebiscitos aqui e ali e um recall ou outro?

Que política é essa onde transgênicos e agrotóxicos são naturalizados e entendidos como algo externo à população que no máximo que se terá de acesso á decisão é se um dia vier, no fantástico mundo da institucionalidade, a plebiscito? E como viria? Por que o inteiro teor das leis não pode ser discutido por quem sofre com elas?

Cadê a política dessas reformas?

A grande reforma que daria solução para os problemas do país, dos países, com a democracia só pode ser a reforma definitiva do estado, que é sua superação e substituição por processos horizontais de decisão, organizados em confederações de conselhos organizadas em cantões, pela descentralização da própria ideia artificial de nação, de Brasil, França ou seja lá o que os estados nacionais tomam pra si como se fossem proprietários da população que reside entre as cercas embandeiradas que separam quintais. População esta forçada a se entender como parte de uma ficção, por vezes na base da porrada, que não tem nenhuma raiz na constituição coletiva além de elementos políticos externos à ela, construído nos altos fornos das elites políticas.

Pra que perder tempo com reformas desta ficção? Não é melhor criar uma outra estória, um outro riso, uma outra peça, um outro poema, uma outra canção?

MANIFESTO: CONSTRUIR UM POVO FORTE PARA POSSIBILITAR OUTRO MUNDO

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

(Manifesto apresentado hoje em Madrid por vários activistas libertários)*

Muitas pessoas recordam que na “Transição” a sociedade acreditou que era possível acabar com um regime que se desmoronava para criar novos modelos de ruptura. Lutou-se, mas acabou-se perdendo: os movimentos sociais foram assimilados; as organizações desmanteladas; e as lutas desarticuladas.

Actualmente o sistema enterrou a política do “consenso” e do “pacto social” própria do Regime de 1978 e da chamada Cultura da Transição. Uma forma de organização criada pelo próprio sistema para fazer frente às exigências de transformação social de uma classe operária poderosa e fortemente organizada. Negociar a mudança para que nada mudasse. Uma vez que fomos despojados das nossas referências ideológicas e organizativas e que conseguiram desvanecer a confiança em nós próprios, o regime, apoiado na desculpa da crise, deu por finalizada a estratégia de concertação social e lançou-se de cabeça na imposição do neoliberalismo por decreto com a justificação da crise económica.

Apesar da orfandade e da indefinição que nos foi inculcada como classe durante as últimas décadas, os níveis de descrédito e de afastamento que o sistema alcançou fez com que nos tivéssemos procurado e reencontrado novamente nas ruas e praças para enfrentar com ânimo a defesa das nossas liberdades e dos bens comuns frente a uma elite que deles se quer apropriar a preço de saldo.

Nós, subscritores e subscritoras deste manifesto, também partilhamos esse desejo de nos reconstruirmos como sociedade livre e soberana, assumirmo-nos como protagonistas das nossas próprias vidas e fazer perceber à elite do velho regime que “não nos representa”. E como outros companheiros e companheiras também sentimos que a este ciclo de mobilizações sociais faltava “alguma coisa” para que nos constituíssemos como alternativa suficiente e capaz de se impor à elite, à casta, ao 1% ou como queiram que seja denominada a classe social que domina as nossas vidas.

Respeitamos os companheiros e as companheiras que face ao mesmo diagnóstico estão a optar pela via da participação institucional através de iniciativas eleitorais, mas apelamos à memória colectiva para sublinhar que os direitos, as conquistas e as grandes transformações sociais nunca nos foram oferecidas a partir das instituições. Foram lutas travadas e ganhas nas ruas, nos locais de trabalho e nos bairros. A nossa memória vem de muito longe para nos recordar que só um povo forte e combativo se impõe às elites que nos governam. Por isso entendemos que é necessária uma grande INICIATIVA SOCIAL que nos ajude a organizarmo-nos, fazermo-nos reconhecer e tornarmo-nos visíveis com todo o potencial que albergamos.

Chegou o momento de impulsionar a independência popular face a outras estruturas para podermos dar um passo em frente e nos erigirmos como povo para vencer. Superar a simples defesa do que já foi alcançado para passar à ofensiva. Impulsionar a auto-organização e o autogoverno para recuperarmos a confiança na nossa capacidade para atingirmos uma sociedade livre e igualitária. Conquistar em conjunto uma verdadeira democracia:

. DEMOCRACIA ECONÓMICA, com um modo de produção que sibstitua o capitalismo pela economia de propriedade colectiva, gerida pelos produtores e consumidores de forma cooperativa.

. DEMOCRACIA POLÍTICA, com um regime que substitua o Estado pela decisão confederal com todas as pessoas que habitam cada território em pé de igualdade.

.DEMOCRACIA DE PARTICIPAÇÃO DIRECTA E EFECTIVA, com representantes que cumpram o que for decidido pelos seus representados e sejam revogáveis a qualquer momento.

. DEMOCRACIA INCLUSIVA DE TODOS E PARA TODOS, que escute, tenha proximidade e compreenda que no mundo há muitos mundos, que assuma e integre todas as lutas que procuram uma mudança para uma sociedade mais igualitária.

. UMA DEMOCRACIA LIBERTÁRIA, DAS PESSOAS E NÃO DOS MERCADOS.

Para isso consideramos como necessárias as iniciativas que actuem nas organizações de trabalhadores e trabalhadoras, de vizinhos e vizinhas, nas cooperativas, nas organizações feministas e de estudantes. Fomentando a sua melhoria qualitativa e quantitativa, a sua democracia interna e a sua eficácia. Actuando para favorecer a sua autonomia face à administração e aos partidos ou candidaturas eleitorais e de forma a respeitar a sua pluralidade interna.

Iniciativas que sejam capazes de elaborar análises e discursos para que possam ser identificadas as necessidades de cada momento e aumentar a nossa preparação como activistas. Que sejam capazes de elaborar estratégias sobre as quais se construa a democracia e que nos permitam acumular forças enquanto caminhamos nessa direcção. Agindo com humildade e reconhecendo a pluralidade existente porque é o povo, e não os projectos ou siglas concretas só por si, quem pode conseguir novos avanços”.

Tradução Portal Anarquista

Aqui: https://construyendopueblofuerte.wordpress.com/

*O manifesto foi apresentado em 19 de fevereiro de 2015 (Nota do coletivo Anarquia ou Barbárie)

“Não volto a ir a um encontro feminista em um hotel de cinco estrelas”

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By A.N.A.

Fonte: Notícias Anarquistas

[Nasceu em La Paz (1964). É uma anarcofeminista, psicóloga, locutora de rádio e apresentadora de televisão boliviana. Fundou Mujeres Creando, uma associação de mulheres bolivianas que combate o machismo e a homofobia.]

Em suas próprias palavras, ela é María Galindo, fundadora, junto com outras, de Mujeres Creando, feminista, boliviana, louca, alguém que faz rádio, televisão e luta na rua com direção própria. Lésbica, gorda, teimosa, escritora, agitadora, terror da polícia e grafiteira, esteve faz pouco tempo em Madri, apresentando seu livro, ¡A despatriarcar! (Lavaca, Buenos Aires) em Vaciador 34, rodeada de dezenas de mulheres, sobretudo jovens e entre elas muitíssimas latino-americanas, compartilhando as bandeiras de seu ‘feminismo urgente’. Galindo propõe a despatriarcalização como motor da descolonização e a transformação social na Bolívia de Evo Morales. “Há que abandonar a ideia mitificadora de uma cultura indígena de núcleo horizontal e não patriarcal. Em um contexto em que o homem indígena aparece como o único interlocutor do Estado, reclamamos o direito das mulheres à desobediência cultural e o desacato de mandatos de costume”, diz. Junto com outras anarcofeministas militantes como ela, Galindo converteu Mujeres Creando “em uma fábrica de justiça” para as bolivianas.

Pergunta > Na Bolívia existe uma Unidade de Despatriarcalização que depende do Vice-ministério de Descolonização e que não serve para nada?

Resposta < Assim é. Não tem pressuposto, nem poder, nem conteúdo, nem funções. Fomos Mujeres Creando as que lançamos esta proposta da que eles se apropriaram para minorar nosso impacto. É parte de uma política governamental não deixar que nada se mova fora do governo, nem sequer o debate nem o pensamento, querem comê-lo todo. O grande ato organizado por esta instância foi um matrimônio indígena massivo à maneira judaico cristã, mas com detalhes folclóricos, comandados pelo próprio Evo Morales. Eu estive ali com minha rádio e fui violentamente reprimida pela polícia.

Pergunta > Por quê em teu livro falas de uma Bolívia travesti?

Resposta < Há uma disputa de identidades. Bolívia travestida de indígena, com chola transformer, com Mis Cholita e Mis Ñusta universitária. O máximo representante da Bolívia travesti é o Presidente que se traveste de poncho em poncho, buscando nesse exercício levantar à construção de uma identidade que, tragicamente, se fragmenta em muitas pequenas identidades, com todas suas contradições. A Bolívia bastarda é incapaz de olhar-se no espelho.

Pergunta > Hoje a melhor opção na Bolívia é declarar-se indígena?

Resposta < Estamos na Bolívia dos originários. Após haver escondido o retrato da mãe chola no desvão, hoje o desenterram. Neste momento declarar-se indígena é politicamente muito vantajoso. Eu creio que a autoidentificação e autodenominação é claramente um ato de liberdade e tem toda a liberdade de fazê-lo. Mas se antes a Bolívia racista e branca relegou a intelectualidade indígena, agora a intelectualidade indígena “oportunista”, cheia de privilégios, volta a relegar a quem têm décadas nesta luta.

Pergunta > Crês que fora da Bolívia se tem uma ideia equivocada de Evo Morales?

Resposta < Definitivamente sim. Fora do país se tem idealizado o governo de um indígena e não se quer conhecer a realidade mais em detalhes, por exemplo, de sua política econômica real. Nos dois governos de Evo os que mais ganharam foram os bancos.

