Murray Bookchin: “Este Planeta Merece um Destino Melhor…”

Postado em Portal Anarquista, Ex-Colectivo Libertário de Évora, em 8 de fevereiro de 2015

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As ideias libertárias de Murray Bookchin ganharam recentemente uma nova actualidade aos serem adoptadas na organização dos territórios curdos no norte da Síria e reivindicadas pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão. São elas que animam e vivificam as milícias que ainda não há muitos dias libertaram Kobane e centenas de aldeias do avanço do chamado Estado Islâmico. Daí que exista também um renovado interesse por conhecer quer o libertário norte-americano M. Bookchin (1921-2006), quer as suas ideias assentes no municipalismo libertário. Em boa hora, António Cândido Franco traduziu para o ‘Portal Anarquista’ e para ‘A Batalha’, a parte final de um dos seus mais importantes livros, “The Ecology of Freedom”.

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A ECOLOGIA DA LIBERDADE – “EPÍLOGO”

Murray Bookchin publicou em 1984 The Ecology of Freedom, um dos seus livros mais densos e revolutivos, que, de forma enciclopédica tanto recorre ao domínio da biologia, da ecologia e da astrofísica como ao da história, da antropologia, do pensamento político e da filosofia. O livro constitui assim a súmula do pensamento de Bookchin e a peça mais significativa do ponto de vista daquilo que se chama ecologia social. A sua visão actualiza e desenvolve, como nenhuma outra, o pensamento libertário do século XIX, sobretudo o de Kropotkine, com o qual tem fundas afinidades, desde logo ao defender que nos organismos vivos a organização e a cooperação são muito mais essenciais do que a hierarquia e a dominação. O livro de 1984 pode com facilidade, pela originalidade das perspectivas e a vastidão dos saberes implicados, ombrear com as melhores obras teóricas do final do século XX e do início do século XXI. Ainda por traduzir em Portugal, apresentamos n’ A Batalha e no Portal Anarquista o epílogo do livro, que funciona em poucas páginas como um condensado das suas principais ideias e propósitos. [A.C.F.]

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bookchin008-2Neste livro tentei abalar em termos teóricos o mundo, como a seu modo tentaram no seu tempo os Digger, os Leveller, os Ranter. Intentei sacudi-lo com força e tentei analisar os traços mais significativos da sua evolução. Os meus esforços terão sido bem sucedidos se consegui demonstrar que a maldição da dominação impregnou quase todo o empreendimento humano depois do declínio da primeira sociedade orgânica. Quase nenhuma realização, no campo institucional, técnico, científico, ideológico, artístico, a própria racionalidade, se salvou desta praga. Distintamente da tendência, muito em moda hoje, de procurar a origem desta na luta doselvagem contra a natureza, encontrei-a eu no esforço sinistro da elite emergente em reduzir à escravatura os seres humanos. Sublinhei o papel potencialmente libertador da arte e da imaginação ao dar expressão ao que é autenticamente humano, utópico e livre na natureza humana.

Ao contrário de Marx e Freud, que identificaram “civilização” e “progresso” com auto-controle repressivo, defendi que a antropologia e a história dão uma imagem da humanidade em tudo adversa à de Hobbes. A mentalidade do sacrifício chegou com o conflito social e com a repressão que acompanham o aparecimento da hierarquia, não com a razão e a técnica. Os baixos-relevos egípcios e mesopotâmicos revelam um mundo no qual os seres humanos eram constrangidos a negarem não apenas os seus desejos e os seus impulsos mais humanos como ainda o mais elementar sentido da personalidade. Eva, a serpente e o fruto da árvore do conhecimento não foram a causa da dominação mas as suas vítimas. A sociedade, entendida como obra de laços maternos e logo de interdependência humana, está aí para nos recordar que o paraíso terrestre foi em muitos aspectos uma realidade concreta e que o verdadeiro “pecado original” corresponde à ideia gnóstica de “auto-transgressão”.

Não creio que se possa regressar ao Éden original, onde teve lugar esta violação. A história dá-nos uma esperança de solução para os problemas da hierarquia e da dominação. O conhecimento, a gnosis, quer dizer, conhecer e transcender o nosso primeiro acto de auto-transgressão, é o primeiro passo na terapia duma patologia pessoal de natureza repressiva. O pensamento sem a acção, a teoria sem a prática, significariam, porém, abdicar de qualquer responsabilidade social.

Viu-se no nosso tempo a dominação cobrir um tal âmbito colectivo que doravante parece estar fora do controle humano. Os milhares de bilhões de dólares gastos, depois da segunda guerra mundial, pelos vários Estados em meios de destruição e de controle – aquele armamento aterrador que figura em qualquer “orçamento de defesa” – são a expressão recente duma secular ansiedade de dominação que tomou por ora proporções demenciais. No confronto com esta monumental mobilização de matérias-primas, dinheiro, inteligência e trabalho humano, com fins exclusivamente destrutivos, os resultados obtidos em qualquer outro campo de acção empalidecem e quase se tornam irrelevantes. A arte, a ciência, a medicina, a literatura, a música ou a filantropia aparecem como meras migalhas caídas duma mesa sobre a qual, em sucessivos e sangrentos banquetes, se concentra a atenção dum sistema cuja fome de dominação não parece conhecer limite. É impossível não desconfiar dos actos de “generosidade” dum tal sistema, já que por detrás dos seus desígnios aparentemente meritórios – a tecnologia, a cibernética, os programas espaciais, o desenvolvimento agrícola, as inovações energéticas – se escondem motivações destrutivas e de sujeição da humanidade, através da violência, do medo e da ameaça.

1_2-216x300Este livro tentou dar um panorama da dominação a partir das suas origens numa oculta pré-história da hierarquia, que precedeu de muito a estratificação das classes económicas. A hierarquia esconde-se não só na pré-história da humanidade como ainda no mais profundo da nossa psique. Por esse motivo toda a riqueza da palavra liberdade parece ter sido traída no seio dos processos de socialização e no mais íntimo das nossas experiências. Esta traição vem ao de cima na forma como tratamos as crianças e as mulheres, nas relações interpessoais, na conduta física, nos pensamentos íntimos, na vida quotidiana e até no modo inconsciente com que organizamos a percepção da realidade. É uma traição que não se cumpre só nas instituições políticas e económicas mas no quarto, na cozinha, na escola, nos lugares de divertimento e nos centros de educação moral como as igrejas ou os círculos de terapia psíquica. A hierarquia e a dominação chegam até a presidir a movimentos de emancipação, como é o caso do marxismo nas suas formas mais vulgarizadas e convencionais, nas quais a organização autónoma das “massas” é vista com desconfiança e frequentemente denunciada como “desvio anárquico”.

A hierarquia desforra-se da nossa pretensão de termos superado a “animalidade”, atingindo a “liberdade” e a “individualidade”. Nos instrumentos que usamos para salvar vidas humanas, para criarmos belos objectos, que tornam mais aprazível o mundo que nos rodeia, há sempre qualquer coisa de desafinado que faz com que mesmo as nossas acções mais criativas acabem por ser percepcionadas como “triunfos”, tornando a “obra-prima” correlata à dominação. A grandeza da tradição dadaísta, a partir do gnosticismo ofita até à sua moderna expressão surrealista, é ter possibilitado, com a exaltação do direito à insubordinação, à imaginação, ao jogo, à fantasia, à inovação, à iconoclastia, ao prazer e à criatividade do não consciente, a ascensão e a consciência de tudo aquilo que a hierarquia nos ocultou. Fê-lo muito mais implacavelmente e lealmente do que os mais sofisticados jogos teóricos no campo hermenêutico, estruturalista e semiótico, tão em voga nas universidades da sociedade ocidental contemporânea.

Um mundo assim contaminado pela hierarquia, organizando-se do comando à obediência, exprime o seu espírito autoritário no modo como fomos habituados a ver-nos: como objectos a manobrar, coisas a usar. A nossa concepção de realidade, partindo desta imagem de nós próprios, alargou-se à imagem que temos da natureza “exterior”, assim se revelando que fomos encarando de forma cada vez mais mineral e inorgânica quer a nossa natureza quer a “exterior”. Simplificámos de forma tão perigosa a natureza, a sociedade e a personalidade, que comprometemos seriamente a integridade das formas complexas de vida, a riqueza das formas sociais e o ideal duma personalidade poliédrica.

Num tempo em que o mecanicismo materialista tem como concorrente um espiritualismo não menos mecânico, sublinhei a necessidade de prestar atenção à diversidade, visando alimentar uma noção de totalidade como princípio unificante duma ecologia da liberdade. Um tal acento é muito diverso daquilo que se acentua como “unitariedade”. Ao opor-me às tentativas correntes de dissolver a diversidade em denominadores comuns, materiais ou espirituais, exaltei a riqueza da variedade no desenvolvimento natural, social e pessoal. Propus uma interpretação, algo hegeliana, em que a história dum fenómeno – trate-se de subjectividade, de ciência ou de técnica – define esse fenómeno. Em cada um destes âmbitos, encontramos sempre vários graus e aspectos de compreensão, de intuição e de engenho, que devem ser sempre requeridos, caso se queira tomar a realidade nas suas várias graduações e aspectos. Ao invés, o pensamento ocidental procurou compreender a experiência e agir na realidade por meio dum único modo de subjectividade, de ciência e de técnica. Tendemos a fundar as nossas noções de realidade sobre bases reciprocamente exclusivas: económica num caso, técnica noutro, cultural noutro ainda. Destarte, linhas evolutivas fundamentais foram classificadas, da perspectiva dum limitado nível de desenvolvimento da evolução natural ou humana, como “basilares” ou “contingentes”, “estruturais” ou “supra-estruturais”.

municipalismo-libertarioTentei evidenciar que cada uma destas “linhas” ou de cada uma destas “super-estruturas” tinha a sua autenticidade e um direito histórico à sua identidade, sem dúvida interdependente com outras linhas evolutivas mas rica duma integridade só dela. O problema singular que mais me preocupou foi a interacção entre a evolução da dominação e a evolução da liberdade. Por liberdade não entendo só a diferença dos diferentes, mas também o alargamento das nossas noções de subjectividade, técnica, ciência e ética, com o reconhecimento da história delas e da capacidade de penetração que delas deriva a respeito dos vários estádios de desenvolvimento. Tentei mostrar não só como estes aspectos da liberdade formam um mosaico cada vez mais rico e completo, que apenas uma sensibilidade ecológica pode abalroar, mas também como esses aspectos interagem entre si, sem perderem, na multiforme variedade de tudo, a sua unidade. Não há uma “base” económica que reja a cultura, como não há uma “base” cultural que reja a economia. Na realidade, os próprios termos “base” e “supra-história” são estranhos à perspectiva que permeia este livro. Redutores e simplistas, estas palavras tendem a reflectir visões ingénuas duma realidade cuja riqueza desafia qualquer interpretação esquemática e estática.

Se a história pré-capitalista mostra alguma coisa é o facto dramático dos homens e das mulheres terem feito sacrifícios invulgares, por vezes até o da própria vida, pela crença na virtude, na justiça e na liberdade – crença que não se explicam apenas por interesses materiais e de estatuto social. A extraordinária história dos judeus, uma história de perseguições quase ininterruptas durante cerca de dois mil anos, a dos irlandeses no último século, e a dos movimentos populares revolucionários, da Reforma até à Comuna de Paris, estão aí a testemunhar a força dos ideais religiosos, nacionais ou sociais, capazes de empurrarem centenas de milhões de pessoas para actos de incrível heroísmo. Dizer que na “base” esses homens e essas mulheres foram empurrados por “factores económicos” de que não tinham consciência, quer dizer, manobrados pela dialéctica “económica” da história, significa presumir que estes factores eram de facto dominantes, quando na verdade ainda está sequer por provar que, em alguns casos, eles tenham sequer existido. Ainda quando esses factores pareçam evidentes, a sua importância nos actos humanos é tudo menos óbvia. Quando John Ball ou Gerrard Winstanley descrevem a avidez da classe dominante do seu tempo, sente-se que a sua crítica é menos guiada por interesses materiais do que por ideais de justiça e de liberdade.

A aversão à injustiça fervia no coração dos oprimidos não tanto por causa duma condição social particularmente pesada mas por via dum flagrante contraste entre as regras morais relativas à justiça e a sua transgressão no dia-a-dia. A história do cristianismo está impregnada desta contradição, que explica o papel catalisador que ele tantas vezes representou na história humana, gerando movimentos milenaristas revolucionários. Só quando o capitalismo contaminou a história com a ideia de “escassez”, fazendo dum mesquinho espírito de competição o motor de qualquer avanço social, é que grande parte destes ideais de virtude, de justiça e de liberdade degeneraram em grosseiros interesses materiais. Até os primeiros movimentos a favor duma redistribuição aparecem menos como grandes movimentos de saque e mais como esforços de reabilitação dum modo de vida revoluto, uma ordem social tradicional em que os hábitos de partilha e de não acumulação eram as normas prevalecentes. Muitas vezes estes movimentos destruíram não só os registos legais que legitimavam a autoridade e a propriedade do escol como ainda os palácios, as herdades, as mobílias e até os celeiros que pareciam encarnar o poder.

A revolução francesa, como notou Hannah Arendt (On Revolution, Viking Press, New York, 1965, pp. 36-52), assinala uma inversão das finalidades na mudança social: da aspiração ética passa-se a uma consciência da “questão social” expressa em termos de necessidades materiais. Na realidade esta alteração de perspectiva só parece ter chegado mais tarde, porventura já no nosso século. Marx exultou com este novo “realismo” ou “materialismo economicista”, mas o resultado é que, espartilhados entre a “fetichização das necessidades” e o desejo de significado ético e comunitário, acabámos por nos tornar produtos esquizofrénicos dum mundo condenado à imobilidade da sensação de impotência pessoal e social. Inventámos uma mística das “leis históricas” e do “socialismo científico” que serve mais, como construção, para compensar os nossos frustrados impulsos comunitários e a nossa malograda necessidade de sentido ético do que para explicar o motivo pelo qual comunidade e ética estão tão assentes no real e tão longe como fins.

Se não há um único aspecto da realidade, seja económico ou outro, que por generalização possa explicar a evolução social, se não existem leis sociais que orientem a nossa aproximação mental aos fenómenos, em que base e com que coordenadas podemos então interpretar os comportamentos sociais? Em meu entender o quadro de maior significado em que decorre a aventura humana está na distinção entre autoritário e libertário. Não quero com isto dizer que estes termos exprimam um sentido teleológico da história, nem tão pouco que estão isentos de ambiguidade. Não somos por certo nós que afirmaremos ou negaremos que exista na história humana um ponto de chegada, que possa corresponder ao “absoluto” hegeliano, ao “comunismo” marxista… ou então à extinção definitiva. É pura figura de estilo dizer que a “verdadeira história” da humanidade só começará no momento em que a “questão social” ficar resolvida. Por outro lado a crença iluminista no progresso tecnológico é o sistema menos fiável de que dispomos. Hoje, no mais tecnicizado dos mundos, em que a própria ética foi acoplada ao qualificativo “instrumental”, estamos dispostos a reconhecer que até os nossos projectos mais cativantes, não obstante os atributos que ostentam, “conviviais”, “apropriados” ou outros, possam ser empregues para criar estratégias “alternativas” à violência.

Nunca é de mais sublinhar que as palavras “libertário” e “autoritário” não se referem só a formas institucionais, técnicas e científicas antagónicas, mas sobretudo a sensibilidades e valores, em suma a epistemologias opostas. A definição que dou do termo “libertário” aparece modelada pela definição que dou de ecossistema: unidade na diversidade, espontaneidade e relações de complementaridade, em que está ausente qualquer forma de hierarquia e dominação. Com o termo “autoritário” refiro-me à hierarquia e à subordinação nas suas várias formas sociais: gerontocracia, patriarcado, relações de classe, elites de vários tipos e por fim o Estado, incluídas as suas várias formas socialmente mais parasitárias: o capitalismo de Estado. Mas se não incluirmos aí também as formas contrárias de sensibilidade, ciência, técnica e ética e as contrárias formas de razão aí implícitas, as palavras “libertário” e “autoritário” reduzem-se a termos meramente institucionais. Devem-se pois explicitar ao máximo aquelas implicações, e de igual modo as do arco de qualquer outra experiência, caso se queira que o seu recíproco antagonismo tenha um sentido dinâmico e transformador.

Reconheça-se à razão, na tensão que a disputa entre o autoritário e o libertário, o direito a uma racionalidade libertária. Do ponto de vista filosófico insistimos talvez até de mais que uma racionalidade libertária deve fundar-se em cânones de verdade e de coerência, mas também de intuição e de contradição, que invalidam por inteiro as pretensões de verdade do pensamento formal e analítico. Dado que intuição e contradição podem servir fins autoritários, como se vê na filosofia fascista e no materialismo dialéctico estalinista, e que ao invés a razão analítica teve momentos que serviu a liberdade de pensamento, não temos, além dos nossos critérios éticos, nenhum guia seguro e exclusivo, que garanta frutos indiscutíveis de emancipação ao nosso pensar. As figuras de Buda e de Cristo tanto foram usadas com propósitos de autoritarismo ou de liberdade. O misticismo e o espiritualismo radicais tanto se mostraram anti-naturais e anti-humanos como ecológicos e milenaristas. Aquilo que é decisivo no ajuizar dos critérios da razão, ou para ser mais preciso no modelar duma nova aproximação à subjectividade, é a forma como é ou não é impulsionado um modelo ético biologicamente variado, baseado na fecundidade da vida e na qualidade da complementaridade, resultado dum mosaico de experiências sempre mais ricas e acima duma concepção piramidal e hierarquizada da experiência. Nem sequer é preciso renunciar aoOrganum de Aristóteles, que durante tantos séculos serviu de base aos princípios lógicos do pensamento ocidental, ou à teoria dos sistemas, com o seu conceito de causalidade circular. Devemos apenas modelar a razão, linear ou circular que seja, sobre uma ética pessoal e socialmente emancipadora. A razão, cuja demolição por Horkheimer e Adorno, suscitou tanto pessimismo entre os colegas deles, pode ser devolvida à ética libertária, uma ética aberta à riqueza da sensibilidade humana, enquanto encarnação da faculdade mesma de sentir a todos os níveis da evolução da orgânica social.