Pergunta > Por quê Evo queria realizar o Miss Universo na Bolívia?

Resposta < Enquanto as mulheres indígenas são base de apoio social, sem nome, nem corpo, as mulheres brancas são objeto de desejo. Aceder a elas é um exercício de poder. A obsessão de Evo é seguir fazendo alianças com seus antigos inimigos, a oligarquia que está detrás das centenas de concursos de beleza que há no país, uma verdadeira indústria da coisificação das bolivianas. As misses estão presentes em todos os atos oficiais e inclusive tem dois assentos no parlamento. Ademais de dar giros na economia, o governo boliviano pensou em seduzir este setor organizando o Miss Universo, mas não o conseguiu. Agora Evo Morales vai organizar o Dakar, mais do mesmo.

Pergunta > Tens entrevistado a muita gente. Quê aconteceu com Rigoberta Menchú?

Resposta < Rigoberta se levantou de sua poltrona e me deixou com a palavra na boca. Disse que a havia ofendido e discriminado. Só porque falei da não fetichização de nossas identidades: não por ser mulher, ser lésbica ou ser indígena sou intocável ou perfeita. Eu creio que aí está um novo fundamentalismo que na Bolívia vivemos todos os dias. Não estamos falando da indígena subalternizada, senão dessa outra indígena que é Rigoberta, uma com poder.

Pergunta > Por quê já não vais a encontros feministas latino-americanos?

Resposta < Olha, o último que fui aconteceu em um hotel de 5 estrelas na República Dominicana, com praia privada e polícia que vigiava a praia. O custo de inscrição rondava os 200 dólares. Recordo que seis companheiras ficamos em um só apartamento, já havíamos gasto 800 dólares pela passagem. Não havia nem um só debate sobre prostituição, quando na rua ela era generalizada. Os encontros feministas latino-americanos deixam tacitamente fora os setores populares. Isto já afeta completamente os sentidos e conteúdos. Não se organizam em lugares acessíveis, porque não há uma vontade política de fazê-lo. Basicamente são encontros que reúnem funcionárias de ongs que tem um excedente econômico para ir ali e se divertir.

Pergunta > Qual foi vossa conclusão?

Resposta < Na volta, resolvemos que nunca mais iríamos a um encontro para o qual é preciso investir somas altíssimas de dinheiro. Decidimos organizar, em troca, dois encontros feministas anuais em nosso país. Fazemos um na zona andina de La Paz e um na zona tropical de Santa Cruz. Oferecemos mais de dez oficinas de discussão, o almoço e toda a participação por um montante de três dólares e o fazemos em recintos públicos para baixar os custos. O impacto destes encontros é incrível.

Fonte: larepublica.pe

Tradução > Sol de Abril

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A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

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Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.

Tomás Ibáñez: “Nunca se toma o poder, é sempre o poder que nos toma” (entrevista)

 

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

Tomáz Ibáñez (Zaragoza, 1944) vive com os ideais libertários como guia. Filho do exílio em França, começou as suas andanças políticas nos grupos juvenis anarquistas franceses e de jovens exilados espanhóis. Desde o início dos anos 60 até inícios dos anos 80 centrou as suas energias na construção de organizações libertárias, na luta antifranquista e na reconstrução da CNT em 1976. Autor de numerosos ensaios sobre a dissidência, o anarquismo e a luta contra a dominação, publicou recentemente “Anarquismo é movimento” (Virus, 2014), no qual analisa a vigência dos ideais e postulados anarquistas na actualidade. Ibáñez analisa o ressurgimento do anarquismo no século XXI e como este impregnou as lutas dos movimentos sociais, desde o 15 M (assembleias de rua, ndt) à expansão dos centros sociais autogestionados, as cooperativas de consumo e as redes de economia alternativa. Alerta para os perigos com que estes movimentos se vão confrontar se adoptarem a luta por via eleitoral que alguns já estão a preparar.

 “Os cantos de sereia que anunciam amanheceres radiosos extinguiram-se”, diz no livro. Já não é possível esperar a libertação, ‘anarquia’ como estado das coisas, como postulava o anarquismo?

Esses cantos de sereia situavam num futuro mais ou menos longínquo a recompensa que receberiam as lutas emancipadoras, e essa recompensa era tão fabulosa que servia para avaliar as lutas em função daquilo que nos aproximavam da meta desejada. Já não é possível manter esse tipo de discurso de raiz claramente religiosa, hoje aprendemos que o valor das lutas não depende das promessas que encerram, mas sim do seu próprio acontecer, das suas características substantivas e naquilo que permitem criar no presente. A extinção desses cantos diminui o fascínio pela terra prometida e a subordinação do caminho ao seu destino, mas nada nos diz sobre a possibilidade ou não de algum dia alcançarmos uma sociedade de tipo anarquista. Independentemente de isto acontecer ou não, a anarquia não radica no futuro mas sim no presente, em cada luta, em cada conquista que esteja conforme os seus princípios. Com o fim dos cantos de sereia também se derruba a crença no advento brusco de uma sociedade que caminha para a anarquia sobre as ruínas ainda fumegantes do actual sistema. A grande e fulgurante explosão revolucionária que traria a libertação definitiva é apenas um mito, como também é um mito uma sociedade livre de conflitos, tensões e lutas. Não há nenhum amanhecer radioso no fim do caminho, simplesmente porque o caminho não tem final, cada amanhecer deve ser conquistado dia a dia, uma e outra vez. Mas isto não significa que não se deva cultivar a utopia, mas sabendo que ela só representa um guia para actuarmos no presente e não a prefiguração da meta que se vai alcançar algum dia.

Defende que “o anarquismo ressurge no século XXI, reinventa-se”. Que características deixa para trás e que outras aparecem?

Na medida em que o anarquismo se forja no seio das lutas contra a dominação é lógico que mude quando estas se modificam, de forma a continuar a fazer frente à emergência dos novos dispositivos do poder. Ou seja, quando aquilo que o anarquismo combate muda isso fá-lo mudar também. O que o anarquismo contemporâneo deixa para trás é, entre outras coisas, um conjunto de ideias influenciadas pela Modernidade, tais como a fé inquebrantável no progresso, o enaltecimento acrítico da Razão, uma concepção demasiado simplificadora do poder, uma prática de acordo com o que foi a centralidade do trabalho e deixa também um imaginário revolucionário construído em torno da grande insurreição do proletariado. Configura-se hoje um anarquismo mais táctico que estratégico, mais virado para o presente do que o utópico, em que o que importa é a subversão pontual, local, limitada, mas radical, dos dispositivos de dominação e a criação aqui e agora de práticas e de espaços que afirmem a revolução no presente, transformando radicalmente as subjectividades de quem nelas se envolve. O que também caracteriza o anarquismo contemporâneo é um menor fechamento em si mesmo, uma maior abertura para construir em conjunto com outras tradições não especificamente anarquistas uma série de projectos e de lutas em comum.

Assinala que o anarquismo “é uma coisa de hoje, aqui e agora”. Em que é que isso se concretiza actualmente nos nossos bairros?

O anarquismo envolveu-se na tentativa de construir uma realidade de proximidade (de vizinhança, ndt) feita de realizações concretas, como são as cooperativas de consumo, de produção, de educação, os CSOA (Centros Sociais Ocupados e Autogestionados, ndt), as livrarias, as redes de economia alternativa. Não se deve esquecer que a progressiva destruição das relações de vizinhança foi um dos factores que tirou força ao anarquismo, uma vez que é precisamente nos bairros que se podem tecer relações transversais que questionem distintos dispositivos de dominação e não apenas os que se situam no âmbito laboral.

Faz também referência aos “guardiães do templo”, que pretendem um “anarquismo embalsamado”, como uma ameaça para a sobrevivência do anarquismo. Quem são os “guardiães do templo”? Que anarquismo pretendem preservar contra a força das mudanças?

Digo no livro que estive a combater durante algum tempo contra os “guardiães do templo” e, com efeito, durante os anos da minha militância anarquista mais intensa, desde princípios dos anos sessenta até aos oitenta, estes constituíam um problema sério no seio dos movimentos libertários de França, Itália ou Espanha para citar apenas os que conheço melhor. A sua vontade de preservar a pureza do anarquismo herdado, de evitar qualquer contaminação por ideias ou por práticas surgidas fora das suas fronteiras, a sua fé, quase religiosa, na superioridade inquestionável do anarquismo, e a sua dedicação na tarefa de velarem pela imutabilidade da sua essência, fechava-os num dogmatismo e num sectarismo impróprios de qualquer sensibilidade minimamente anarquista. As expulsões, as desqualificações, as cisões, não eram, naquela altura, nada raras. Hoje a própria força das mudanças esvaziou de energia as tendências sectárias e os “guardiães do templo” já não representam nenhum problema, ainda que não seja de mais permanecermos atentos a eventuais ressurgimentos de atitudes fundamentalistas.

O que é que o anarquismo pode aportar aos movimentos sociais actuais?

Muito. O anarquismo pode fazê-los beneficiar da larga experiência que acumulou relativamente aos modos de funcionamento que estes movimentos estão a reinventar na actualidade, mas que ele vem a praticar desde há muito tempo: modos de debater, de decidir, de actuar baseados na democracia directa, na horizontalidade, no respeito pelas minorias, na não delegação permanente, na acção directa, etc. Também pode fortalecer-lhes a apreensão que já manifestam face ao exercício do poder, o na sua desconfiança perante a figura política da “representação”. Vale a pena aqui recordar a maneira como Michel Foucault denunciava a “indignidade de falar em nome dos outros”. Na medida em que a memória histórica de inumeráveis lutas surgidas “desde baixo” sedimentou-se no seio do anarquismo e na medida em que as experiências e os saberes históricos ajudam a entender melhor o presente, é óbvio que o anarquismo pode ser de grande utilidade para os movimentos emergentes. Por fim, o anarquismo pode também revelar-se útil pondo a claro, de forma crítica, os erros que cometeram debaixo das dobras da sua própria bandeira.

E que práticas dos movimentos sociais actuais se podem inscrever nos princípios do anarquismo?

A horizontalidade, o modo de conduzir os debates, de elaborar as propostas e de tomar as decisões, o acento posto no carácter “prefigurativo” que deve impregnar os conteúdos e as formas das lutas, ou seja, a necessidade de que as práticas que se desenvolvem não contradigam os fins que se perseguem. Cabe aqui também mencionar a prática da acção directa e do cepticismo frente às mediações, a crítica da delegação e da representação, ou a recusa do centralismo e do vanguardismo, sem esquecer a aversão face a qualquer forma de dominação, etc.

Houve anarquismo na eclosão do 15M (assembleias de rua no Estado Espanhol, ndt)?

Claro que houve. Subscrevo completamente as palavras de Rafael Cid quando se refere a ele como uma “inesperada primavera libertária”. A partir do momento em que o único sujeito político legítimo foram as próprias pessoas que estavam presentes nas praças e que estava implicada na luta, à margem de qualquer instância que lhes fosse exterior, já estávamos em pleno coração dos princípios anarquistas. Se juntarmos a isto, a apreensão face à representação que se manifestava com uma força impressionante, ainda ressaltam com maior nitidez os traços libertários que o caracterizavam. A partir da minha própria concepção do anarquismo, o próprio facto de não aceitarem manifestações identitárias, ainda que fossem anarquistas, reforça o carácter anarquista do 15M. Saber se há anarquismo hoje, no movimento 15M, é algo que me escapa por não ter seguido com suficiente atenção a sua evolução mais recente, mas intuo que o seu carácter heterogéneo e polimorfo terá sabido preservar focos de anarquismo.

O que aconteceu em Can Vies (no bairro de Sants de Barcelona) em que os seus ocupantes, com os vizinhos, continuaram a trabalhar à margem daquilo que a Câmara pretendia (por exemplo, reconstruíndo o centro) reflecte a continuidade das ideias anarquistas?

Mais do que a continuidade das ideias anarquistas, o que aconteceu em Sants reflecte é a similitude ou a sintonia entre algumas das características do anarquismo, por uma parte, e o tipo de práticas que existiram e que continuam a existir no conflito de Can Vies, por outra. Sintonia também com a sensibilidade manifestada por amplos sectores dos colectivos que protagonizam a actual insubmissão de carácter social e político. As assembleias abertas, a recusa em negociar o que se considera inegociável, a recusa de qualquer pacto que implique participar no sistema e submeter-se à sua lógica, a fusão do existencial e do político, quer dizer, a não separação entre a forma de viver e de ser, por uma parte, e as práticas políticas, por outra, a acção directa manifestada inclusive na decisão de não deixar em mãos alheias a reconstrução do edifício, tudo isto estabelece fortes ressonâncias entre o anarquismo e o que aconteceu em Can Vies. A continuidade ou, inclusive, a actual pujança do anarquismo barcelonês no seio de alguns colectivos jovens manifestou-se nos confrontos nutridos, em parte, por colunas que confluíram em Sants a partir de vários bairros.

Numa passagem do livro afirma que “lutar contra o Estado consiste também em mudar as coisas “em baixo”, nas práticas locais”. Nos últimos anos surgiram diversas experiências autogestionadas e movimentos sociais que, como a PAH, têm-se posicionado como contrapoder face ao Estado. Se estas optarem pela via eleitoral correm o perigo de perderem a sua força emancipadora?

Desde o meu ponto de vista esse perigo é evidente. A integração no sistema, assumindo algumas das suas práticas e adquirindo parcelas de poder, com o louvável propósito de o combater e de o transformar a partir de dentro, desactiva mais cedo que tarde a força de qualquer política emancipadora. Não é que, como refere a conhecida frase, “o poder corrompe…”, mas sim que “para chegar ao poder já é preciso estar corrompido”, é impossível de outra forma porque não há caminho para o poder que não implique práticas mais ou menos enviesadas, assim como inúmeros abandonos e compromissos de maior ou menor envergadura. Por isso sou tão fervoroso defensor do exercício do “contrapoder” como virulento crítico do “poder popular”. O facto de se reivindicar e de se trabalhar para consolidar este último conduz quase sempre a que se dê o salto final para a via eleitoral e, claro, é preciso que perguntemos o que é que acontece ao clamor de que “não nos representam”, ou ao legítimo grito de “que se vão todos?”

Em linha com a anterior pergunta, se movimentos sociais e grupos com práticas horizontais, assembleárias e autogestionárias chegarem ao ‘poder”, tomarem as instituições, podem perder estas características?

Não é que as possam perder, é que as perderão de facto, inevitavelmente. Nunca se “toma” o poder, é sempre o poder “quem nos toma”, por como muito bem dizia Augustín Garcia Calvo, “o inimigo está inscrito na própria forma das suas armas”, usá-las é reconhecer a sua vitória e adoptar o seu rosto. Não é preciso ter estudado muita psicologia nem muita sociologia para saber que a imersão num determinado contexto e o facto de assumir as suas práticas incide sobre a forma de ser e de pensar de qualquer um que a isso se preste. Para podermos autojustificar a nossa conduta é preciso que ponhamos em consonância as ideias defendidas até então com as práticas efectivamente tidas, ignorando a indeslindável simbiose entre ideias e práticas propugnada pelo anarquismo, e esquecendo aquela famosa pintada nas paredes de Paris de 1968 que dizia: “Actua como pensas ou acabarás pensando como actuas”. Um movimento como o que mencionas na tua pergunta não tentaria dar o salto para a conquista do poder se estivesse animado pela profunda convicção de que nunca nenhum exercício de poder conseguirá engendrar um espaço de liberdade.

http://www.lamarea.com/2014/06/29/tomas-ibanez/

tradução Portal Anarquista

Os anarquistas e a geografia urbana (1): Kropotkin

Fonte: Passa Palavra

Fonte: Passa Palavra

Fonte: Passa Palavra

O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade. Por Manolo

Embora seja possível traçar seus antecessores em diversos momentos da história, o movimento anarquista, tal como o compreendemos hoje, consolidou-se como expressão de um projeto político apenas nas quatro últimas décadas do século XIX, e a força, presença e relevância deste projeto político inicial influenciaram incontáveis organizações e iniciativas políticas até a década de 1930, quando eventos que culminaram na chegada ao poder político entre 1917 e 1939 de organizações políticas historicamente inimigas do anarquismo – que vão desde comunistas até fascistas, passando por organizações influenciadas pelo liberalismo, pelo conservadorismo, pelo nacionalismo e pelo fundamentalismo religioso – resultaram numa onda de perseguição política aos anarquistas cujo saldo foi o desmantelamento de suas organizações e a destruição de seus arquivos pessoais, além de prisões, exílios e assassinatos.

Somente na década de 1960 o anarquismo retornou com força à cena política, perseguido e marginalizado (WOODCOCK, 2008). Por isto, optou-se neste artigo por chamar o movimento anarquista existente nos setenta anos compreendidos entre as décadas de 1860 e 1930 de primeira onda do anarquismo, para diferenciá-lo da retomada iniciada na década de 1960, cujos efeitos são sentidos até hoje.

Nesta primeira onda do movimento anarquista, houve dois militantes, geógrafos de profissão, que apresentaram versões alternativas e bastante funcionais a muitas das teorias atualmente empregues na compreensão do fenômeno citadino e no planejamento urbano [1]: Elisée Reclus e Piotr Kropotkin. Para ambos, “anarquismo e geografia são uma combinação lógica” (DUNBAR, 1989, p. 78), seja enquanto filosofia política, seja enquanto fundamento epistemológico.

Kropotkin e Reclus veem na livre associação dos indivíduos e na solidariedade duas forças motrizes do desenvolvimento social, econômico, político e geográfico; por isto mesmo, são críticos acerbos de tudo quanto possa obstaculizar estas duas forças: Estado, capital, exploração do homem pelo homem, colonialismo, imperialismo, tirania e autoritarismo são temas constantes de seus ataques.

Por caminhos teóricos ligeiramente diferentes, Kropotkin e Reclus chegam à conclusão de que as cidades são um lugar de encontros e um espaço fértil para atuação política, por terem sido os lugares onde surgiram os embriões da democracia moderna – embora vejam no governo representativo e no Estado, mesmo o mais democrático, entraves à solidariedade e à livre associação dos indivíduos. Por terem sido quase vizinhos em seu exílio suíço (1877-1881), Kropotkin e Reclus influenciaram-se mutuamente, um “polindo” o entendimento do outro através do diálogo: Reclus dando foco mais social e ecológico à geografia física de Kropotkin, e este último conferindo à geografia social e ecológica de Reclus caráter mais comunal e mais atento no fenômeno urbano (WARD, 2010, p. 209-210).

1 Piotr Kropotkin e a revolução urbana na Europa

1.1 Breve biografia

Piotr Kropotkin em 1864

Príncipe da dinastia ruríquida, senhora dos territórios da Rússia e Ucrânia entre 862 e 1610, Piotr Kropotkin (1843-1921) recusou o título aos 12 anos para tornar-se uma das figuras centrais do movimento anarquista no século XIX, e repreendia duramente os amigos que ainda o tratavam como se fosse nobre (BALDWIN, 1970, p. 13).

Quando jovem, na Rússia, esteve envolvido com atividades administrativas, militares e de corte; entre 1866 e 1872 dedicou-se a expedições científicas à Sibéria, tendo em seguida, numa viagem à Suíça, tido contato com o movimento operário, filiando-se à seção genebrina da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

Por influência de militantes da Federação do Jura suíço, ingressou no movimento anarquista, que não abandonou até sua morte. Voltou à Rússia ainda em 1872, e já em 1874 estava preso na fortaleza de Pedro e Paulo por sua atividade política com o Círculo Tchaikovsky. Tendo escapado das prisões russas em 1876, passou a viver no exílio, entre a França, Suíça e Inglaterra, sempre ativo no movimento anarquista então em pleno vigor.