Há uma base sobre a qual é possível edificar esta ética libertária, uma área que dá uma direcção e um significado que não dependem nem dos caprichos da opinião e do gosto nem da fria eficácia instrumental. À parte os lugares-comuns sobre o povo, a raça ou as “inevitáveis leis dialécticas”, parece existir na natureza uma espécie de direcção latente, uma evolução da auto-organização, que dá lugar à subjectividade e cujo termo final parece ser a auto-reflexão característica dos seres humanos. Semelhante visão pode constituir um preconceito antropormófico, prestando-se a um relativismo arbitrário, muito parecido à razão subjectiva, ou instrumentalismo, criticada por Horkheimer. Todavia, até a pretensão filosófica dum princípio sem pressupostos é um pressuposto da mente. Ainda não se concluiu que a antiga crença de que há valores intrínsecos na evolução natural é mais discutível do que a imagem russeliana da vida e da consciência humana como puros produtos do acaso.

Será fantasia avançar a hipótese que o nosso ser seja só por si uma epistemologia e uma ontologia, quer dizer, uma filosofia do organismo capaz de responder às acusações de antropomorfismo? A forma não é menos essencial à natureza do movimento e à finalidade da função. Qualquer coisa que se escolha por natural implica como função seja a forma seja o movimento. Invocar o acaso puro como deus ex machina dum desenvolvimento estupendamente organizado, que se presta a uma demonstração sintética matemática, é usar o acidental como túmulo da explicação. Argumentando com perspicácia a favor duma aproximação teleológica, Hans Jonas perguntou-se se uma análise estritamente psico-química da estrutura do olho e do seu estímulo tinha sentido e se não era correlata ao acto de ver. Diz Hans Jonas (The phenomenon of life, Delta Books, Nova Iorque, 1966: p. 90; sublinhados meus): Sempre se encontrará a intencionalidade do organismo enquanto tal e a sua ânsia de vida: presente já em cada tendência vegetativa estes atributos ganham a primeira forma de consciência nos reflexos indistintos, na reactiva excitabilidade, dos organismos inferiores, consciência que se avoluma nos impulsos, nos esforços e na ânsia da vida animal, atingindo a máxima clareza na sensibilidade, na vontade e no pensar humanos. Reflexos, impulsos, consciência… todos são aspectos essenciais do lado teleológico da “matéria” (…). Em cada caso, a estrutura e o comportamento teleológicos dos organismos não configuram simplesmente um modo alternativo de os descrever: são, e prova-o a consciência orgânica de cada um deles, a manifestação exterior da natureza íntima da substância. O que carreia que não exista organismo sem teleologia, que não exista teleologia sem essa natureza íntima e que só a vida possa conhecer a vida.

Poder-se-á acrescentar que só se conhece a vida como resultado da vida. Esta não pode nunca, pela sua natureza mesma, ser dissociada da sua capacidade potencial de conhecer. Poder-se-iam juntar muitas outras sequências às considerações de Jonas sobre teleologia. Pode-se conceber por exemplo a teleologia como actualização duma potencialidade, mais precisamente como o resultado final da tendência imanente para a auto-realização, uma tensão que deixa espaço à casualidade e à incerteza. Neste sentido, a teleologia expressa a auto-organização dum fenómeno para ser aquilo que é, sem certeza à partida que assim será. O nosso conceito de teleologia não necessita de nascer em linha recta de nenhuma “férrea necessidade”, de nenhum auto-desenvolvimento linear e preciso, que “inevitavelmente” assegure a realização final dum fenómeno a partir do seu ponto de partida. Não obstante um fenómeno não poder auto-constituir-se por acaso, a casualidade pode impedir a auto-realização. O seu “telos” apresenta-se assim como consequência duma tensão vitoriosa e não como uma necessidade inevitável.

rojavaO mais cativante, porém, que está hoje acontecendo é o facto de ser a própria natureza a escrever a filosofia e a ética natural, não os lógicos, os positivistas, os sociobiologistas, os místicos ou os herdeiros do cientismo de Galileu. É cada vez mais óbvio que não estamos sozinhos no universo, nem mesmo no vazio do espaço. Graças a uma revolução muito recente na astrofísica, talvez só equiparável às descobertas de Copérnico e Kepler, o entendimento do cosmos exige um volta-face especulativo da mente e uma aproximação mais qualitativa aos fenómenos naturais. Torna-se dia a dia mais plausível que o universo inteiro seja o berço da vida e não apenas o nosso planeta ou planetas de condições idênticas. O “big-bang”, a grande explosão, cujos ecos distantes, atravessando mais de quinze mil milhões de anos, ainda hoje são perceptíveis pelos instrumentos dos astrofísicos, pode ser a prova, mais que incidente casual, de uma forma de “respiração” cósmica, cujas expansões e contracções se estendem por um tempo infinito. Se assim é, e situamo-nos no plano das meras conjecturas, estamos diante de processos cósmicos, mais do que ante um episódio singular, na formação do universo. Se estes processos exprimem uma forma sem fim de história universal, nós, que estamos irrevogavelmente fechados na era cósmica que nos é própria, não estaremos nunca em condições sérias de interpretar a realidade e o significado deles. Não é porém despropositado perguntar se é dum vasto e contínuo desenvolvimento do universo que se trata ou se dum género de respiração rítmica universal.

Tudo isto se passa no campo das conjecturas, dizíamos, conquanto a formação de todos os elementos do hidrogénio e do hélio, a sua combinação em pequenas moléculas e depois a sua auto-formação em grandes, e por fim a organização destas nos componentes da vida e da mente, seguem uma sequência que desafia a imagem russeliana duma humanidade como faúlha acidental num vácuo privado de sentido. Certos passos desta sequência põem fortemente em dúvida tais concepções em que a palavra “acaso” se torna um cauteloso substituto duma substancial inevitabilidade. Um universo disseminado por um pó composto de hidrogénio, carbono, azoto e oxigénio pareceria inevitavelmente destinado à formação de moléculas orgânicas. Os radio-astrónomos encontraram no espaço inter-estelar cianogénio, óxido de carbono, ácido cianídrico, formaldeído, ácido fórmico, álcool metílico, acetal e formato de metilo. A imagem clássica do espaço como vácuo está, em suma, ultrapassada e dá lugar à imagem dum espaço como lugar de incessante actividade química e genética, a favor duma surpreendente sequência de compostos orgânicos cada vez mais complexos.

Daqui até à auto-organização de moléculas que constituam formas rudimentares de vida o passo é curto. A análise dos meteoritos com pequenas inclusões carbonáceas evidenciou a existência de hidrocarbonetos aromáticos de cadeia longa, como ácidos gordos, aminoácidos e porfirinas, isto é, compostos de que é feita a clorofila. Num conjunto de experiências de laboratório, iniciadas pela conhecida “spark.gap” de Miller Urey, produziram-se aminoácidos simples fazendo passar descargas eléctricas através dum recipiente que continha gás presumivelmente idêntico, enquanto combinação, à atmosfera terrestre primitiva. Modificando o gás a partir de teorias sobre a atmosfera originária, outros investigadores conseguiram obter aminoácidos complexos, precursores do ADN.

Sempre de modo hipotético, mas com um impressionante número de provas, é agora possível imaginar como os microrganismos anaeróbios puderam desenvolver membranas simples e como, num crescendo de complexidade, emergiram formas distintas de vida capazes de processos metabólicos altamente desenvolvidos. Outras hipóteses, nas conjecturas sobre a formação das estruturas genéticas, revelam num modo ainda mais impressionante a gradativa continuidade entre inorgânico e orgânico. Tais conjecturas conduzem-nos à característica central da vida mesma: a capacidade que tem um complexo mosaico de macro moléculas orgânicas de se reproduzir e, o que é mais, de o fazer com mutações suficientemente significativas para permitir a evolução. Já em 1944, Erwin Schrodinger tinha fornecido uma definição da reprodução e da evolução orgânica. No livro What is life? Mind and matter (Cambridge University Press, Nova Iorque, 1944: 5) este ilustre físico observava que “a parte essencial da célula viva – o cromossoma – podia ser definido como um cristal aperiódico”. Este na verdade não se limita a crescer por adição, como um periódico, mas modifica-se de modo significativo, dando lugar a formas evolutivas novas, mutações que iniciam e desenvolvem dados hereditários.

Rojava011Graham Cairns-Smith avançou uma outra hipótese, uma das muitas que hoje são avançadas, que pode ajudar a esclarecer a natureza dos primitivos processos reprodutivos. O  ADN é demasiado instável quimicamente, sublinha Cairns-Smith, para poder ter sobrevivido às radiações e às altas temperaturas a que estava exposta na origem a superfície terrestre. Com uma analogia, Cairns-Smith equipara o ADN a um “nastro magnético: é muito eficiente se provido dum ambiente protector indicado, de matérias-primas adequadas e dum complexo sistema de registo”. Estes atavios, sustém ele, podem-se até encontrar no mundo inorgânico (Genes Made of Clay, “The new scientist”, 24 de Outubro de 1974, p. 276): Em conjunto com numerosas outras considerações, isto leva a pensar num processo de cristalização como mecanismo de reprodução, um qualquer defeito nos cristais torna-se o modelo de formação dos novos modelos. Certas argilas de mica parecem-me oferecer cruciais e  promissoras possibilidades.

A hipótese de Cairns-Smith sugere no mínimo que a vida, por vias próprias e seguindo a sua própria evolução genética, não se retraiu com os fenómenos do mundo inorgânico. Não quero com isto dizer que a biologia possa ser reduzida à física, tanto como a sociedade não pode ser reduzida à biologia. Aquilo que Cairns-Smith sugere é que, se certos cristais de argila podem ser os precursores das sucessivas e das mais avançadas formas de material hereditário orgânico, a natureza pode ser unificada por algumas tendências comuns. Tais tendências partilhariam uma idêntica origem na realidade do universo, ainda que funcionando de forma diferente e em diversos níveis de auto-organização.

Reside aqui, do meu ponto de vista, o aspecto essencial: a substância e a sua propriedade são inseparáveis da vida. A concepção bergsoniana da biosfera como factor da redução da entropia, num  universo que se presume avançar para a perda de energia e para a desordem crescente, parece atribuir à vida uma razão cósmica para existir. Caso as formas de vida tenham esta função, isso não sugere de todo que a vida tenha sido projectada do exterior por um demiurgo sobrenatural. Sugere antes que a “matéria”, ou substância, tem propriedades auto-organizativas, não menos válidas que a massa e o movimento que a física newtoniana lhe atribui.

Ao modo dos atributos tradicionais da “matéria”, não faltam dados para tornar plausíveis estas novas propriedades. No mínimo a ciência deve ser aquilo que na realidade a natureza é; e a vida na natureza, para usar a terminologia bergsoniana, é uma força que age em sentido contrário à segunda lei da termodinâmica, isto é, como factor de redução entrópica. A auto-organização da substância em formas cada vez mais complexas – e do mesmo modo da forma em correlação com a função e da função com a auto-organização – implica uma incessante actividade para chegar à estabilidade. Pode-se pois supor que a estabilidade, assim como a complexidade, seja um “objectivo” da substância, que a complexidade, e não apenas a inércia, favoreça a estabilidade e que, enfim, a complexidade seja a característica fundamental da evolução orgânica e duma interpretação ecológica das inter-relações bióticas. Todos estas noções são modos de compreender a natureza, não divagações místicas. São elementos probatórios e são-no muito mais do que os preconceitos teóricos que ainda hoje se opõem à ideia de que o universo tenha um significado, um significado moral, atrever-me-ei a dizer.

Parece claro que não nos podemos mais contentar com uma matéria “morta” e passiva que fortuitamente se junta em substância viva. O universo dá testemunho duma substância que está em constante tensão e se desenvolve, e não apenas se movimenta, uma substância cujo atributo dinâmico e criativo é a sua incessante capacidade auto-organizativa em formas sempre mais complexas. A fecundidade natural deriva antes de mais do crescimento, não da deslocação no espaço. Não podemos retirar às formas a sua situação central neste processo de crescimento e de desenvolvimento, nem podemos inferiorizar a função da forma que lhe é correlata. Aquele universo ordenado que torna a ciência um projecto possível e que dá sentido ao uso duma concisa linguagem lógico-matemática supõe esta correlação de forma e função. Nesta perspectiva, a matemática serve não apenas como “língua” da ciência mas também como seu logos. Este logos é sobretudo um projecto possível, já que toma em mãos um motivo que é inerente à natureza, “objecto” da indagação científica.

Uma vez superado o degrau do comportamento meramente instrumental nos embates da “linguagem” das ciências, podemos encontrar outros atributos para aquela substância que chamamos vida. Concebida como uma substância que infinitamente se conserva e se desenvolve, metabolismo incessante, a vida mostra também uma outra característica: a simbiose. Dados recentes confirmam a hipótese do naturalismo cooperante de Pedro Kropotkine não é só aplicável às relações dentro duma mesma espécie e entre espécies, mas ainda dentro das formas celulares complexas e entre elas. Há mais duma década observava já William Trager (Symbiosis, Van Nostrand Reinhold Co., Nova Iorque, 1970: VII): O conflito existente na natureza entre organismos diversos foi largamente divulgado e popularizado pelas expressões “luta pela vida” e “sobrevivência do mais forte”. Poucos se dão conta, porém, que a cooperação entre organismos diferentes – a simbiose – é igualmente  importante e que “o mais forte” pode ser aquele que mais ajuda o outro a sobreviver.

Consciente ou não, esta definição do “mais forte” não é só uma mera conjectura científica dum ilustre biólogo; é também um juízo ético idêntico ao que Kropotkine extraía do seu trabalho de naturalista e do seu ideal de anarquista. Trager sublinha que a integração “quase perfeita” dos “microrganismos simbióticos na economia do hospedeiro (…) levou à hipótese de que certos organismos intracelulares pudessem ter sido na origem microrganismos independentes.” Na verdade os cloroplastas, que desempenham a fotossíntese nas plantas de células eucarióticas, são estruturas definidas que se replicam por divisão, têm um ADN característico, semelhante ao das bactérias cocoformes, sintetizam as suas próprias proteínas e estão envolvidas por uma dupla membrana.

O mesmo se pode dizer das mitocôndrias, “centrais eléctricas” das células eucarióticas. As primeiras investigações neste campo remontam à década de 60 do século XX e foram desenvolvidas com muito entusiasmo por Lynn Margulis (Symbiosis in cell evolution, W. H. Freeman and Co., San Francisco, 1981) em numerosos artigos e livros sobre a evolução celular. Como se percebe a célula eucariótica é a unidade morfológica elementar de todas as formas complexas de vida vegetal e animal. Também os fungos apresentam esta estrutura celular provida de núcleo. As células eucarióticas são aeróbias e incluem várias subclasses claramente definidas. Ao invés, as células procarióticas não têm núcleo, são anaeróbias, menos especializadas e, segundo Margulis, são os antecedentes evolutivos das eucarióticas. As procarióticas são a única forma de vida que podia sobreviver e prosperar na atmosfera terrestre primitiva, onde apenas existia uma quantidade mínima de oxigénio.

Margulis conjecturou e largamente demonstrou que as células eucarióticas consistem numa adaptação simbiótica funcional de procarióticas tornados interdependentes umas com as outras.  Os flagelados eucarióticos tornaram-se espiras anaeróbias; as mitocôndrias fizeram-se bactérias capazes de respiração e de fermentação e os cloroplastídeos deram lugar às algas verde azuis recentemente classificadas como cianobactérias. Esta teoria, amplamente aceite hoje entre os biólogos, retém que os antepassados fagócitos das eucarióticas tinham absorvido, sem os digerir, espiras, protomitocôndrias (que Margulis sugere possam ter invadido os seus hospedeiros) e, no caso das células da fotossíntese, cianobactérias e clorobactérias de forma arredondada. As diversas formas aeróbias de vida teriam assim tido origem num processo simbiótico que integrou uma variedade de microrganismos naquele que pode ser definido como um organismo colónia: a célula eucariótica. O mutualismo cooperante, não predatório, aparece assim como o princípio guia para a evolução das formas da vida aeróbia altamente complexa que hoje conhecemos.

A perspectiva de que a vida e todos os seus atributos estão latentes na substância enquanto tal e de que a evolução biológica esteja profundamente radicada na simbiose e no mutualismo indica como é importante redireccionar a nossa noção de “matéria” como substância activa. Observava Manfred Eigen (Molecular self organization and the early stages of evolution, inQuartely review of biophysis, vol. IV, n.º 2/3, p. 202) que a auto-organização molecular sugere que a evolução “se apresenta como evento inevitável dada a presença duma certa matéria com específicas propriedades auto-catalíticas e dum fluxo limitado de energia livre, isto é, de energia solar, necessária para compensar a produção fixa de entropia.” Com efeito esta actividade auto-organizativa vai além da emergência e da evolução da vida e diz respeito àqueles factores aparentemente inorgânicos que produziram e mantêm “um ambiente bioticamente favorável ao desenvolvimento de formas de vida cada vez mais complexas”. Como sublinha Margulis, sintetizando a hipótese Gaia, elaborada por ela e por James E. Lovelock, não é mais sustentável que a vida haja sido constrangida a adaptar-se a um ambiente independente, geológica e meteorologicamente determinado. Este dualismo entre mundo vivente e não vivente – baseado em mutações casuais e pontuais das formas de vida, que por sua vez determinam quais as espécies que se salvam e as condenadas – aparece substituído pela noção mais estimulante que a vida, como diz Margulis, “produz grande parte do seu ambiente”. E ainda: “certas propriedades da atmosfera, da terra e da hidrosfera são controladas para e pela biosfera.”

Comparando planetas sem vida como Marte ou Vénus com a Terra, Margulis nota que a alta concentração de oxigénio na nossa atmosfera é anómala quando confrontada com o anidrido carbónico dos outros planetas. Demais “a concentração de oxigénio na atmosfera terrestre permanece constante, não obstante a presença de azoto, metano, hidrogénio e outros reagentes potenciais”. Na realidade a vida tem um papel activo na manutenção das moléculas de oxigénio livre na atmosfera. O mesmo se pode dizer para a alcalinidade e do nível moderado de temperatura da superfície terrestre. Diz Margulis (op. cit., pp.348-49): As anomalias da atmosfera terrestre são outra coisa que casualidade. As temperaturas das regiões tropicais e das temperadas divergem dos valores que teríamos por interpolação entre os valores correspondentes de Marte e Vénus e os desvios que têm lugar na maior parte dos organismos. O oxigénio mantém-se em cerca de vinte por cento, a temperatura média dos estratos inferiores da atmosfera é de cerca de 22 graus centígrados e o pH apenas acima de 8. Estas anomalias a escala planetária conservaram-se por longo tempo. A estranha composição química da atmosfera terrestre manteve-se por milhões de anos, apesar do tempo de permanência dos gases reagentes se medirem apenas em meses ou anos. Margulis conclui assim: É altamente improvável que o acaso possa explicar o facto da temperatura, o pH e a concentração de elementos nutritivos hajam sido por grande espaço  de tempo os adequados à vida. Ainda mais improvável, se pensarmos que os principais perturbadores dos gases atmosféricos são os organismos, antes de mais os micróbios. Ao invés, parece mais provável o investimento de energia, por parte dos viventes, numa actividade de conservação destas condições.

Em suma, até a Síntese Moderna, para usar a terminologia empregue por Julian Huxley para definir o modelo neo-darwinista de evolução orgânica introduzido nos anos 40, foi posta em discussão pela sua perspectiva limitada e talvez demasiado mecânica. A imagem dum ritmo evolutivo lento, saído da interacção de pequenas variações seleccionadas pela sua adequação ao ambiente, não se afigura sustentável, como parecia ser, a partir das descobertas fósseis disponíveis. A evolução aparece hoje mais esporádica, muitas vezes intervalada por longos períodos de estagnação. Espécies altamente especializadas tendem a modificar-se ou a desaparecer por causa dos reduzidos nichos ecológicos em que podem sobreviver, enquanto espécies menos especializadas se transformam mais lentamente e desaparecem com menos frequência, graças aos ambientes mais variados em que conseguem sobreviver. Esta hipótese, dita “hipótese de efeito”, adiantada por Elisabeth Vrba (citada por Robert Lewin, “Evolutionary theory under fire”, Science, vol. 210, 1980, p. 885), sugere que a evolução seja mais uma tendência imanente e não tanto o produto de forças selectivas externas. As mutações acasalam mais um mosaico voluntário do que pequenas e casuais modificações na estrutura e nas funções das formas de vida. Como alguém observou, enquanto a selecção das espécies atribui a força evolutiva às condições do ambiente, a “hipótese de efeito” endereça essa forças a parâmetros internos que determinam os níveis de especialização e de extinção.

A ideia de pequenas e graduais mutações casuais, uma teoria que concorda com a concepção vitoriana de transformações evolutivas estritamente fortuitas, pode ser posta em causa apenas por razões de base genética. Não só um gene mas um cromossoma, em mutáveis combinações entre si, podem ser modificados quimicamente e mecanicamente. As transformações genéticas podem ir de “simples” mutações pontuais a novas sistematizações de cromossomas muitos mais consistentes. Demais parece evidente, sobretudo no seguimento de resultados experimentais, serem possíveis trocas de mutações morfológicas geneticamente determinadas. Pequenas modificações genéticas podem dar lugar a transformações morfológicas, relevantes ou irrelevantes, e o mesmo vale para as grandes mutações genéticas.

A observação de Trager de que a espécie “mais adequada” pode ainda ser “aquela que mais ajuda uma outra viver” é uma fórmula excelente para refazer o quadro da evolução natural, vulgarmente pintado como drama insensato de sangrenta competição visando a sobrevivência. Existe uma rica literatura, que, remontando ao fim do século XIX, sublinha o papel desempenhado pela cooperação intra e entre específica na capacidade de sobrevivência das formas de vida no planeta. O famoso Apoio mútuo de Kropotkine sintetizou o conhecimento então disponível e juntou a palavra mutualismo  ao vocabulário biológico. Os primeiros capítulos desse livro resumem trabalhos contemporâneos de Kropotkine, as suas pesquisas na Ásia oriental e ainda uma montanha de dados novos sobre insectos, crustáceos, pássaros, as associações para caça dos “mamíferos carnívoros”, as sociedades de roedores, e outras sequências idênticas. O material é em grande parte intra-específico, mesmo que os biólogos mutualistas de há um século não tivessem ainda evidenciado os sistemas de apoio específico que nós sabemos hoje existirem numa quantidade muito maior do que Kropotkine podia imaginar. Buchner escreveu em 1953 um volume inteiramente dedicado à endo-simbiose dos animais com microrganismos vegetais; Henry, por sua fez,  no meado da década de 60 actualizou o estudo desta questão nos dois volumes de Symbiosis. As provas que este último apresenta sobre esse modo particular de mutualismo que é a simbiose inter-específica são, dizendo pouco, massivas. Ainda mais do que Apoio mútuo de Kropotkine, o trabalho de Henry documenta as relações mutualistas a partir da relação inter-específica entre rhizobium e legumes, passando pelas associações vegetais, pelo comportamento simbiótico entre animais, para chegar ao grande mecanismo homeostático de escala planetária ao nível das relações bioquímicas.

A adaptação raramente tem um significado biológico como pura sobrevivência e adequação ao meio das espécies. Se ficar por este nível de superfície, torna-se apenas uma empresa de adaptação individual que não consegue explicar a necessidade dos sistemas vitais de apoio que todas as espécies têm, seja por sistema autotrófico ou heterotrófico. A teoria evolutiva tradicional tende a abstrair uma espécie do seu ecossistema, isolando-a e considerando a sua sobrevivência de modo muito abstracto. Por exemplo, a interacção de mútuo apoio entre os organismos de fotossíntese e os herbívoros, longe de ser a forma mais simples de acção predatória ou de heterotrofia, é ao invés indispensável até para a fertilidade do solo, graças aos dejectos animais, à disseminação das sementes, à reciclagem dos cadáveres num ecossistema que se enriquece a cada momento. Mesmo os grandes carnívoros, predadores dos herbívoros, têm uma função vital, de controle demográfico selectivo, eliminando os animais doentes ou velhos, para os quais a vida estaria destinada a ser sobretudo sofrimento.

Paradoxalmente se desvalorizamos o significado do verdadeiro sofrimento e da crueldade reduzindo-o a dor e a acção predatória, do mesmo modo desvalorizamos o significado da hierarquia e da dominação roubando-lhes o sentido social e reduzindo-as a relações transitórias entre indivíduos mais ou menos violentos no seio duma específica comunidade gregária animal. O medo, a dor e a morte que um matilha de lobos dá a uma velha rena doente dão testemunho não da crueldade da natureza mas antes dum modo de morrer adequado à renovação orgânica e à estabilidade ecológica. O sofrimento e a crueldade pertencem ao mundo da angústia pessoal, da dor inutilmente infligida, da degradação moral de quem atormenta a vítima. Estas noções não são aplicáveis à eliminação dum organismo que já não pode funcionar a um nível que torna a vida tolerável. É perverso associar qualquer dor a sofrimento, qualquer acção predatória com crueldade. Sofrer a angústia da fome, os traumas psicológicos, a insegurança, o abandono, a solidão, a morte na guerra, as doenças incuráveis, nada disto pode ser comparado com a breve dor duma morte quase insciente dum acto predatório. As aflições da natureza são raramente tão cruéis como os sofrimentos sistemáticos e organizados infligidos pela sociedade humana aos seres vivos, animais ou homens, de perfeita saúde, sofrimento que só a mente humana pode conceber.

daf_in_kobaneNem a dor, nem a crueldade, nem a agressão, nem a competição explicam de forma satisfatória o aparecimento e o desenvolvimento da vida. Para uma melhor explicação devíamos tomar em consideração o mutualismo e um conceito de “adaptação” que reforce os sistemas de mútuo apoio e que responsabilize o mais adaptado. Se estamos dispostos a reconhecer a natureza auto-organizativa da vida, o papel decisivo do mutualismo e a sua dinâmica evolutiva impõem-nos a redefinição de “adaptação” em termos de ecossistema. E se estamos dispostos a ver a vida como um fenómeno que pode modelar e conservar aquele mesmo “ambiente” que se considera como fonte selectiva da sua evolução, uma pergunta crucial se impõe: faz sentido continuar a falar de “selecção natural” como força motriz da evolução biológica? Não precisaremos antes de falar em “interacção natural” para darmos conta de forma plena do papel da vida no criar e no orientar as forças que explicam a sua evolução? A biologia contemporânea dá-nos um quadro de interdependências muito mais importante na modelação das formas de vida do que tudo aquilo que um Darwin, um Huxley ou os autores da Síntese Moderna poderiam ter previsto. A vida é necessária não apenas em termos de auto-conservação mas até por causa da sua auto-formação. “Gaia” e a subjectividade são mais que efeitos da vida: são os seus atributos integrais. A grandeza duma autêntica sensibilidade ecológica, bem diferente do “ambientalismo” superficial hoje dominante, é que ela nos dá a possibilidade de generalizar de modo radical as inter-relações mutualistas, fazendo da variedade em que assenta o fundamento da estabilidade. A sensibilidade ecológica dá-nos uma perspectiva coerente que explica a realidade no sentido pleno do termo, dando-lhe uma explicitação ética.

Desde a longínqua idade helénica até ao primeiro Renascimento a “natureza” foi vista sobretudo como bússola de orientação ética, graças à qual o pensamento humano encontra o seu sentido e a sua coerência. A natureza não humana não era externa à natureza humana e à sociedade. Ao invés, a mente era apenas uma parcela dum logos cósmico que fornecia critérios objectivos para os conceitos pessoais e sociais de bem e de mal, justo e injusto, belo e feio, amor e ódio e, em suma, para todo um conjunto de valores, graças aos quais era possível caminhar em direcção da virtude e duma existência feliz. As palavras dike e andike – justiça e injustiça – compunham a cosmologia dos filósofos gregos da natureza. Sobraram até hoje traços desses valores em numerosa terminologia da moderna linguagem das ciências da natureza, por exemplo em palavras como “atracção” ou “repulsa”.

O erro da cosmologia antiga não reside na sua orientação ética mas na sua aproximação dualista à natureza. Por causa da maior importância atribuída à especulação sobre a experimentação, a antiga cosmologia cometeu o seu maior erro ao tentar ligar uma natureza fecunda auto-organizada com uma força vital alheia ao mundo natural. A dike de Parménides é, como o élan vital de Bergson, um substituto das propriedades auto-organizantes da natureza, não é uma força interna à natureza, uma força que explique a ordem do mundo. Até nas cosmologias monísticas que procuram juntar eticamente a humanidade e a natureza existe um dualismo latente, um deus ex machina que corrige os desníveis, seja num universo desequilibrado, seja numa sociedade insensata. A verdade tem uma coroa invisível, é uma espécie de verdade de Deus ou do Espírito, já que do mesmo modo que não se confia no desenvolvimento espontâneo da natureza também se espera que o Estado, como herança da “civilização”, funcione.

Estes arcaísmos, com as suas vagas teologias e as suas teleologias rigidamente elaboradas, foram justamente avaliados como armadilhas socialmente reaccionárias. Contaminaram as obras de Aristóteles e de Hegel, como magnetizaram as mentes escolásticas medievais. Mas os erros da antiga filosofia da natureza não residem tanto na tentativa de colher uma ética da natureza mas antes no espírito de dominação que desde o princípio a envenenaram, com a imposição dum “arbítrio” sobrenatural, quase sempre autoritário, que avaliava e corrigia os desequilíbrios ou injustiças que tinham lugar na natureza. Por isto os deuses antigos estavam sempre presentes, por muito racionais que estas primeiras cosmologias pudessem querer ser. Mereciam eles, os deuses, ser exorcismados para que se pudesse construir um contínuo mais significativo e democrático entre natureza e humanidade. Tragicamente, o pensamento do Renascimento tardio não foi mais democrático do que o pensamento anterior; nem Galileu na ciência, nem Descartes na filosofia conseguiram de modo satisfatório esta operação cirúrgica. Eles e os seus herdeiros separaram a natureza da mente, recriando outras divindades, sob a forma de preconceitos científicos e epistemológicos, não menos infectados pela dominação do que a tradição anterior que haviam demolido.

Encontramo-nos hoje ante a possibilidade da natureza – não como dike, justitia, Deus, Espírito ou mesmo élan vital – mostrar eticamente os seus próprios termos. O mutualismo é um bem em si, em virtude da sua função de estímulo à evolução da variedade natural. Não temos necessidade de nenhuma dike nem de nenhum cânone de “objectividade científica” para afirmar a esperança natural e social da vida e do seu papel. Do mesmo modo, a liberdade é um bem em si: a sua reivindicação funda-se naquela que Hans Jonas chamou com finura a “íntima natureza” das formas de vida, a sua “identidade orgânica”, a “aventura da forma”. O esforço visível de auto-identificação que qualquer ser vivo, no decurso da sua continuidade metabólica, para se conservar, põe em prática revela, até nos mais rudimentares organismos, um sentido de identidade e de actividade selectiva que Jonas apropriadamente viu como provas duma “liberdade embrionária”.

Enfim, a crescente complexidade e variedade que, através do curso da evolução, transforma as partículas subatómicas naquelas formas conscientes e auto-reflexivas que chamamos seres humanas, não pode senão levar-nos a reflectir sobre a existência dum telos, entendido este em sentido largo, e sobre uma subjectividade latente na substância que por fim dá lugar à mente e à inteligência. Na reactividade da substância, na sensibilidade dos microrganismos menos desenvolvidos, na formação dos nervos, dos gânglios, da espinal medula, no desenvolvimento estratificado do cérebro, percebe-se uma evolução da mente tão irresistivelmente coerente que a tentação de a definir, ao modo de Manfred Eigen, como “inevitável” é grande. É difícil acreditar que a casualidade pura possa explicar a capacidade que as formas de vida têm para responder neurologicamente aos estímulos, de desenvolver sistemas nervosos altamente organizados, de prever, ainda que de forma confusa, os resultados do seu comportamento e por fim  de conceptualizar de forma clara e simbólica esta antecipação. Uma verdadeira história da mente deveria começar com os atributos da substância, talvez logo nos obscuros esforços dos cristais mais simples para se perpetuarem, na evolução do ADN de fontes químicas ignoradas até ao momento em que manifesta a seu modo aquele princípio de replicação já presente no mundo inorgânico, e na diferenciação de moléculas orgânicas vivas ou não vivas como resultado daquelas características intrínsecas de auto-organização que definimos como propriedade da vida.

O estudo da natureza – deixando de lado todos os preconceitos das epistemologias antigas – mostra uma modelação autónoma da evolução, uma “semente”, por assim dizer, implicitamente ética. O mutualismo, a liberdade e a subjectividade não são valores exclusivamente humanos; estão presentes, ao menos de forma embrionária, nos mais amplos processos cósmicos e orgânicos, que não necessitam de ser movidos por nenhuma divindade aristotélica e não precisam de ser revivificados por nenhum espírito hegeliano. Se a ecologia social conseguir perspectivar de forma coerentemente unitiva o mutualismo, a liberdade e a subjectividade como aspectos duma sociedade cooperativa, livre de dominação e orientada pela reflexão e pela razão, conseguirá então remover as taras que envenenaram desde o início a ética naturalista e dar uma voz ética comum à natureza e à humanidade. Não teremos mais necessidade do dualismo cartesiano ou do mais recente dualismo neo-kantiano que deixa muda a natureza e isola a mente do vasto mundo que a rodeia. Desgastar a comunidade, paralisar a espontaneidade, que, no coração mesmo da realidade auto-organizada, se move em direcção a uma crescente complexidade e racionalidade, limitar a liberdade, tudo isto significa negar a “semente” da natureza, negar a nossa hereditariedade nos processos evolutivos, negar a nossa função no mundo da vida. Se não formos bem sucedidos na criação duma sociedade ecológica e na articulação duma ética ecológica, ficará em jogo, não entrando sequer em linha de conta com as péssimas consequências para o ambiente, nada menos do que a nossa legitimidade ética.

O mutualismo, a auto-organização, a liberdade e a subjectividade, sustentados pelos princípios ecológicos de unidade na diversidade, de espontaneidade e de relações não hierárquicas, são assim fins em si mesmos. À parte a responsabilidade ecológica que estes fins delegam na nossa espécie enquanto voz auto-reflexiva da natureza, eles definem-nos literalmente. A natureza não existe para nosso uso, ela limita-se a legitimar a nossa existência ecológica e a nossa unidade. Como a noção de ser, estes princípios de ecologia social não têm necessidade de explicações, apenas de verificações. São elementos dumaontologia ética, não regras dum jogo que possam ser mudadas para adequar exigências pessoais.