Voltou à Rússia apenas em 1917 para colaborar com o processo revolucionário, mas a escalada dos bolcheviques ao poder através de um golpe de Estado fê-lo crítico acerbo desta forma de condução de um processo revolucionário – em conformidade com sua longa crítica a qualquer governo, mesmo revolucionário. Morto em 8 de fevereiro de 1921, seu funeral, em 13 de fevereiro, foi o último ato público de anarquistas durante a Revolução Russa; a Cheka, polícia política bolchevique, se encarregaria de aniquilá-los a partir de então.

1.2 As cidades medievais europeias como berço da democracia e do Estado modernos

Não cabe aqui fazer um inventário completo das ideias políticas e Kropotkin quando uma boa introdução ao assunto (WOODCOCK, 2002, pp. 207-250) ainda se encontra em catálogo editorial. Basta mencionar, introdutória e esquematicamente, que para Kropotkin tanto o feudalismo quanto o capitalismo criam escassez artificial e baseiam-se na força bruta e em privilégios; ele propôs um sistema político e econômico descentralizado, baseado no apoio mútuo e na cooperação voluntária, duas tendências que identificou como já presentes na vida social (KROPOTKIN, 2000, 2005, 2009, 2011).

Nuremberg, 1493

Interessam, para os fins deste artigo, sobretudo as ideias de Kropotkin sobre as cidades e sua inter-relação, ainda mais justificadas quando sua obra geográfica não tem sido objeto do mesmo revival que a de seu amigo Élisée Reclus. Será necessário, como pano de fundo desta subseção, criticar duas opiniões. A primeira, mais comum, diz que Kropotkin teria sido fundamentalmente um geógrafo físico. O geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2011, p. 10), após breve apresentação desta opinião, está também entre os que a criticam; não obstante a fama de Kropotkin como geógrafo físico ser merecida, por ter sido o primeiro a cartografar certas regiões do norte da Ásia (WARD, 2010, p. 214), ela espraia uma cortina de fumaça sobre sua não menos significante contribuição à geografia social presente em obras como Campos, fábricas e oficinas (KROPOTKIN, 1901) e A conquista do pão (KROPOTKIN, 2011), reconhecida por entusiastas de primeira hora como Lewis Mumford [2]. A segunda opinião, menos difundida, leva em conta a contribuição de Kropotkin à geografia social, mas quanto à questão urbana defende que “sua preocupação com a cidade é mais indireta” (VASCONCELOS, 2012, p. 71); a questão urbana, muito pelo contrário, está no cerne das preocupações de Kropotkin, quer no âmbito historiográfico, quer no âmbito geográfico, quer no âmbito político.

Kropotkin, geógrafo evolucionista e biólogo neolamarckista (ALSINO, 2012), e por isso mesmo muito atento ao desenvolvimento histórico da relação homem-meio, encontrou nas comunasurbanas europeias existentes entre os séculos X a XIV, herdeiras diretas das comunas rurais, tanto um antecessor cronológico das cidades modernas quanto uma base para a reflexão política de sua militância revolucionária.

As comunas urbanas e as primeiras cidades medievais eram, para Kropotkin, um modelo de resistência à tirania. Em várias passagens de sua obra (KROPOTKIN, 1901, 1955, 2000, 2005h, 2009, 2011) mostrou como estas comunas lutaram contra os senhores feudais, sendo em alguns momentos vitoriosas.

Para Kropotkin, as cidades medievais foram formadas por um lento e conflituoso desenvolvimento histórico, impulsionado por um conjunto de fatores em influência recíproca: a federação de vilarejos em prol da defesa comum contra inimigos externos (KROPOTKIN, 2009, p. 128); a restauração da paz interna em situações de desrespeito aos costumes, num embrião de função jurisdicional (idem, p. 120-131); o surgimento e consolidação das guildas e dos mercados (idem, p. ); a consolidação dos direitos fundamentais da posse comum da terra e daautojurisdição, que significava na prática autoadministração e autolegislação (idem, p. 133); e as conjurações, fraternidades e amizades, pactos políticos consolidados em cartas constitucionais, forjados na luta para “sacudir o jugo de seus senhores laicos e clericais” (idem, p. 132). O europeu medieval, para Kropotkin, seria “essencialmente federalista” (KROPOTKIN, 2000, p. 53), “preferia invariavelmente a paz à guerra” (KROPOTKIN, 2009, p. 128).

Representação da cidade livre de Aachen (Alemanha) na Idade Média

Em termos atuais, pode-se dizer que Kropotkin viu na história das cidades europeias medievais o espaço urbano como produto da associação de indivíduos em busca da libertação do jugo feudal e da dominação eclesial: “O principal objetivo da cidade medieval era o de garantir a liberdade, a autoadministração e a paz, e sua principal base, o trabalho” (KROPOTKIN, 2009, p. 142). Não apenas o espaço físico e o desenho urbano [3], como as instituições sociais criadas nestas cidades foram para ele resultados desta luta. A tese das cidades medievais como berço da democracia ocidental só veio a ser retomada – com as nuances hermenêuticas e idiossincráticas peculiares a cada autor – no início do século XX por Max Weber (2002, pp. 955-975) e Henri Pirenne (1927, 1969).

O final deste período de lutas libertárias teria sido determinado por um conjunto de fatores, também em influência recíproca, verificados por Kropotkin entre os séculos XIV e XVI. A partir da iniciativa de senhores feudais que, tendo acumulado mais riquezas que seus circunvizinhos, escolhiam como sede de seu domínio “um grupo de aldeias bem situadas e ainda sem a experiência da vida municipal livre” (KROPOTKIN, 2009, p. 168), surgiram as cidades nobres fortificadas, imitações tortas das cidades livres, às quais estes senhores feudais atraíam companheiros de armas (por distribuição de aldeias), mercadores (por privilégios ao comércio), juristas versados no direito romano e bispos. Estas cidades nobres, em constante conflito com as cidades livres, foram o embrião do Estado absolutista (idem, p. 169).

Soma-se a este fator a mudança da tática política da Igreja: ao invés da recalcitrante tentativa de criação de uma teocracia unificada, “bispos mais inteligentes e ambiciosos passaram a apoiar quem consideravam capazes de reconstituir o poder dos reis de Israel ou dos imperadores de Constantinopla” (idem, p. 169), espraiando-se assim entre os nobres como conselheiros, jurisconsultos e diplomatas.

Os camponeses ainda sob o jugo feudal, ao verem a incapacidade dos habitantes dos burgos para pôr fim às guerras entre cavaleiros, afiançavam sua liberdade agora àqueles nobres mais poderosos (idem, p. 169), cujas famílias – a família Kropotkin inclusive – no futuro seriam as mais poderosas dinastias absolutistas da Europa.

Havia também um fator interno, as “divisões que haviam surgido dentro das próprias cidades” (idem, p. 169): as famílias dos fundadores da cidade disputavam privilégios de comércio com as famílias de habitantes mais recentes; os citadinos, ou burgueses, não faziam questão de proteger as aldeias dos arredores, formadas por camponeses, a quem deixavam frequentemente sob o jugo de senhores feudais; mas para Kropotkin “o erro maior e mais fatal da maioria das cidades foi o de basear sua riqueza no comércio e na indústria, em detrimento da agricultura” (idem, p. 169), o que além de dificultar a integração com as aldeias circunvizinhas, fomentou o colonialismo e, como consequência, guerras coloniais consumidoras das riquezas citadinas [4].

Florença no Renascimento

Ao contrário do que se possa imaginar à primeira leitura, o retorno de Kropotkin às cidades medievais não era uma utopia regressiva, uma idealização do passado proposta como horizonte político, mas sim uma crítica historicista às utopias socialistas do século XIX: “não só as aspirações de nossos radicais modernos já eram realidade na Idade Média, assim como muito do que se chama hoje de utopia era comum naquela época” (KROPOTKIN, 2009, p. 157; HORNER, 1989, p. 142).

1.3 As cidades como palco privilegiado da luta de classes na Europa

A tese geográfico-política kropotkiniana, entretanto, não se encerra aí. As cidades europeias teriam sido palco desde o século XIV de uma luta encarniçada do “povo” contra os burgueses, senhores feudais, aristocratas e reis absolutistas pela defesa de suas liberdades e pelo uso comum da terra. Toda a história das revoluções europeias, para Kropotkin, explica-se por esta chave. A análise da Revolução Francesa feita por Kropotkin é exemplar neste sentido.

Para Kropotkin, a Revolução Francesa foi impulsionada não apenas pelos panfletos iluministas, mas pela decidida ação popular de libertação de obrigações feudais e de retomada de terras das mãos de senhores laicos e religiosos. Desabrochavam no seio das massas ideias “a respeito da descentralização política, do papel preponderante que o povo queria dar às suas municipalidades, às suas seções nas grandes cidades, e às assembleias de aldeia” (KROPOTKIN, 1955, vol. 1, p. 23). Ou ainda: “a revolta dos camponeses para a abolição dos direitos feudais e a reconquista das terras comunais tiradas às comunas aldeãs desde o século XVII pelos senhores laicos e eclesiásticos – eis a própria essência, a base da grande Revolução” (idem, p. 114). Ou então:

Em França, o movimento não foi somente um levante para conquistar a liberdade religiosa ou apenas a liberdade comercial e industrial para o indivíduo, ou ainda para constituir a autonomia municipal nas mãos de alguns burgueses. Foi, sobretudo, uma revolta dos camponeses: um movimento do povo para reentrar na posse da terra e a libertar das obrigações feudais que sobre ela pesavam; e além de haver nisso um poderoso elemento individualista – o desejo de possuir a terra individualmente – havia também o elemento comunista: o direito de toda nação à terra – direito que veremos altamente proclamado pelos pobres em 1793. (idem, pp. 116-117)

Tomada da Bastilha

A luta de classes eclodiu também nas cidades. Na França do século XVIII, a autoridade real demorara duzentos anos para construir uma estrutura institucional capaz de submeter a seu jugo as cidades anteriormente livres; tais instituições – conselhos municipais vitalícios, direitos feudais, síndicos, almotacéis, direitos eclesiais de intervenção nas instituições municipais, isenções tributárias a membros da Igreja Católica e aristocratas etc. – encontravam-se em franca decrepitude às vésperas da Revolução Francesa (idem, pp. 118-120). Assim que a notícia da queda da Bastilha circulou pela província, o povo sublevou-se, apoderando-se dos Paços dos Conselhos e elegendo “uma nova municipalidade”; esta foi a base da revolução comunalista posteriormente sancionada pela Assembleia Constituinte em 1789 e 1790 (idem, p. 121). O “povo”, territorializado a partir dos distritos (arrondissements) de Paris e de outras cidades grandes, “fez a revolução nas localidades, estabelece revolucionariamente uma nova administração municipal, distingue entre os impostos que aceita e os que recusa pagar, e dita o modo de repartição igualitária daqueles que pagaria ao Estado ou à Comuna” (idem, p. 130).