Uma sociedade que nega o núcleo essencial desta ontologia levanta o problema da sua realidade mesma como entidade significativa e racional. A “civilização” deixou-nos em herança uma concepção de alteridade como “polarização” e “desafio” e da essência orgânica, visando a identificação pessoal, como “guerra” permanente. Tais concepções arriscam-se a minar por inteiro a legitimidade ecológica da humanidade e a realidade da sociedade como dimensão potencialmente catalisadora do mundo que nos rodeia. Bombardeados por falsas percepções duma natureza em constante oposição à humanidade, redefinimos de tal modo a nossa essência humana que a guerra passou a ser o preço da paz, o controle o preço da consciência, a dominação o preço da liberdade, o antagonismo o preço da reconciliação. Num tal contexto auto-destrutivo, estamos a construir um Valhalla que por certo se tornará uma mina para as labaredas devoradoras de Ragnarok.

Não obstante, dos conceitos de alteridade e de essência da vida, pode tirar-se um sistema filosófico e social completamente distinto. Se tivermos uma ampla visão ecológica da natureza e concebermos um mundo benigno que a vida plasmou no curso da evolução, podemos então formular uma ética da complementaridade que se alimenta da diversidade em lugar duma ética que tutela a essência individual por meio duma alteridade ameaçadora e invasora. Na verdade a essência da vida pode ser vista como expressão de equilíbrio mais do que como mera resistência à entropia e ao fim de qualquer actividade. A própria entropia pode ser vista como uma das características dum mais vasto metabolismo cósmico, de que a vida é só a dimensão anabólica mais visível. Um tal metabolismo geral pode ser visto como resultante da integração, da comunidade e do apoio mútuo, sem que por isso se diminua a identidade individual e a espontaneidade singular.

Destarte duas alternativas estão neste momento frente a frente. Podemos tentar apaziguar o espírito guerreiro de Odin, pacificando-o a ele e à sua corte, abrindo o Valhalla ao vento da reflexão e da ponderação. Tentaremos então remendar os esfarrapados pactos que outrora sustinham precariamente em conjunto o mundo e passar com eles a melhores e mais benévolas situações. Podemos até esperar que Odin se convença a arrumar a lança, a guardar a armadura e a prestar ouvidos às doces vozes que aconselham o diálogo e a compreensão. Em alternativa os nossos esforços podem dar lugar a uma reviravolta radical: arruinar Odin, de cuja senilidade testemunha uma sociedade abortada. Abandonaremos então os mitos contratuais que “harmonizam” um mundo intrinsecamente dividido, esses mitos mantidos de pé pela épica nórdica com o exílio e as cadeias. O nosso desafio será então criar um novo mundo e uma nova sensibilidade, a partir duma base de reflexão pessoal e duma ética de que somos herdeiros enquanto resultado do incessante movimento evolutivo em direcção à consciência. Temos a possibilidade de nos legitimar como expressão acabada da mente no mundo da natureza, como racionalidade que favorece a diversidade natural e integra os processos naturais com sucesso, uma certeza e uma direcção que são porém incompletos na natureza não humana.

A “civilização” tal como a conhecemos hoje é mais muda do aquela natureza em nome da qual ela, a civilização, pretende falar e mais cega do que aquelas forças elementares que pretende controlar. Esta “civilização” vive mergulhada no ódio ao mundo que a rodeia e no ódio por si. As suas cidades estão feridas, esventradas, as terras degradadas, a água e o ar envenenados; a sua mesquinha cobiça é uma acusação diária à sua imoralidade odiosa. Um mundo assim empobrecido é talvez irrecuperável, ao menos no quadro das suas actuais estruturas institucionais e éticas. Se o fogo de Ragnarok purificou o mundo nórdico, o apocalipse nuclear que ameaça engolir o planeta poderá deixá-lo irremediavelmente inútil para a vida, cadáver testemunhando um fracasso cósmico. Este planeta merece um destino melhor do que aquele que parece esperá-lo no futuro – já que a sua história, incluída a humana, se não mais houvesse, foi rica de promessas, de esperanças, de criatividade.

MURRAY BOOKCHIN

[tradução de A. Cândido Franco]

[Curdistão] A primeira Kobanê, por Janet Biehl

Moradoras de Sere Kaniye

Moradoras de Sere Kaniye


Postado em Resistência Curda, por , em 12 de fevereiro de 2015

Originalmente postado em Ecology or Catastrophe, 1 de fevereiro de 2015
Tradução geral por Pedro Faria

Escrito por Janet Biehl

Em 7 de dezembro de 2014, a delegação de acadêmicos[1] viajou para Serê Kaniyê, onde visitaram o centro de comando local das Unidades de Proteção Popular (YPG) e do Partido de União Democrática (PYD), um bairro que fora um campo de batalha, e a área de fronteira com a Turquia.

O recente sucesso do YPG e do YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres) na libertação de Kobanê merece todos os elogios que tem recebido, mas Kobanê não foi a primeira vez que as forças de defesa de Rojava venceram os jihadistas fanáticos e assassinos. Em novembro de 2012, Jabhat al Nusra, um grupo derivado da Al Qaeda, atacou e ocupou a cidade de Serê Kaniyê, na fronteira oeste do cantão de Cirize. Assim como em Kobanê, o YPG derrotou as forças ocupantes e libertou a cidade.

Com 50 mil habitantes, em sua maioria curdos, mas também Chechênios, Armênios e Arameus e Árabes, Serê Kaniyê se situa exatamente na fronteira com a Turquia, que a separa da cidade de Ceylanpınar. As duas cidades foram separadas no fim da primeira guerra mundial, quando as potências vencedoras da guerra criaram os estados da Síria e da Turquia a partir das ruínas do Império Otomano.

As duas cidades permaneceram divididas depois de quase um século de relações tensas entre Síria e Turquia. “A fronteira nos separa de nossos parentes”, diz o guia à delegação. “As pessoas ainda se referem a Ceylanpinar como a Serê Kaniyê acima da linha, enquanto nós somos a Serê Kaniyê abaixo da linha”.
A revolta síria começou na primavera de 2011 e desenvolveu-se rapidamente para uma guerra civil brutal, com vários grupos radicais islâmicos dentre os grupos lutando contra o regime de Assad. Antes do amanhecer de 8 de Novembro de 2012, um desses grupos, a Frente Al Nusra, entrou num dos bairros residenciais de Serê Kaniyê, o som de metralhadores e helicópteros quebrando o silêncio. As centenas de invasores tomaram casas de habitantes locais e transfomaram-nas em bases militares.

Apesar de Al Nusra ser parte da oposição ao regime de Bashar al-Assad, os invasores entraram em Serê Kaniyê não pelo sul, mas pelo norte, a partir da Turquia — cruzaram a fronteira sem maiores problemas. Como apontou a co-presidenta do PYD, Asiya Abdullah, “os ataques estão vindo da Turquia, numa clara violação do direito internacional. Nós requisitamos a todos os Estados e à ONU que condenem o governo turco por essa violação dos direitos humanos”. No entanto, o apelo não recebeu respostas e foi pouco noticiado pelos grandes meios de comunicação internacionais.

Aviões do regime de Assad bombardearam a cidade, buscando atingir as posições dos jihadistas, mas as bombas mataram também ao menos dez civis, além de terem deixado outros setenta feridos. Cinquenta casas tiveram que ser demolidas e alguns milhares de residentes fugiram para o leste em um ou dois dias. O YPG começou a se mobilizar para defender a cidade.

Sete dias após o ataque inicial, em 19 de novembro, uma coalizão de partidos curdos chamou uma marcha para protestar contra a ocupação. Civis de Dirbespiye, Qamişlo e Amude — outras cidades de Rojava — tomaram as estradas que levam à Serê Kaniyê, mas se depararam com barreiras montadas pelo Al Nusra. O co-líder do conselho popular local, Abid Xelil, apareceu acompanhado de forças de segurança curdas (Asayiş) e exigiu que os extremistas armados removessem as barreiras e permitissem a continuação da marcha. Como respostas, os jihadistas abriram fogo, matando Xelil e um outro manifestante.

De acordo com a co-presidenta Abdullah, Xelil era tido como “uma figura simbólica da compreensão inter-étnica” em Serê Kaniyê. “Aqui, árabes, arameus, armênios e curdos vivem juntos harmoniosamente. […] A Turquia tentar destruir essa convivência harmoniosa e provocar uma guerra entre árabes e curdos”.

IMG_2451Em 20 de Novembro, o exército turco ajudou a invasão do Al-Nursa através de disparos de mísseis de curto alcance a partir do outro lado da fronteira. Os jihadistas em Sere Kaniyê deram aos turcos as coordenadas das posições do YPG, para melhor acertá-las.

Durante a resposta do YPG à ocupação da cidade, observadores notaram que os jihadistas feridos era levados em ambulâncias turcas para o lado norte da fronteira, em direção aos hospitais de Ceylanpinar, enquanto os feridos curdos eram impedidos de cruzar a fronteira para receber cuidados no mesmo hospital. Diante desses fatos, é difícil acreditar que a invasão de Serê Kaniyê não tenha sido uma operação turca, com ordens de Ancara e operada a partir de Ceylanpinar.

No dia 21 de novembro, cinco tanques turcos atravessaram a fronteira, mais uma vez para apoiar Al Nusra. Naquele momento, os jihadistas já ocupavam quase toda a cidade, exceto os distritos de Hawarna e Xiraba. No entanto, o YPG resistiu ao avanço até que, na manhã do dia 23, os jihadistas pediram uma trégua. Apesar de alguns pequenos combates, a trégua persistiu por dois meses.

Dois meses depois, em 16 de janeiro, mais ou menos 1500 jihadistas utilizaram novamente o território turco para entrar em Serê Kaniyê, dessa vez com vários tanques. O YPG resistiu bravamente mais uma vez, destruindo três tanques e matando entre 100 e 120 jihadistas e com apenas alguns mártires do nosso lado. O Al Nusra recebeu novos reforços e tentou investir sobre a estação de polícia, o palácio de governo e uma igreja cristã assíria. Mas nesse momento o YPG já havia liberado diversos bairros, inclusive o posto de fronteira com a Turquia. Em 30 de janeiro, o Al Nusra havia sido basicamente expulso da cidade.

IMG_2473O YPG e o Exército Livre da Síria (FSA) acordaram um cessar-fogo em 17 de Fevereiro, também aceito pelo Al Nusra. O acordo previa a saída de grupos armados de Serê Kaniyê e a constituição de um conselho civil, composto por representantes dos diversos povos sírios, que controlaria o posto de fronteira. Salih Muslim, co-presidente do PYD, afirmou que “o lado curdo está plenamente sustentando plenamente o acordo… Nós temos que formular e garantir os direitos dos diversos grupos étnicos e religiosos, assim como os das mulheres, por meio de uma constituição democrática.

Mas os invasores — apoiados pelos turcos — se recusaram a desistir e, em 16 de julho, os jihadistas atacaram Serê Kaniyê novamente. Dessa vez a resistência do YPG foi rápida e eficiente: os invasores foram repelidos em dois dias e o controle sobre a cidade foi restabelecido. Alguns passaportes turcos foram encontrados em áreas anteriormente ocupadas pelo Al Nusra.

Relegado às áreas rurais ao redor de Serê Kaniyê, o Al Nusra, agora com apoio do estado islâmico (ISIS), dedicou-se à pilhagem, ao sequestro e à execução de civis, tanto curdos quanto árabes. Entre o dia primeiro e o dia 5 de Novembro, o YPG efetuou uma operação de liberação das vilas rurais. Na medida em que as vilas eram liberadas, foram recuperados veículos, munição e armas, além de material logístico. Bens pilhados pelos jihadistas foram retornados aos seus donos e o conselho popular distribuiu pão aos habitantes. Os residentes árabes estavam tão aliviados quantos os curdos diante da liberação, expressando o alívio com slogans de “Long Live the YPG”.

O Centro de comando do YPG

Quando a delegação de acadêmicos chegou em Serê Kaniyê, a vida cotidiana já havia sido retomada, apesar da continuidade dos enfrentamentos contra o estado islâmico a 25km da cidade. No centro administrativo e de comunicação do YPG em Serê Kaniyê, um porta-voz nos contou que “o Deash [ISIS] está em uma posição defensiva… mantivemos uma operação contra eles nas últimas duas semanas… e até mesmo alguns de seus comandantes de alto escalão foram mortos. Agora estamos nos aproximando do centro da posição inimiga.”

At the YPG Command Center

 

O YPG e a sua contraparte feminina, o YPJ, se autodenominam “unidades de defesa popular”, explicou o porta-voz, Dr. Huseyin Koçer: eles defendem uma sociedade e não um estado, pois Rojava é auto-governada por meio de uma democracia popular. “Nós estamos aqui pelo povo, pela sociedade, é assim que nos compreendemos”. Mesmo assim, Dr. Koçer enfatizou que “a mobilização que vemos aqui é mais forte do que aquela que veríamos em dez Estados juntos!”

A cooperação inter-religiosa e inter-étnica entre curdos, assírios, árabes, aramaicos e outros grupos é crucial para a a auto-defesa popular: “Somente assim podemos derrotar aqueles que nos atacam, tentam nos expulsar e colocar uma comunidade contra a outra, disse o Dr. Koçer. Ao invés de discriminar contra as minorias não-curdas, a vontade comum das comunidades auto-governadas, expressa pelo YPG, é proteger os valores culturais e as tradições das minorias. “Centenas de árabes participam do YPG e do YPJ”, ele adicionou, e os assírios formaram uma milícia, chamada Sutoro, que opera sob a liderança do YPG. Um combatente chechênio nos contou também no centro de comando que seu povo chegou na região algumas gerações antes, “mas nós já nos tornamos um povo dessa região, assim como os outros. Aderimos às forças do YPG e do YPJ e juntos protegemos a região”.

“O que acontece quando o YPG e o YPJ liberam uma vila árabe?”, perguntamos.
“Muitos dos habitantes árabes apoiam o Daesh”, respondeu o Dr. Koçer, “mas nós não os atacamos… Sabemos que muitos não gostam do Daesh, mas sentem-se obrigados a apoiá-los por medo. O Daesh rouba e pilha onde quer que estejam… Dizem cometer esses crimes em nome do Islã, mas eles não tem nada em comum com o Islã… Nós tentamos fortalecer a capacidade de mobilização dos habitantes árabes… Tentamos criar consciência da liberdade e da liberação; tentamos comunicar a necessidade de auto-organização, não apenas para sustentar a vida cotidiana, mas também a vida política.”

O YPG, disse o porta-voz, está tentando levar o auto-governo democrático para as vilas árabes: “o conselho popular de Serê Kaniyê vai até as vilas que liberamos para ajudar e organizar e às vezes nós nos juntamos a eles… Nós ajudamos e apoiamos os habitantes locais a estabelecer conselhos em suas comunidades… Discutimos com eles e propomos nosso projeto democrático e seus objetivos”.

“E como eles recebem sua presença? Eles não aderem por medo também?”, perguntamos. “Nós não vamos a esses lugares para fazê-los parecidos conosco. Queremos nos assegurar que eles possam expressar sua própria vontade política. Por meio de discussões, nós tentamos criar uma consciência libertadora. Muitas vilas acabam nos apoiando e por fim aderindo ao YPG”.

Após a vitória sobre o Daesh em Serê Kaniyê e o progresso feito em Kobanê, a moral do YPG está em alta, nos diz Dr. Koçer, “não importa quantas vezes eles nos ataquem, nós não mais aceitaremos nenhuma ocupação… por nenhum grupo… Estamos preparados para ser ser o túmulo de todos aqueles que nos atacarem”. “O Daesh é um grupo que comete crimes contra toda a humanidade”, ele continuou, “eles representam uma ameaça a todas as comunidades do mundo. Nós resistimos a essa força: aqui e agora, mas em qualquer outro lugar no futuro”.

Apesar de toda a força da resistência, ela sofre com a falta de meios materiais, pois Rojava está sob um embargo político e econômico da Turquia e, com algumas exceções, do KRG (Governo Regional Curdo, que controla as áreas curdas no norte do Iraque). Por isso, “não podemos tratar os feridos adequadamente: temos médicos, mas não temos medicamentos… É extremamente necessário suspender esse embargo. Queremos ser vizinhos da Turquia, mas o estado turco se mobiliza ativamente contra nós, dando apoio e facilitando os ataques do Daesh”.

O porta-voz pediu à delegação acadêmica para levar ao mundo ocidental a mensagem de que é necessário pressionar a Turquia para afrouxar as restrições ou pelo menos abrir um corredor humanitário para Rojava para que medicamentos e armas possam alcançar as regiões curdas. Aqueles que se comprometem a lutar contra o terrorismo devem fazer ao menos isso em apoio a um aliado corajoso, aos combatentes-democratas de Rojava.

O relato da batalha de liberação de Serê Kaniyê é baseado em relatos de Firat, Civaka Azad e Rojava Report. Os comentários do YPG foram reduzidos para manter o texto conciso.

[1]Delegação de professores e estudantes que visitou Rojava em Desembro de 2014. Para o comunicado conjunto da delegação, acesse o link (inglês): http://roarmag.org/2015/01/statement-academic-delegation-rojava/

Uma carta aberta a quem diz que “Funk não é Cultura”

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Por Carlos Palombini

Fonte: El Hombre

O professor de musicologia Carlos Palombini, da UFMG, explica por que o proibidão merece tanto respeito quanto o samba ou qualquer outro gênero musical.

Dia 9 de agosto de 2012, depois de encontrar meu amigo Gustavo Lopes, o MC Orelha, em seu estúdio no Largo da Batalha, em Niterói, escrevi a Nilo Batista. Eu ouvira de seu DJ-produtor, Gelouko, que Gustavo não recebia direitos autorais por “Na faixa de Gaza é assim”, hoje com mais de quinze milhões de acessos no YouTube, porque “proibidão não paga direito autoral”.