Daí por diante, estabelecido o pano de fundo, a densa análise de Kropotkin, baseada em rigorosa pesquisa documental e arquivística [5], segue a mesma tônica. A Revolução Francesa é analisada em termos territoriais, e especificamente em sua expressão urbana. A luta dos habitantes das cidades contra as instituições feudais ressurgia, desta vez inaugurando na prática ocomunismo.

1.4 As cidades nos processos revolucionários

Mas é na passagem da sociedade capitalista para a sociedade anarquista – ou seja, durante a revolução – que Kropotkin apresenta vislumbres interessantes. Para ele, “a revolução social deve ser feita pela libertação das comunas, e (…) apenas as comunas, absolutamente independentes, libertas da tutela do Estado (…) poderão nos dar o meio necessário à revolução e o meio de realizá-la (…)” (KROPOTKIN, 2005a, p. 91). Pontuou, na esteira de suas análises histórico-geográficas posteriores ao período medieval, que a revolução das comunas não se tratava de simples retorno à comuna medieval, mas sim da construção de uma nova comuna que, devido à ciência e à tecnologia de então, seria “um fato absolutamente novo, situado em novas condições e que, sem dúvida, traria consequências totalmente diferentes” (idem, p. 91), e que “deve destruir o Estado e substituí-lo pela federação” (idem, p. 93). Neste processo, Kropotkin mostra atenção para as relações “cidade-província”, para que as cidades não fiquem desabastecidas (KROPOTKIN, 2011, p. 53). Tal como se verá adiante e com mais detalhe sobre Élisée Reclus, Kropotkin já intuía entre 1880 e 1882 aquilo que só na década de 1930 veio a ser chamado de rede urbana, dando-lhe o nome de federação de comunas e projetando-a no futuro a partir de tendências do presente:

Graças à infinita variedade das necessidades da indústria e do comércio, todos os lugares habitados já possuem vários centros aos quais se ligam, e, à medida que suas necessidades desenvolverem-se, ligar-se-ão a novos centros, que poderão prover às novas necessidades. (…) A comuna sentirá, portanto, necessidade de estabelecer outros contratos de aliança, entrar para outra federação. Membro de um grupo para aquisição de gêneros alimentícios, a comuna deverá tornar-se membro de um segundo grupo para obter outros objetos que lhe serão necessários (…). Tomai um atlas econômico de qualquer país e vereis que não existem fronteiras econômicas; as zonas de produção e de troca de diversos produtos penetram-se mutuamente, confundem-se, superpõem-se. Do mesmo modo, as federações de comunas, se seguissem seu livre desenvolvimento, viriam rápido confundir-se, cruzar-se, superpor-se e formar, assim, uma rede de maneira diversamente compacta, “una e indivisível”, daqueles agrupamentos estatistas, que são apenas justapostos como as varas em feixe em torno da machadinha do lictor. (…) [A] íntima ligação já existe entre as diversas localidades, graças aos centros de gravitação industrial e comercial, graças a um grande número destes centros, graças às incessantes relações (KROPOTKIN, 2005a, pp. 97-98).

A este nível territorial da federação de comunas soma-se outro, ligado aos interesses dos indivíduos, apto a formar “uma comuna de interesses cujos membros estão disseminados em mil cidades e vilarejos” (KROPOTKIN, 2005a, p. 99); trata-se das associações, cooperativas e todas as outras formas de sociedades livremente constituídas para a atividade humana – ou seja, aquilo que, usando um vocabulário contemporâneo, se chamaria sem equívoco de sociedade civil – verdadeira “tendência, o traço distintivo da segunda metade do século XIX” (idem, ibidem) que ocupava “a cada dia novos campos de ação, até aqueles que, outrora, eram considerados como uma atribuição especial do Estado” (idem, ibidem). A convergência entre ascomunas territoriais e as comunas de interesse formava o solo onde a propaganda feita pelas minorias revolucionárias, ao romper com preconceitos políticos arraigados no seio do povo, germinaria em ações revolucionárias cujos fins últimos são a abolição do Estado, dos privilégios e da exploração (KROPOTKIN, 2005 e, 2005f, 2005g).

Casas proletárias na Londres do século XIX

E a questão urbana, mais especificamente a questão da moradia, é um dos pontos, para Kropotkin, por onde pode-se começar a ação revolucionária. Plenamente consciente dos mecanismos de formação da renda fundiária urbana, Kropotkin deslegitimou-a, pois não somente as vantagens locacionais capazes de valorizar imóveis seriam resultado pura e simplesmente de um trabalho coletivo a que o proprietário do imóvel não deu causa e do qual se beneficia, como o próprio imóvel seria resultado de trabalho alheio indevidamente apropriado:

Finalmente – e é aqui sobretudo que a enormidade salta aos olhos – a casa deve o seu valor atual ao rendimento que o proprietário puder tirar dela. Ora, esse rendimento será devido à circunstância de a propriedade estar edificada em uma cidade calçada, iluminada a gás, em comunicação regular com outras cidades e reunindo no deu seio estabelecimentos de indústria, de comércio, de ciência, de arte; ao fato de esta cidade ser ornada de pontes, de cais, de monumentos, de arquitetura, oferecendo aos habitantes muitos confortos e muitos agrados desconhecidos nas aldeias; ao fato de que 20, 30 gerações têm trabalhado para a tornar habitável, saneá-la e embelezá-la.

O valor de uma casa em certos bairros de Paris é 1.000.000, não que nas suas paredes haja 1.000.000 em trabalho, mas porque está em Paris; porque desde séculos, os operários, os artistas, os pensadores, os sábios e os literatos têm contribuído para fazer Paris o que ela é hoje; um centro industrial, comercial, político, artístico e científico; porque tem um passado; porque as suas ruas são conhecidas graças à literatura, na província como no estrangeiro; porque é o produto de um trabalho de 18 séculos, de 50 gerações, de toda a nação francesa.

Quem, pois, tem o direito de se apropriar da mais ínfima parcela desse terreno ou da última das construções, sem cometer uma clamorosa injustiça?

Quem tem o direito de vender, seja a quem for, a menor parcela do patrimônio comum? (KROPOTKIN, 2011, pp 59-60)

Casas proletárias em Paris, 1912

A solução deste problema, para Kropotkin, é o alojamento gratuito, como proposta pós-revolucionária, e a expropriação das casas, como ação revolucionária imediata. Na verdade, Kropotkin não fez nada além de sistematizar e discutir a prática, já existente no século XIX:

Repugna-nos traçar nos seus menores detalhes planos de expropriação. […] Assim, esboçando o método segundo o qual a expropriação e a repartição das riquezas expropriadas “poderiam” fazer-se sem a intervenção do governo, não queremos senão responder aos que declaram a coisa impossível. […] O que somente nos importa é demonstrar que a expropriação “pode” fazer-se pela iniciativa popular e “não pode” fazer-se de outro modo.

É de prever que, desde os primeiros atos de expropriação, surgirão no bairro, na rua ou no agregado de casas, grupos de cidadãos de boa vontade, que virão oferecer os seus serviços para se informarem do número de apartamentos vazios, dos apartamentos atulhados de famílias numerosas, dos alojamentos insalubres e das casas que, demasiado espaçosas para os seus ocupantes, poderiam ser ocupadas por aqueles que não têm ar em seus casebres. Em alguns dias, esses voluntários espalharão pela rua, pelo bairro, listas completas de todos os apartamentos, salubres e insalubres, estreitos e largos, alojamentos infectos e moradias suntuosas.

Comunicarão livremente entre si as suas listas e em poucos dias terão estatísticas completas. […]

Então, sem esperar coisa alguma de ninguém, esses cidadãos irão provavelmente encontrar os seus camaradas que habitam espeluncas e lhes dirão muito simplesmente: “Desta vez, camaradas, é a Revolução a valer. Venham esta tarde a tal lugar. Todo o bairro lá estará, repartiremos os apartamentos de cinco peças que estão disponíveis. E logo que estiverdes “em casa”, será negócio feito. O povo armado responderá a quem quiser desalojar-nos. (KROPOTKIN, 2011, pp. 61-62)

De um só golpe, Kropotkin antecipou em quase cem anos – o texto é de 1892 – conceitos criados no contexto do movimento de reforma urbana, como o défice habitacional quantitativo e qualitativo, a retenção especulativa de imóveis, a discussão sobre a destinação dos imóveis vazios, a ocupação de imóveis cujos proprietários não lhes dão função social e o método de ação dos movimentos de luta por moradia. Não estamos tão longe dele quanto se poderia supor. Kropotkin influenciou diretamente, por exemplo, a campanha de ocupação de bases militares para moradia na Inglaterra, em 1946, e as ideias de John Turner sobre a autoconstrução em Lima (Peru) (WARD, 1996, pp. 67-73).

1.5 Um balanço

Como se vê, o pensamento político de Kropotkin não lida com conceitos e categorias abstratas ou idealizadas; enraíza-os num meio geográfico, territorializa-os. A relação homem-meio, sociedade-natureza, é vista por Kropotkin como um todo unitário, pleno de relações biunívocas e complexas.