Em 23 de outubro Carlos Bruce Batista me escreveu para dizer que seu pai tivera a ideia de incluir um livro sobre proibidões na série Criminologia de Cordel, publicada pela Revan para o Instituto Carioca de Criminologia. Carlos convidou um grupo de autores das áreas de direito, música e cultura, e obtivemos a colaboração de dois dos mais importantes compositores do subgênero que, nas palavras do DJ Marcelo André (em entrevista recente), “é o mais autêntico”: Thiago dos Santos, da Vila Cruzeiro (o “Praga”), e o próprio MC Orelha.

Minha contribuição para o livro consistiu numa entrevista com Gustavo Lopes e numa análise de “Na faixa de Gaza é assim”. Em 26 de novembro de 2013 nos reunimos no Circo Voador para o lançamento do livro. O ministro argentino da Corte Suprema de Justiça, Raúl Zaffaroni, o delegado Orlando Zaccone D’Elia Filho, o empresário Rômulo Costa, e os MCs Catra, Leonardo e Smith estiveram presentes.

Embora a maioria dos autores não esteja exatamente no início de suas carreiras, creio poder falar em nome de todos e dizer que é um trabalho do qual nos orgulhamos particularmente, pois estamos na companhia de pessoas que admiramos pessoal e profissionalmente. Tanto que, há alguns dias, fui procurar na rede mais quinze exemplares do livro para dar de presente.

Foi quando me deparei com alguns comentários curiosos e talvez representativos, um deles publicado no portal El Hombre. Pedro Nogueira, editor-chefe, me convidou a respondê-los.

Não é estimulante, do ponto de vista intelectual, refutar o senso comum, em especial quando ele não se dá ao trabalho de revestir-se de qualquer coerência, mas limita-se a fazer alarde de gostos e opiniões teórica e empiricamente desinformadas. O que há de mais elaborado no texto é o título, síntese de uma ignorância que o benefício da dúvida me obriga a considerar honesta. Não pode haver “culturalização” do que em si já é cultura. Seria necessário que o autor apresentasse uma definição de cultura capaz de excluir o funk carioca para que o termo tivesse qualquer autoridade.

Mas “culturalização” aqui deve ser tomada como paródia pura e simples de “criminalização”. Tal procedimento, comum no funk carioca, mostra a impossibilidade em que a cultura nacional se encontra de produzir um intelectual de direita. Tampouco há “choradeira em torno da crise do gênero brasileiro”, porquanto não está em crise a música, estão em crise alguns daqueles que a produzem. Para o autor, o problema é simples: ele vai passar-nos uma descompostura e necessita da “choradeira” justificativa. Esse “pai” preocupado com nossa educação carece de autoridade todavia.

Na introdução alguns parágrafos pretensamente neutros deveriam fornecer evidência de imparcialidade se não houvessem sido anulados pelo investimento libidinal excessivo do título. Examinemos não mais que um excerto:

O samba aconteceu “de dentro para fora” como expressão da cultura popular brasileira e, assim, foi autêntico, espontâneo; o funk carioca ocorreu “de fora para dentro” como derivação do miami bass americano e, assim, foi forjado, imposto como expressão da cultura popular brasileira por um discurso ideológico elitista, reacionário e paternalista consistente em um moralismo às avessas (induzir a sociedade a interpretar coisificação da mulher como luta feminista, pobreza como estilo de vida, ignorância como caricatura, conformismo como engajamento político, ostentação material como cidadania) interessado em processar o etnocentrismo, o higienismo e a marginalização que aprisiona, domestica e submete as classes pobres na armadilha da segregação social.”

A contraposição entre uma música que aconteça “de dentro para fora” e outra que ocorra “de fora para dentro” não tem qualquer embasamento na História. Trata-se da expressão de uma ideologia, esta sim, em crise. Ao dizer-nos essas “duras verdades”, o bom pai ríspido estetiza o político para inverter papéis, e apresentar-se em pele de cordeiro: somos nós “os interessados na manutenção da segregação social”; somos nós que projetamos “nos outros os próprios preconceitos”; somos nós quem quer convencê-lo “de que as classes pobres estão sendo valorizadas”.

Durante o período de ascensão do nazi-fascismo muitos intelectuais aderiram ao regime. Louis-Ferdinand Céline, escritor engajado, escreveu panfletos antissemitas e aproximou-se dos colaboracionistas, mas não deixou de ser considerado um dos grandes inovadores da literatura francesa. Já Robert Brasillach foi julgado e condenado à morte. Em sua defesa saíram Paul Valéry, Paul Claudel, François Mauriac, Albert Camus, Jean Paulhan, Jean Cocteau, Colette, Arthur Honegger, Jean Anouilh e Jean-Louis Barrault, entre outros. Artur Dias não é fascista nem intelectual, mas talvez tenha razão neste ponto: “Entre os níveis de obscurantismo aos quais uma sociedade pode ser submetida — pobreza material, pobreza artística, pobreza cultural —, talvez o pior deles seja a pobreza simbólica.” Quem não estiver convencido que o leia.

***

Leia mais textos de Carlos Palombini em seu site Proibidão.

[Curdistão] Comunas e Conselhos de Rojava

A commune meeting in a Qamislo neighborhood

Um encontro da comuna em uma vizinhança de Qamislo

Postado por Janet Biehl, em Ecology or Catastrophe, em 31 de Janeiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie.

No sábado, 6 de dezembro, a Delegação Acadêmica para Rojava reuniu-se em Qamişlo com dois representantes do Tev-dem, o Movimento por uma Sociedade Democrática. Abdulkerim Omar e Çınar Salih primeiramente nos deram um histórico do pensamento de Rojava sobre o estado e a democracia. Em seguida, eles explicaram a estrutura do auto-governo – o sistema da comuna e do conselho – e responderam nossas perguntas. Falando por meio de tradutores, Salih foi quem mais falou a respeito.

Nós construímos a nossa democracia para que as pessoas de diferentes nacionalidades vivam juntas. Nos somos novos, e nós cometemos erros, e nós estamos tentando parar o Daesh [Estado Islâmico] de entrar em Rojava. Outras delegações vieram aqui, mas estamos muito satisfeitos em ter vocês. Seu projeto está nos dando esperança. Nós não alcançamos a liberdade ainda, mas aprendemos a lutar.

O sistema em que estamos vivendo já se arrasta há cinco mil anos. Diferentes fases da história tem dado-lhe nomes diferentes, mas em seu núcleo, ele se manteve o mesmo, e seu principal pilar é o Estado. Isto tem de ser bem compreendido. Nos últimos cem anos, as pessoas têm lutado contra o Estado, e elas conquistaram a independência historicamente, mas elas não conseguiram a liberdade, porque não se emanciparam do Estado. O seu conceito de liberdade permanece dentro dos limites do Estado.

Ao invés de um estado independente, nós preferimos autonomia. A solução tem que ser ao nível das bases. O sistema do Estado-nação criou muitos preconceitos, para que as pessoas pensem que árabes e curdos e turcos não podem se dar bem. Essa ideia foi reforçada pelo sistema do Estado-nação. Foi incutido na cabeça das pessoas e com más consequências. Isso excluiu condições de coexistência e cooperação entre as pessoas. Estamos lutando para se livrar desses preconceitos e criar condições para a convivência.

Acreditamos que o sistema estatal é igual à destruição sistemática das mulheres, e que a autonomia democrática é igual a libertação das mulheres. É por isso que a nossa revolução de Rojava é uma revolução das mulheres. Em Rojava, não há nenhuma área da vida em que as mulheres não sejam ativas. Uma das nossas maiores conquistas foi a quebraa deste dogma predominante no Oriente Médio, que as mulheres são fracas e necessitadas, como expresso de diferentes maneiras, como na lei da Sharia. Mas este é apenas um dos resultados de nossa revolução. Nós acreditamos que uma revolução que não abre o caminho para a libertação das mulheres não é uma revolução. Houve revoluções na Líbia e no Egito e na Tunísia, houve novos governos, mas o mesmo status para as mulheres tem persistido.

Nosso sistema repousa sobre as comunas, constituídos de bairros de 300 pessoas. As comunas têm co-presidentes, e há co-presidentes em todos os níveis, desde a administração da comuna à administração do cantão. Em cada comuna, há cinco ou seis comissões diferentes. Elas funcionam de duas maneiras: primeiro, eles resolvem os problemas de forma rápida e precoce (por exemplo, um problema técnico ou um social). Alguns trabalhos podem ser feito em cinco minutos, mas se você o envia para o estado, ele cai em uma burocracia. Assim, podemos resolver problemas rapidamente. A segunda maneira é política. Se falamos de uma verdadeira democracia, as decisões não podem ser feitas a partir do topo e ir para baixo, elas têm de ser feitas de baixo para cima e “subir em degraus”. Há também os conselhos distritais e municipais, até o cantão. O princípio é “poucos problemas, muitas resoluções”.

Para que o governo não permaneça suspenso, tentamos preenche-lo debaixo. Houve perguntas sobre como a base é realmente organizada. Então, pode fazer essas perguntas.

 

Salih and Omar na sede de Tev-Dem, em Qamislo

Salih and Omar na sede de Tev-Dem, em Qamislo

 

Q. É conceito muito interessante e, provavelmente, há tensões e desafios dentro deste sistema. Uma delas é a tensão entre as decisões a partir de baixo e necessidades imediatas no nível de todo o cantão. Por exemplo, provavelmente você tem que decidir de uma forma centralizada que você precisa para montar um moinho de fazer farinha. Ou você tem que decidir construir uma refinaria. Estrategicamente, essas são coisas muito importantes. Por outro lado, você tem este sistema de baixo para cima que vem das comunas. Não é útil estabelecer infra-estrutura semelhante em vários municípios ou em várias cidades. Então você precisa de algum tipo de coordenação entre as comunas e as câmaras municipais. Quem as coordena?

Nós também estamos discutindo essas questões; não há uma fórmula pronta a ser aplicada. Conversar com os números pode ajudar. Qamişlo tem 6 distritos diferentes. Cada distrito tem 18 comunas, e cada comuna é composta por 300 pessoas.
Agora, cada município tem dois co-presidentes eleitos. E cada comuna tem diferentes comitês. Os dois co-presidentes eleitos de cada comuna reúnem-se para compor juntos o Conselho popular daquele distrito.

Q. Cada comuna vota para os representantes que vão para o nível mais alto?

Sim.

Q. Qamişlo fica com mais representantes: quem decide quantos representantes cada cidade recebe?

É com base na população.

Q. De acordo com o qual censo?

Da época do regime. Neste momennto, o conselho popular do cantão ainda não existe. Está sendo feito um censo agora. Mas a nível de comuna em cidades, isso já funciona. O conselho popular do cantão nem sequer tem um nome ainda; ele ser chamado de parlamento.

Cada comuna tem comitês como, digamos, um comitê de saúde, e existem comitês semelhantes em níveis mais elevados. É assim que eles se certificam que o comitê de saúde da administração do cantão tem uma conexão direta com as necessidades da comuna.

Q. Qual é o papel da Tev-Dem?

Tev-DEM coordena e mobiliza as pessoas nas bases, e assim realiza a conexão para o parlamento. Isso garante a ligação da democracia direta ao governo. Ele mobiliza e coordena, mas também se senta no parlamento, onde representa os interesses do povo. É uma dupla identidade.

Q. O conselho das mulheres existe em paralelo ao conselho popular, nos quais as mulheres têm 40 por cento. Isso existe em todos os níveis? E todos têm poder de veto sobre as questões das mulheres?

Sim. O conselho das mulher existe em paralelo em todos os níveis: da comuna, do distrito, da cidade e do cantão. Os conselhos das mulheres não decidem sobre questões gerais – os conselhos populares é que são para isso. Elas discutem questões que são especificamente sobre mulheres. Se há uma disputa social, falam sobre conflitos interpessoais. Uma comissão tenta resolver problemas entre as pessoas. O conselho de mulheres também tem uma comissão como esta. Então, se elas veem nesta comissão um problema que diz respeito às mulheres, como uma disputa de violência doméstica, e elas não concordam com o conselho popular, e elas dizem ‘não’, o ‘não’ do conselho das mulheres será aceito. Elas têm o poder de veto sobre as questões relativas às mulheres.

Q. É sempre claro o que é um problema das mulheres?

Nós analisamos caso por caso. Não há alguma fórmula definida. Sempre que um conselho das mulheres veta algo, este veto é aceito. Se um problema não pode ser resolvido ao nível mais baixo, essas questões vão a tribunal. Mas estas questões, como todas as questões em Rojava, são resolvidas primeiro localmente, quando possível.

MANIFESTO: CONSTRUIR UM POVO FORTE PARA POSSIBILITAR OUTRO MUNDO

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

(Manifesto apresentado hoje em Madrid por vários activistas libertários)*

Muitas pessoas recordam que na “Transição” a sociedade acreditou que era possível acabar com um regime que se desmoronava para criar novos modelos de ruptura. Lutou-se, mas acabou-se perdendo: os movimentos sociais foram assimilados; as organizações desmanteladas; e as lutas desarticuladas.

Actualmente o sistema enterrou a política do “consenso” e do “pacto social” própria do Regime de 1978 e da chamada Cultura da Transição. Uma forma de organização criada pelo próprio sistema para fazer frente às exigências de transformação social de uma classe operária poderosa e fortemente organizada. Negociar a mudança para que nada mudasse. Uma vez que fomos despojados das nossas referências ideológicas e organizativas e que conseguiram desvanecer a confiança em nós próprios, o regime, apoiado na desculpa da crise, deu por finalizada a estratégia de concertação social e lançou-se de cabeça na imposição do neoliberalismo por decreto com a justificação da crise económica.

Apesar da orfandade e da indefinição que nos foi inculcada como classe durante as últimas décadas, os níveis de descrédito e de afastamento que o sistema alcançou fez com que nos tivéssemos procurado e reencontrado novamente nas ruas e praças para enfrentar com ânimo a defesa das nossas liberdades e dos bens comuns frente a uma elite que deles se quer apropriar a preço de saldo.

Nós, subscritores e subscritoras deste manifesto, também partilhamos esse desejo de nos reconstruirmos como sociedade livre e soberana, assumirmo-nos como protagonistas das nossas próprias vidas e fazer perceber à elite do velho regime que “não nos representa”. E como outros companheiros e companheiras também sentimos que a este ciclo de mobilizações sociais faltava “alguma coisa” para que nos constituíssemos como alternativa suficiente e capaz de se impor à elite, à casta, ao 1% ou como queiram que seja denominada a classe social que domina as nossas vidas.

Respeitamos os companheiros e as companheiras que face ao mesmo diagnóstico estão a optar pela via da participação institucional através de iniciativas eleitorais, mas apelamos à memória colectiva para sublinhar que os direitos, as conquistas e as grandes transformações sociais nunca nos foram oferecidas a partir das instituições. Foram lutas travadas e ganhas nas ruas, nos locais de trabalho e nos bairros. A nossa memória vem de muito longe para nos recordar que só um povo forte e combativo se impõe às elites que nos governam. Por isso entendemos que é necessária uma grande INICIATIVA SOCIAL que nos ajude a organizarmo-nos, fazermo-nos reconhecer e tornarmo-nos visíveis com todo o potencial que albergamos.

Chegou o momento de impulsionar a independência popular face a outras estruturas para podermos dar um passo em frente e nos erigirmos como povo para vencer. Superar a simples defesa do que já foi alcançado para passar à ofensiva. Impulsionar a auto-organização e o autogoverno para recuperarmos a confiança na nossa capacidade para atingirmos uma sociedade livre e igualitária. Conquistar em conjunto uma verdadeira democracia:

. DEMOCRACIA ECONÓMICA, com um modo de produção que sibstitua o capitalismo pela economia de propriedade colectiva, gerida pelos produtores e consumidores de forma cooperativa.

. DEMOCRACIA POLÍTICA, com um regime que substitua o Estado pela decisão confederal com todas as pessoas que habitam cada território em pé de igualdade.

.DEMOCRACIA DE PARTICIPAÇÃO DIRECTA E EFECTIVA, com representantes que cumpram o que for decidido pelos seus representados e sejam revogáveis a qualquer momento.

. DEMOCRACIA INCLUSIVA DE TODOS E PARA TODOS, que escute, tenha proximidade e compreenda que no mundo há muitos mundos, que assuma e integre todas as lutas que procuram uma mudança para uma sociedade mais igualitária.

. UMA DEMOCRACIA LIBERTÁRIA, DAS PESSOAS E NÃO DOS MERCADOS.

Para isso consideramos como necessárias as iniciativas que actuem nas organizações de trabalhadores e trabalhadoras, de vizinhos e vizinhas, nas cooperativas, nas organizações feministas e de estudantes. Fomentando a sua melhoria qualitativa e quantitativa, a sua democracia interna e a sua eficácia. Actuando para favorecer a sua autonomia face à administração e aos partidos ou candidaturas eleitorais e de forma a respeitar a sua pluralidade interna.

Iniciativas que sejam capazes de elaborar análises e discursos para que possam ser identificadas as necessidades de cada momento e aumentar a nossa preparação como activistas. Que sejam capazes de elaborar estratégias sobre as quais se construa a democracia e que nos permitam acumular forças enquanto caminhamos nessa direcção. Agindo com humildade e reconhecendo a pluralidade existente porque é o povo, e não os projectos ou siglas concretas só por si, quem pode conseguir novos avanços”.