O espaço, em Kropotkin, é produto também do desenvolvimento histórico, e a História se desenvolve no espaço. O espaço urbano do passado e do porvir – como qualquer outro espaço – é, também, fruto de lutas sociais, em especial quando as cidades são o palco principal das lutas pela liberdade.

Por isso, a questão urbana, em Kropotkin, pode ser vista como o conjunto dos fatores que obstaculizam o pleno desenvolvimento dos indivíduos e sua livre organização nas cidades, fatores estes que variam em cada momento histórico; o conhecimento destes fatores só pode se dar através da pesquisa histórica da produção e do uso do espaço de cada cidade e das lutas em torno desta produção e deste uso, na tentativa de produzir sínteses orientadoras da ação política.

Leia aqui a segunda parte deste artigo.

Notas

[1] Não por acaso Patrick Geddes, um dos fundadores do planejamento regional e urbano modernos, foi amigo e discípulo dos dois (DUNBAR, 1989, pp. 89-90; HALL, 2007, pp. 161-170).

[2] Lewis Mumford considerava Piotr Kropotkin “inteligência sociológica e econômica de primeira ordem, baseada na competência especializada […] como geógrafo, e na sua generosa paixão social como líder do anarquismo comunista” (MUMFORD, 1998, p. 658). Fez comentários entusiásticos a dois livros de Piotr Kropotkin em sua obra A cidade na história: sobre Campos, fábricas e oficinas, disse ser “recomendado especialmente a todos os que se interessam em planejar para áreas não-desenvolvidas” (idem, ibidem); sobre O apoio mútuo, disse ser “obra pioneira sobre a simbiose na sociologia; uma das primeiras tentativas para reformar a unilateral ênfase darwiniana nos aspectos mais predatórios da vida. Note-se o capítulo sobre Ajuda Mútua na Cidade Medieval” (idem, ibidem).

[3] “Geralmente a cidade era dividida em quatro partes, ou em cinco a sete setores que se irradiavam de um centro, e cada um deles correspondia mais ou menos a um certo comércio ou ofício que nele prevalecia, mas continha habitantes de diferentes posições sociais e ocupações – nobres, comerciantes, artesãos ou mesmo semisservos. Cada setor ou parte constituía um aglomerado bem independente. […] Portanto, a cidade medieval é uma dupla federação: de todos os domicílios unidos em pequenas associações territoriais – a rua, a paróquia, o setor – e de indivíduos ligados por juramento em corporações de ofício. A primeira foi resultante da origem na comunidade aldeã e a segunda, uma ramificação subsequente gerada por novas condições” (KROPOTKIN, 2009, p. 142).

[4] “Colônias foram fundadas pelos italianos no sudeste, pelas cidades alemãs no leste, pelas eslavas no extremo nordeste. Passaram a existir exércitos mercenários para as guerras coloniais, e logo também para a defesa local” (KROPOTKIN, 2009, p. 170).

[5] Num artigo escrito entre 1880 e 1882, Kropotkin explicitou o método que resultou na obra A grande revolução: “Quanto às insurreições, que precederam a revolução e sucederam-se durante o primeiro ano, o pouco que posso dizer disso, neste espaço restrito, é o resultado de um trabalho de conjunto, que realizei em 1877 e 1878, no Museu Britânico e na Biblioteca Nacional [da França], trabalho que ainda não terminei, e no qual me propunha expor as origens da revolução e de outros movimentos na Europa. Aqueles que quiserem lançar-se neste estudo deverão consultar (além das obras conhecidas […]) as memórias e as histórias locais […]. Entretanto, não devem contar com o fato de poder reconstituir, só com estes documentos, uma história completa das insurreições, que precederam a revolução. Para fazê-lo, só há um meio: dirigir-se aos arquivos, onde, apesar da destruição dos documentos feudais, ordenada pela Convenção, acabar-se-á, com certeza, por encontrar fatos muito importantes” (KROPOTKIN, 2005f, nota 27).

Referências bibliográficas

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O ir e vir, a esquerda, os partidos, o governo, Kobane e a Grécia

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por Gilson Moura Henrique Junior

Em pleno janeiro de 2015 e temos um cadinho de movimentação política pela esquerda mundial que causa terremotos interpretativos nas mentes socialistas e anarquistas, especialmente depois da comoção brasileira em torno da “Dilmãe de coração valente” que atingiu até a dita esquerda radical partidária e até anarquistas nas eleições de 2014.

Logo neste início de ano temos o burburinho das manifestações contra a tarifa, que se movimentam para também se tornarem protestos contra todas as tarifas e não só as de transporte, e o eco feliz da esquerda partidária à vitória do Syriza na Grécia.

Além disso, há o escândalo socialista e anarquista diante do governo da “Dilmãe” que se apresenta um governo muito mais parecido com o que seria o de Aécio Satã do que com a propaganda que petistas e abestados seguidores “responsáveis” da súbita transformação do governo pragmático de Dilma num governo “de esquerda” gostariam de admitir.

Aliás, salta aos olhos a desilusão de uma esquerda madura o suficiente pra tomar decisões “responsáveis” com um governo que guina à direita, cada vez mais, desde 2002, em um segundo turno de 2014, como se morasse em Marte e não tivesse noção da perseguição que o governo federal moveu contra anarquistas e autonomistas junto a governos estaduais como os do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo; como se não soubesse dos ataques a indígenas e quilombolas e como se os recuos na demarcação de terras,etc fossem ilusões; como se fossem lenda a franca postura homofóbica do governo incluindo omissões que permitiram Feliciano na comissão de DH da Câmara federal e os recuos nas políticas de Gênero e como se as indicações de abraço neoliberal na política econômica não fossem dadas desde 2013.

Essa esquerda talvez tenha sofrido um surto súbito de Alzheimer temporário ou sucumbiu à lógica oportunista eleitoral imediata e mal tentou fingir que não. Diante da dúvida entre a responsabilidade concreta com movimentos e mudanças e o medo de desagradar eleitores escolheu a segunda opção, abraçou Dilmãe e agora faz a egípcia com o resultado das opções.

Agora em janeiro de 2015 essa mesma esquerda “responsável”, além de se chocar com um governo Dilmãe que nomeia Katia Abreu ministra da Agricultura e o negacionista Aldo Rebelo para ministro da ciência e tecnologia, se põe calada diante da covardia de suas figuras públicas no apoio aos 23 presos políticos perseguidos pelo estado do Rio de Janeiro, se omite diante das manifestações contra aumento das passagens e tarifas em geral, ignora a crise hídrica como parte da crise ecológica e climática que jamais confrontou concretamente em seus programas e ainda tem o disparate de dizer que quer ser o PODEMOS brasileiro.

Não sei como se quer ser um movimento que buscou ser horizontal e discutir amplamente desde o cancelamento da dívida pública à mobilidade urbana, ecossocialismo, fim do uso dos combustíveis fósseis,etc de forma aberta sem que se consiga sequer discutir mobilidade de forma franca, ser solidário com perseguidos políticos além do Rafael Braga ou ao menos tentar dialogar com o movimento contra mudanças climáticas. Talvez se esteja dizendo que será o PODEMOS brasileiro no que tange aos defeitos do PODEMOS, e aí concordo, já que está até à frente do PODEMOS na cooptação pelo estado.

No Rio essa esquerda que quer ser PODEMOS foi brilhantemente ativa na negação de prestar solidariedade aos 23 presos políticos julgados pelo estado por supostamente estarem organizando ataques no dia da final da copa, presos que inclusive foram indiciados junto com Bakunin (sim o anarquista russo morto em 1876 em Berna na Suíça), em uma manifestação contra o aumento das passagens que desde o inicio indicava que iria até o Tribunal de Justiça prestar solidariedade, mas cuja “responsabilidade” da esquerda a fez negar o trajeto e optar por ficar ao redor da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, na Cinelândia, local que frequenta alegre com seus mandatos e que talvez seja uma espécie de centro nervoso de sua existência e que por isso não pode se afastar muito deste totem geográfico.

Em SP a esquerda que quer ser PODEMOS faz uma atuação comovente em ser secundária diante do MPL e parece participar dos atos apenas como coadjuvante envergonhado que precisa ir para não parecer negar aquele movimento e necessidade dele.

Enquanto isso, a esquerda que quer ser PODEMOS prega com voracidade a reforma política, uma reforma política que tem de passar pelo congresso, uma reforma política que precisa estar vinculada à institucionalidade, uma reforma política que quer fazer uma mudança no estado por dentro do estado e que mobiliza ou tenta mobilizar os movimentos sociais para sustentarem essa lógica surreal em pleno auge da crise hídrica.

Ou seja, enquanto a crise ecológica atinge o auge de seus efeitos visíveis nas principais cidades do país, enquanto os governos cagam solenemente pra necessidade dos mais pobres e aumentam as tarifas de transporte; enquanto o governo federal que recebeu apoio “responsável” desta esquerda que quer ser PODEMOS ataca direitos trabalhistas e retira acesso a seguro desemprego e seguro-defeso; enquanto os governos, todos, em plena crise hídrica mentem pra população e a sacrificam com racionamento assumido ou não e permitem que indústria, agronegócio, termelétricas e mineração continuem desperdiçando água e usando-a de forma predatória, a esquerda que quer ser PODEMOS faz movimentinho para uma reforma política que deve passar pelo congresso mais conservador de todos os tempos e sequer, repito, SEQUER, se posiciona a partir de seus mandatos, setoriais,etc para uma política CON-CRE-TA de ataque às mudanças climáticas, uso de combustíveis fósseis,etc, nenhuma defesa concreta de mudanças na mobilidade urbana, nenhum debate, nada, apenas o velho e modorrento movimento para fortalecimento de figuras públicas.