Tradução Portal Anarquista

Aqui: https://construyendopueblofuerte.wordpress.com/

*O manifesto foi apresentado em 19 de fevereiro de 2015 (Nota do coletivo Anarquia ou Barbárie)

Face aos projectos eleitoralistas, espaços e activistas libertários procuram novas formas organizativas – Uma alternativa ao Podemos e a outros movimentos eleitoralistas [Estado espanhol]

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Fonte: Coletivo Libertário Évora

No Estado Espanhol continua viva a discussão em torno da necessidade de criar organizações que coordenem a actuação dos diversos espaços e activistas libertários, cuja acção decorre sobretudo junto dos movimentos sociais.

No campo sindical, o espaço libertário possui duas organizações fortes, a CNT e a CGT (sendo mesmo, em número de militantes, a CGT a terceira central sindical no Estado Espanhol, depois das CCOO e da UGT), mas no campo específico do movimento libertário têm sido criadas diversas estruturas com pouco peso e pouca relevância.

A FAI junta somente alguns grupos e mesmo assim, apenas de afinidade, quando hoje muitos militantes preferem organizar-se por locais de residência ou por interesses específicos.

Na Catalunha existe já desde há algum tempo o projecto de criação de uma organização de coordenação libertária – o Procés Embat -, enquanto que diversos activistas têm avançado propostas também nesse sentido, como é o caso de Carlos Taibo.

Construindo um povo forte”

Hoje uma nova proposta nesse caminho foi apresentada publicamente em Madrid. Sob o lema “Construindo um povo forte”, o manifesto agora divulgado refere que “é o povo, e não os projectos ou siglas concretas só por si, quem pode conseguir novos avanços” sociais.

Segundo o Periódico Diagonal, este novo projecto pretende servir de espaço de confluência para colectivos e pessoas que, face aos projectos surgidos à volta da via eleitoral, apostam pela mobilização a partir de baixo.

À margem das iniciativas eleitorais

Tudo parte do famoso 15M. Muitas das pessoas que militávamos em movimentos sociais vimos nesse momento que o debate político ultrapassava as fronteiras dos novos movimentos e chegava à sociedade”, diz Dilia Puerta, militante feminista e participante neste processo. “Todos, pessoas de diferentes ideais políticos com diferentes perspectivas, sentiamo-nos amparados por baixo do chapéu de chuva do “não nos representam”. Esse “não nos representam” teve diversas consequências e desembocou em diferentes iniciativas, algumas delas optando por tentarem mudanças por via eleitoral”, continua Puerta. “A grande pergunta é como e onde nos colocamos nós, as pessoas que se sentem reticentes face a estas vias”, conclui.

Uma vida que mereça ser vivida

A iniciativa “Construindo povo forte” nasceu há cerca de um ano em fóruns da internet, nos quais militantes de colectivos libertários impulsionaram um debate em torno da forma de actuar frente à nova situação social e política. Nele têm participado desde militantes feministas a sindicatos. Em geral “qualquer pessoa com vontade de reflectir mais profundamente, que seja capaz de participar na criação de um espaço de confluência, em que possam ser gerados debates que vão até à raiz”, explica a activista Lorea Moral, que ressalta a necessidade de “tirar o dinheiro do centro e pôr a vida no seu lugar, não qualquer vida, mas sim uma vida que mereça ser vivida”. “Uma mudança assim tão radical é difícil que seja conseguida por via eleitoral”, conclui Lorea Moral, citada pelo  jornal alternativo “Diagonal”.

Uma alternativa ao Podemos e a outros movimentos eleitoralistas

No fundo, é a procura de uma resposta libertária para construir uma alternativa coordenada em torno dos diversos espaços e activistas que não passe pela via eleitoral e possa servir de alternativa também a todos aqueles que não se revêem em processos como o do Podemos ou similares, construídos a partir dos movimentos autónomos, mas centralistas e com uma visão autoritária e eleitoralista da vida política e social.

No último ano e meio várias iniciativas têm vindo a rearticular o movimento libertário em Espanha: a Federacão Estudantil Libertária e a Federação Estudantil Anarquista (para a Catalunha), a Federação Anarquista de Catalunha, el Procés Embat (também da Catalunha), o Espaço Libertário de Madrid, o Conceyu Anarquista Asturianu, a Federación Anarquista de Gran Canaria, o C.R.A. e as numerosas assembleias libertárias nas universidades, bairros e concelhos, que se espera possam fortalecer a alternativa libertaria, convertendo-a num actor político real a nivel estatal.

 

Pontes entre O Anarquismo e O Confederalismo Democrático

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Fonte: Kurdish Question, em 19 de Fevereiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Texto original por Bruno Lima Rocha

Introdução: discutindo o modelo de partido e sua missão   

Desde o início do cerco a Kobane pelo Daesh (ISIS), a esquerda curda, e, especificamente, o modelo de organização social em Rojava tem sido estudado e seguido por várias organizações, ativistas, redes e estudiosos comprometidos. Decidi colaborar com KurdishQuestion.com para produzir uma série de artigos curtos para expor (e provar) as semelhanças entre a tradição ocidental (e não ocidental também) anarquista e o Confederalismo democrático. Enquanto uma das minhas áreas centrais de estudo é a teoria política (e teoria política radical), decidi ajudar na elaboração dos paralelos entre os dois caminhos e familiarizando-os um ao outro. Espero que isso ajude e todas as críticas são bem vindas. 

Apresentação

O modelo de partido anarquista apresentado nesta série não é uma inovação em si mesmo para a teoria política e teoria política radical, e nem mesmo para a tradição de esquerda. Se os estudos sobre o tema são bastante desconhecidos (ou parecem ser novos ou inexistente), se este formato de organização política não se tornou um objeto de estudo (ou reconhecido como o modelo de partido para a auto-gestão e de democracia direta), isto ocorre devido à correlação de forças dentro do mainstream acadêmico, às derrotas sofridas pelos anarquistas classistas desde 1939 e também por causa da ausência de debates no seio da comunidade de esquerda, o espectro acadêmico e da mídia mainstream. Este modelo aproxima os militantes dentro de uma organização política especifica que adere a um corpo ideológico-doutrinário (também conhecido como partido de quadros). Porque não é uma proposta de massa, que tem o formato de ter a associação composta por quadros políticos, sem filiação aberta e cujo grau de compromisso aumenta à medida que eles entram mais para os círculos concêntricos (ver Bakunin). Tal modalidade adquiriu definições na história, tais como: organicismo, plataformismo, especifismo; todos estes são sinônimo da definição do partido anarquista (federação específica).

Introdução ao Papel do Partido

O modelo da matriz de esquerda libertária e a perspectiva apresentada nesta série, representa uma possível aplicação de um campo de intenções, motivações normativas e interesses estratégicos na América Latina em geral, e no Brasil, em particular. Mas, presumimos, que, desde que nos conhecermos melhor, as possibilidades de desenvolvimento político será reforçada a partir da experiência real na região oeste do Curdistão e o debate interno sobre o pensamento no contexto do PKK. É muito interessante entender que a missão desse partido não é ser parte de um poder institucional do Estado-Nação, mas ajudar na construção de uma sociedade baseada em legítimos direitos (individuais e coletivos), a auto-gestão, e da democracia direta e radical, e o mais longe possível do industrialismo e de uma economia centrada no mercado. A hipótese formulada dentro da perspectiva de uma verdadeira democracia social é a ação da minoria política como uma unidade para acumulação de força e radicalização democrática a longo prazo. Se nós compararmos este simples pressuposto e definição, podemos observar muitas semelhanças entre essa perspectiva e um escrito do companheiro Abdullah Ocallan em 2011:

“Enquanto isso, os Estados-nação se tornaram sérios obstáculos para qualquer desenvolvimento social. Confederalismo Democrático é o paradigma contrastante das pessoas oprimidas. Confederalismo Democrática é um paradigma social não-estatal. Ele não é controlado por um Estado. ” (Do website PKK em Inglês)

É óbvio que ninguém deve criticar este modelo de partido para não competir por posições institucionais dentro de um modelo de Estado-nação, quando sua missão está longe disso. Parto do princípio que determinadas condições prévias estão sempre presentes. Todo “modelo de partido” inclui em sua formatação de condições e regras pelo qual este partido/organização política vai seguir e o caminho que esta instituição (legal ou ilegal) está disposta a tomar de acordo com seus objetivos de médio e longo prazo. A fim de ser teoricamente coerente, é necessário apresentar modelos que podem ser testados, mas, acima de tudo, modelos que possam ser aplicáveis de acordo com as hipóteses sugeridas.

Eu discuto a organização política militante específica que adere a um corpo ideológico e doutrinário. Por outro lado, porque não é uma organização de massas que se estrutura dentro de quadros, sem filiação aberta e cujo nível de comprometimento ocorre dentro de círculos concêntricos, aumentando o nível de compromisso de acordo com o poder de votar e ser votado para os papéis principais atribuídos na estrutura interna. Essa concepção não pode ser mal compreendida ou interpretada equivocadamente. Ou, ninguém deve entender isso como uma espécie de “partido único de boas intenções”, mas como uma concepção estratégica que garanta que os quadros e estruturas partidárias serão colocados a serviço e dever de ajudar a construir novas instituições políticas com base em uma sociedade horizontal e igualitária. O fracasso do modelo de partido na URSS ou outras variações com base na liderança autoritária, centrada no Estado e no industrialismo provam que todo o pensamento de esquerda deve fazer uma grande autocrítica e reconhecer que as condições materiais devem amadurecer juntamente com as condições morais, ecológicas e fraternais. Apenas uma estrutura partidária dedicada a esta causa pode manter uma luta de longo prazo, alimentando projetos sociais, como o fez nas lutas de massa sindicais da América Latina no início do século 20, e como é hoje em dia com a União das Comunidades do Curdistão ( KCK) ou TeV-DEM especificamente em Rojava.

Denominações desta tradição dentro do anarquismo

Vou terminar este primeiro artigo curto lembrando a definição do modelo de partido anarquista. Apesar de não ser exclusivo, este tipo de organização é geralmente considerado como típico da ideologia anarquista: um modelo federal e não-massivo. Ao menos que ele não seja um modelo de partido de vanguarda como os partidos leninistas clássicos, os quadros do partido devem ser aqueles que reforçam a luta de massas e que serão tomadas por todas as comunidades, permitindo que elas tomem o seu próprio destino por e através de assembleias populares. Esta filiação partidária ocorre por meio de círculos concêntricos e com a preparação de militantes que possuem várias funções. Este tipo de modelo adquiriu definições ao longo de sua história, e todos eles também podem ser identificados com a definição do modelo de partido anarquista. Este modelo adquiriu definições específicas ao longo de sua história, como organicismo, plataformismo, especifismo.

Fui muito feliz em descobrir que estas duas tradições aparentemente distantes estão realmente tão próximas umas das outras. Essa proximidade pode ser facilmente detectada em uma simples leitura dos documentos, tanto do PKK quanto destas tradições anarquistas. A tradição e as experiências no Curdistão lideradas pelo PKK podem alimentar as tradições anarquistas de todo o mundo e vice-versa. Esta perspectiva é animadora e é a principal motivação por trás da razão para esta série de artigos curtos.

Bruno Lima Rocha é Doutor e Mestre em Ciência Política e professor de Estudos e Geopolítica Internacional em 3 universidades no Sul do Brasil.

site: www.estrategiaeanalise.com.br
e-mail: strategicanalysis@riseup.net
facebook: blimarocha@gmail.com

[Curdistão] Surge uma Guerrilha Anarquista em Rojava

Postado em Jornal Bandeira Preta, Contrainformação Anarquista
Por JBP, em 06 de fevereiro de 2015
Fonte original: SOSYAL SAVAŞ

(Bandeira anarco-ecologista)

(Bandeira anarco-ecologista)

Recentemente um grupo de anarco-ecologistas da Turquia e outro da Espanha, assim como anarco-ecologistas de vários lugares do mundo, conjuntamente, somaram-se as Forças Unidas de Libertação (BOG), ”Birleşik Özgürlük Güçleri”, de Kobane (Rojava), formando uma frente internacionalista de combatentes anarquistas e comunistas.

Eles fizeram um chamado não só para anarquistas de varias tendências de todo o mundo, mas também a libertários, ecologistas e anti-capitalistas, a se somarem à luta e ao apoio desta revolução social. Cada um com sua língua e cor, através da auto-organização e solidariedade, mobilizando-se em rebeldia.

A guerrilha anarquista se comprometeu em continuar apoiando a defesa de Kobane e Rojava como um todo, assim como ajudar na reconstrução da vida comunal no local recém liberado.

O teórico que deu origem ao “Confederalismo Democrático”, a proposta revolucionária sendo atualmente implantada em Rojava, foi Murray Bookchin, um famoso ambientalista bem próximo dos ideais anarquistas, que escreveu sobre o “Municipalismo Libertário”.

(A cidade de Kobane, destruída após a batalha contra o “Estado Islâmico”)

(A cidade de Kobane, destruída após a batalha contra o “Estado Islâmico”)

(Anarquistas e comunistas somando forças para uma frente internacionalista em Rojava)

(Anarquistas e comunistas somando forças para uma frente internacionalista em Rojava)

Os anarquistas e a geografia urbana (2): Reclus

Poster comemorativo para os jovens libertários (DD LL) da Catalunha, de 1937. "A anarquia é a mais alta expressão da ordem".

Poster comemorativo para os jovens libertários (DD LL) da Catalunha, de 1937.
“A anarquia é a mais alta expressão da ordem”.

Postado em Passa Palavra, em 30 de novembro de 2014

Com Élisée Reclus, aprende-se que a ação humana sobre o meio circundante, e a influência do meio sobre a ação humana, são fatores determinantes para o desenvolvimento das cidades. Que as cidades e suas relações recíprocas podem ser concebidas de outras formas que não aquelas pautadas pelas necessidades do Estado e das empresas. Por Manolo

Leia aqui a primeira parte do artigo.

2 Elisée Reclus, pioneiro da geografia urbana

Élisée Reclus (1830-1905) é um dos fundadores da geografia moderna, junto com Paul Vidal de la Blache, Carl Ritter, Jean Brunhes e Friedrich Ratzel. Tido como um dos principais geógrafos do seu tempo, chegou inclusive, graças à sua reputação, a contribuir para a solução de problemas diplomáticos internacionais [1]. Sua militância política e o forte acento social e histórico de sua geografia, entretanto, levaram os outros fundadores da geografia moderna – e seus discípulos – a dizer, textualmente, que sua obra “contém interessantes pontos de vista geográficos, mas que é sobretudo história e sociologia”.

2.1 Meio-espaço, meio-tempo, ação recíproca e as “leis” da geografia social

Élisée Reclus

A metodologia de Élisée Reclus é, num primeiro contato, estranha:

No estudo das características diversas do planeta, em suas reações mútuas de justaposição e influência, nas mudanças provocadas pela série das eras, o elemento de comparação que sempre teremos diante dos olhos será a sociedade humana. A história da Terra e aquela da humanidade em suas ações e reações continuadas, desde as origens conhecidas até os tempos que se preparam, serão o objeto de nosso estudo. Para resumir nosso pensamento, buscaremos seguir a evolução da humanidade em relação às formas terrestres e a evolução das formas terrestres em relação à humanidade (RECLUS, 2010a, p. 78-79)

Haveria em Reclus mais que relações, mas praticamente uma unidade entre sociedade e natureza, quase rompendo a distinção physis/nomos herdada há milênios da ontologia aristotélica? A dificuldade da empreitada ontológica era reconhecida pelo próprio Reclus:

É verdade, eu sabia de antemão que nenhuma pesquisa far-me-ia descobrir essa lei de um progresso humano cuja miragem sedutora agita-se incessantemente em nosso horizonte, e que foge de nós e dissipa-se para recriar-se uma vez mais […] Não, mas podemos ao menos, nessa avenida dos séculos que os achados dos arqueólogos prolongam constantemente naquilo que foi a noite do passado, reconhecer a íntima ligação que une a sucessão dos fatos humanos à ação das forças telúricas: é-nos permitido perseguir no tempo cada período da vida dos povos correspondendo à mudança dos meios, observar a ação combinada da Natureza e do próprio Homem, reagindo sobre a Terra que o formou. (RECLUS, 2010a, pp. 45-46)

Mais modestamente, o que Reclus propôs foi uma análise simultaneamente sincrônica e diacrônica do espaço: “Ao meio-espaço, caracterizado por milhares de fenômenos exteriores, deve-se ajuntar o meio-tempo, com suas transformações incessantes, suas repercussões sem fim” (RECLUS, 1905a, p. 110). Para Reclus, ao contrário de muitos deterministas seus contemporâneos, não havia qualquer primazia do meio natural sobre o homem:

…todas estas forças [naturais] variam de lugar em lugar e de época em época; é portanto em vão que os geógrafos têm ensaiado classificar numa ordem definitiva, a série de elementos do meio que influem sobre o desenvolvimento de um povo; os fenômenos múltiplos, entrecruzados da vida não se permitem enumerar numa ordem metódica. […] A história da humanidade, em seu conjunto e suas partes, não se pode assim explicar pela soma dos meios com “juros compostos” pela sucessão dos séculos; mas para entender a evolução que se realiza, também temos de apreciar em que medida os próprios meios evoluem pelo fato da transformação geral [da sociedade] e modificam sua ação em consequência. […] Há também os aspectos da natureza que, sem haver mudado em nada, não deixam de exercer uma ação completamente diferente por efeito da história geral [da sociedade] que modifica o valor relativo de todas as coisas. (RECLUS, 1905a, p. 112-114)

Meio-tempo, meio-espaço e ação combinada e recíproca da Natureza e do Homem – desfazendo, assim, qualquer fetiche naturalista ou de certo ecologismo vulgar hoje em moda – são conceitos-chave da geografia social, cujas três “leis” Reclus sintetizou:

A primeira categoria de eventos que o historiador constata mostra-nos como, por efeito de um desenvolvimento desigual entre os indivíduos e sociedades, todas as coletividades humanas, à exceção das tribos permanecidas no naturismo primitivo, se desdobram, por assim dizer, em classes ou castas, não somente diferentes, mas opostas em interesses e tendências, mesmo francamente inimigas em todos os períodos de crise. […] O segundo fato coletivo, consequência necessária do desdobramento dos corpos sociais, é que o equilíbrio rompido de indivíduo a indivíduo, de classe a classe, se equilibra constantemente em torno de seu eixo de repouso: a violação da justiça clama sempre por vingança. Daí as incessantes oscilações. […] Um terceiro grupo de fatos, ligando-se ao estudo do homem em todas as épocas e todos os países, atesta-nos que nenhuma evolução na existência dos povos pôde ser criada senão pelo esforço individual. É na pessoa humana, elemento primário da sociedade, que se deve buscar o choque impulsivo do meio, destinado a se traduzir em ações voluntárias para disseminar as ideias e participar das obras que edificarão o comportamento das nações. O equilíbrio das sociedades só é instável pela perturbação imposta aos indivíduos em sua franca expansão. A sociedade livre estabelece-se pela liberdade fornecida em seu completo desenvolvimento a cada pessoa humana, primeira célula fundamental, que, em seguida, agrega-se e associa-se como lhe apraz às outras células da mutável humanidade. […] A “luta de classes”, a busca do equilíbrio e a decisão soberana do indivíduo, tais são as três ordens de fatos que nos revela o estudo da geografia social e que, no caos das coisas, mostram-se assaz constantes para que se possa dar-lhes o nome de “leis”. (RECLUS, 1905a, pp. II-IV; 2010a, pp. 47-50)

2.2 A geografia urbana de Reclus

Aldeias normalmente espaçadas (de L'homme et la terre)

Muito à frente de seu tempo, e graças à influência de Piotr Kropotkin, Élisée Reclus foi um dos primeiros geógrafos a dedicar atenção especial às cidades – e entre os pioneiros da disciplina, foi o que mais analisou a questão.

Entre as obras de Élisée Reclus, a Nouvelle Géographie Universelle (19 volumes) fez muito sucesso na época de sua publicação (1876-1894). É uma descrição extremamente minuciosa e rigorosa do “estado do mundo” na época, riquíssima em dados demográficos, corográficos, econômicos, topográficos, cartográficos, geológicos etc. Nesta obra, Reclus divide internamente os países em zonas de influência (com bastante riqueza e detalhe), zonas de vegetação (com menor impacto na obra), a pertença étnica de sua população (onde isto se aplicava) e… a “rede urbana”, entre muitas aspas. Nesta obra Reclus não conceituou a rede, não estruturou abstratamente a hierarquia entre cidades; apenas identificou empiricamente fatos concretos que se repetiam e os descreveu o mais detalhadamente possível, sem extrair deles qualquer teoria geral.

Já em L’homme et la terre (1905-1908, 6 vols.) as intuições reclusianas sobre “rede urbana” chegam ao nível de uma primeira teoria sobre o assunto, especialmente no capítulo II do livro IV, intitulado ”Répartition des hommes” (Repartição dos homens). Este pequeno ensaio – 41 páginas no original francês (RÉCLUS, 1905b, pp. 335-376) – é repleto de ideias sobre questões como causas do êxodo rural na Europa; vantagens da convivência urbana; fatores de atração locacional na fundação de cidades; relação entre agricultura, clima e relevo na formação de cidades; método para estudo da “personalidade” e do “caráter” de uma cidade tal como se apresenta através da acumulação de obras, construções, aglomerações, bairros etc.; morfologia urbana; especulação imobiliária; usos militares da malha urbana; indústria e poluição; estética e monumentos urbanos; saneamento urbano; relação entre meios de transporte e suburbanização; cidades-jardim (Port Sunlight, Bourneville, Letchworth); superpopulação urbana, concentração urbana e sua perspectiva futura.

O ponto central deste ensaio é a teoria da localização urbana e hierarquização entre cidades. Se considerarmos o “panteão” da teoria da localização econômica como composto por Johann Heinrich von Thünen (1783-1850), Alfred Marshall (1842-1924), Alfred Weber (1868-1958), Walter Christaller (1893-1969) eAugust Lösch (1906-1945) e verificarmos certo grau de formalização matemática de suas teorias como elemento comum, faltou apenas isto para que Élisée Reclus fosse incluído neste rol. Toma-se aqui a liberdade de expor os pontos centrais da teoria da localização urbana e hierarquização entre cidades de Élisée Reclus numa só e longa citação:

Aldeias anormalmente espaçadas (de L'homme et la terre)

Se a Terra fosse completamente uniforme em seu relevo, na qualidade do solo e nas condições do clima, as cidades ocupariam uma posição geométrica, por assim dizer: a atração mútua, o instinto de sociedade, a facilidade das permutas as teriam feito nascer a distâncias iguais umas das outras. Tendo em vista uma região plana, sem obstáculos naturais, sem rio, sem porto, situada de uma maneira particularmente favorável, e não dividida em Estados políticos distintos, a maior cidade teria sido construída diretamente no centro do país; as cidades secundárias ter-se-iam distribuído a intervalos iguais sobre o território, espaçadas ritmicamente, e cada uma delas teria seu sistema planetário de cidades inferiores, tendo seu cortejo de vilarejos. A distância normal de uma jornada de marcha, tal deveria ser, sobre uma planície uniforme, o intervalo entre as diversas aglomerações urbanas; o número de léguas percorridas por um caminhante comum entre a aurora e o crepúsculo, sejam doze ou quinze correspondendo às horas do dia, constitui a etapa regular de uma cidade à outra. A domesticação dos animais, depois a invenção da roda, e, em seguida, das máquinas, modificaram, gradual ou bruscamente, as medidas primitivas: o passo da montaria, depois o giro do eixo da roda determinaram a distância normal entre as grandes reuniões de homens. Quanto aos vilarejos, sua distância média tem por medida o percurso que pode fazer o agricultor empurrando seu carrinho de mão carregado de feno ou de espigas. A água para o gado, o transporte fácil dos frutos do solo, eis o que regula a localização do estábulo, do celeiro e da cabana. Entre as regiões povoadas há muito tempo e ainda apresentando na distribuição urbana de seus habitantes as distâncias primitivas, encontramos, na aparente desordem das cidades, uma ordem de repartição que foi, evidentemente, outrora regulada pelo passo dos caminhantes. […] [P]odemos constatar a surpreendente regularidade com a qual se distribuíram as aglomerações urbanas antes que as explorações mineiras e industriais viessem perturbar o equilíbrio natural das populações. […] Entre a capital [Paris] e os centros administrativos de segunda ordem, fundaram-se, em intervalos sensivelmente iguais, cidades menores, mas ainda consideráveis, separadas por uma dupla etapa, de vinte e cinco a trinta “léguas”: Orléans, Tours, Poitiers, Angoulême. Enfim, a meio caminho de cada um desses centros de terceira ordem, formaram-se cidades modestas, indicando a etapa média: Etampes, Amboise, Châtellerault, Ruffec, Libourne. Assim, o viajante, atravessando a França, encontrava alternativamente uma cidade de simples repouso e uma cidade de completo reconforto: a primeira bastava ao pedestre, a segunda convinha ao cavaleiro. Em quase todas as estradas o ritmo das cidades produz-se do mesmo modo, cadência natural regulada pela marcha dos homens, dos cavalos e das carruagens.

Cidades europeias com pelo menos 100 mil habitantes (de L'homme et la terre)

As irregularidades da rede das etapas explicam-se todas pelas características do relevo, pelo curso dos rios, pelos mil contrastes da geografia. […] Todas as condições da natureza, agrícolas, geográficas, climáticas, influem para bem ou para mal no desenvolvimento das cidades. Cada vantagem aumenta sua força de atração, cada desvantagem a diminui. A grandeza dos grupos urbanos mede-se exatamente pela soma dos privilégios naturais, admitindo, evidentemente, que a ambiência histórica seja identicamente a mesma. Duas cidades, uma da África, a outra da Europa, encontrando-se em condições similares, serão contudo muito diferentes, porquanto a evolução da história circundante difere para cada uma delas: no entanto, haverá paralelismo em seus destinos. […] [D]ois centros urbanos próximos influenciam-se mutuamente, seja para desenvolver-se juntos quando seus interesses completam-se […], seja para prejudicar-se quando os privilégios são da mesma ordem […]. Depois das vantagens do clima e do solo, aquelas do sub-solo exercem, às vezes, uma influência decisiva. […] Cada conquista do homem cria pontos vitais em locais imprevistos […] Que mudança rápida na repartição das cidades quando o homem tornar-se senhor da aviação, da aeronáutica! (RECLUS, 2010, pp. 38-41, 46-48)

Modelos deste tipo são uma das três teorias fundamentais da geografia atual juntamente com a renda fundiária e a difusão – o que leva a considerar Reclus não apenas como um precursor em matéria de análise urbana, mas igual e claramente como um dos fundadores da geografia contemporânea (BOINO, 1999).

Mais especificamente, a rede urbana e a hierarquização entre cidades são dois conceitos fundamentais comumente associados a Walter Christaller e sua teoria das localidades centrais,criada em 1933 a partir da observação empírica da rede urbana da Alemanha meridional, ou a George Kinglsey Zipf e sua criação daregra da ordem-tamanho em 1935. Roberto Lobato Corrêa (CORRÊA, 1989, p. 20) aponta que muitas das ideias sobre a rede urbana e a hierarquização de cidades já estava presentes nas obras do economista franco-irlandês Richard Cantillon (1755), do filósofo saint-simoniano francês Jean Reynaud (1841) e do engenheiro francês Léon Lalanne (1863); como se vê, Élisée Reclus já ultrapassa o status de precursor e apresenta uma teoria muito refinada da rede urbana e da hierarquização entre cidades.

Aldeias agrícolas e industriais (de L'homme et la terre)

Além disso, quando comparada, por exemplo, com a teoria dos lugares centrais de Walter Christaller, a teoria da localização e hierarquização urbanas de Reclus mostra-se mais dinâmica, flexível e pragmática. Enquanto o modelo reclusiano de hierarquização urbana funda-se nodesenvolvimento tecnológico, no deslocamento humano (e no alargamento tecnológico do alcance deste deslocamento) e nas necessidades do trabalho, o modelo christalleriano está totalmente enraizado no consumo de bens centrais [2]; o modelo reclusiano, deste modo, é muito mais útil a um planejamento do espaço urbano feito por trabalhadores em função de suas próprias necessidades que o modelo christalleriano, perfeito para planejar o espaço na perspectiva do Estado e das empresas.

2.3 O resgate da obra de Reclus

Lançada ao esquecimento por décadas, a obra de Élisée Reclus foi resgatada entre os anos 1960 e 1970 por Yves Lacoste e David Harvey. Atualmente, Federico Ferretti e Phillipe Pelletier esforçam-se mais detidamente para fazer pontes entre a obra de Reclus e temas como colonialismo e estudos pós-coloniais, educação popular e geopolítica.

No Brasil, país objeto de monografia específica de Reclus (Reclus, 1900), até onde foi possível pesquisar nenhuma obra de Reclus havia sido publicada desde o início do século XX até 1985, quando sai publicada na coleção “Grandes Cientistas Sociais”, da editora Ática, uma coletânea de trechos da obra reclusiana.

Graças ao esforço pioneiro de Plínio Augusto Coelho, que traduz e publica escritos anarquistas desde 1989 através da editora Imaginário, capítulos da obra L’homme et la terre estão sendo traduzidos para o português e publicados na forma pequenos livros.

E o interesse por Reclus já chegou à academia brasileira: entre 6 e 10 de dezembro de 2011 realizou-se, na USP, o colóquio internacional “Élisée Reclus e a geografia do novo mundo”, cujas memórias estão disponíveis na internet (https://reclusmundusnovus.wordpress.com/memorias/). Tudo isto é plenamente justificado:

Apesar da utilização de metáforas biológicas, o texto de Reclus interessa pela visão dos processos, pela explicação teórica dada para a fundação das cidades, entre outras, como, por exemplo, a indicação de especuladores como agentes do desenvolvimento urbano. (VASCONCELOS, 2012, p. 65)

Élisée Reclus, 1903

Em tempos de efervescência das lutas sociais urbanas, a obra de Élisée Reclus – descontado, evidentemente, o evolucionismo quase pueril que a atravessa em dados momentos (RECLUS, 2002) – é extremamente útil para quem projeta o desenvolvimento territorial urbano por fora dos esquemas estatais e empresariais, em conjunto ou a partir dos movimentos sociais.

3 Conclusão: atualidade do pensamento anarquista sobre cidades

Em tempos de “crise do pensamento crítico” – que não é outra coisa além da crise do pensamento marxista (SOUZA, 2010, pp. 2-4), posto pelos fatos diante de seus próprios limites e pouco capaz de superar a si próprio como orienta seu próprio fundador – o que trazem os anarquistas de relevante para entender a questão urbana hoje?

Com Kropotkin, aprende-se que é impossível conceber qualquer luta social desgarrada do espaço que é seu palco e da história de lutas pregressas pelo uso e produção deste mesmo espaço. Que as cidades foram, desde tempos muito recuados, palco de lutas libertárias que deixaram traços e rastros no tempo e no espaço, capazes de elucidar o conteúdo e o sentido das lutas do presente. Que somente a ação direta dos explorados e oprimidos pode apresentar soluções viáveis e duradouras para a questão urbana.

Com Élisée Reclus, aprende-se que a ação humana sobre o meio circundante, e a influência do meio sobre a ação humana, são fatores determinantes para o desenvolvimento das cidades. Que as cidades e suas relações recíprocas podem ser concebidas de outras formas que não aquelas pautadas pelas necessidades do Estado e das empresas.

E que lições se tira disto?

Em primeiro lugar, a indissociabilidade entre espaço e política. A dimensão espacial, para os anarquistas, é tão importante quanto as dimensões social, política, histórica ou econômica, pois é seu substrato. Pensar a história, a política, a economia ou a sociedade sem o espaço, para os anarquistas, é pensar em abstrações dissociadas da realidade – o que, tendo em vista o horizonte político de uma sociedade sem Estado e sem patrões, construída a partir da iniciativa dos trabalhadores auto-organizados, é um perigo.

Barricada na Comuna de Paris. Por lutar nas barricadas da Comuna, Reclus passou o resto da vida no exílio.

Em segundo lugar, a centralidade da cidade e do espaço urbano para as lutas políticas. A cidade é tida pelos anarquistas como espaço fundamental da democracia, das relações face-a-face, da experiência vivida; não por acaso, propugnam novas formas de política e de produção econômica que emerjam do simples ao complexo, do indivíduo à sociedade, do local ao global. Em tempos de globalização corporativa, de sociedade de controle e de império, é um legado importantíssimo.

Em terceiro lugar, a compreensão da produção do espaço urbano pelas lutas sociais. Não há um só entre os anarquistas analisados neste artigo que reflita sobre o desenvolvimento das cidades e a produção do espaço urbano fora de um contexto de lutas sociais; pode-se dizer, assim, que para os anarquistas o espaço é produto das lutas pelo seu uso e produção.

Em quarto lugar, a ação direta como método para a solução da questão urbana. Vivemos um tempo de burocratização de movimentos sociais (PASSA PALAVRA, 22 ago. 2010) e de progressivo atrelamento de movimentos sociais a políticas governamentais (PASSA PALAVRA, 05 fev. 2012).

Um tempo de enredamento dos movimentos de luta por moradia em programas governamentais como o Minha Casa, Minha Vida (MANOLO, 01 abr. 2012; PASSA PALAVRA, 01 jun. 2014; 08 jun. 2014; 15 jun. 2014).

Um tempo de escolhas difíceis para os movimentos urbanos: manter a autonomia frente ao Estado e às empresas do setor imobiliário e construir as lutas num modelo autogestionário de ação direta, sem resultados fáceis e na contramão do consenso generalizado, ou avançar em conquistas pontuais, mas submetendo-se aos dispositivos políticos, sociais e econômicos de dominação do Estado e das empresas?

O paradigma anarquista de compreensão da questão urbana, se não apresenta soluções diretas e imediatas para estes reptos, problematiza e chacoalha respostas teóricas consolidadas a estes problemas práticos; o desvelar desta crítica ausente, aqui, faz-se mais necessária do que nunca.

NOTAS

[1] “Pesquisando no acervo do Conselho Municipal da cidade de Genebra, encontramos um documento contendo afirmações que chamaram logo a nossa atenção. O fundo cartográfico Reclus-Perron conservado em Genebra possui particularmente um mapa manuscrito que o explorador Henri Coudreau (1859-1899) fez para Elisée Reclus (1830-1905). Ele foi decisivo para a arbitragem do Conselho federal suíço que julgou, em primeiro de dezembro de 1900, o contestado franco-brasileiro sobre as fronteiras entre o Brasil e a Guiana, anexando ao Brasil um território de 260.000 quilômetros quadrados.” (FERRETTI, 2013, p. 2)

[2] “Há uma conexão definitiva entre o consumo de bens centrais e o desenvolvimento de lugares centrais. O desenvolvimento daqueles lugares centrais cujos habitantes vivem da venda de bens centrais torna-se mais pronunciado se muitos bens centrais forem consumidos que se poucos bens centrais forem consumidos. […] O consumo dos bens centrais depende da distribuição da população, e especialmente do grau de aglomeração do próprio lugar central. Ademais, o consumo de bens centrais depende primariamente da demanda por mercadorias, que é determinada pela estrutura profissional e social, assim como pela infraestrutura de renda ou riqueza da população. O consumo de diferentes tipos de bens centrais é determinado pela quantidade disponível, pela lei da oferta e da procura e, sobretudo, pelo preço das mercadorias no lugar central. Este preço é determinado por fatores tais como renda, juro, salários e taxas. Além disso, a demanda depende do tamanho e da formação geográfica da região complementar. Estes fatores determinam o alcance da mercadoria; as condições particulares de transporte também desempenham papel importante. Quando determinamos o montante de consumo e a alocação da oferta de bens centrais, de acordo com os fatores mencionados, a questão sobre os tamanhos, locações e número dos lugares centrais pode, ao menos genericamente, ser respondida”. (CHRISTALLER, 1966, pp. 27-28)

REFERÊNCIAS

BOINO, Paul. “Plaidoyer por une géographie reclusienne”. Réfractions, nº 4, mar. 1999. Disponível na internet: http://refractions.plusloin.org/spip.php?article349. Acesso em 10 mai. 2014.