Enquanto isso a esquerda que quer ser PODEMOS louva a vitória do Syriza na Grécia, e sonha em fazer igual aqui. Talvez por usarem táticas semelhantes ao que o Syriza fez com Tsipras e o PODEMOS faz com Iglesias, movimentos de reforço e anabolização de figuras públicas com objetivos eleitorais que eclipsam o surgimento de organizações mais horizontais, democráticas e anti hierárquicas, essa esquerda que quer ser PODEMOS vê no Syriza o surgimento de uma terra sem males na Grécia e em breve em toda a Europa.

Se a vitória do Syriza é um alento no sentido de interromper a sanha da Troika e o avanço das políticas de austeridade, impondo um novo programa para a Grécia e a Europa, atrapalhando o avanço da extrema-direita, ela também é um sinal de problemas quando a esquerda auto-proclamada radical já desde cedo sacrifica parte de seu programa, como a defesa do casamento civil igualitário, para permitir coalizões com partidos de direita que a permitam governar.

A coalização com os gregos independentes inclusive traz em seu bojo a entrega do ministério da defesa a um xenófobo homofóbico e racista que já adianta que trará políticas anti imigração e já ressuscita questões de soberania que cria litígios com a Turquia. Tudo isso é preocupante demais e soa mais preocupante quando parte da esquerda mundial opta por ignorar essas manobras para atacar o KKE, partido stalinista grego que anunciou por motivos que vão de sectários a lógicos que não se aliaria ao Syriza, enquanto faz a egípcia com movimentos do próprio Syriza.

Se o KKE é sectário, e é, o Syriza manifesta preocupantes movimentos de adequação à lógica do capitalismo promovendo menos uma guinada radical anti austeridade e mais um movimento de renegociação agressiva da dívida pública sem romper com o euro, a zona do euro e a lógica econômica do Banco Central Europeu.

Se o Syriza tensiona o mercado ao negociar com os credores sem passar pelo BCE e FMI, ele deveria tensionar a esquerda pela indicação de pouco rompimento e muita adequação à lógica do estado, promovendo uma ação deveras similar à assimilação que a social-democracia europeia fez nos anos 1950, só que pintada com tintas radicais.

A esquerda deveria ser mais crítica com o Syriza, mesmo considerando o simbólico de sua vitória, para evitar danos graves no futuro a partir de sua assimilação pelo estado e capital. Se o Syriza na Grécia, em uma situação de concreta força política para implementação de medidas radicais de transformação do estado através de plataformas reformistas radicais, já dá pinta de assimilação, isso simboliza uma paulada na cabeça de qualquer sonho de reforma radical na Europa e no mundo. E ao silenciar sobre isso a esquerda que quer ser PODEMOS é cúmplice de uma tática que já vimos no Brasil a partir da eleição do PT.

Aliás, a similaridade entre PT e Syriza, no todo da história, deveria saltar aos olhos brasileiros e fazê-los ajudar observadores europeus a entenderem os limites das ações deste no cenário político europeu.

O Syriza assim como o PT não é um partido nos moldes clássicos europeus, é uma força política complexa, mais similar a uma frente de correntes e vertentes da política partidária de esquerda e que contempla setores mais ou menos pragmáticos que se entendem socialistas e que vão além de elementos marxistas-leninistas. Ambos os partidos rompem com a social-democracia clássica e também com os PCs e ambos os partidos contemplam reformismos diversos, de tonalidades diversas, mais ou menos pragmáticos, mais ou menos marxistas, mais ou menos libertários. Ambos os partidos promoveram mudanças radicias no quadro político da esquerda local e mundial, apresentam lideranças carismáticas e programas radicais de reforma do estado com foco na eliminação da pobreza.

O Syriza chega no poder, no entanto, em uma situação mais parecida com o PT na eleição de 1989, com um quadro econômico parecido com a chegada do PT ao poder em 2002. O quadro do Syriza é, portanto, um quadro que lhe permite mais autonomia e legitimidade nas decisões, possui quadros e políticas mais radicais em um cenário de terra arrasada parecido com o brasileiro em 2002.

A questão é que mesmo com mais força política que a obtida por qualquer partido da esquerda mundial nos últimos trinta anos, o Syriza faz movimentos confusos, contraditórios e que não nos deixam exatamente alheios à sua similaridade com a história de assimilação ao estado e ao capitalismo que faz quase parte do DNA político da esquerda partidária.

E isso nos leva às contradições inerentes entre PODEMOS, Syriza, PSOL e suas “responsabilidades” diante dos cenários políticos dos quais fazem parte e a enigmática parte de um DNA organizado em partidos que centralizam, hierarquizam, diferenciam-se das ruas em nome da conquista do estado para supostamente através dele promover reformas que ajudem na revolução e que paulatinamente acaba fazendo parte deste estado, parte daquele aparato que deveria combater e agora ajuda a sustentar.

Sacaram a contradição?

O PODEMOS ao focar no Iglesias, e o Syriza ao focar no Tsipras, já amplificam a lógica hierárquica, criando a figura de uma liderança centralizadora que recebe a energia de milhares de partidários, o foco da esperança,etc, com o fim de ser ungido como capitão das massas em processos eleitorais.

A questão piora quando a partir dos processos eleitorais feitos para que a burguesia seja sempre eleita, construído com regras da burguesia, organizado para a vitória do capital, se busca organizar um processo de mudanças políticas estruturais, de transformação do estado. Pior mais ainda quando estas forças se afastam da construção de processos de mudança cotidiana por fora da institucionalidade.

E isso se repete no PSOL ao se elegerem figuras públicas que absorvem a força militante em sua defesa, como Marcelo Freixo e Luciana Genro, sem a força construída nas ruas pelo Syriza e PODEMOS. E por isso talvez vemos no Brasil o distanciamento destes elementos das movimentações das ruas, dos movimentos independentes como o MPL, de organizações como FIP, de coletivos anarquistas e um afastamento que grita alto na rua para tentar se desvincular de pessoas presas por se colocarem como lideranças alternativas aos partidos na construção de lutas cotidianas.

Em plena crise hídrica, em plena contestação da taxação do direito de ir e vir e temos distanciamento dos partidos das luta cotidianas, desvinculação dos partidos das lutas das periferias, omissão na defesa e solidariedade com lutadores presos e nenhum partido brasileiro fortalecendo lutas que juntam milhares e podem juntar milhões na defesa do básico, do direito de ter água e de não pagar passagem para ir e vir.

A lógica parece de disputa por espaço, como se a eleição dependesse do enfraquecimento de movimentos independentes que fujam ao controle dos partidos.

Enquanto se luta contra as tarifas, os partidos fazem campanha para Presidência da Câmara, elogiam o Syriza de forma acrítica, querem ser PODEMOS, faltam ao depoimento que poderia ajudar presos políticos que estão sendo presos de forma absolutamente autoritária e ainda querem ser representantes da mudança nas próximas eleições.

E é sintomático que, em todo este período, a Grécia e a Europa tenham sido o foco central dos partidos, invejando o PODEMOS e seus milhões nas ruas, invejando Tsipras sendo eleito, mas silenciando tanto pra o debate sobre tarifa zero, um debate concreto que abranja toda a sociedade e que mire em políticas públicas concretas, quanto para um movimento revolucionário em curso em Rojava, no Curdistão Sírio e que recentemente ganhou atenção só após a libertação de Kobane do assédio do Estado Islâmico.

Mesmo com fome de ocupar o estado, pouco se discute nos partidos sobre políticas concretas a respeito de mobilidade urbana, de uso de combustíveis fósseis, sobre a gestão de recursos hídricos, sobre a economia a partir do decrescimento e sobre a própria gestão do estado, discutindo democracia direta concreta e não um referendismo mal formulado e que não propõe nenhuma democracia direta concreta.

Diante de um quadro mundial que pouco oferece ventos de mudança fora da institucionalidade, a esquerda partidária despreza fortemente tudo o que envolve a experiência curda de confederalismo libertário, com construção de conselhos feministas, de jovens, administração comunal da economia,etc. E isso em um quadro geopolítico ímpar que é o oriente médio.

Estes elementos são sinais fortes que medem a vontade partidária de construir concretamente mudança para além do estado, de sair do estado, de mudar o estado e não de apenas subir no trono do estado para reformas leves que não alterem a dinâmica das relações humanas e a dinâmica hierárquica da própria constituição partidária.

A ausência de discussão veemente sobre mudanças na estrutura de poder e gerência do estado e fora dele são sintomas de uma negativa de tentar construir um mundo pós-estado, ou seja, a negativa de discutir a construção de poder exercido pela sociedade é um sintoma que a defesa do comunismo e de uma sociedade socialista e pós-socialista vai até a página dois, dado que se a manutenção da institucionalidade sem questionamento da hierarquização dela e da presença do estado é a norma, que sociedade livre é essa que se constrói mantendo o estado, e não a sociedade, no controle das necessidades da vida cotidiana?

Essa negativa de debater sobre democracia direta concreta é parte do problema que coloca a esquerda partidária como produtivista e que pensa o estado na gerência da economia, dá pouca abertura pra uma discussão sobre crescimento econômico, alimentação, descentralização energética,etc e que por isso é avessa ao debate ecológico. Essa esquerda, por isso, jamais entende o que rola no Curdistão Livre.

Rojava pra essa esquerda é um reino encantado.

Em um cenário de avanço da extrema-direita mundial e no Brasil a esquerda partidária assume apenas parte da responsabilidade na construção do contraponto e nega-se a qualquer diálogo que fuja da relação pela institucionalidade.

E diante da omissão diante dos 23 presos podemos até ir além e achar que a esquerda partidária não só se nega a pensar pra fora do estado como se nega sequer a pensar pra fora de qualquer coisa que cause risco leve em suas eleições.

Por isso o mais avançado partido da esquerda mundial, o Syriza, não teve escrúpulos em mandar às favas os escrúpulos de consciência e rifar direitos LGBT, em por em risco a vida de imigrantes, em nome do que considera maior e prioritário: o combate à Troika.

Por isso o partido que se proclama PODEMOS do Brasil se nega a qualquer solidariedade com quem é perseguido político do estado, evitando assim correr risco na eleição de sua maior figura pública para prefeito do Rio: Marcelo Freixo.

Da mesma forma que o PODEMOS na Espanha se nega a ser solidário com os anarquistas presos pela operação Pandora, o PSOL no Rio tem coisas mais importantes do que manifestar solidariedade com autonomistas presos de forma absolutamente canalha.

E a nave da cooptação, da assimilação pelo estado, vai, segue adiante enquanto anarquistas são presos no Chile, no Brasil, na Espanha e enquanto a esquerda partidária se anima com a conquista do governo por um co-irmão, fazendo aquecer corações carentes de postos administrativos no estado pularem de felicidade mundo afora.

E a água acaba, e o clima pira, mas tá tudo bem, o Syriza chegou ao poder.

Curdistão: YPJ forma nova divisão em Shingal

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POSTADO EM Rojava Report, 8 de Janeiro de 2015
Tradução livre do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Uma nova divisão das Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ) está sendo formada como uma parte dos esforços para construir as Unidades de Defesa de Shingal (YBŞ) de acordo com um novo artigo por Rojin Deniz e Sara Xwinda para JINHA News que apareceu em Özgür Gündem. A decisão de constituir uma divisão separada, uma YPJ-Shingal, foi tomada por aproximadamente 50 mulheres Yazidi que já estão lutando com o YBŞ. Um comunicado divulgado pela liderança do recém-formado YPJ-Shingal, seguido da decisão, diz: Nós estamos chamando a todo o povo Yazidi para apoiar a reforçar essa luta, e em particular às jovens mulheres Yazidi para serem sensíveis à nossa luta”.

Para As Sagradas Montanhas de Shingal
O comunicado das YPJ-Shingal continua: “Mulheres de dentro das fileiras das YBŞ têm se organizado através de uma nova identidade, as YPJ-Shingal (Yekîneyên Parastina Jin ê Şengalê). As YPJ-Shingal declararam que seu objetivo fundamental é permitir que as pessoas que vivam em Shingal, as mulheres, as montanhas de Shingal que são sagradas para o povo Yazidi, e a fé Yazidi e a cultura, que vivam livremente em consonância com o democrático, ecológico, feminista e emancipatório paradigma do líder Apo. A organização YPJ-Shingal tem como princípio a organização, de acordo com uma consciência de auto-defesa, de mulheres que vivam em Shingal. Elas lutam para a libertação de Shingal e para manter viva a memória de mulheres curdas Yazidi que foram mortas na luta pela liberdade, e para abraçar a mulheres que perderam suas vidas ao realizarem essa tarefa.

Às fileiras das YPJ-Shingal
Após o anúncio de sua formação, o comando do YPJ-Shingal pediu apoio, dizendo: Nós estamos convidando todas as pessoas Yazidi a apoiar o fortalecimento desta luta, e em particular as jovens mulheres Yazidis a serem sensíveis à nossa luta a se juntarem às fileiras do YPJ-Shingal, a fim de lembrar @s noss@s amig@s Viyan, Evrim, Armanc, Jiyanda, Roni, Dilgeş, Canpolat, Zinar, Ezdin, Kasım e Serdar, que morreram na luta para libertar Shingal, da mesma forma como @s camaradas Ş. Berivan (Binevş Agal), and Ş. Xane.”

“Prometemos às mulheres do mundo que venceremos”

POSTADO EM: Comitè de Solidariedad con Rojava y el Pueblo Kurdo, 13 de Janeiro de 2015.
Tradução livre do Coletivo Anarquia ou Barbárie.
Gülistan Kobanê, comandante das YPJ.

 

Uma das comandantes das YPJ (Unidades de Proteção da Mulher) em Kobane, Gülistan Kobanê, avaliou os ataques do EI (Estado Islâmico) contra o cantão, que começaram em 15 de setembro de 2014, dizendo o seguinte: “O lema das YPJ a este respeito é que enquanto defendermos Kobane, Kobane não cairá. Nesses quatro meses, cumprimos com o prometido contra todo o prognóstico inicial”.

Ela acrescentou que Kobane ainda não caiu e que as YPJ, em um esforço conjunto com as YPG (Unidades de Proteção do Povo), têm evitado que o EI avance em qualquer frente. “As YPJ demonstraram que nem o EI nem nenhuma força poderá com o povo curdo enquanto as YPJ continuarem presentes”.

A comandante recordou que as YPJ também se formaram para combater a mentalidade opressora predominante dos homens em relação às mulheres; seu inimigo por excelência, o EI e seu fascismo islâmico, tem sofrido severos golpes. “A resistência apresentada pelas YPJ contra os crimes do EI deram lugar ao surgimento da esperança entre as mulheres do mundo todo”.

As YPJ dão honra e identidade às mulheres, elas estão lutando heroicamente na linha de frente contra o EI, e os homens combatentes antifascistas professam um grande respeito a elas”.

Nunca pensamos que Kobane fosse cair. Combatentes como Dicle, Delila, Hevi, Nuda e Arîn Mîrkan se negaram a permitir que o inimigo avançasse e sacrificaram suas vidas heroicamente. Essas camaradas têm se convertido em um símbolo de liberdade para as mulheres curdas e do mundo todo”.

Além do mais, a comandante assegura que “a ilusão criada pelo EI tem sido esmagada”, posto que as YPJ tem sido temidas pelos terroristas do EI, fazendo alusão ao desmoronamento do principal fator de recrutamento do EI (o acesso ao paraíso e a concessão de 40 mulheres virgens após a morte na Guerra Santa), o qual está vedado àquele homem que morra em combate contra uma mulher, de acordo com os rumores entre os fascistas.

Gülistan conclui dizendo que “[…] nossa resistência e o combate continuarão. Prometemos às mulheres do mundo que, em memória às camaradas caídas, venceremos”.

Declaração dos direitos da mulher e a cidadania, 1791 – Olympe de Gouges

olympe

Fonte: Patagônia Libertária

Tradução: José roberto Luna – Coletivo Anarquia ou Barbárie

A luta de Olympe de Gouges, autora da ‘Declaração de direitos da Mulher e a Cidadã’ em 1791, é importante para entender a origem do feminismo moderno. Gouges nasceu em Montauban, uma localidade do sudoeste da França, no dia 7 de maio de 1748 e morreu na guilhotina no dia 3 de novembro de 1793. Em 1791, escreve sua ‘Declaração de Direitos da Mulher e a Cidadã’ e consegue que a igualdade se discuta n’Assembleia, embora suas propostas não sejam reconhecidas. É um escrito praticamente contemporâneo da ‘Reivindicação dos direitos da mulher’, da inglesa Mary Wollstonecraft. Durante toda a sua vida, teve que aguentar todo tipo de ataques misóginos, inclusive dentro dos girondinos (seu próprio partido) e, após a subida ao poder em 1793 da ala radical dos revolucionários, os jacobinos fecharam os clubes femininos e Olympe foi perseguida, encarcerada e executada.

Para ler a Declaração de Direitos da Mulher e Cidadã:

Declaração dos direitos da Mulher e Cidadania, 1791

Olympe Rouges

I – A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais só podem estar fundamentadas na utilidade comum.

II – O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis da Mulher e do Homem; estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência à opressão.

III – O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação que não é mais que a reunião da Mulher e o Homem: nenhum corpo, nenhum indivíduo, pode exercer autoridade que não emane deles.

IV – A liberdade e a justiça consistem em devolver tudo o que pertence aos outros; assim, o exercício dos direitos naturais da mulher só tem por limites a tirania perpétua que o homem lhe opõe; estes limites devem ser corrigidos pelas leis da natureza e da razão.

V – As leis da natureza e da razão proíbem todas as ações prejudiciais para a Sociedade: tudo o que não esteja proibido por estas leis, prudentes e divinas, não pode ser impedido e ninguém pode ser obrigado a fazer o que elas não ordenam.

VI – A lei deve ser a expressão da vontade geral; todas as Cidadãs e Cidadãos devem participar em sua formação pessoalmente ou por meio de seus representantes. Deve ser a mesma para todos; todas as cidadãs e todos os cidadãos, por serem iguais a seus olhos, devem ser igualmente admissíveis a todas os cargos honoríficos, postos e

empregos públicos, conforme suas capacidades e sem mais distinção que a de suas virtudes e seus talentos.

VII – Nenhuma mulher se encontra isenta de ser acusada, detida e encarcerada nos casos determinados pela Lei. As mulheres obedecem como os homens a esta Lei rigorosa.

VIII – A Lei só deve estabelecer penas estritas e evidentemente necessárias e ninguém pode ser castigado mais que em virtude de uma Lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada às mulheres.

IX – Sobre toda mulher que haja sido declarada culpada cairá todo o rigor da Lei.

X – Ninguém deve ser incomodado por suas opiniões inclusive fundamentais; se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, deve ter também igualmente o de subir à Tribuna contanto que suas manifestações não alterem a ordem pública estabelecida pela Lei.

XII – A garantia dos direitos da mulher e da cidadã implica uma utilidade maior; esta garantia deve ser instituída para a vantagem de todos e não para utilidade particular daquelas às quais é confiada.

XIII – Para o mantimento da força pública e para os gastos da administração, as contribuições da mulher e do homem são as mesmas; ela participa em todas as prestações pessoais, em todas as tarefas penosas, portanto, deve participar na distribuição dos postos, empregos, cargos honoríficos, e outras atividades.

XIV – As Cidadãs e Cidadãos têm o direito de comprovar, por si mesmos ou por meio de seus representantes, a necessidade da contribuição pública. As Cidadãs apenas podem aprová-la se se admite uma repartição igual, não só na fortuna mas também na administração pública, e se determinam a cota, a base tributária, a arrecadação e a duração do imposto.

XV – A massa das mulheres, agrupada com a dos homens para a contribuição, tem o direito de pedir contas de sua administração a todo agente público.

XVI – Toda sociedade na que a garantia dos direitos não estiver assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição; a constituição é nula se a maioria dos indivíduos que compõem a Nação não cooperou em sua redação.