CHRISTALLER, Walter. Central places in Southern Germany. Nova Jérsei: Prentice-Hall, 1966.

CORRÊA, Roberto Lobato. A rede urbana. São Paulo: Ática, 1989.

FERRETTI, Federico. “O fundo Reclus-Perron e a controvérsia franco-brasileira de 1900: um mapa inédito que decidiu as fronteiras do Brasil”. Terra Brasilis (nova série), nº 2, 2013. Disponível na internet:http://terrabrasilis.revues.org/744 . Acesso em 10 jun. 2014.

MANOLO. ”’Há muito espaço para crescer’ (3ª parte)”. Publicado em 01 abr. 2012. Disponível na internet:/2012/04/54173. Acesso em 18 mai. 2014.

PASSA PALAVRA. “Entre o fogo e a panela”. Publicado em 22 ago. 2010. Disponível na internet:/2010/08/27717. Acesso em 18 mai. 2014.

_____________. “Estado e movimentos sociais”. Publicado em 05 fev. 2012. Disponível na internet:/2012/02/52448. Acesso em 18 mai. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte I)”. Publicado em 01 jun. 2014 Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte II)”. Publicado em 08 jun. 2014. Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

_____________. “Dilemas da luta por moradia (Parte III)”. Publicado em 15 jun. 2014. Disponível na internet:/2014/06/96027. Acesso em 03 jul. 2014.

RECLUS, Élisée. Estados Unidos do Brazil: geographia, etnographia, estatística. Rio de Janeiro: Garnier, 1900.

_____________. L’homme et la terre. Vol. 1. Paris: Librairie Universelle, 1905a.

_____________. L’homme et la terre. Vol. 5. Paris: Librairie Universelle, 1905b.

_____________. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2002.

_____________. Da ação humana na geografia física/Geografia comparada no espaço e no tempo. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2010a.

_____________. Renovação de uma cidade/repartição dos homens. São Paulo: Expressão e Arte/Imaginário, 2010b.

SOUZA, Marcelo Lopes de. “Uma geografia marginal e sua atualidade: a linhagem libertária”. Texto apresentado durante o Primeiro Colóquio Território Autônomo (UFRJ, 26 e 27 de outubro de 2010). Disponível na internet: http://territorioautonomo.files.wordpress.com/2010/10/uma-geografia-marginal-e-sua-atualidade2.pdf . Acesso em 15 mai. 2014.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Dois séculos de pensamento sobre a cidade. 2ª ed. rev. atual. Salvador: EdUFBA/Editus, 2012.

Nós os Ecologistas, nós os Anarquistas

bookchin

Fonte: Protopia

Murray Bookchin

Hoje em dia, nossa relação com o mundo natural está atravessando uma fase crítica que não tem precedente na história da espécie humana. Estudos recentes sobre o “efeito invernal” (esfriamento global?) conduzidos nos Estados Unidos, demonstram que temos que encontrar desde agora a maneira de fazer diminuir a porcentagem de monóxido de carbono presente na atmosfera na qual vivemos. Caso contrário, não somente ocorrerão graves mutações químicas, como também a própria sobrevivência da espécie humana estará em grave perigo.

Não se trata nada mais do que de um problema de contaminação pelos venenos com os quais nos alimentamos. A alteração dos grandes ciclos geoquímicos poderia por fim à vida humana sobre este planeta. De minha parte estou consciente da necessidade de reagir imediatamente para neutralizar os processos que estão deteriorando a Terra. Sou totalmente solidário à muitos grupos ambientalistas, e nos últimos 30 anos tenho estado envolvido cotidianamente em atividades para a defesa do ambiente: contra usinas nucleares, contra a construção de novas estradas, contra a destruição do solo e o uso descontrolado de pesticidas e de biocidas, e pela promoção da reciclagem e de um crescimento qualitativo, não só quantitativo.

Estes problemas ambientais têm me preocupado por anos e décadas, tanto quanto atualmente continuam me preocupando. Estou de acordo com vocês sobre a necessidade de bloquear os reatores nucleares e de por fim à contaminação da atmosfera, das terras agrícolas e dos cultivos, ou seja, de libertarmo-nos dos venenos que se estão difundindo por todo o planeta e que põem em perigo a nossa espécie e toda a vida. Compartilho com vocês tudo isso, mas gostaria de ir um pouquinho mais além com nossos Plateamentos.

De fato penso que é essencial o empurrar sempre mais além o nosso questionamento, porque não podemos seguir pondo mais remendos (parches) aqui e ali que não resolvam os verdadeiros problemas. Possivelmente conseguimos um dia fechar uma fábrica que polui (inquina) a atmosfera. Mas no fim, o que conseguimos? Uma nova usina nuclear. Vivemos em um mundo baseado em intercâbios e contrapartidas, e seguimos nos comportando de acordo com essas leis. Definitivamente, passando de um mal maior a um mal menor, e de um mal a outro mal, seguimos piorando a situação geral. Não se trata só de uma questão de usinas para a produção de energia – por mais importante que elas sejam -, nem tampouco o problema dos gases poluentes, nos danos que causamos à agricultura, ou o congestionamento e poluição dos centros urbanos.

O problema é outro mais grave: estamos simplificando o planeta. Estamos dissolvendo os ecossistemas que se formaram em milhares de anos. Estamos destruindo as cadeias alimentares. Estamos rompendo as ligações naturais e levando o relógio evolutivo a um atraso de milhões de anos no tempo. Para a época em que o mundo era muito mais simples e não se encontrava a possibilidade de sustentar a vida humana.

Uma Visão Do Mundo Mais Coerente

Não se trata de nada mais do que a tecnologia, mesmo que o controle tecnológico seja muito importante. É claro que necessitamos de uma tecnologia baseada na energia solar e na eólica, e necessitamos novas formas de agricultura. Sobre isso não há dúvidas, estamos todos de acordo. Mas existem problemas de fundo, muito mais graves que aqueles criados pela tecnologia e pelo desenvolvimento moderno. Temos que buscá-los nas próprias raízes do desenvolvimento. E, antes de tudo, temos que buscá-los nas origens de uma economia baseada no conceito de “crescimento”: a economia de mercado; uma economia que promove a competição e não a colaboração, que se baseia na exploração e não na harmonia. E, quando digo viver em harmonia, entendo não somente o fazê-lo com a natureza, senão com as próprias pessoas.

Temos que empurrar até a construção de uma sociedade ecológica que mude completamente, que transforme radicalmente, nossas relações básicas. Enquanto vivermos numa sociedade que marcha em busca de conquista e poder, fundada na hierarquia e na dominação, não faremos nada mais do que piorar o problema ecológico, independentemente das concessões e pequenas vitórias que conseguirmos ganhar. Por exemplo, na Califórnia, doaram-nos alguns hectares de árvores, e logo derrubaram (talado) bosques completos. Na Europa estão fazendo a mesma coisa.

Prometem acabar com as chuvas ácidas, e as chuvas ácidas seguem caindo. Decidem por no mercado alimentos naturais, não contaminados por pesticidas e, efetivamente, a porcentagem de veneno diminui, mas o pouco que resta está constituído pelos venenos mais perigosos para o organismo.

Nosso problema não é só melhorar o ambiente, ou parar as usinas nucleares, bloquear a construção de novas estradas, ou a construção, expansão e superpopulação das cidades, a contaminação do ar, da água e dos alimentos. A questão que temos que enfrentar é muito mais profunda.

Temos que chegar a uma visão de mundo muito mais coerente. Não temos que nos por a proteger os pássaros esquecendo-nos das usinas nucleares, e tampouco lutar contra as usinas nucleares esquecendo dos pássaros e da agricultura. Temos que chegar a compreender os mecanismo sociais e fazê-lo de uma maneira coerente.

Temos que focá-los numa visão coerente, uma lógica que prevê a longo prazo uma transformação radical da sociedade e da nossa própria sensibilidade. Até que essa transformação radical comece, conseguiremos pequenas coisas, de pouca importância. Venceremos algumas batalhas, mas perderemos a guerra, melhoraremos algo, mas não obteremos nenhuma vitória. Hoje em dia, vivemos em um momento culminante de crise ambiental que ameaça a nossa própria sobrevivência, temos de avançar até uma transformação radical, baseada em uma visão coerente que englobe todos os problemas. As causas da crise têm de aparecer, claras e lógicas, de maneira que todos nós, juntos, possamos entendê-las. Em outras palavras, todos os problemas ecológicos e ambientais são problemas sociais, que tem a ver fundamentalmente com uma mentalidade e um sistema de relações sociais baseadas na dominação e nas hierarquias. Estes são os problemas que nos oferecem, atualmente, a grande difusão da cultura tecnológica.

Nenhum Presente Da Parte Do Estado

O que então têm que fazer os Verdes? Antes de tudo, temos que clarear as idéias. Temos de evidenciar as relações existentes entre os problemas ecológicos e os problemas sociais.

Temos de demonstrar que uma sociedade baseada na economia de mercado, na exploração da natureza e na competição acabará por destruir ao planeta. Temos de fazer o possível para entendermos que se queremos resolver de uma vez por todas nossos problemas com a natureza, temos de nos preocupar com as relações sociais. O povo tem de entender que tudo precisa unificar-se em uma visão de mundo coerente, em uma visão baseada em análise, em uma crítica e em soluções de nível político, pessoal e histórico.

Isso significa dar outra a força ao povo. Temos de criar uma cultura política com uma visão libertária não limitada a um projeto que o estado execute. Temos de criar uma literatura política, uma cultura política que leve pessoas à participação, libertando-se, autonomamente, deste tipo de economia, de sociedade e de sensibilidade.

No movimento feminista, começa-se a discutir o tema da dominação do homem sobre a mulher, principiando na própria da família. Nos movimentos comunitários, se fala de necessidades na “escala humana” e de dar força aos bairros, às comunidades, s regiões.

Estes são os argumentos importantes que se discutem nos Estados Unidos. Em relação à tecnologia, não temos de nos preocupar somente com que esta seja mais eficiente e renovável, temos de inventar uma tecnologia criativa, que não só leve consigo um trabalho mais criativo, mas que contribua para melhorar o mundo natural, ao mesmo tempo que melhore o modo e a qualidade de nossas vidas.

Porém, tudo isso não nos será alcançado desde cima. Não pode ser um presente que o Estado nos faça. Não pode traduzir-se em uma lei salpicada por um Parlamento. Tem de ser fruto de uma cultura popular, de uma cultura política e ecológica difundida pelo povo. Então não teremos mais de elaborar estratégias libertárias que conduzam as pessoas, o povo, a participar do processo de transformação social, porque se não são as pessoas a querer mudar a sociedade, então não se efetuará nenhuma mudança real ou radical. Quando falamos de Ecologia, falamos de participação no mundo natural. Dizemos que nós, como seres humanos, compartilhamos a esfera da vida juntos, com todos os demais seres vivos, e com eles buscamos aplicar um sistema de relações que nos faça partícipes do eco-sistema.

Mas eu lhes pergunto, queridos amigos, se queremos ser Verdes, se queremos “reverdecer” o planeta: Como podemos fazê-lo sem reverdecer a sociedade mesma? E se queremos reverdecer a sociedade: Como podemos pensar em uma participação do mundo natural a qual tome em consideração a participação popular na vida social?! Se, antes de tudo, queremos conquistar o poder para mudar a sociedade, lhes garanto que vamos perder. E não só porque alguns de nós, com toda a força de boa fé, se encontraram no Parlamento buscando fazer coalizões, fazer alianças, e usar o poder desde cima. De alguma maneira, eles também tornaram-se líderes espirituais aspirantes ao poder. Agora, raciocinam em termos de “males menores”, de um mal “sempre menor” que, no final, nos levará ao pior de todos os males. Isto é o que a história sempre nos ensinou.

Ecologia Profunda

Já é tempo de nós, os Verdes, propormos uma visão libertária, uma visão anarquista que leve as pessoas até um movimento Verde, que possa ser um movimento Verde no sentido mais profundo do termo. Um movimento Verde no qual não nos limitemos a levar adiante um projeto coerente e que unifique todos os problemas em um programa de análise comum, se não em um movimento no qual as pessoas sejam as primeiras protagonistas de sua história. Temos de apoiar a criação de uma sociedade libertária: ecolibertária. Isso é o que nos ensinaram as experiências alemãs e do Estados Unidos, alguns movimentos buscaram perseguir objetivos Verdes atuando “desde cima” através das leis, e sempre teve de ceder. Abandonar uma posição atrás de outra.

Com isso não quero dizer que não temos de nos empenhar em levar a cabo mudanças que possam atrasar ou bloquear a desagregação da sociedade atual e do mundo natural. Já sei que não temos muito tempo à nossa disposição. Os problemas são reais e envolvem também as duas gerações seguintes, e talvez nem sequer as duas gerações seguintes sejam decisivas pelo que diz respeito à sobrevivência de nosso planeta. De todas as formas, se não podemos dar às pessoas uma imagem unitária, uma visão prática e ética ao mesmo tempo, e que questionem as suas sensibilidades, então, vocês sabem quem vai tomar o poder neste caos?: a direita, os reacionários.

Hoje na América, a direita qualifica-se a si mesma como “a maioria moral”, e diz: – “Devolvamos seu significado à vida. Devolvamos seu significado às relações humanas.” E, por má sorte, o que sobrou da esquerda americana não faz outra coisa a não ser falar de “progresso”, de “centralizar” e de todas as mesmas coisas que o socialismo repete já faz 150 anos.

Primeiro temos que recuperar aquele campo sobre o qual as pessoas, o povo, está buscando a verdade, e não apenas a sobrevivência: uma maneira de viver que fale de qualidade e não só de quantidade. Temos de difundir uma mensagem coerente para todos, uma mensagem que seja para a base da sociedade, que a faça participante, que ensine o que significa ser cidadão e decidir autonomamente. Em outras palavras, temos que elaborar uma nova política, uma política Verde que desloque e substitua (reemplace) a velha política autoritária e centralista, baseada nas estruturas dos partidos e na burocracia. Isso é o mais importante que temos de aprender. Se não o conseguirmos, os movimentos verdes serão absorvidos pouco a pouco pelos movimentos tradicionais. O objetivo principal se dissolverá frente aos pequenos objetivos a curto prazo, de término rápido.

Os compromissos sobre “males menores” nos levará sempre a males piores. As pessoas dirão: O que é isso!? A mesma política de sempre! A mesma burocracia de sempre? O mesmo parlamentarismo que sempre tivemos? Porque eu deveria votar no verde? Porque deveria dar força aos verdes? Porque não deveria seguir apoiando a democracia cristã, ou o partido comunista, ou qualquer outro partido que garanta resultados imediatos, e satisfações imediatas? Nossa responsabilidade de Verdes da Europa – como na América – na Alemanha, como em tantas partes do mundo, e, sobretudo na Itália, já que vocês estão apenas começando agora, é de aprender o que está ocorrendo nos movimentos verdes já faz entre 5 e 10 anos.

Temos de nos dar conta que há que se substituir a velha política tradicional dos partidos, com uma política verde. Que há que se por energia em nível de base nas comunidades, que há que se elaborar análises que possam ir mais além do puro ambientalismo e dos outros problemas importantes aos quais nos dedicamos cotidianamente (pesticidas, energia nuclear, Chernobyl).

Temos de nos dar conta que esta sociedade não é somente dura e insensível, mas que suas próprias leis preveem a sua própria destruição, a destruição do planeta e das bases de sobrevivência humana. Temos de propor novas alternativas, novas instituições fundadas em uma democracia local, na participação local, que possa constituir um novo poder contra o Estado centralizado, que possa constituir um novo sistema de relações sociais, no qual um número cada vez maior de pessoas tome parte ativa em uma política realmente libertária. Esta é nossa única alternativa para evitar cair em uma mesma política de partido, corrupta e baixa, que torna as pessoas cínicas, indiferentes, sempre mais encerradas em suas próprias esferas privadas.

Um Momento De Transição

Deixem-me concluir com uma última consideração importante. Não só estamos para melhorar nossas relações humanas. Como o sistema de mercado, também o sistema capitalista segue simplificando não só a obra complexa de milhões de anos, mas também o espírito humano. Se está simplificando o espírito da própria humanidade, está se tirando a complexidade e a plenitude que contribuem para formar pessoas criativas. Então, nossa nova política não deve ter como único objetivo o de salvar o planeta e criar uma sociedade verde, ecológica, de caráter libertário, e uma alternativa política em nível de base. Há também que se ver além disso: se não se puser um fim à simplificação do planeta, da comunidade e da sociedade, conseguirão simplificar o espírito humano a tal ponto ( e com lixo do tipo de Dallas e de Dinasty”: e outros programas televisivos) que se acabará até mesmo com o espírito de rebeldia, o único capaz de promover uma mudança social e um reverdecimento real do planeta.

Hoje vivemos em um momento de transição, não só de uma sociedade para outra, mas também de uma personalidade à outra nova. Muito obrigado!!!